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Processo n.º 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
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Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Pedido formulado no processo n.º 2/2013
No âmbito do processo n.º 2/2013, foi pedida, pelo Presidente da República, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade:
a) Das normas constantes dos n.ºs 1 a 9 do artigo 29.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro de 2012 (Lei do Orçamento do Estado para 2013, adiante LOE2013), e, a título consequente, das restantes normas constantes do mesmo preceito, por eventual violação, no plano tributário, do princípio da igualdade na sua dimensão de proporcionalidade, resultante da conjugação das disposições normativas do artigo 13.º e do n.º 1 do artigo 104.º com a norma do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa República (CRP);
b) Das normas constantes dos números 1 e 2 e, a título consequencial, das restantes normas do artigo 77.° da mesma lei, por violação, no plano tributário, do princípio da igualdade na sua dimensão de proporcionalidade (artigos 13.º e 104.º, n.º 1, conjugados com o artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e por violação do princípio da proteção da confiança, contido no artigo 2.º da CRP;
c) Das normas constantes dos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 78.º da mesma lei e, a título consequente, das restantes normas do mesmo artigo, com fundamento na violação do princípio da unidade do imposto sobre o rendimento pessoal, (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (artigo 104.º, n.º 1, conjugado com os artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP), do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da CRP), do direito a uma sobrevivência com um mínimo de qualidade (artigos 1.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP) e do núcleo essencial de direitos patrimoniais de propriedade, na sua dimensão “societário-pensionista”, garantidos pelo n.º 1 do artigo 62.º, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da CRP.
É a seguinte a fundamentação do pedido:
“1º
As normas que são objeto do presente pedido de fiscalização da constitucionalidade constam da Lei da Assembleia da República que aprova o Orçamento de Estado para 2013 e suscitam as dúvidas de constitucionalidade que se passa seguidamente a mencionar.
I - Suspensão do subsídio de férias aos trabalhadores ativos do setor público
2º
O artigo 29° da Lei indicada dispõe o seguinte:
Artigo 29.º
Suspensão do pagamento de subsídio de férias ou equivalente
1- Durante a vigência do PAEF, como medida excecional de estabilidade orçamental é suspenso o pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês às pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º cuja remuneração base mensal seja superior a €1100.
2- As pessoas a que se refere o n. º 9 do artigo 27.º cuja remuneração base mensal seja igual ou superior a €600 e não exceda o valor de €1 100 ficam sujeitas a uma redução no subsídio de férias ou nas prestações correspondentes ao 14. o mês, auferindo o montante calculado nos seguintes termos: subsídio/prestações = 1320 - 1,2 x remuneração base mensal.
3- O disposto nos números anteriores abrange todas as prestações, independentemente da sua designação formal, que, direta ou indiretamente, se reconduzam ao pagamento do subsídio de férias a que se referem aqueles números, designadamente a título de adicionais à remuneração mensal.
4- O disposto nos n.ºs 1 e 2 abrange ainda os contratos de prestação de serviços celebrados com pessoas singulares ou coletivas, na modalidade de avença, com pagamentos mensais ao longo do ano, acrescidos de duas prestações de igual montante.
5- O disposto no presente artigo aplica-se após terem sido efetuadas as reduções remuneratórias previstas no artigo 27. º bem como as constantes do artigo 31.º
6- O disposto nos números anteriores aplica-se ao subsídio de férias que as pessoas abrangidas teriam direito a receber, incluindo pagamentos de proporcionais por cessação ou suspensão da relação jurídica de emprego.
7- O disposto nos números anteriores aplica-se igualmente ao pessoal na reserva ou equiparado, quer esteja em efetividade de funções quer esteja fora de efetividade.
8- O Banco de Portugal, no quadro das garantias de independência estabelecidas nos tratados que regem a União Europeia, toma em conta o esforço de contenção global de custos no setor público refletido na presente lei, ficando habilitado pelo presente artigo a decidir, em alternativa a medidas de efeito equivalente já decididas, suspender o pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês aos seus trabalhadores durante o ano de 2013, em derrogação das obrigações decorrentes da lei laboral e dos instrumentos de regulamentação coletiva relevantes.
9- O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa e excecional, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos. '
3°
Cumpre assinalar que as normas contidas nos números 1 e 2 do artigo 29º:
a) Se aplicam, por força da remissão feita para a norma do n° 9 do artigo 27° do mesmo diploma, quer a titulares de órgãos de soberania e pessoas que desempenhem cargos públicos nos diversos setores da Administração, quer a trabalhadores com qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, sendo todos eles, para os efeitos deste requerimento, designados por trabalhadores ativos do setor público;
b) Na medida em que determinam a suspensão do subsídio de férias ou de quaisquer prestações correspondentes ao 14° mês aos referidos trabalhadores, mantêm uma medida equivalente à que constava das normas do artigo 21° da Lei do Orçamento de Estado para 2012(1), importando, todavia, assinalar uma diferença entre os dois regimes: enquanto as duas disposições impugnadas neste requerimento determinam, apenas, a suspensão do 14° mês, já as normas do artigo 21° do Orçamento de Estado de 2012 impunham cumulativamente com idêntica medida, também a suspensão do 13° mês (subsídio de Natal).
4º
Importa recordar, como premissa pré-compreensiva da presente argumentação, o contexto jurídico que envolveu por parte do Tribunal Constitucional, com os fundamentos constantes o Acórdão n° 353/2012, a declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 21° e também do artigo 25° da Lei n.º 64-B/2011 que aprovou o Orçamento do Estado para 2012.
5º
O Tribunal Constitucional apreciou, então, a suscitação de um problema de constitucionalidade fundado na repartição desigual de encargos públicos com o equilíbrio financeiro do Estado entre, por um lado, trabalhadores ativos do setor público (artigo 21°) e reformados e pensionistas (artigo 25°), a quem foi determinada a suspensão dos subsídios de férias e de Natal e, por outro, os trabalhadores ativos do setor privado, a quem não foi exigido um sacrifício idêntico.
6º
O Tribunal, no aresto mencionado no n.º 4 deste requerimento e de, algum modo, na linha do Ac. n° 396/2011, admitiu como legítima alguma diferenciação entre 'quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo considerar, no atual contexto económico e financeiro, injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução de rendimento dirigida apenas aos primeiros'.
7º
Contudo, o mesmo órgão não deixou de considerar que a liberdade do legislador em recorrer ao corte de remunerações e pensões que auferem por verbas públicas, tendo em vista atingir o equilíbrio orçamental, não seria ilimitada, pelo que 'a diferença entre o grau de sacrifício para aqueles que são atingidos por esta medida e para os que não são não pode deixar de ter limites', importando ter em conta que 'a dimensão da desigualdade do tratamento tem de ser proporcionada às razões que justificam esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva '.
8°
Atenta a fundamentação exposta, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade das normas do artigo 21 ° e do artigo 25° da Lei do Orçamento para 2012, com fundamento na violação do princípio da igualdade, conjugado com o princípio da proporcionalidade, tendo-o feito nos seguintes termos:
“A diferença de tratamento é de tal modo acentuada e significativa que as razões de eficácia da medida adotada na prossecução do objetivo da redução do défice público para os valores apontados nos memorandos de entendimento não tem uma valia suficiente para justificar a dimensão de tal diferença, tanto mais que poderia configurar-se o recurso a soluções alternativas para a diminuição do défice quer do lado da despesa ( .. .) quer do lado da receita (. .. ). Daí que seja evidente que o diferente tratamento imposto a quem aufere remunerações e pensões por verbas públicas ultrapassa os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional”.
9º
O artigo 29° da Lei que é objeto do presente pedido de fiscalização de constitucionalidade, em articulação com outras disposições de natureza fiscal em sede de IRS constantes do mesmo diploma, mantém um tratamento tributário diferenciado para certas categorias de cidadãos, como os trabalhadores do setor público, do qual resulta um esforço acrescido face àquele que é exigido aos restantes trabalhadores no ativo.
10º
Sucede que, em matéria fiscal, o critério de diferenciação constitucionalmente admitido na tributação do rendimento pessoal é o critério da capacidade contributiva (n.º 1 do artigo 104° da Constituição), o qual corporiza operativamente o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos entre os cidadãos, não podendo a aplicabilidade do mesmo critério cingir-se aos impostos, já que se impõe a quaisquer tributos de caráter parafiscal, em nome dos princípios constitucionais da universalidade e da igualdade, bem como do princípio da prevalência da substância sobre a forma que inere ao Estado material de direito.
Assim,
11º
Embora do ponto de vista contabilístico se possa dizer que a suspensão do subsídio de férias consistirá numa medida que incide sobre a despesa pública, enquanto um agravamento fiscal constituirá uma medida do lado da receita, verifica-se que essa distinção é contabilística e formal pois, de um ponto de vista substantivo e jurídico-constitucional, a suspensão do pagamento do subsídio de férias aos funcionários públicos e pensionistas traduz-se num esforço contributivo acrescido que lhes é unilateralmente exigido para o financiamento do Estado e que envolve uma ablação do seu rendimento anual, pelo que consistirá num verdadeiro imposto.
12º
A desigualdade que subsiste na tributação entre trabalhadores do setor público e do setor privado, em detrimento dos primeiros, terá de ancorar, por conseguinte, em fundamentos materiais adequados, e não tanto em argumentos de maior fragilidade como os que constavam do Relatório relativo à lei do Orçamento de 2012, de acordo com os quais:
i) Os trabalhadores ativos do setor público beneficiariam, em média, de retribuições superiores às do setor privado;
ii) Os mesmos trabalhadores teriam uma maior garantia de subsistência do vínculo laboral.
13º
Quanto ao primeiro argumento, importa esclarecer que ele contraria o sentido dos princípios jurídico-constitucionais da 'capacidade contributiva' e da 'unidade do imposto', acolhidos na norma constante do n.º 1 do artigo 104º da Constituição, já que a fixação do imposto sobre o rendimento não é aferida em função de médias de retribuição de distintas categorias profissionais, mas sim em razão dos rendimentos e das necessidades de cada sujeito ou agregado familiar.
14º
No que concerne ao segundo argumento, parece evidente que a capacidade económica para pagar impostos não é determinada pela maior ou menor estabilidade do vínculo laboral, já que:
a) Um determinado sujeito passivo pode beneficiar de uma menor garantia de subsistência do vínculo e ter uma capacidade económica substancialmente superior a outro com um vínculo laboral mais estável (como é o caso, exemplificativo, de profissionais famosos das artes e espetáculos e do desporto que podem auferir, com um contrato de um só ano, um rendimento que um funcionário público poderá não receber em muitos anos);
b) As reduções salariais no setor público têm afetado mesmo aqueles funcionários com vínculos precários e a termo certo (como será o caso dos professores contratados).
O acolhimento deste argumento obrigaria a uma tributação que examinasse, setor a setor e empresa a empresa, o nível de estabilidade e de precariedade do vínculo laboral dos diferentes trabalhadores, antes de graduar em conformidade as diferentes taxas de imposto, o que se afiguraria não apenas ilógico mas também impraticável.
Dito isto,
15º
Sem embargo de o artigo 29° da Lei que aprova o Orçamento de Estado para o ano de 2013 ter mantido um regime tributário diferenciado entre trabalhadores do setor público e do setor privado, diferença que o Tribunal Constitucional admite, em tese, poder ocorrer em razão do critério do 'recebimento por verbas públicas', importa registar que o mesmo preceito legal reduziu, também, a desproporção entre as duas categorias de trabalhadores na repartição de sacrifícios destinados a garantir o equilíbrio orçamental.
16º
Poderá mesmo afirmar-se que, na norma mencionada no número anterior, a desigualdade que subsiste, quando comparada com o regime julgado inconstitucional constante do artigo 21 ° da Lei de Orçamento de Estado para 2012, deixou de assumir o nível de desproporção previamente existente, passando por exemplo a diferenciar-se quantitativamente, a partir do valor de 1.100 euros, na base da suspensão do montante equivalente a um salário mensal para a função pública.
Contudo,
17º
Se é um facto que as opções normativas constantes do diploma que é objeto deste pedido de fiscalização traduzem um esforço de aproximação em relação à orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional ínsita no Ac. n.º 353/2012, a qual admite uma desigualdade de tratamento tributário entre categorias de trabalhadores nos limites da razoabilidade, cumpre contudo interpelar o órgão máximo de Justiça Constitucional sobre se essa aproximação terá sido suficiente e adequada, à luz do princípio constitucional da igualdade conjugado com o princípio da proporcionalidade.
18º
No juízo de proporcionalidade sobre a conformidade das normas sindicadas com a Constituição não podem deixar de ser tidas em conta, a par do esforço de redução quantitativa da desproporção pré-existente na distribuição de sacrifícios entre as duas categorias de trabalhadores, outros fatores tais como:
a) A equidade e justiça na repartição desses sacrifícios;
b) A proibição do excesso na diferenciação dos sacrifícios entre categorias de trabalhadores.
19º
Sendo o próprio Tribunal Constitucional, no já citado Acórdão n.º 353/2012, que recorda que '(…) quanto maior é o grau de sacrifício imposto aos cidadãos para a satisfação de interesses públicos, maiores são as exigências de equidade e justiça na repartição desses sacrifícios' cumpre destacar, tal como se observou nos números 10° e 13° deste requerimento e atento o disposto no n° 1 do artigo 104° da Constituição, que a capacidade contributiva respeitante ao imposto sobre o rendimento pessoal é aferida por cada sujeito ou agregado familiar em razão do seu rendimento e necessidades.
20º
Uma menor consideração do princípio da capacidade contributiva pessoal pela norma impugnada pode conduzir, em diversos casos e ao arrepio do n.º 1 do disposto no artigo 104° da Constituição, a situações de tributação regressiva do rendimento das pessoas singulares na medida em que, quem tenha um nível de rendimento menor pode vir a ser obrigado, em razão do seu estatuto de funcionário público, a fazer um esforço contributivo sensivelmente maior do que quem tenha um nível de rendimento superior, importando aferir se, nesses cenários de desigualdade, o referido esforço contributivo é ou não excessivo, o que envolve a submissão da mesma norma a um teste de proporcionalidade.
21º
Idêntico teste, por uma aproximada ordem de razões, deve ser feito à norma do n.º 2 do artigo 29° que opera uma redução no valor do subsídio de férias aos trabalhadores do setor público, cuja remuneração de base mensal seja igual ou superior a 600 euros e não exceda o valor de 1.100 euros.
Nestes termos,
22º
Impõe-se a suscitação do controlo da constitucionalidade das normas dos números 1 e 2 do artigo 29° da Lei n° 66-B/2012 e, a título consequente, das restantes normas do mesmo preceito legal, na medida em que subsistem dúvidas sobre se as referidas normas observam 'os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional' (Acº n° 353/2012 do Tribunal Constitucional) extraídos da conjugação das normas do artigo 13° e do n° 1 do artigo 104° da Constituição, com a norma do n.º 2 do artigo 18°, da mesma Constituição.
II. A tributação de reformados e pensionistas
23º
As normas dos artigos 77° e 78° da Lei n.º 66-B/2012, relativas à tributação dos reformados e pensionistas suscitam três ordens de dúvidas em matéria de constitucionalidade que se passa seguidamente a referir.
A. Da inobservância pela norma do artigo 77° do critério da 'igualdade proporcional' na tributação de reformados.
24º
Reza o seguinte o artigo 77° da Lei em apreciação:
'Artigo 77.º
Suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalentes de aposentados e reformados
1- Durante a vigência do PAEF, como medida excecional de estabilidade orçamental, é suspenso o pagamento de 90% do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês, pagas pela CGA, IP., pelo Centro Nacional de Pensões e, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza e grau de independência ou autonomia, nomeadamente as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, e empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal, aos aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados cuja pensão mensal seja superior a e 1 100.
2-Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se a soma de todas as pensões devidas a qualquer título percebidas por um mesmo titular e com a mesma natureza, nomeadamente pensões de sobrevivência, subvenções e prestações pecuniárias equivalentes que não estejam expressamente excluídas por disposição legal, e pagas pela CGA, IP., pelo Centro Nacional de Pensões e, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza e grau de independência ou autonomia, nomeadamente as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, e empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal.
3- Para efeitos do disposto nos números anteriores, considera-se que têm a mesma natureza, por um lado, as pensões, subvenções e prestações atribuídas por morte e, por outro, todas as restantes, independentemente do ato, facto ou fundamento subjacente à sua concessão.
4- Os aposentados cuja pensão mensal seja igual ou superior a € 600 e não exceda o valor de € 1100 ficam sujeitos a uma redução no subsídio ou prestações previstos no n.º 1, auferindo o montante calculado nos seguintes termos: subsídio/prestações = 1188 - 0,98 x pensão mensal.
5- Durante a vigência do PAEF, como medida excecional de estabilidade orçamental, o valor mensal das subvenções mensais vitalícias, depois de atualizado por indexação às remunerações dos cargos políticos considerados no seu cálculo, é reduzido na percentagem que resultar da aplicação dos números anteriores às pensões de idêntico valor anual.
6- O disposto no presente artigo aplica-se cumulativamente com a contribuição extraordinária prevista no artigo seguinte.
7- No caso das pensões ou subvenções pagas, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza e grau de independência ou autonomia, nomeadamente as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, e empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal, o montante relativo ao subsídio cujo pagamento é suspenso nos termos dos números anteriores deve ser entregue por aquelas entidades na CGA, IP., não sendo objeto de qualquer desconto ou tributação.
8- O disposto no presente artigo abrange todos os aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que recebam as pensões e ou os subsídios de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14. º mês, pagos pelas entidades referidas no n.º 1, independentemente da natureza pública ou privada da entidade patronal ao serviço da qual efetuaram os respetivos descontos ou contribuições ou de estes descontos ou contribuições resultarem de atividade por conta própria, com exceção dos reformados e pensionistas abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 127/2011, de 31 de dezembro, alterado pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, e das prestações indemnizatórias correspondentes atribuídas aos militares com deficiência abrangidos, respetivamente, pelo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 93/83, de 17 de fevereiro, 203/87, de 16 de maio, 224/90, de 10 de julho, 183/91, de 17 de maio, e 259/93, de 22 de julho, e pelas Leis n.ºs 46/99, de 16 de junho, e 26/2009, de 18 de junho, pelo Decreto-Lei n. ° 314/90, de 13 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n. ºs 146/92, de 21 de julho, e 248/98, de 11 de agosto, e pelo Decreto-Lei n. ° 250/99, de 7 de julho.
9- O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa e excecional, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.
25º
A argumentação expendida nos n.ºs 3 a 22 deste requerimento relativa à suspensão do pagamento do subsídio de férias aos trabalhadores ativos do setor público é extensível, com adaptações, à questão de suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias, ou de quaisquer prestações correspondentes ao 14° mês, a reformados e pensionistas, determinada pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 77° do diploma em apreciação, acrescendo ainda a essa dúvida de constitucionalidade, uma outra sobre a conformidade das mesmas normas com o princípio da proteção da confiança.
26º
No que concerne às pessoas cuja pensão seja superior a 1.100 euros, a suspensão de 90% do subsídio de férias prevista no n.º 1 do artigo 77° implica um tratamento diferenciado em matéria de tributação de rendimento dos reformados e pensionistas em relação aos demais cidadãos que não sejam trabalhadores ativos do setor público, e que se traduz numa redução de 6,43% do rendimento anual dos primeiros, a qual se associa numa pluralidade de casos, à eventual diminuição de rendimento resultante da alteração dos escalões e das taxas do IRS.
Ora,
27º
Se, de acordo com o n.º 1 do artigo 104° da Constituição, a capacidade contributiva respeitante ao imposto sobre o rendimento pessoal é aferida por cada sujeito ou agregado familiar em razão do seu rendimento e necessidades, e integrando a suspensão do valor de 90% do subsídio de férias o conceito material de tributação fiscal sobre o rendimento pessoal dos reformados, regista-se que estes, sem fundamento material razoável, são discriminados negativamente em termos de esforço tributário em face de outras categorias de cidadãos, nomeadamente dos trabalhadores no ativo do setor privado.
28º
Se no caso dos trabalhadores do setor público a desigualdade de tratamento tributário em relação aos trabalhadores do setor privado pode ter, de acordo com a jurisprudência constitucional, uma justificação dentro de certos limites, centrada no critério do 'recebimento por verbas públicas' por parte dos primeiros, no caso dos reformados, cuja situação específica o Tribunal Constitucional reconhece no Ac. n.º 353/2012, o referido critério justificante não vale exatamente da mesma forma, já que as pensões recebidas de instâncias públicas tiveram, como contrapartida, as contribuições que os mesmos e as entidades empregadoras efetuaram para a segurança social durante a sua vida de trabalho.
29º
A desconsideração do princípio da capacidade contributiva pelos preceitos sindicados (articulados com outras disposições de agravamento fiscal constantes do diploma), na medida em que não toma em conta os rendimentos e necessidades do agregado familiar, é suscetível de gerar situações de tributação regressiva do rendimento de reformados em termos pelo menos idênticos em relação à situação problemática referida no n.º 20 deste requerimento, importando aferir-se:
a) Existe fundamento para essa situação de desigualdade em que o reformado pensionista é sujeito a um esforço contributivo específico em razão da sua condição;
b) Se esse esforço viola, ou não, o princípio da proibição do excesso.
30º
Cumpre, assim:
a) Por identidade de razão com o questionamento da constitucionalidade do artigo 29°, promover a fiscalização da constitucionalidade da norma contida no número 1, e, a título consequencial, das restantes normas do artigo 77° da Lei em exame, na medida em que as mesmas inobservem 'os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional' extraídos da conjugação das normas do artigo 13° e do n.º 1 do artigo 104°, com a norma do n.º 2 do artigo 18° da Constituição da República;
b)Por força da aplicação, com adaptações, da argumentação constante dos números 46° a 53° deste requerimento, suscitar o controlo da conformidade das normas referidas na alínea anterior com o princípio da proteção da confiança, previsto no artigo 2° da Constituição.
B. Da suscetibilidade de violação do princípio da igualdade pelas normas contidas no artigo 78°, por força de criação de um 'imposto de classe' destinado a tributar agravadamente pensionistas e sujeitos a eles equiparados
31°
O artigo 78° da Lei n.º 66-B/2012 dispõe o seguinte:
“Artigo 78.º
Contribuição extraordinária de solidariedade
1- As pensões pagas a um único titular são sujeitas a uma contribuição extraordinária de solidariedade (CES), nos seguintes termos:
a) 3,5% sobre a totalidade das pensões de valor mensal entre € 1 350 e € 1 800;
b) 3,5% sobre o valor de €1 800 e 16% sobre o remanescente das pensões de valor mensal entre €1 800,01 e €3 750, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5% e 10%;
c) 10% sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a 3 750.
2 - Quando as pensões tiverem valor superior a €3 750 são aplicadas, em acumulação com a referida na alínea c) do número anterior, as seguintes percentagens:
a) 15% sobre o montante que exceda 12 vezes o valor do IAS mas que não ultrapasse 18 vezes aquele valor;
b) 40% sobre o montante que ultrapasse 18 vezes o valor do IAS.
3 - O disposto nos números anteriores abrange, além das pensões, todas as prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título a aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que não estejam expressamente excluídas por disposição legal, incluindo as atribuídas no âmbito do sistema complementar, designadamente no regime público de capitalização e nos regimes complementares de iniciativa coletiva, independentemente:
a) Da designação das mesmas, nomeadamente pensões, subvenções, subsídios, rendas, seguros, indemnizações por cessação de atividade, prestações atribuídas no âmbito de fundos coletivos de reforma ou outras, e da forma que revistam designadamente, pensões de reforma de regimes profissionais complementares;
b) Da natureza pública, privada, cooperativa ou outra, e do grau de independência ou autonomia da entidade processadora, nomeadamente as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal, caixas de previdência de ordens profissionais e por pessoas coletivas de direito privado ou cooperativo, designadamente:
i) Centro Nacional de Pensões (CNP), no quadro do regime geral de segurança social;
ii) Caixa Geral de Aposentações (CGA), com exceção das pensões e subvenções automaticamente atualizadas por indexação à remuneração de trabalhadores no ativo, que ficam sujeitas às medidas previstas na presente lei para essas remunerações;
iii) Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS);
iv) Instituições de crédito, através dos respetivos fundos de pensões, por força do regime de segurança social substitutivo constante de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho vigente no setor bancário;
v) Companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões.
c) Da natureza pública, privada ou outra, da entidade patronal ao serviço da qual efetuaram os respetivos descontos ou contribuições ou de estes descontos ou contribuições resultarem de atividade por conta própria, bem como de serem obrigatórios ou facultativos;
d) Do tipo de regime, legal, convencional ou contratual subjacente à sua atribuição, e da proteção conferida, de base ou complementar.
4- O disposto nos números anteriores não é aplicável à componente de reembolso de capital, exclusivamente na parte relativa às contribuições do beneficiário, das prestações pecuniárias vitalícias devidas por companhias de seguros.
5- Para efeitos de aplicação do disposto nos n.ºs 1 a 3, considera-se a soma de todas as prestações da mesma natureza e percebidas pelo mesmo titular, considerando-se que têm a mesma natureza, por um lado, as prestações atribuídas por morte e, por outro, todas as restantes, independentemente do ato, facto ou fundamento subjacente à sua concessão.
6- Nos casos em que, da aplicação do disposto no presente artigo, resulte uma prestação mensal total ilíquida inferior a €1 350 o valor da contribuição devida é apenas o necessário para assegurar a perceção do referido valor.
7- Na determinação da taxa da CES, o 14. ° mês ou equivalente e o subsídio de Natal são considerados mensalidades autónomas.
8- A CES reverte a favor do IGFSS, IP., no caso das pensões atribuídas pelo sistema de segurança social e pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, e a favor da CGA, IP., nas restantes situações, competindo às entidades processadoras proceder à dedução da contribuição e entregá-la à CGA, IP., até ao dia 15 do mês seguinte àquele em que sejam devidas as prestações em causa.
9- Todas as entidades abrangidas pelo n.° 3 são obrigadas a comunicar à CGA, IP., até ao dia 20 de cada mês, os montantes abonados por beneficiário nesse mês, independentemente de os mesmos atingirem ou não, isoladamente, o valor mínimo de incidência da CES.
10- O incumprimento pontual do dever de comunicação estabelecido no número anterior constitui o responsável máximo da entidade, pessoal e solidariamente responsável, juntamente com o beneficiário, pela entrega à CGA e ao CNP da CES que estas instituições deixem de receber e pelo reembolso às entidades processadoras de prestações sujeitas a incidência daquela contribuição das importâncias por estas indevidamente abonadas em consequência daquela omissão.
11- O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, de base legal, convencional ou contratual, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos, com exceção das prestações indemnizatórias correspondentes, atribuídas aos deficientes militares abrangidos, respetivamente pelo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 93/83, de 17 de fevereiro, 203/87, de 16 de maio, 224/90, de 10 de julho, 183/91, de 17 de maio, e 259/93, de 22 de julho, pelas Leis n.ºs 46/99, de 16 de junho, e 26/2009, de 18 de junho, pelo Decreto-Lei n.° 314/90, de 13 de outubro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.° 248/98, de 11 de agosto, e 250/99, de 7 de julho.”
32º
Em síntese:
a) As normas contidas nas alíneas do número 1 do artigo 78° do diploma que é objeto do presente pedido preveem que as pensões de valor mensal situado entre 1.350 e 3.750 euros fiquem sujeitas a uma contribuição extraordinária de solidariedade, fixada entre taxas de 3,5% e de 10%;
b) As normas constantes das alíneas do n.º 2 do preceito legal referido na alínea anterior estipulam que, em acumulação com a taxa de 10% acabada de referir, o montante das pensões que exceda 12 vezes o valor do IAS e que não ultrapasse 18 vezes aquele valor fique sujeito a uma taxa de 15%, enquanto o montante das pensões que ultrapasse 18 vezes o valor do IAS seja tributado com uma taxa de 40%.
33º
A contribuição extraordinária de solidariedade assume a natureza de um imposto sobre rendimento pessoal que resulta ser distinto do IRS, na medida em que:
a) Atinge apenas uma 'classe' ou categoria de pessoas, os reformados e pensionistas, pré-aposentados e equiparados e não a universalidade dos cidadãos;
b) Aparenta apresentar características não apenas de imposto sobre o rendimento pessoal, mas também de imposto sobre o património mobiliário;
c) Incide sobre rendimentos brutos, enquanto o IRS incide sobre rendimentos líquidos após se proceder às deduções específicas previstas no artigo 53° do CIRS;
d) A progressividade da contribuição extraordinária de solidariedade é distinta da progressividade dos escalões do IRS;
e) Apresenta-se como um imposto real que não toma em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, enquanto no IRS os rendimentos de pensões são englobados e sobre eles são feitas deduções à coleta, que espelham a pessoalidade do imposto.
34º
Em razão destes atributos específicos, a taxa de solidariedade determinada pelas normas constantes dos números 1 e 2 do artigo 78° reflete uma fragmentação da tributação do rendimento das pessoas singulares com agravamentos fiscais seletivos em razão de critérios de classe, o que colide com a exigência constitucional de unidade de tributação do rendimento das pessoas singulares, prevista no n.º 1 artigo 104° da Constituição.
35º
Paralelamente, a contribuição extraordinária de solidariedade que impende sobre os reformados e pensionistas envolve um esforço fiscal muito intenso e desproporcionado para os sujeitos passivos aos quais se aplica, do que resultam situações objetivamente discriminatórias e excessivas como a que resulta do seguinte exemplo:
a) Conjugando a Contribuição Extraordinária de Solidariedade com a nova tabela do IRS, com a taxa adicional de solidariedade prevista no artigo 186° e com a sobretaxa prevista no artigo 187°, verifica-se que um reformado que aufira uma pensão com o valor mensal de 1.350 euros fica sujeito à taxa marginal de tributação de 34, a qual se eleva com o valor da pensão, atingindo 77% para um montante de 18 vezes o valor do IAS;
b) Em contraposição com a situação acabada de descrever, para um contribuinte não pensionista, com idêntico rendimento, as taxas marginais de tributação são de 32% e 54%, respetivamente, devendo, em comparação com os trabalhadores ativos do setor privado, acrescer, ainda, a diferenciação que resulta da suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias a reformados e pensionistas.
Do exposto, parece evidente que,
36º
A medida fiscal prevista no artigo 78° ao incidir, como se antecipou, sobre uma categoria específica de cidadãos, reforça a desigualdade na repartição do esforço fiscal, já que não assenta no critério da capacidade contributiva, constituindo uma medida com características potencialmente arbitrárias e discriminatórias que penaliza uma classe ou categoria social determinada, em violação do artigo 13° da Constituição.
37º
De acordo com a norma do n.º 1 do artigo 104° da Constituição, os cidadãos são tributados no seu rendimento pessoal através de um imposto único e progressivo que deve ter “em conta” “as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, o que exclui a possibilidade de uma tributação assente em critérios subjetivos, como o das categorias sociais ou funcionais em que o sujeito passivo se insere.
Por conseguinte,
38º
Na medida em que o imposto sobre o rendimento pessoal não está concebido na ordem jurídica portuguesa como um 'imposto de classe', assente na divisão dos cidadãos em diferentes categorias sociais e profissionais, ocupações e modos de vida, parece resultar que:
a) Por imposição constitucional, o legislador não pode modelar o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares desconsiderando o critério da capacidade contributiva e substituindo-o por outro, à margem da legitimação constitucional;
b) A tributação sobre o rendimento pessoal dificilmente poderá ter outras razões de agravamento que não as decorrentes dos critérios objetivos do princípio da capacidade contributiva, não parecendo admissível, à luz da teleologia que inere à listagem exemplificativa constante da norma do n.º 2 do artigo 13° da Constituição, a criação de benefícios ou discriminações tributárias fixadas em razão da origem, condição social ou, acrescenta-se aqui, da condição ou estatuto de atividade ou de inatividade laboral dos cidadãos.
Nestes termos,
39º
A contribuição extraordinária de solidariedade, na medida em que predica, progressivamente, valores elevados e crescentemente desproporcionados na discriminação tributária negativa do rendimento dos pensionistas em face dos trabalhadores no ativo, carece de fundamento constitucional e de cabal justificação em termos de razoabilidade e de lógica redistributiva.
É que, quanto a esse défice justificativo, cumpre assinalar que
40º
Os reformados e pensionistas, quando comparados com os trabalhadores ativos, encontram-se numa situação de maior carência e vulnerabilidade material já que: não podem progredir em nenhuma carreira e aumentar o seu rendimento, não podem em muitos casos acumular a pensão com rendimentos de trabalho e são objeto de um aumento crescente com encargos no domínio da saúde, pelo que, a ser admissível um critério de discriminação positiva, o mesmo poderia em tese operar justificadamente em favor dos pensionistas, mas já não em favor dos trabalhadores ativos em face dos primeiros.
41º
É certo que a situação de emergência financeira a que o Estado português se encontra sujeito obriga à convocação de uma ponderação proporcional de bens, podendo essa exigência de proporcionalidade justificar a compressão de determinados direitos de natureza remuneratória, em nome de interesses públicos de alto relevo jurídico-constitucional.
Contudo,
42º
Um qualquer 'estado de necessidade' financeiro ou fiscal não parece autorizar:
a) A criação de “impostos de classe” portadores de um esforço fiscal desigualitário e excessivo em face das demais categorias de cidadãos e, mesmo que por hipótese fosse tida como admissível semelhante opção, importaria então, por razões lógicas, que o legislador estabelecesse a identificação das classes e categorias especificamente a onerar atendendo, a título prévio, quer a critérios de capacidade económica, quer a critérios de justiça material, o que manifestamente não sucedeu no caso “sub iuditto”;
b) Que as pensões de nível médio ou superior, por se reportarem a uma minoria (embora expressiva) de pensionistas, possam ser submetidas a um agravamento tributário profundamente desigual e até exorbitante, já que os direitos fundamentais, com relevo para os direitos, liberdades e garantias, valem universalmente para todos os cidadãos nos termos do n.º 1 do art.º 12° da Constituição e são, tal como sustenta Dworkin, 'trunfos' contra as maiorias passíveis de legítima invocação em juízo, em benefício de setores minoritários da sociedade.
43º
Não se diga, por outro lado, que o propósito da contribuição seria o de aproximar os reformados e pensionistas do regime aplicável aos funcionários ativos, designadamente no que respeita a contribuições obrigatórias para a segurança social, carecendo em absoluto semelhante tipo de fundamento de sustentação lógica e jurídica, na medida em que:
a) A carreira contributiva de reformados e pensionistas, em vista de um direito em formação, já se concluiu, tendo aquele direito sido constituído, de forma plena, na respetiva esfera jurídica;
b) Enfermaria de um vício lógico, a pretensão de pensionistas e reformados virem a contribuir para um sistema previdencial sobre os benefícios que auferem desse mesmo sistema, pelo fato de se terem já tomado - por direito próprio - beneficiários do mesmo sistema;
c) Uma contribuição que tivesse por objetivo compensar um eventual desfasamento entre a pensão auferida e as contribuições do trabalhador e do empregador efetuadas no passado teria sempre de respeitar, em virtude dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, o histórico contributivo de cada beneficiário e não a pensão presentemente recebida;
d) Essa contribuição, por se referir a rendimentos passados que produziram todos os seus efeitos contributivos, seria sempre inconstitucional, por violação da proibição da retroatividade da lei fiscal agravadora, nos termos do n.º 3 do artigo 103º da Constituição.
44º
Estima-se, em conclusão, que as normas contidas nos números 1 e 2 do artigo 78º, e a título consequente, as restantes normas do mesmo artigo, enfermam de inconstitucionalidade, radicada nos seguintes fundamentos:
a) A contribuição extraordinária de solidariedade criada pelas mencionadas normas pode, atentas as suas características fiscais autónomas ou próprias, ser definida como um imposto diverso do IRS, pelo que ao refletir uma fragmentação da tributação do rendimento das pessoas singulares, com agravamentos fiscais ditados para certas categorias de cidadãos, viola o princípio da unidade do imposto sobre o rendimento pessoal, previsto no n.º 1 artigo 104º da Constituição;
b) A mesma contribuição, na medida em que tributa, em acumulação com os agravamentos parafiscais previstos no artigo 77º e com os agravamentos orçamentais em sede de IRS, uma categoria específica de pessoas em razão de critérios ligados à sua condição ou estatuto de inatividade laboral e não do critério constitucional da capacidade contributiva, descrimina negativamente, de forma desproporcionada e sem justificação constitucional, os pensionistas, em relação aos trabalhadores no ativo, do que resulta a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, garantidos pelas disposições normativas do n.º 1 do artigo 104° da Constituição conjugadas com as normas do artigo 13° e com as do n.º 2 do artigo 18° da mesma Constituição.
C. A desconformidade das normas sindicadas com os princípios da proteção de confiança, da proporcionalidade e da garantia de direitos patrimoniais associados à propriedade privada na afetação desfavorável do rendimento de pensionistas e aposentados
45º
O Tribunal Constitucional reconhecera já no Ac. n° 353/2012 que a “situação específica dos reformados e aposentados se diferencia da dos trabalhadores da Administração Pública no ativo, sendo possível quanto aos primeiros convocar diferentes ordens de considerações no plano da constitucionalidade”.
46º
A par da discriminação factual de que os reformados foram objeto em termos de esforço fiscal em relação a trabalhadores ativos por força das leis do Orçamento de Estado para 2012 e 2013, a especificidade do seu estatuto jurídico pode ancorar-se nas seguintes premissas:
a) A ordem jurídica portuguesa reconhece a existência de uma relação sinalagmática entre o sistema previdenciário e os contribuintes da segurança social, no marco da qual os pensionistas fizeram um investimento de confiança e que garante que todo o tempo de trabalho releve para o cálculo das pensões;
b) Essa relação permite distinguir a diferente natureza das taxas pagas pelos trabalhadores no ativo à segurança social, através de descontos no seu vencimento, relativamente aos impostos que, no quadro de uma relação unilateral, são pelo mesmo trabalhador pagos ao Estado;
c) A mesma ordem jurídica, embora aceite a redutibilidade (por via tributária ou inclusivamente por força de outros atos como a penhora) das pensões que por virtude dessa relação sinalagmática são devidas aos reformados e aposentados, não deixa de reconhecer um domínio de intangibilidade a essas prestações (cujo valor é variável em função do rendimento) e que se encontra salvaguardado por força da aplicação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da garantia do núcleo de direitos patrimoniais conexos com o direito de propriedade privada.
i) Da inobservância do princípio da proteção de confiança
No que concerne à primeira questão, a norma do n° 4 do artigo 63° da Constituição estabelece que 'todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez independentemente do setor de atividade em que tiver sido prestado ', não assumindo este princípio normativo o caráter de uma norma programática, mas uma natureza precetiva na medida em que é qualificado pela doutrina de referência como um direito social de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (-), sendo inconstitucional toda a lei que desconsidere no cálculo das pensões parcelas do tempo de trabalho ou que opere, nestas últimas, reduções arbitrárias que equivalham a essa desconsideração.
48º
O princípio acabado de expor deve ser conjugado com a relação sinalagmática estabelecida entre o sistema previdenciário e os contribuintes da segurança social e que é reconhecida no artigo 54º da Lei de Bases da Segurança Social (-), sendo nessa relação direta 'entre a obrigação de contribuir e os direitos a prestações' que se funda o investimento de confiança dos cidadãos, assente no postulado de que as suas contribuições para a segurança social durante todo o tempo de trabalho se traduzirão no valor de uma pensão, calculada de acordo com a lei aplicável no momento da aposentação, valor que não poderá ser abrupta e drasticamente reduzido pelo Estado.
49º
O princípio ínsito no n.º 4 do artigo 63° da Constituição deve ainda ser conjugado com a proteção devida a direitos adquiridos dos pensionistas, expressamente reconhecida pelo artigo 66º e pelo artigo 100º da referida Lei de Bases da Segurança Social, determinando este último preceito que 'o desenvolvimento e a regulamentação da presente lei não prejudicam os direitos adquiridos, os prazos de garantia vencidos ao abrigo da legislação anterior, nem os quantitativos de pensões que resultem de remunerações registadas na vigência daquela legislação '.
Ora,
50º
As normas do artigo 78° da Lei impugnada afrontam o princípio da proteção da confiança (deduzido do artigo 2° da Constituição), na medida em que a aplicação das taxas nele previstas, quando acumuladas com as medidas parafiscais previstas no artigo 77° do mesmo diploma e com o aumento da tributação referido no n° 35° deste requerimento, frustram de forma súbita, em muitos casos exorbitante e carente de fundamento constitucional, as legítimas expectativas dos pensionistas em auferirem uma pensão cujo valor efetivo, depois de sujeito a tributação, se não afaste excessivamente do valor esperado e calculado nos termos da lei aplicável no momento da aposentação, atentas as contribuições efetuadas e a salvaguarda do seus direitos adquiridos.
51º
Cumpre, a este propósito, enfatizar com muita clareza que, no tocante a pensionistas e reformados se está, efetivamente, perante autênticos direitos adquiridos tal como se encontram definidos nos termos dos artigos 66º e 100º da Lei de Bases da Segurança Social, e não apenas perante direitos em formação.
52º
A lesão ao princípio da proteção da confiança ainda se pode tomar mais evidente em dois tipos de situações que se passa seguidamente a mencionar.
53º
As medidas previstas nos n.ºs 1 e 2 artigo 78º ao incidirem, de acordo com o n.º 3 deste artigo, sobre certificados de reforma da segurança social e outras prestações pecuniárias que operem como pensões complementares e cuja subscrição voluntária pelos cidadãos tenha sido incentivada pelo Estado, vulneram o investimento de confiança que estes fizeram na sua subscrição, por força da desproporcionada e desnecessária tributação que comportam, já que os mesmos cidadãos, ao abdicarem de outro tipo de poupanças, descontaram valores da sua retribuição para obterem um complemento de reforma que passa a ficar severamente comprometido através de um esforço fiscal equiparado ao das pensões.
Por outro lado,
54º
A redação do n.º 4 do artigo 78°, quando conjugada com o disposto no n.º 3, revela a incidência deste imposto sobre os juros de aplicações puramente privadas bem como sobre o respetivo capital quando não resultem, exclusivamente, de contribuições do beneficiário, o que se mostra desconforme com o princípio da proteção da confiança e com a proteção constitucional da propriedade, tal como consagrada no artigo 62º da Constituição já que:
a) A realização daquelas aplicações foi incentivada pelo legislador, designadamente através da concessão de benefícios fiscais, pelo que a alteração legislativa agora operada assume uma natureza gravosa e contraditória com as expectativas criadas pelo mesmo legislador;
b) Ao incidir de forma muito significativa sobre o capital, o imposto é confiscatório e expropriativo, na medida em que representa uma descapitalização notória, arbitrária e desigual de aplicações financeiras realizadas por reformados, até em comparação com aplicações de outra natureza.
ii) Da afetação desproporcionada do direito a uma sobrevivência com um mínimo de qualidade
55º
Tal como foi antecipado no n.º 46 deste requerimento, existem no ordenamento português disposições legais que admitem a redutibilidade das pensões, mormente em caso de penhora, o que significa que, independentemente dos descontos feitos, o sistema admite a ablação parcial do seu valor quando esteja em causa a prevalência de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, embora essas reduções se encontrem sujeitas à observância de uma parcela intangível.
56º
A título de exemplo, a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 824° do Código de Processo Civil veda a penhora de dois terços das pensões de aposentação, regalia social, seguro, renda vitalícia ou qualquer pensão dessa natureza.
57º
O Tribunal Constitucional sobre esta matéria tem entendido que o direito do credor em realizar o seu crédito fundamenta-se no direito de propriedade o qual pode colidir com o direito do pensionista a receber uma pensão que lhe garanta 'uma sobrevivência condigna' (artigos 1° e 63° na Constituição), pelo que o sacrifício do direito do credor em não satisfazer o seu crédito na totalidade à custa do valor das pensões do devedor 'será constitucionalmente legítimo se for necessário e adequado à salvaguarda do direito fundamental do devedor a uma sobrevivência com um mínimo de qualidade' impondo-se que o legislador adote 'um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito' (Ac. n.º 349/91).
58º
Limites de natureza análoga ditados por exigências de proporcionalidade na redução do valor das pensões por via tributária, tendo em vista a salvaguarda de uma existência condigna dos pensionistas, devem igualmente impor-se no esforço fiscal que recai sobre os reformados e pensionistas.
59º
Sucede que a carga de esforço crescentemente desproporcionada que impende sobre as pensões, e que é claramente exemplificada na alínea a) do n.º 35º deste requerimento pode ter comprimido, para além do admissível, nas pensões a partir de 1350 euros, dimensões constitucionalmente protegidas pelo artigo 1º em conjugação com as normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63° da Constituição, atento o facto dessas normas, ignorando o princípio da capacidade contributiva, terem a potencialidade de afetar as condições de 'sobrevivência com um mínimo de qualidade' de muitos pensionistas e respetivos agregados.
iii) Diminuição do núcleo essencial de direitos patrimoniais conexos com o direito de propriedade privada
60º
A carga de esforço tributário que é potenciada em termos excessivos pelo disposto no artigo 78º do diploma ora sindicado pode, igualmente, pôr em causa direitos patrimoniais conexos com o direito de propriedade privada, ou se se quiser, da propriedade societário-pensionista que se reconduz à norma do n.º 1 do artigo 620 da Constituição e que beneficia, com adaptações, do regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias contido no artigo 18° da mesma Constituição.
61º
Existem, na verdade, tal como se demonstra no n.º 35 deste requerimento, cargas de esforço fiscal relativas a uma pluralidade de níveis de rendimento que, por efeito da aplicação da contribuição extraordinária de solidariedade, podem revestir, pela sua desnecessidade, desproporção quantitativa e falta de fundamento num critério constitucional aceitável como o da capacidade contributiva, um caráter expropriatório ou confiscatório que atinge o núcleo essencial de direitos patrimoniais conexos ao direito de propriedade privada, impedindo nomeadamente que os rendimentos líquidos dos pensionistas lhes proporcionem uma existência condigna e com um mínimo de qualidade.
62º
Em conclusão, cumpre também suscitar o controlo da constitucionalidade das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 78° do diploma em apreciação, com fundamento na eventual violação do núcleo essencial de direitos patrimoniais de propriedade, garantidos pelo n.º 1 do artigo 62° da Constituição e de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 18° da Constituição.”
2. Pedido formulado no processo n.º 5/2013
No âmbito do processo n.º 5/2013, foi pedida, por um Grupo de Deputados (do PS) à Assembleia da República, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade:
a) Das normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.° da LOE 2013, com fundamento na violação dos princípios da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito contemplado no artigo 2.º da CRP, da igualdade perante a repartição dos encargos públicos, coberto pelo artigo 13.º, n.º 1, da CRP, da proporcionalidade, decorrente, designadamente, do princípio da dignidade da pessoa humana, tutelado pelo artigo 1.º da CRP e do princípio do Estado de Direito, bem como os artigos 62.º, 63.º, 105.º e 106.º, n.º1, todos da CRP;
b) Da norma constante do artigo 78º da mesma lei, por violação do artigo 104.º da CRP, dos princípios da proteção da confiança, da igualdade perante os encargos públicos e ainda dos artigos 62.º e 63.º da CRP, e por violação do princípio da igualdade (artigoº 13.º da CRP) na medida em que se pretenda impôr um adicional de sacrífico assumidamente equivalente entre funcionários e pensionistas, ex-funcionários e não, o que consiste em tratar de modo idêntico destinatários em situação diferente.
c) Das normas constantes do artigo 29.° da mesma lei, por violação dos princípios da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito contemplado no artigo 2.º da CRP, da igualdade face à repartição dos encargos públicos, coberto pelo artigo 13.º, n.º 1, da CRP, bem como da proporcionalidade, nos seus segmentos da adequação e necessidade, em termos equivalentes aos aduzidos a propósito das normas do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, para além dos artigos 106.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, a), ambos da CRP.
É a seguinte a fundamentação do pedido:
“Inconstitucionalidade das normas do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LOE 2013.
Alcance
1. As normas supra citadas impõem aos pensionistas - que tinham visto amputado pela LOE 2012 o valor anual das suas reformas, a título de “suspensão de pagamentos de subsídios, até mais de 14,2% - um novo programa plurianual de amputações, indo até mais de 6,4% em cada ano, que pretende aplicar-se, como o anterior se propunha, durante a vigência do PAEF”. Como nas normas orçamentais que as precederam, a amputação inicia-se a partir da pensão mensal de 600 euros, e atinge o nível máximo a partir da pensão mensal de 1100 euros.
2. Com o programa agora reformulado, alcançar-se-á em três anos (2012, 2013, 2014) uma ablação efetiva, só a este título de suspensão de pagamento de subsídios, de até mais de um quarto do valor anual das suas pensões (27%), em termos nominais.
3. Esta medida entra em vigor fazendo corpo com outra (artigo 77.º, n.º 6) que, adicionalmente, retira aos pensionistas 3,5% a 10% do montante anual das pensões na faixa situada entre as pensões de 1350 e de 3750 euros mensais, aplicando-se, a partir desse montante, ablações mais severas (v. art.º77.º da LOE 2013). Tal significa, em dois exercícios orçamentais, uma desapropriação cumulativa de mais 7 a 20%, que eleva, na prática, o valor acima indicado de 27% para 34%, no caso de uma pensão de 1350 euros (e para 47%, no caso de uma pensão de 3750 euros, para não argumentar com os impactos mais drásticos sobre as pensões a partir daí).
4. Em relação a um pensionista com um valor de pensão como o indicado (1350 euros) -e a partir daí com expressão bem mais elevada-, só o programa cumulativo (v. art.º 77.º, n.º 6, da LOE 2013), que se poderia denominar “suspensão/redução de subsídios mais contribuição extraordinária (pressupondo que esta cumulação ablativa pretende aplicar-se, no mínimo, neste e no próximo ano orçamental), completaria, no período em referência, a ablação de mais de um terço do montante anual, nominal, da pensão - em adição à punção fiscal.
5. Acresce que as duas medidas vêm a luz num quadro caracterizado por um drástico agravamento fiscal, decorrente da redução do número de escalões e da aplicação de uma sobretaxa de 3,5% no âmbito do IRS - um quadro que é, por igual, aplicado aos pensionistas. Prescindindo de entrar em linha de conta com todo o edifício do IRS e do efeito que lhe é acrescentado pela redução de escalões e outras alterações, e considerando apenas o efeito, isolado, da “sobretaxa”, a percentagem do montante anual da pensão perdida, no período em causa, passaria, num dos casos indicados, para 41%, e no outro para 54 %, sempre em termos nominais (e sem argumentar com o caso das pensões de valor superior a 4250 euros).
6. No ordenamento orçamental instituído para 2013, nenhuma norma prevê qualquer efeito compensatório específico para o facto dos destinatários de normas orçamentais plurianuais que se sucederam transitarem da alçada do artigo 27.º da LOE 2112 - que só por ter sido declarado inconstitucional deu espaço, doutro modo inexistente, para a solução aqui em causa - para a do artigo 75.º da LOE 2013 já amputados, por via de desapropriação ilegítima (suspensão de pagamento de subsídios), de 7,1 % a 14,2% do valor anual da pensão.
Normas e princípios constitucionais violados
7. São violados os princípios da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito contemplado no artigo 2.º da Constituição, da igualdade perante a repartição dos encargos públicos, coberto pelo artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, da proporcionalidade, decorrente, designadamente, do princípio da dignidade da pessoa humana, tutelado pelo artigo 1.º da Constituição e do princípio do Estado de Direito, bem como os artigos 62.º e 63.º da Constituição e ainda o artigo 105.º da Constituição
8. Amputar, com os efeitos referidos, pensões alcançadas com base em vidas de trabalho e de carreiras contributivas nos termos fixados pela lei, esforço dos próprios e, com essa estrita finalidade, de terceiros - quando a própria lei reconhece como relação sinalagmática direta a relação entre contribuição e prestação (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009,de 16 de setembro, art.º 112, n.º 3) - é ferir gravemente a confiança no Estado de Direito. 0s cidadãos têm direito a esperar que o Estado honre os seus compromissos, em especial quando já cumpriram os seus. A comunidade deixa de ter razões para confiar no Estado e na lei, se estes não sustentam a sua promessa perante os mais velhos - em particular quando estes já satisfizeram, em tempo oportuno, tudo o que lhes era pedido em contrapartida pela lei.
9. Fazer isso em relação a pessoas que, para além de terem cumprido a sua parte, já não podem alterar os seus planos de vida face ao incumprimento público, é uma ofensa qualificada ao princípio da proteção da confiança, praticada sobre expectativas que são, entre todas, merecedoras de uma proteção reforçada.
10. Quer quanto aos pensionistas que nunca foram servidores públicos, quer quanto aos que o foram, a muito significativa diferença de tratamento que é instituída em seu desfavor, no contexto orçamental em que ocorre, não só se afasta de qualquer justificação atendível (o critério da eficácia resultante da facilidade na execução não pode ser invocado em anos consecutivos - no que aliás se desautoriza a si próprio) como, utilizando o critério introduzido pelo TC, e para mais constando de novo de normas orçamentais plurianuais, exorbita de qualquer tolerável limiar de sacrifício.
11. Se se atentar que a posição dos pensionistas, comparada com as demais posições de proveniência de receita/redução de despesa, carrega aos ombros o peso das medidas, declaradas inconstitucionais, já suportadas, encontrando-se assim em desigual ponto de partida criado ilegitimamente pelo legislador, ressalta o caráter desproporcionado e excessivo da diferenciação reformulada. E não é admissível que um décimo de um catorze avos do valor anual da pensão (0,07%) compense neste plano qualquer diferença, ou seja expressão séria de uma consideração da situação específica dos pensionistas (como no Relatório se faz crer).
12. As medidas legislativas até aqui analisadas ofendem o princípio da proporcionalidade em pelo menos dois dos seus segmentos, adequação e necessidade.
13. Essas medidas não são adequadas para atingir ou fomentar o fim que visam, isto é o fim (imediato) da consolidação orçamental. Mesmo que o Tribunal deva atender à perspetiva ex ante do legislador, baseando o seu juízo na apreciação dos factos, nos conhecimentos técnicos e de ciência - particularmente da ciência económica - e nas prognoses que o legislador poderia e deveria fazer tendo em conta a experiência, é evidente que as medidas que agora se repetem não permitem atingir nem fomentar o fim visado, antes se mostram até contraproducentes.
14. O legislador devia ter tido em conta a experiência de 2011 e 2012 e os ensinamentos da ciência económica no momento da produção das normas referidas, não podendo deixar de concluir pela sua inadequação, como não pode agora o Tribunal, fazendo o juízo que o legislador deveria ter evidentemente feito, deixar de concluir pela inadequação e consequente violação do princípio da proporcionalidade.
15. Do mesmo modo, e tal como no ano transato, as medidas analisadas não se afiguram as menos drásticas, ou as menos restritivas, dentro de um espetro alargado de alternativas, antes se configurando como as mais fáceis e as que menos esforços envolvem da parte do Estado. Os repetidos anúncios por parte do Governo de que é possível reduzir a despesa do Estado em vários milhares de milhões de euros dá força a esta convicção de que as medidas em causa são inconstitucionais por violação do segmento da necessidade do princípio da proporcionalidade.
16. Como o evidenciam anteriores abordagens desenvolvidas no TC, a imposição de diferenciação de tratamento como esta não poderia ser objeto de “medida plurianual”— por um lado por ser a ultra atividade incompatível com a Constituição, por outro por a necessidade e justificação da medida não poderem verificar-se senão em relação ao horizonte de um orçamento (artigo 106.º n.º 1 da Constituição).
17. As pensões, de específico valor, atribuídas a pessoas, em resultado de contribuições, próprias e alheias, e em concretização, já subjetivada, do direito constitucional à segurança social, prevista no artigo 63.º da Constituição, devem ser havidas como bens privados, isto é, propriedade para os efeitos da proteção constante do artigo 62.º da Constituição, nomeadamente do seu n.º 2. Não seria compreensível que na ordem constitucional portuguesa o direito a uma pensão, fixado em certo valor nos termos da lei e atribuído a uma pessoa, com os pressupostos dela constantes, tivesse uma proteção inferior à propriedade (no sentido constitucional) e a sua sustentação, nessa esfera, ficasse apenas entregue aos cuidados do princípio da proteção da confiança. Quando se amputa uma pensão de velhice, seja em que contexto for, não é só de confiança - mas de mais do que isso - que devemos falar.
18. As ablações em causa, operando a título definitivo e desacompanhadas, como são, de compensação adequada, até mesmo quando reconhecidas inconstitucionais, revestem caráter confiscatório (cf. Meneses Leitão, «Anotação», in Revista da Ordem dos Advogados, 2012, pág. 415ss), também em consonância com doutrina e jurisprudência de vários países europeus, a começar pela Alemanha, e de tribunais internacionais (cf., por todos, J. C. Loureiro, «Adeus ao Estado Social», pág. 115ss). Em síntese: pensões resultantes da contribuição e do esforço individual, pressupondo prestações não irrelevantes do próprio e de terceiros e servindo de fundamento a planeamento individual de existência, em especial na velhice, constituem ou, consoante a ordem jurídica concreta, são créditos privados que equivalem a propriedade, para o efeito de beneficiarem de proteção constitucional não menor da que é atribuída a este direito (entre nós, art.º 62, n.º2, da Constituição).
19. As normas em causa, diferentemente dos chamados “chevaliers budgétaires”, constituem típicas normas orçamentais, pelo que sujeitas ao princípio da anualidade, a que constitucionalmente está submetido o orçamento. Em sede orçamental, a ultra atividade é incompatível com a Constituição (cf. Moura Ramos, declaração de voto, Ac. n.º 353/2012). É infringida a norma que consta do artigo 106, n.º 1, da Constituição.
Inconstitucionalidade do artigo 78.º da LOE 2013
Alcance
20. Estabelece-se aqui um imposto a que se dá o nome de contribuição extraordinária de solidariedade: um imposto sobre o tipo de rendimento pensão (ou para este efeito assim considerado) que é, declaradamente, moldado por forma a infligir um sacrifício equiparável (esta medida visa alcançar um efeito equivalente à medida de redução salarial, lê-se no Relatório 0E2013, pág. 51) ao das “reduções remuneratórias” aplicadas os funcionários públicos em 2011 e anualmente renovadas até agora. Também neste sentido é claro o Relatório cit., onde se lê que o aumento da despesa que resulta das alterações no regime dos subsídios, vencimentos e pensões, alegadamente decorrentes do Acórdão do TC, será compensado por medidas de caráter fiscal (pág.47).
21. Na verdade, o que é exigido de quem já concluiu a sua carreira contributiva, e com base nela formou o seu direito a uma específica pensão como é aqui o caso, não pode ser equiparado, ou sequer aproximado, às “participações patrimoniais” a que se reconduzem as contribuições e quotizações próprias do sistema de segurança social. Falta aí, de todo, a “relação sinalagmática” que a própria ordem jurídica a reconhece (cf. Código e Lei citados). O regime traçado facilita a conclusão ao consagrar uma completa indiferença à diferente natureza das “pensões”, de origem contributiva e não contributiva, e prestações e rendimentos análogos abrangidos.
22. Tendo presente a referência do Relatório do 0E2013 às reduções remuneratórias, a alternativa à qualificação fiscal é ver-se aqui uma pura redução de pensões escondida sob a designação de contribuição, já que as entidades a quem é consignado o produto dela (ISS, I.P. e CGA, I.P.) são afinal as que deveriam colocar o seu valor nas mãos dos titulares das pensões e os próprios proponentes da solução usam abertamente o modelo sacrificial e legal das “reduções remuneratórias” (cf. OE2013 Relatório ).
Normas e princípios constitucionais violados
23. Vista a contribuição como imposiç5o de natureza fiscal, é violado o artigo 104.º da Constituição, que prevê um imposto sobre o rendimento “único” e personalizado (“tendo em conta as necessidades e rendimentos do agregado familiar”), o que nesta construção é infringido.
24. A interpretar-se este sacrifício adicional como redução de tipo análogo que é mantida para funcionários - ou seja, outra pura amputação de pensão - estão então em causa os princípios da proteção da confiança, da igualdade perante os encargos públicos e os artigos 62.º e 63.º da Constituição, sendo inteiramente aplicáveis, e correlativamente agravados, os juízos e conclusões formulados a propósito da suspensão de subsídio de férias.
25. Acresce que se está fora do âmbito pessoal versado no Acórdão do TC n.º 396/2011 (“servidores públicos”, “ vencendo por verbas públicas”, “com especial vínculo à prossecução do interesse público”) - para além de se exceder, no concreto regime instituído, o “limiar de sacrifício” a que aí se faz referência — pelo que a imposição de um adicional de sacrifício assumidamente equivalente entre funcionários e pensionistas, ex-funcionários e não, consistindo em tratar de modo idêntico destinatários em situação diferente, representa violação, noutra dimensão, do princípio da igualdade ( art.º 13.º da Constituição ).
Inconstitucionalidade dos artigos 29.º da LOE 2013
Alcance
26. Impõe-se aqui ao grupo que, por comodidade de expresso, se designará genericamente de trabalhadores da função pública, que tinham visto, pela LOE de 2012, amputado, até mais de 14,2%, o valor anual da sua remuneração - sacrifício já efetivamente suportado com que, também eles, transitam para a esfera do presente normativo orçamental - um programa plurianual específico de novas amputações, que pretende vigorar, como o anterior, “durante a vigência do PAEF”, indo até 7,1% em cada ano (“suspensão/redução do subsídio”). Alcança-se assim, em três anos (2012, 2013, 2014), uma ablação, só a este título, de mais de um quarto do valor anual do seu vencimento (28,4%). Tomando em consideração a “redução remuneratória”, logo no vencimento de 1500 euros mensais, a “perda”, no período (e sem tomar em consideração a esfera fiscal), eleva-se para 38,9% do valor da remuneração anual (sendo a partir daí os números bem mais elevados).
27. A presente medida sacrificial ocorre no quadro, já referido, de um acentuado agravamento fiscal, decorrente da redução do número de escalões e da aplicação de uma sobretaxa de 3,5% no IRS, em que é tudo, por igual, aplicado aos trabalhadores da função pública.
28. Com efeito, no ordenamento orçamental instituído, como ocorre com os pensionistas atingidos, nenhuma norma atribui qualquer efeito útil ao facto dos destinatários das normas orçamentais plurianuais que se sucederam transitarem da alçada dos artigos sacrificiais da LOE 2012 - interrompidos pelo acórdão do TC na sua pretensão de vigência plurianual - para a das presentes normas da LOE 2013 já amputados, por via de ilegítima apropriação, de 7% a 14% do valor anual da remuneração.
29. Assim, o “programa de diferenciação/ablação” em subsídio que subjazia à norma de 2012 visava retirar aos trabalhadores da função pública, nos anos de 2012, 2013, 2014, até 42,8% (3x14,2) a mais que aos outros destinatários não abrangidos por este tipo de sacrifícios. Com o novo dispositivo, a diferenciação sacrificial imposta, a este título, fica ainda em 28,5% (ou seja, sobrevivem dois terços do programa diferenciador original, em ambiente bem mais agravado para todos, e também, e ao mesmo nível, para os destinatários do “programa”).
30. Cumulando com a redução remuneratória, que continua a operar, o diferencial em desfavor dos trabalhadores da função pública, naquele período, ascende a 39,5% do valor da remuneração anual, logo a partir dum vencimento de 1500 euros.
Normas e princípios constitucionais violados
31. A solução imposta viola o princípio da proteção da confiança, o princípio da igualdade face à repartição dos encargos públicos e o art.º 106, n.º 1, da Constituição (anualidade).
32. Viola, além disso, o princípio da proporcionalidade, nos seus segmentos da adequação e necessidade, em termos equivalentes aos acima aduzidos a propósito das normas do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, que se dão aqui por reproduzidos.
33. Ao já aduzido, acresce que o Estado não sustenta o seu compromisso em termos de retribuição, mas sustenta o mesmo grau exigência em matéria de duração e qualidade na prestação do trabalho, o que acarreta, para lá da violação do art.º 59.º n.º 1 a) da Constituição, como apontado por Meneses Leitão (ROA, cit) - violação que também aqui se invoca - ofensa ao princípio da confiança.
34. A diferença de tratamento, na dimensão, “muito significativa”, que é instituída em desfavor dos trabalhadores da função pública, a partir dos que apenas ganham 600 euros mensais, no contexto orçamental em que agora ocorre, não só se afasta de qualquer justificação atendível (o critério da eficácia não pode ser invocado em vista de orçamentos futuros em anos consecutivos), como ultrapassa o limiar de sacrifício, utilizando o critério que foi introduzido pelo TC. Neste rumo, constitucionalmente desautorizado, releva ainda a ultra atividade da norma (pretensão a vigorar para lá do ano em causa), incompatível com a Constituição.
35. Deve também frisar-se que o sacrifício extrafiscal dos trabalhadores da função pública “compara” agora com o tratamento, em primeiro lugar em sede extrafiscal, dado às demais proveniências de receita/redução de despesa, elegíveis para a partilha do sacrifício, levando às costas todo o peso das medidas declaradas inconstitucionais que já suportaram - o que faz ressaltar o caráter excessivo, e excessivamente diferenciado, do tratamento que lhes é aplicado.
36. A violação do princípio da igualdade avulta, em particular, se se notar que em relação a outros contratos, ou outros vínculos sinalagmáticos de que emergem posições devedoras e mesmo pagamentos regulares da parte do Estado, não foi aplicada ablação idêntica - como se só em relação a “trabalho” e “pensões” as regras e princípios da Constituição; fora do âmbito fiscal, permitissem amputações e cortes por via legal deste tipo e dimensão, o que não pode aceitar-se.
37. A regra orçamental em causa pretende-se de efeito plurianual, e de âmbito de vigência reportado à vigência do PAEF, pelo que, conforme já invocado, viola o art.º 106 n.º 1 da Constituição ”.
3. Pedido formulado no processo n.º 8/2013
No âmbito do processo n.º 8/2013, foi pedida, por um Grupo de Deputados (do PCP, do BE e do PEV) à Assembleia da República, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade:
a) Das normas constantes dos artigos 27.º, 29.º e consequentemente do artigo 31.º, e 45.º, da LOE2013, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da CRP, do princípio da confiança enquanto elemento estruturante do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, do princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrado no artigo 13.º, do direito à contratação coletiva consagrado no artigo 56.º, n.º 3, do direito ao salário consagrado no artigo 59.º, n.º 1, a), bem como das obrigações decorrentes de contrato na elaboração do Orçamento do Estado nos termos do artigo 105.º, n.º 2, todos da CRP, para além do caso julgado formado pelo Acórdão n.º 353/2012;
b) Das normas constantes do artigo 77.° da referida lei, por violação do princípio da confiança enquanto elemento estruturante do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP, bem como do direito à segurança social previsto no artigo 63.º, n.ºs 1, 3 e 4 ambos da CRP;
c) Das normas constantes do artigo 78.º da mesma lei, por violação do princípio da confiança enquanto elemento estruturante do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, bem como do princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrada no artigo 13.º, ambos da CRP.
d) Do artigo 117.º, n.º 1, da mesma lei, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, dos direitos dos trabalhadores em situação de desemprego e de doença consagrados no artigo 59.º, n.º 1, alíneas e) e f), e do direito à segurança social consagrado no artigo 63.º, n.º 3, todos da CRP.
e) Do artigo 186.º (na parte em que altera os artigos 68.º, 71.º, 72.º, 78.º, 85.º e adita o artigo 68.º-A ao Código do IRS da mesma lei), por violação da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrada no artigo 13.º da CRP e por violação da progressividade e do princípio da capacidade contributiva do imposto sobre o rendimento consagrados no artigo 104.º, n.º 1, ambos da CRP;
f) Do artigo 187.º da mesma lei, por violação da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrada no artigo 13.º, por violação da unidade e progressividade do imposto sobre o rendimento previsto no artigo 104.º n.º 1, ambos da CRP e por violação de caso julgado pelo Acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional.
É a seguinte a fundamentação do pedido:
“Da inconstitucionalidade dos artigos 27.º, 29.º, 31.º e 45.º
1. O artigo 27.º da LOE 2013 mantém as reduções das remunerações totais ilíquidas mensais dos cidadãos elencados no n.º 9 desse artigo, bem como no artigo 31.º, que têm em comum o facto de auferirem remunerações suportadas diretamente pelo Estado ou por entidades públicas, reduções que oscilam entre os 3,5%, no caso dos cidadãos com remuneração superior a 1500 euros mensais, e 10% no caso das remunerações de valor superior a 4.165 euros.
2. Esta disposição é idêntica à já consagrada nos Orçamentos do Estado para 2011 e para 2012, sendo assim aplicada pelo terceiro ano consecutivo.
3. Acresce que o artigo 29.º da LOE 2013 suspende o pagamento do subsídio de férias ou quaisquer outras prestações correspondentes ao 14.º mês, na totalidade, para os mesmos cidadãos, mas vai mais longe, ao prever a redução desse mesmo subsídio a todos os cidadãos previstos no n.º 9 do artigo 27.º e no artigo 31.º, desde que as respetivas remunerações excedam os 600 euros mensais.
4. Por seu lado, o artigo 45.º da LOE 2013 determina que todos os acréscimos ao valor da retribuição horária referentes a pagamento de trabalho extraordinário prestado em dia normal de trabalho, pelos mesmos cidadãos elencados no n.º 9 do artigo 27.º, cujo período normal de trabalho não exceda sete horas por dia nem 35 horas por semana sofram um corte de 12,5% da remuneração na primeira hora, e de 18,75% da remuneração nas horas ou frações subsequentes.
5. O que está em causa é portanto a admissibilidade constitucional das reduções salariais, pela prestação de trabalho normal ou extraordinário, e da suspensão dos subsídios de férias, conjugadamente, nos exatos termos previstos na LOE 2013.
6. Trata-se pois de saber em que medida é constitucionalmente admissível que o legislador determine o corte das remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas ou equiparadas, pondo em causa o seu direito à retribuição.
7. Esta questão foi já objeto de decisão do Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 396/2011, que apreciou o corte das remunerações previstas no Orçamento do Estado para 2011, idênticas às previstas no artigo 27.º da LOE 2013, não se pronunciando pela sua inconstitucionalidade.
8. lmporta porém lembrar que o citado acórdão assentou o seu juízo no pressuposto de que tal redução seria uma “medida idónea para fazer face à situação de défice orçamental”. Dando como adquirido que “só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata” para garantir “resultados a curto prazo” na consolidação orçamental. Por não haver “razões de evidência em sentido contrário”, o Tribunal considerou que a medida prevista para 2011 se incluía ainda “dentro dos limites do sacrifício que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardavam”.
9. Como é sabido porém, chamado a decidir sobre idênticos cortes salariais contidos no Orçamento do Estado para 2012, conjugados com a suspensão dos subsídios de férias e de Natal dos cidadãos que auferem remunerações públicas, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 353/2012, considerou que a conjugação entre o congelamento de salários e pensões do setor público vigente desde 2010, os cortes salariais vigentes desde 2011 e o corte dos subsídios de férias e de Natal de 2012 aplicáveis aos trabalhadores e pensionistas do setor público, ultrapassavam de forma evidente os limites do sacrifício a que aludia o Acórdão n.º 396/2011.
10. Assim, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários e pensionistas do setor público, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de igualdade proporcional, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
11. Vemos assim que, ainda que o Tribunal Constitucional tenha admitido a constitucionalidade de cortes salariais até um certo limite, a proteção do direito dos trabalhadores à remuneração, o cumprimento pontual dos contratos e a proporcionalidade na imposição de sacrifícios aos cidadãos por parte do Estado, não são valores alheios à ordem constitucional portuguesa. E todos eles estão em causa na LOE 2013.
12. Com efeito, diversas disposições constitucionais, com projeção em diplomas legislativos, revelam não ter sido intenção do legislador constituinte dar o aval a reduções salariais.
13. Tal resulta do artigo 1.º que se refere à dignidade da pessoa humana e ao empenhamento do Estado na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; do artigo 9.º, d) que considera tarefa fundamental do Estado a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo; do artigo 59.º, n.º 1, a) que consagra o direito à retribuição do trabalho de modo a garantir uma existência condigna; do artigo 59.º, n.º 2, d) que estabelece a incumbência do Estado de estabelecer e atualizar o salário mínimo nacional; do artigo 59.º, n.º 3, segundo o qual os salários gozam de garantias especiais nos termos da lei; ou o artigo 81.º, a) que estabelece como incumbência prioritária do Estado promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas.
14. Mais: o artigo 16.º da Constituição dispõe que os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional. É o caso do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 16 de dezembro de 1966, ratificado sem reservas através da Lei n.º 45/78, de 11 de julho, que reconhece no artigo 7.º o direito a uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores um salário equitativo e uma existência decente para eles e para as suas famílias.
15. Decisivo porém, é o facto do direito à retribuição do trabalho constituir um direito fundamental, consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (conforme Acórdãos n.ºs 373/91 e 498/2003 do Tribunal Constitucional), sendo-lhe aplicável o mesmo regime garantístico.
16. Assim, as restrições salariais impostas pelo legislador, incluindo tanto as reduções remuneratórias como a suspensão do subsídio de férias, não sendo expressamente autorizadas pela Constituição, só seriam admissíveis para resolver problemas de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais, ou seja, para salvaguarda de um interesse constitucionalmente protegido (neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4. edição, 2007, pág. 393).
17. Mesmo admitindo, como mera hipótese de raciocínio que o chamado PAEF (Plano de Assistência Económica e Financeira) assinado entre o Governo Português e a “troika” formada pelo FMI, BCE e CE, ou que a redução do défice das contas públicas, correspondam a interesses constitucionalmente protegidos, sempre haverá que verificar se os cortes nas remunerações previstos respeitam o princípio da proporcionalidade, enquanto pressuposto decisivo do respeito pelo princípio constitucional da igualdade.
18. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, o respeito pelo princípio da proporcionalidade impõe a proibição do excesso, em três diferentes dimensões: a adequação ou idoneidade (as medidas devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados); a exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade (as medidas devem revelar-se necessárias porque os fins visados não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); e finalmente a proporcionalidade em sentido estrito (os meios devem situar-se na justa medida).
19. Entendem os requerentes que nenhum destes pressupostos é respeitado na LOE 2013. Senão vejamos:
20. Quanto à adequação aos fins visados, ao contrário do que acontecia em 2011, existem hoje evidências de que tal não se verifica. Com efeito, tendo sido as reduções salariais, e o corte dos subsídios de férias e de Natal, apresentadas como as medidas mais eficazes para a redução do défice das contas públicas no imediato, os dados disponíveis, relativos à execução orçamental de 2012, revelam a ineficácia dessas medidas, devido ao efeito recessivo que delas decorrem. Os cortes salariais não são, portanto, medidas adequadas para a redução do défice público.
21. Aliás, essa redução foi anunciada para que se obtivesse um valor de 4,5% do défice público, quando é já hoje reconhecido pelo próprio Governo que esse valor será, quando muito, de 5%, e mesmo este valor só será atingido através de medidas extraordinárias não previstas inicialmente no Orçamento do Estado para 2013.
22. Quanto à indispensabilidade dessas medidas, sustentam os requerentes idêntica conclusão. Tais medidas não são indispensáveis, podendo e devendo os objetivos por elas, alegadamente, visados, ser obtidos de outro modo, designadamente com a renegociação de parcerias público-privadas que constituem pesadíssimos encargos para o Estado, com o recurso a uma justa tributação dos rendimentos de capital (matéria que adiante será autonomamente abordada), ou com a renegociação dos encargos da dívida soberana portuguesa perante os credores internacionais.
23. Registe-se, aliás, que a previsão de despesa com pessoal para 2013 representa apenas 20,46% do total da despesa corrente do Estado (cfr. Quadro III.1.2 na página 95 do Relatório do Orçamento do Estado para 2013 que acompanhou a Proposta de Lei n.º 103/XII).
24. Dir-se-á que as alternativas acima referidas, a título meramente exemplificativo, decorreriam de opções políticas, não desejadas pelo Governo em funções. É certo. Mas não se diga que tais medidas seriam impossíveis, ao ponto tornar inevitáveis os cortes nos salários e nas pensões previstos na LOE 2013.
25. Aliás, quando se trata de avaliar sacrifícios impostos aos rendimentos do trabalho e das pensões, com base na sua suposta inevitabilidade, tendo em conta uma situação de grave crise financeira, ninguém de boa-fé pode abstrair das causas dessa crise e das respetivas responsabilidades.
26. Todos convirão que a situação de crise financeira que o país atravessa não foi da responsabilidade dos trabalhadores por conta de outrem, ou dos reformados, sejam do setor público ou do setor privado. As responsabilidades da crise financeira decorrem, entre outras causas, - todos o sabem - de desmandos cometidos pelo setor financeiro, muitos deles com relevância criminal, da própria natureza das operações especulativas, e da ausência de regulação e de supervisão que os permitiram.
27. E a crise das dívidas soberanas decorre - também todos o sabem - da opção política tomada pelos Governos, de evitar a falência dos bancos à custa dos contribuintes.
28. No caso português, só para citar o caso mais conhecido do Banco Português de Negócios, o Estado assumiu já um encargo estimado em 3.405,2 milhões de euros, entre 2010 e 2012, que pode chegar, no limite, aos 6.509 milhões, mais juros e contingências, caso não se venha a verificar qualquer tipo de recuperação de ativos transferidos do BPN para o Estado, segundo as conclusões aprovadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito ao Processo de Nacionalização, Gestão e Alienação do BPN em 16 de novembro de 2012.
29. Acresce que na LOE 2013 se verifica uma disparidade entre a tributação dos rendimentos do trabalho, com taxas que chegam aos 48%, no caso de rendimentos coletáveis superiores a 80.000 euros anuais, a que se acrescentam contribuições adicionais de solidariedade com taxas de 2,5% e 5%, conforme os rendimentos se situem, respetivamente, entre 80.000 e 250.000 euros e acima deste valor, em flagrante disparidade com taxas liberatórias e especiais de 28% aplicáveis aos rendimentos de capital, juros, dividendos e mais valias. Esta matéria será adiante abordada, mas fica desde já assinalada, como elemento decisivo na consideração da violação do princípio da igualdade de que enfermam os pesados sacrifícios impostos sobre os rendimentos do trabalho (cortes de salários, pensões, subsídios e aumento enorme de impostos) em contraste com a leveza dos encargos impostos sobre os rendimentos de capital.
30. No caso das parcerias público-privadas, segundo dados da Direção Geral o Orçamento, os custos para o erário público foram de 987 milhões de euros em 2012, serão de 884 milhões em 2013 e admite-se que aumentem para 1.581 milhões em 2014.
31. Como se pode então afirmar que o corte nos salários e nas pensões se afigura como o único meio idóneo, indispensável, e proporcional, para garantir a estabilização das contas públicas?
32. Há porém, outro aspeto a considerar quanto à proibição do excesso e aos limites exigíveis dos sacrifícios, que tem que ver com a conjugação entre os cortes salariais e a sobrecarga fiscal, sobretudo em sede de IRS.
33. É que os artigos 27.º, 29.º e 45.º não são as únicas disposições constantes da LOE 2013 que representam cortes nos salários dos trabalhadores que exercem funções públicas.
34. Para além dos cortes nos salários, entre 3,5% e 10% previstos no artigo 27.º, a suspensão do subsídio de férias previsto no artigo 29.º, e a redução dos valores da retribuição horária referentes ao pagamento de trabalho extraordinário previstas no artigo 45.º, são reduzidos entre 35% e 40% valores de ajudas de custo referidas nos artigos 42º. e 44.º.
35. Mas muito mais significativa é a introdução de uma sobretaxa de 3,5% no IRS (prevista no artigo 187.º da LOE 2013, e cuja inconstitucionalidade será adiante advogada), a redução do número de escalões desse imposto, a eliminação ou redução das deduções de despesas com saúde, educação e habitação, que, em conjugação com os cortes nos salários e nas pensões e com a suspensão dos subsídios de férias, corresponde a um verdadeiro confisco de grande parte dos rendimentos do trabalho, de proporções intoleráveis.
36. A conjugação dos cortes nos salários e nas pensões, com o agravamento da carga fiscal, conduz a que muitos trabalhadores ou reformados, que vivem exclusivamente dos rendimentos do seu trabalho, presente ou passado, se vejam privados de meios de subsistência por uma decisão do legislador, que revela pouco respeito pela dignidade do ser humano, valor primeiro em que assenta a ordem constitucional portuguesa.
37. É posta assim em crise a garantia constitucional de direito ao salário de forma a garantir uma existência condigna [artigo 59.º, n.º 2, alínea a)].
38. Os artigos 27.º, 29.º, 31.º e 45.º da LOE 2013 violam também o artigo 105.º da Constituição e o princípio da confiança, na medida em que se traduzem num incumprimento contratual por parte do Estado.
39. De facto, o n.º 2 do artigo 105.º da Constituição determina que o Orçamento do Estado é elaborado tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato.
40. Ora, a relação existente entre os trabalhadores que exercem funções públicas e o Estado, é, indubitavelmente, uma relação contratual, regulada através do vínculo público de nomeação e do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, alterado pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril).
41. Desse contrato, resulta o valor da remuneração como elemento essencial [artigos 68.º, n.º 1, h) e 214.º].
42. Assim, na relação jurídica de emprego público, em que, em matéria de retribuição, o Estado é o devedor e o trabalhador o credor, o cumprimento do contrato exige o pagamento pontual e integral da prestação a que o Estado se encontra juridicamente obrigado.
43. E o Estado não tem o direito de escolher entre os credores a quem paga e aqueles a quem decide não pagar. Não há qualquer fundamento constitucional ou legal para que o Estado trate de forma diferente os trabalhadores do setor público com quem assumiu obrigações contratuais e os credores internacionais ou os grupos económicos beneficiários de parcerias público-privadas, pagando pontualmente as prestações destes negócios com que se comprometeu (com os mais fortes), e arrogando-se o direito de não cumprir as obrigações remuneratórias contratualmente assumidas com os trabalhadores (os mais fracos).
44. Se se invoca a credibilidade do Estado português perante os credores internacionais ou perante grupos económicos, não será igualmente invocável, por maioria de razão, a credibilidade do Estado perante os cidadãos que têm como único meio de subsistência o cumprimento das obrigações a que o Estado se obrigou para com eles?
45. Se no primeiro caso está em causa a credibilidade e a responsabilidade contratual do Estado, no que se refere aos trabalhadores, está em causa tudo isso, mas também, fundamentalmente, o respeito pela dignidade do ser humano que vive exclusivamente do seu trabalho.
46. Acresce que tanto o n.º 15 do artigo 27.º, como o n.º 9 do artigo 29.º, como o n.º 3 do artigo 45.º referem que os regimes de redução remuneratória neles previstos têm natureza imperativa, prevalecendo sobre instrumentos de regulação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastados ou modificados pelos mesmos.
47. Estas disposições violam de forma flagrante o disposto no n.º 3 do artigo 56.º da Constituição, que confere às associações sindicais o direito e a competência de exercer o direito de contratação coletiva, o qual é garantido nos termos da lei.
48. O direito à contratação coletiva insere-se no título II da Constituição, relativo aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe diretamente aplicável o regime do artigo 18.º.
49. O direito à contratação coletiva vincula as entidades públicas e privadas e só pode ser restringido nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
50. As leis restritivas da contratação coletiva não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
51. As disposições acima citadas da LOE 2013 violam, não apenas obrigações contratuais assumidas pelo Estado, como restringem inconstitucionalmente o direito das associações sindicais à contratação coletiva, ao dispor que prevalecem sobre instrumentos de regulação coletiva de trabalho.
52. Foi já demonstrada pelos requerentes, a inexistência de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que possam justificar a restrição do direito fundamental à retribuição do trabalho nos termos em que a LOE 2013 o pretende fazer. Esse raciocínio aplica-se mutatis mutandis às restrições impostas ao direito de contratação coletiva.
53. Com a agravante decisiva das restrições impostas pretenderem ter eficácia retroativa - constitucionalmente vedada - prevalecendo sobre quaisquer normas, especiais ou excecionais em contrário, e sobre instrumentos de regulação coletiva de trabalho.
54. E diminuem a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional relativo à contratação coletiva.
55. O direito à contratação coletiva é conferido às associações sindicais para defesa e promoção da defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representam (artigo 56.º, n.º 1). Entre esses direitos está seguramente o direito à retribuição [artigo 59.º, a)].
56. Se o legislador pretende legitimar a prevalência absoluta, já que é disso que se trata, de disposições legais restritivas do direito à retribuição sobre quaisquer instrumentos de regulação coletiva de trabalho, está posto em causa o conteúdo essencial do direito fundamental à contratação coletiva.
57. Os artigos 27.º, 29.º, 31.º e 45.º da LOE 2013, violam portanto o disposto nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, 56.º, n.º 3, 59.º, n.º 1, a) e 105.º, n.º 2 da Constituição.
58. Mas no caso vertente existe ainda uma clara violação do caso julgado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 353/2012.
59. O referido Acórdão declarou inconstitucionais as normas constantes da Lei do Orçamento do Estado para 2012 que suspendiam o pagamento dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores com funções públicas e dos reformados, ressalvando apenas os efeitos produzidos em 2012. O que obviamente proíbe a adoção de medidas idênticas para 2013.
60. Acontece porém que a LOE 2013 mantém integralmente a suspensão do pagamento do subsídio de férias, não obstante a declaração de inconstitucionalidade.
61. E incorreu num artifício destinado a defraudar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que consiste em subtrair o valor correspondente ao subsídio de Natal através da criação de uma taxa adicional de 3,5% sobre a remuneração anual, em sede de IRS.
62. O argumento de que o princípio da igualdade não seria violado pela LOE 2013 pelo facto de também os trabalhadores do setor privado serem privados de um dos subsídios, não colhe.
63. Não colhe desde logo, porque a ultrapassagem “dos limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional” declarada em 2012 não é eliminada, nos seus efeitos, pelo mal dos outros. Se assim fosse, não haveria limites para a imposição de sacrifícios. Todos os excessos poderiam ser cometidos, desde que todos fossem sacrificados por igual.
64. Mas também porque nos próprios termos do Acórdão n.º 353/2012, a violação do princípio da igualdade proporcional também se refere ao facto de nenhuma das imposições de sacrifícios (no OE 2012) ter equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes. E na declaração pública em que anunciou a decisão, o Presidente do Tribunal Constitucional (ao tempo em funções) referiu-se explicitamente à comparação com os cidadãos que auferem rendimentos de capital.
65. Ora, neste caso, a situação não mudou para melhor. A um aumento enorme dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e das pensões (que ultrapassa em certos casos taxas da ordem dos 50%), corresponde um quase inexpressivo aumento da tributação dos rendimentos do capital (de 25% para 28%).
66. Donde, em conclusão, se requer a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 27.º, 29.º e 31.º da LOE 2013 por violação do respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º; por violação do princípio da confiança enquanto elemento estruturante do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º; por violação do princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrada no artigo 13.º; por violação do direito à contratação coletiva consagrado no art.º 56.º, n.º 1; por violação do direito ao salário consagrado no artigo 59.º, n.º 1, a); por violação das obrigações decorrentes de contrato na elaboração do Orçamento do Estado nos termos do artigo 105, n.º 2, todos da Constituição, e ainda por violação do caso julgado no Acórdão n.º 353/2012.
Da inconstitucionalidade do artigo 77.º da LOE 2013
67. O artigo 77.º da LOE 2013 suspende o pagamento de 90% do subsídio de férias ou equivalentes de aposentados e reformados, por parte da Caixa Geral de Aposentações, do Centro Nacional de Pensões e, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, desde que o valor da pensão seja superior a 1.100 euros mensais.
68. Caso o valor da pensão seja entre 600 e 1.100 euros mensais, aplica-se uma redução menor, nos termos referidos no n.º 4 do artigo 77.º da LOE 2013.
69. Afigura-se aos requerentes que os cortes nas reformas e pensões violam manifestamente o princípio da proteção da confiança como “exigência indeclinável de realização do princípio do Estado de direito democrático” consagrado no artigo 2.º da Constituição.
70. Esta questão da proteção da confiança foi circunstanciadamente abordada no Acórdão n.º 396/2011 do Tribunal Constitucional a propósito dos cortes salariais previstos no Orçamento do Estado para 2011. Aí se refere a densificação dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a aplicação desse princípio, efetuada no Acórdão n.º 287/90.
71. Aí se considera que a frustração das expetativas dos cidadãos provocada pelas medidas em causa será inadmissível, nomeadamente, à luz dos seguintes critérios: a) quando a afetação de expetativas constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, recorrendo-se aqui ao princípio da proporcionalidade.
72. Tudo o que foi invocado acima, acerca da violação do princípio da proporcionalidade nos cortes dos subsídios de férias aos trabalhadores que exercem funções públicas, é inteiramente aplicável no caso vertente.
73. Com efeito, a medida de suspensão do subsídio de férias aos reformados e pensionistas não é uma medida adequada ou idónea para garantir a consolidação orçamental, não é uma medida indispensável para esse objetivo, nem é uma medida que, pela sua onerosidade, se contenha na justa medida.
74. Porém, no que se refere aos reformados e pensionistas, acrescem outras razões adicionais que concorrem para a inconstitucionalidade da suspensão dos respetivos subsídios.
75. Os reformados e pensionistas auferem prestações pagas pelo Estado, que decorrem das respetivas carreiras contributivas. Ou seja, enquanto trabalhadores do ativo efetuaram descontos nos respetivos salários, tendo como contrapartida futura, após a reforma ou aposentação, os montantes das respetivas reformas ou pensões.
76. As reformas e pensões auferidas pelos reformados e pensionistas não podem pois ser qualificadas como “dinheiros públicos” tout court, na medida em que são suportadas pelos descontos entregues ao Estado pelos próprios beneficiários, enquanto trabalhadores no ativo.
77. Sendo que o Estado cumpre o dever constitucional de garantir o direito de todos à segurança social, tal como determina o artigo 63.º da Constituição, devendo todo o tempo de trabalho contribuir, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez.
78. A partir da reforma ou da aposentação, os cidadãos aposentados ou reformados deixaram de ser cidadãos no ativo, profissionalmente falando. Deixaram de poder depender do seu trabalho para obter meios de subsistência e passaram a ter de viver exclusivamente das suas reformas e pensões.
79. Acresce ainda que, com o avanço inevitável da idade, a situação dos reformados e pensionistas torna-se mais frágil e vulnerável, dado que aumentam as situações de dependência e as situações de doença, com os consequentes aumentos de encargos.
80. Uma alteração substancial dos montantes das reformas e pensões por decisão unilateral do Estado, como ocorre por força da LOE 2013, em que à suspensão, de 90 do subsídio de férias acresce um enorme aumento da carga fiscal em sede de IRS, põe irremediavelmente em crise o princípio constitucional da proteção da confiança, sendo certo que os reformados e pensionistas não têm nenhuma possibilidade de aumentar os seus proventos e de refazer os seus planos de vida.
81. A proteção da confiança no caso dos reformados e pensionistas exige portanto uma tutela reforçada.
82. Assim, tal como acontece com a suspensão dos subsídios de férias prevista nos artigos 29.º e 31.º da LOE 2013, também a suspensão dos subsídios de férias dos reformados e pensionistas previstas no artigo 77.º deve ser declarada inconstitucional por violação dó princípio da proteção da confiança que decorre do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Da inconstitucionalidade do artigo 78.º da LEO 2013 83.
O artigo 78.º da LOE 2013 vem criar a designada “contribuição extraordinária de solidariedade”.
Trata-se de uma contribuição extraordinária, imposta aos reformados e pensionistas que auferem montantes de reformas e pensões superiores a 1.350 euros, nos seguintes termos: 3,5% no caso das pensões de valor mensal entre 1.350 e 1.800 euros; 3,5% sobre o valor de 1.800 e 16% sobre o remanescente das pensões de valor mensal entre 1.800,01 e 3.750 euros; 10% sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a 3.750 euros; e neste último caso, haverá ainda um acréscimo da contribuição no valor de 15% sobre o montante que exceda o valor do IAS mas que não ultrapasse 18 vezes aquele valor, ou no valor de 40% sobre o montante que exceda 18 vezes o valor do IAS.
84. Tal contribuição extraordinária tem suscitado intenso debate na sociedade portuguesa, envolvendo inclusivamente reputados constitucionalistas que põem em causa a sua constitucionalidade.
85. Pode legitimamente questionar-se se considerar as pensões acima de 1.350 euros como suficientemente elevadas para justificar uma contribuição que acresce aos cortes já efetuados por via dos artigos 27.º e 77.º da LOE 2013, não incorre em violação do princípio da proibição do excesso, por ser uma medida desproporcionada.
86. Mas mesmo que tal não se considere, o que parece inequívoco é que os argumentos invocados acima, acerca da inconstitucionalidade dos artigos 27.º e 77.º da LOE 2013 por violação do princípio da proibição do excesso enquanto pressuposto da proteção da confiança, têm, no caso da contribuição extraordinária prevista no artigo 78.º, inteiro cabimento.
87. Porém, pode e deve questionar-se se a “contribuição extraordinária de solidariedade” não viola autonomamente o princípio constitucional da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição.
88. Na verdade, esta contribuição impende unicamente sobre uma determinada categoria de cidadãos: os reformados e pensionistas. Trata-se obviamente de uma discriminação. Resta a questão de saber se essa discriminação é constitucionalmente legítima.
89. Segundo o ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit. pág. 340), as diferenciações só podem ser legítimas quando se baseiem numa distinção objetiva de situações, tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional, e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objetivo.
90. Não parece que tais pressupostos se verifiquem.
91. A distinção objetiva de situações nunca poderá conduzir à consideração de que os reformados e pensionistas devem ser discriminados negativamente em relação aos trabalhadores no ativo.
92. Tal não significa que a imposição de uma contribuição semelhante aos trabalhadores no ativo fosse constitucionalmente admissível. No entender dos requerentes, nunca o seria, pelas razões já explicitadas acima quanto à inconstitucionalidade dos cortes salariais. Porém, não se vislumbra qualquer razão plausível que confira legitimidade à imposição de uma contribuição extraordinária aos reformados e pensionistas, sobretudo se tivermos em conta, mais uma vez, a disparidade existente na LOE 2013 entre a oneração dos rendimentos do trabalho e dos rendimentos de capital.
93. Enquanto alguns reformados e pensionistas chegam a ser privados de mais de metade dos valores das suas pensões, que não deixam de ser rendimentos do trabalho, os titulares de rendimentos de capital previstos nos artigos 71.º e 72.º da LOE 2013 são tributados a taxas liberatórias não superiores a 28%.
94. A ausência de necessidade, adequação e proporcionalidade da 'contribuição extraordinária' consideram os requerentes já suficientemente demonstrada. Não se trata de uma medida que não pudesse ser evitada, cujos efeitos financeiros não pudessem ser obtidos de um modo diferente e socialmente mais justo, e é uma medida desproporcionada, devido ao grau de onerosidade em que se traduz.
95. Aliás, quanto à caracterização do fim visado pela medida em causa, a sua designação, na epígrafe do artigo 78.º da LOE 2013, como contribuição de 'solidariedade', só pode conduzir a equívocos.
96. A Constituição, no seu artigo 1.º, refere-se à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
A solidariedade, enquanto tarefa do Estado, implica obviamente um esforço no sentido da redução das desigualdades e no apoio às camadas sociais mais desfavorecidas.
97. Porém, a 'solidariedade' a que alude a epígrafe do artigo 78.º da LOE 2013 é indefinida. E conhecido que é o esforço de austeridade que a LOE 2013 impõe aos portugueses, mesmo aos de mais baixos rendimentos, em nome do cumprimento dos objetivos do chamado PAEF, somos forçados a concluir que a solidariedade que é exigida aos reformados e pensionistas não tem como destinatários os cidadãos que mais necessitariam dela. A 'solidariedade' a que alude o artigo 78.º da LOE 2013 não passa afinal de uma solidariedade para com a política financeira definida pelo Governo. Não é título bastante para conferir legitimidade constitucional à medida imposta.
98. Nestes termos, consideram os requerentes que a contribuição extraordinária de solidariedade prevista no artigo 78.º da LOE 2013 é inconstitucional por violação dos artigos 2.º e 13.º da Constituição.
Da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 117.º
99. Determina o n.º 1 do artigo 117.º, que as prestações do sistema previdencial concedidas no âmbito de doença e desemprego sejam sujeitas a uma contribuição de a) 5% sobre o montante dos subsídios concedidos no âmbito da eventualidade de doença e b) 6% sobre o montante de subsídios de natureza previdencial concedidos no âmbito da eventualidade de desemprego.
100. Não se trata evidentemente de uma “contribuição”, Trata-se, isso sim, de uma redução nas prestações sociais em caso de doença e de desemprego, sem qualquer consequência na carreira contributiva dos beneficiários.
101. Os subsídios de desemprego e de doença têm expressa proteção constitucional. O n.º 1 do artigo 59.º, relativo aos direitos dos trabalhadores, consagra na alínea e) o direito de todos os trabalhadores à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, e na alínea f) o direito a assistência e justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional. Por seu lado, o artigo 63.º, que consagra o direito de todos à segurança social (n.º 1), prevê no n.º 3 que o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença ( ... ) bem como no desemprego e' em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
102. Dir-se-á que cortes da ordem de 5% e 6% nas prestações sociais não serão suficientes para pôr em causa, de forma decisiva, o direito à segurança social e o direito dos trabalhadores à proteção no desemprego e na doença, e que o conteúdo essencial desses direitos, apesar de tudo, se mantém.
Não é esse, porém, o juízo dos requerentes, pelas razões seguintes:
103. Os direitos sociais à assistência material no desemprego e na doença, apesar de não se encontrarem sujeitos ao regime de restrições aplicável aos direitos, liberdades e garantias, possuem uma tutela constitucional clara, acima explicitada, e não podem ser sujeitos a restrições que ponham em causa a aplicação do princípio constitucional da igualdade.
104. O que sucede é que estes direitos sociais têm vindo a ser sucessivamente restringidos pelo legislador, tanto nos montantes dos apoios concedidos, como no tempo de concessão, como no universo dos destinatários.
105. E é evidente que, sendo os rendimentos auferidos por via dos subsídios de doença e do desemprego rendimentos substitutivos do trabalho, os trabalhadores que deles beneficiam não se encontram em situação idêntica à dos demais trabalhadores.
106. A concessão dos subsídios de desemprego e de doença decorrem de situações em que os trabalhadores se encontram, involuntariamente, em situações de objetiva desigualdade em relação aos demais, devido à impossibilidade temporária de obtenção de meios de subsistência.
107. Não se trata de benesses, de privilégios, ou de subsídios à inatividade. Trata-se de prestações sociais destinadas a acorrer, de forma temporária, a situações em que a ausência de apoio por parte do Estado a trabalhadores temporariamente inativos seria suscetível de provocar situações de exclusão social violadoras da dignidade da pessoa humana a que se refere o artigo 1.º da Constituição.
108. Será pois constitucionalmente admissível que os trabalhadores em situação de desemprego involuntário, ou incapazes de trabalhar por comprovados motivos de saúde, sejam penalizados por isso, nas prestações sociais a que têm direito? Os requerentes entendem que não.
109. Se o corolário fundamental do princípio constitucional da igualdade é o de que devem ser tratadas como iguais situações iguais, e como diferentes, situações diferentes, os beneficiários dos subsídios de desemprego e de doença, que se encontram em situações de maior vulnerabilidade em relação aos demais cidadãos, não devem ser prejudicados por parte do Estado, de forma a acentuar ainda mais a sua situação de vulnerabilidade.
110. Nestes termos, entendem os requerentes que o n.º 1 do artigo 117.º da LOE 2013 deve ser declarado inconstitucional por violação dos artigos 13.º, 59.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 63.º, n.º 3 da Constituição.
Da inconstitucionalidade de disposições contidas no artigo 186.º e do artigo 187.º
111. A LOE 2013 introduz diversas alterações em sede do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), das quais se destacam:
No artigo 186.º, alterações aos seguintes artigos do Código do IRS:
- Artigo 68.º, que reduz de oito para cinco, os escalões de rendimento coletável;
- Artigo 68.º-A, que cria uma taxa adicional de solidariedade;
- Artigo 78.º, que reduz, entre outras, as deduções à coleta relativas às despesas de saúde, educação e formação;
- Artigo 85.º, que reduz as deduções à coleta relativas a despesas com imóveis para habitação própria e permanente, ou com rendas de habitação própria do arrendatário.
No artigo 187.º, que cria uma sobretaxa de 3,5% sobre o rendimento coletável dos sujeitos passivos cujo rendimento exceda o valor anual da retribuição mínima mensal.
112. Nos termos do artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.
113. O IRS foi concebido tendo em conta estas características. Adotou um sistema de progressividade por escalões de rendimentos, de acordo com o qual a matéria coletável concretamente apurada é dividida em tantas partes quantas as que correspondem ao leque de taxas em que couber, aplicando-se a taxa mais elevada apenas à parte que excede o limite máximo do escalão anterior, e institui um conjunto de deduções à coleta em função da composição e despesas dos agregados familiares, procurando alcançar uma repartição equitativa da carga fiscal.
114. As alterações introduzidas na LOE 2013, que o próprio Ministro das Finanças caracterizou como um 'enorme aumento de impostos', que o Conselheiro de Estado Luís Marques Mendes qualificou de 'assalto à mão armada' e que para o Conselheiro de Estado António Bagão Félix 'ultrapassam os limites da decência fiscal', reduzem a progressividade, desconsideram o princípio da capacidade contributiva, e põem em causa a unidade do imposto sobre o rendimento.
115. Vejamos o caso da alteração dos escalões do IRS à luz do princípio da progressividade fiscal: a taxa do escalão mínimo de tributação passa de 11,5% para 14,5% e os rendimentos coletáveis mais baixos são elevados a um escalão superior; são colocados rendimentos coletáveis com valores muito diferentes no mesmo escalão (de 7.000 a 20.000, de 20.000 a 40.000, de 40.000 a 80.000); e são taxados da mesma forma rendimentos coletáveis de valores muito diferenciados. Todos os rendimentos coletáveis acima de 80.000 euros são taxados com o mínimo de 48, a que acresce a taxa adicional de solidariedade de, pelo menos 2,5% que coloca a taxa em valores superiores a 50%.
116. Não se cumpre o princípio da progressividade simplesmente por haver mais que um escalão. Por absurdo poderia haver apenas dois. Quando se reduz significativamente a progressividade, está-se a violar esse princípio constitucional.
117. Desta forma, a LOE 2013 abdica da progressividade do imposto e do critério da capacidade económica na repartição dos impostos.
118. No caso das deduções à coleta, as alterações verificadas, que eliminam deduções ou que as colocam em patamares efetivamente simbólicos, não têm em conta as necessidades dos agregados familiares nem a real capacidade contributiva das famílias.
119. Esta questão, do princípio da capacidade contributiva, não é irrelevante como parâmetro de aferição da constitucionalidade das normas de natureza fiscal. Segundo o Acórdão n.º 84/2003 do Tribunal Constitucional, o princípio da capacidade contributiva “exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade - o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério - preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário de tributação”, critério este, em que a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica de cada um.
120. A criação no artigo 187.º da “sobretaxa em sede de IRS”, assume enorme gravidade e constitui uma flagrante violação de diversas disposições constitucionais.
121. Importa relembrar que esta sobretaxa é criada como uma forma de defraudar a inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal aos 'funcionários públicos e reformados, declarada através do Acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional.
122. Mantendo o corte do subsídio de férias e criando a sobretaxa em sede de IRS, a LOE 2013 mantém os efeitos das normas declaradas inconstitucionais. Como diz o povo, pretende fazer entrar pela janela, o que o Tribunal Constitucional não permitiu que entrasse pela porta.
123. O artigo 187.º da LOE 2013 configura assim uma violação de caso julgado pelo Tribunal Constitucional.
124. Para além disso, esta sobretaxa não tem as características do imposto sobre o rendimento, tal como a Constituição e o Código do IRS o configuram.
125. Esta sobretaxa não integra o Código do IRS, tratando-se, de facto, de um novo imposto sobre o rendimento, sem qualquer progressividade.
126. A sobretaxa incide na proporção de 3,5% sobre todos os rendimentos. Não respeita o princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento.
127. As regras de retenção na fonte previstas no artigo 187.º da LOE 2013 diferem das regras de retenção na fonte do IRS. Existe uma retenção autónoma, existe uma dedução específica própria e não existe coeficiente conjugal.
128. Ou seja: estamos perante um novo imposto sobre o rendimento, parcialmente associado a regras do IRS, mas com outras regras, distintas e autónomas. Trata-se assim de um novo imposto, que não respeita as regras da unidade e da progressividade do imposto sobre o rendimento consagradas no artigo 104.º, n.º 1 da Constituição.
129. Finalmente, a inconstitucionalidade dos artigos 186.º e 187.º da LOE 2013, na parte em que altera os escalões do IRS e as deduções à coleta e em que cria a sobretaxa em sede de IRS assume particular evidência quando confrontamos essas disposições com a tributação dos rendimentos de capital, constantes dos artigos 71.º e 72.º do mesmo Código.
130. A existência de taxas liberatórias em sede de IRS é contestada pela doutrina constitucional.
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (opág. cit., pág. 1099), que os requisitos de unicidade e progressividade do imposto sobre o rendimento retiram base constitucional às taxas liberatórias de determinados rendimentos, e Eduardo Paz Ferreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada de Jorge Miranda e Rui Medeiros, refere em anotação ao artigo 104.º da Constituição, que a existência de taxas liberatórias parece pouco compatível com a natureza unitária do imposto e com a justiça fiscal.
131. No entanto, enquanto a tributação dos rendimentos do trabalho e das pensões assumem níveis confiscatórios, com taxas de IRS superiores a 50% sobre salários e pensões já substancialmente reduzidos por via de outras disposições da LOE 2013, os rendimentos de capital, juros, dividendos e mais-valias referidos nos artigos 71.º e 72.º da LOE 2013 são taxados à taxa liberatória única de 28%.
132. Tendo em atenção o Acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional, estamos perante uma manifesta falta de equidade na repartição dos sacrifícios entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos provenientes de outras fontes, que contraria o princípio constitucional da igualdade na repartição dos encargos públicos.
133. Nestes termos, os signatários requerem a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 186.º (na parte em que altera os artigos 68.º, 71.º, 72.º, 78.º, 85.º e adita o artigo 68.º-A ao Código do IRS) e do artigo 187.º da LOE 2013, por violação dos artigos 13.º e 104.º. n.º 1 da Constituição e por violação de caso julgado pelo Tribunal Constitucional.”
4. Pedido formulado no processo n.º 11/2013
No âmbito do processo n.º 11/2013, foi pedida, pelo Provedor de Justiça, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, por violação dos artigos 2.º e 13.º da CRP, da inconstitucionalidade das normas dos artigos 77.º e 78.º da LOE2013, cujo teor já consta do pedido relativo ao processo n.º 2/2013.
É a seguinte a fundamentação do pedido:
“1 .°
Pela Lei n.° 66-B/2012, de 31 de dezembro, foi aprovado o Orçamento do Estado para o ano de 2013.
2.°
Na sistemática desta Lei os preceitos questionados inserem-se no seu Capítulo IIl, contendo as Disposições relativas a trabalhadores do setor público, aquisição de serviços, proteção social e aposentação ou reforma, mais concretamente, na Secção VI, sob a epígrafe “Proteção social e aposentação ou reforma”.
3.º
É o seguinte o teor das normas impugnadas:
[…]
4.º
O primeiro preceito citado determina a suspensão do pagamento, ou a redução, conforme os casos e com o alcance aí fixado, do subsídio de férias ou equivalente de aposentados e reformados que auferem pensões através do sistema público de segurança social.
5.º
Repristina assim para este exercício orçamental, no que à prestação em causa concerne e ainda que com modelação distinta, uma das medidas consignadas no art.° 25.° da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2012), cujas normas foram declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional.
6.º
Por seu lado e em cúmulo com a referida medida ablativa (n.° 6 do artigo 77.° citado), o artigo 78.° sujeita as pensões, bem como outras “prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título” a aposentados e reformados, a uma contribuição extraordinária de solidariedade, medida de natureza fiscal que, no plano substantivo, replica, relativamente aos aposentados e reformados e em razão dessa sua condição, a determinação normativa de redução das remunerações pagas aos que exercem funções no setor público - artigo 19.° da Lei n.° 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2011), mantido em vigor pelos Orçamentos do Estado para 2012 e 2013 (respetivamente, artigos 20.° e 27.° das Leis correspondentes).
7.°
Significa isto que, sem embargo da referida natureza fiscal (que convoca a aplicação do princípio da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal), a contribuição extraordinária de solidariedade, nos moldes ora vigentes, consubstancia uma autêntica medida de redução de pensões e rendimentos titulados aposentados e reformados.
8.°
Para aferição da conformidade constitucional das medidas que dimanam dos preceitos questionados, estas não podem deixar de ser ponderadas à luz dos princípios da igualdade, da proteção da confiança dos cidadãos e da proibição do excesso.
9.º
Com efeito, conforme entendimento que o Tribunal Constitucional teve já ocasião de expressar, «a proteção dos direitos a prestações sociais já instituídos opera, no essencial, através dos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, tais como a igualdade ou a confiança legítima (...)», tal como ficou vertido no Acórdão n.º 3/2010 (incidente sobre um conjunto de normas que tornaram mais exigente o sistema de aposentação dos funcionários públicos, resultando numa diminuição do nível de proteção anteriormente reconhecido).
10.º
Se é certo que no Acórdão n.°353/2012 o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade de medidas análogas por violação do princípio da igualdade, dispensou-se, por concomitante desnecessidade, de aferir da sua constitucionalidade face aos princípios da confiança e da proibição do excesso.
Da violação do princípio da igualdade:
11.°
As medidas constantes dos preceitos em causa vêm dirigidas a uma categoria bem determinada de destinatários, a saber, os aposentados e reformados.
12.°
Com efeito, salvaguardadas em ambas as situações as exceções que legislador autorizou, as medidas constantes do artigo 77.° têm por destinatários os aposentados e reformados que auferem pensões através do sistema público de segurança social e as medidas que dimanam do artigo 78.°, além desse círculo de pessoas, veem o respetivo âmbito subjetivo enunciado na norma inserta no seu n.º 3, tratando indistintamente não só pensões de diversa natureza como também outras “prestações pecuniárias vitalícias” devidas a aposentados e reformados.
13.°
É sabido que, numa formulação compendiada, de resto bem assente na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio constitucional da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para as situações de facto desiguais, não proibindo o mesmo princípio, em absoluto, as diferenciações, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de fundamento razoável (proibição do arbítrio).
14.°
Acresce que, na formulação do Tribunal Constitucional no citado Acórdão n.º 353/2012 e na senda de jurisprudência anterior aí referenciada, «a igualdade jurídica é sempre uma igualdade proporcional, pelo que a desigualdade justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade. A dimensão da desigualdade do tratamento tem que ser proporcionada à razões que justificam esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva».
15.°
A esta luz, não se perde de vista o entendimento expresso no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2011, tendo por objeto normas constantes da Lei do Orçamento do Estado para 2011 dirigidas aos que exercem funções no setor público, segundo o qual «quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido a essa categoria de pessoas - vinculada que ela está à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual».
16.°
Todavia, importa não extrapolar o sentido da prossecução do interesse público que recai sobre «quem recebe por verbas públicas», como habilitação bastante, por natureza e de per se, para determinadas diferenciações de tratamento, inclusive num contexto de excecionalidade orçamental como aquele que ora nos afeta.
17.º
Isto porquanto, sem embargo de a expressão citada não estar necessariamente confinada ao conceito comum de função pública, se atendermos ao disposto no artigo 269.°, n.º 1, da Constituição, a subordinação ao interesse público consubstancia um princípio constitucional que respeita, na sua essência, ao exercício de determinada função.
18.°
Com efeito, conforme se expressam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, «a vinculação exclusiva ao interesse público só afeta os trabalhadores da Administração pública, quando no exercício das suas funções, não podendo essa vinculação afetar ou limitar a sua vida privada ou o exercício dos seus direitos quando fora delas» (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. 11, 4. edição, Coimbra: Wolters Kluwer Portugal, Coimbra Editora, 2010, pág. 840).
19.°
Nesta linha e com relevo para a matéria a sindicar, atento o tratamento de acentuado desfavor dado aos aposentados e reformados pelas normas questionadas, perfila-se, com toda a clarividência, o Acórdão do Tribunal Constitucional n° 72/2002, pronunciado a propósito de norma do Estatuto da Aposentação que determinava a extinção da situação de aposentado no caso de perda da nacionalidade portuguesa, quando esta fosse exigida para o exercício do cargo pelo qual tinha sido concedida a aposentação.
20.°
Assim, pode ler-se no mencionado aresto o seguinte […]:
No “estatuto da aposentação” - que é matéria de “função pública” - avulta a sua dimensão de instrumento e instituto de “segurança social”; o direito à aposentação é, de algum modo, o direito à segurança social dos funcionários e agentes da Administração Pública.
E, nesta perspetiva, deixa de ser decisiva a circunstância de a situação jurídica dos aposentados incluir elementos do estatuto da função pública, para assumirem maior relevância outras considerações.
Desde logo, o facto de o fundamento em que assenta a extinção da situação de aposentação - deixar o interessado de ser português quando o cargo por ele exercido e por que adquiriu o estatuto de aposentado exige a nacionalidade portuguesa não atender à substancial diferença entre a situação de trabalhador no ativo e a de aposentado.
Com efeito, no caso, a exigência da nacionalidade portuguesa conexiona-se intimamente com o efetivo exercício do cargo - é porque neste não predominam funções técnicas e nele avultam poderes cujo exercício não deve ser atribuído a não nacionais que a Constituição estabelece a ressalva ao princípio da equiparação - sendo certo que na situação de aposentado o funcionário fica definitivamente dispensado do serviço ativo, perdendo, deste modo, sentido que nela se projetem os condicionamentos impostos ao exercício do cargo e só por este justificados.
21.°
Resulta, por conseguinte, em toda a sua clareza, desta passagem do Acórdão n.º 72/2002, a 'substancial diferença entre a situação de trabalhador no ativo e a de aposentado', não sendo legítimo, sem desvalor para o princípio da igualdade, confundir-se a situação do servidor público, no plano dos condicionamentos decorrentes do exercício de funções, com a situação do aposentado.
22.º
Por maioria de razão, não pode ser confundida, nesse mesmo plano, a situação do servidor público com a do reformado do setor privado, este último nunca tendo detido qualquer vínculo laboral de natureza pública.
23.°
Razão pela qual, um juízo segundo o qual a vinculação à prossecução do interesse público de quem recebe por verbas públicas pode, em circunstâncias como as presentes, justificar quanto a estes - ainda que com limites, como sublinhou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 353/2012 - um esforço adicional, deve merecer uma ponderação específica no que aos aposentados e reformados concerne, não lhes sendo aplicável pelos motivos expostos.
24.º
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional não deixou de reconhecer já no Acórdão n.º 353/2012 que «a situação específica dos reformados e aposentados se diferenci[a] da dos trabalhadores da Administração Pública no ativo, sendo possível quanto aos primeiros convocar diferentes ordens de considerações no plano da constitucionalidade (…)»
25.º
Ora, a esta luz, importa fazer notar que as medidas contestadas denunciam um 'estatuto diminuído' dos aposentados e reformados, acoplando a essa sua condição - e unicamente em razão da mesma - uma obrigação especial perante os encargos públicos.
26.º
Esta situação é tanto mais evidente e gravosa porquanto extravasa as pensões de reforma ou aposentação recebidas através do sistema público de segurança social, atento o recorte, no artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013, da contribuição extraordinária de solidariedade, a qual, nomeadamente no caso dos fundos de pensões, configura uma tributação específica de determinados rendimentos de capitais, em termos não aplicáveis à generalidade dos rendimentos desta categoria.
27.º
Com efeito, quanto à suspensão/redução, nos termos legislativamente conformados, do subsídio de férias ou equivalentes pagos por verbas públicas aos reformados e aposentados, está em causa a ablação, na medida determinada, de uma prestação complementar que, conforme declarado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 353/2012, assume «a mesma natureza das prestações mensais pagas a estas pessoas, caracterizadas por uma periodicidade distinta, mas que se integram no cômputo global anual da pensão». (sublinhado meu)
28.°
De outro modo dito, as medidas que dimanam do artigo 77.° da Lei do Orçamento do Estado para 2013, redundam, para os aposentados e reformados abrangidos, numa amputação do montante anual das respetivas pensões.
29.°
Cumulativamente com essa 'compressão' de rendimentos, os aposentados e reformados, com a amplitude do alcance definido no n.º 3 do artigo 78.°, são sujeitos, unicamente por força dessa sua condição, a um corte acrescido das respetivas pensões e outras prestações equiparadas para o efeito pelo legislador, operado por via da chamada contribuição extraordinária de solidariedade, a qual discrimina negativamente as pensões e as prestações abrangidas para efeitos de tributação, redundando num tratamento fiscal diferenciado do círculo de cidadãos destinatários.
30.°
Não se desconhece que no Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica consta, no quadro da 'política orçamental em 2012', medida expressa com a seguinte formulação: «Reduzir as pensões acima de 1.500 euros, de acordo com as taxas progressivas aplicadas às remunerações do setor público a partir de janeiro de 2011, com o objetivo de obter poupanças de, pelo menos, 445 milhões de euros».
31.°
Para efeitos da redução das pensões operada por via do artigo 78.° em questão, o legislador fixou limiar aparentemente distinto (€1350) daquele fixado para a operatividade da redução remuneratória dos que exercem funções no setor público (€1500), previsivelmente em vista de, em ambas as situações, ter na sua base um aproximado rendimento 'líquido' (tendo em conta que aqueles que exercem funções no setor público realizam descontos para os respetivos sistemas de segurança social, nos quais se integrem), e, por conseguinte, numa lógica de tendente equiparação no tratamento de situações que, como o Tribunal Constitucional antecipou, são distintas.
32.º
Estamos, por conseguinte, perante um 'esforço adicional', 'em prol da comunidade' que é pedido, em significativa medida, aos aposentados e reformados, sobre os quais é ilegítimo, conforme anteriormente aduzido fazer recair qualquer obrigação qualificada perante os encargos públicos.
33.º
Subsiste, por conseguinte, quanto a este círculo de cidadãos, uma diferenciação discriminatória na participação nos encargos com a diminuição com o défice público, privados que são, por forças das normas objeto do presente pedido, de parte significativa do seu rendimento, com desvalor, em ultima instância, das exigências da igualdade proporcional.
34.º
Estas medidas ablativas são particularmente desproporcionadas e injustas - em onerosidade agravada pela cumulação das mesmas no contexto mais amplo de medidas de agravamento fiscal -, carecem de fundamento material bastante, constitucionalmente ponderoso face ao princípio da igualdade, para justificar o tratamento de desfavor conferido aos aposentados e reformados, mesmo num quadro de emergência económica, financeira e orçamental nacional.
35.º
Pelo que as normas em causa são inconstitucionais. por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição .
Da violação do princípio da proteção da confiança e da proibição do excesso:
36.º
À luz das exigências do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, a determinação, pelo legislador, das medidas ablativas em causa, não pode também deixar de ser, desde logo, aferida no quadro da distinção entre direitos em formação e direitos adquiridos.
37.º
Com efeito, por força dos ditames que inerem aos assinalados princípios constitucionais, não é idêntico o nível de tutela das expectativas relativamente a
a) um trabalhador no ativo durante o período em que efetua as suas contribuições para o correspondente sistema de segurança social, num quadro legal aberto à revisibilidade, em comparação com
b) uma pessoa já aposentada ou reformada em cuja esfera jurídica se consolidou, por aplicação de um determinado regime legal, a situação de concessão da aposentação/reforma com o consequente pagamento da respetiva pensão.
38.º
Os aposentados e reformados veem reduzidas as suas pensões, com lesão de expectativas legitimamente fundadas quanto à confiança gerada pela consolidação, no momento da aquisição do estatuto de aposentado/reformado do direito à pensão, bem como - o que não é despiciendo - da sua adequada salvaguarda.
39.º
Importa realçar que a tal acresce não poder auferir o conjunto de destinatários das normas em causa em princípio, de rendimentos do trabalho, encontrando-se numa condição que dificilmente permite a reorientação da sua vida com o objetivo de fazer face a dificuldades acrescidas, designadamente por via de um mais vasto leque de medidas de austeridade.
40.°
A situação afigura-se tanto mais injusta, quanto é certo que, no que especificamente tange à contribuição extraordinária de solidariedade, destinando-se a mesma a financiar o sistema público de segurança social (n.º 8 do artigo 78.°), como que duplica, no plano substantivo e em certa medida, uma obrigação contributiva a seu tempo já cumprida e, todavia, agora confrontada com a correspetiva obrigação prestacional amputada.
41.°
Também neste plano, a iniquidade é tanto mais acentuada no que diz respeito às situações abrangidas pelo disposto no artigo 78.° e que se situam fora das relações contributivas no âmbito do sistema público de segurança social, tratando igualmente não só pensões de distinta natureza como também outras 'prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título' aos cidadãos visados.
42.º
Acresce que, sempre numa ponderação sob os parâmetros constitucionais da proteção da confiança, não podem ser igualmente obnubiladas as específicas obrigações do Estado em matéria de proteção da terceira idade, estando consagrado no art.º 72.° da Lei Fundamental o direito das pessoas idosas à segurança económica, em consideração, certamente, da já assinalada situação de maior vulnerabilidade em que se encontram nessa fase da vida.
43.°
Como se expressa Rui Medeiros a este respeito (in Jorge Miranda; Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra: Wolters Kluwer Portugal, Coimbra Editora, 2010, pp. 1404-1405):
embora velhice e reforma não sejam sinónimos, não se pode olvidar que a passagem à situação de reforma e a dependência do sistema de pensões constituem frequentemente, um importante fator de vulnerabilização e de precarização da vida das pessoas idosas (Heloísa Perista, Usos do tempo, ciclo de vida e vivências da velhice, págs. 170-171). O direito à segurança económica que a Constituição assim autonomiza tem plena justificação, embora deva ser conjugado com o direito fundamental à segurança social das pessoas idosas (...) e constitua, nessa medida, uma incumbência do Estado. O núcleo essencial do dever de proporcionar segurança económica aos idosos, que se extrai do artigo 72.º, n.º 1, tem assim em vista as pensões pagas pelo sistema de segurança social que ao Estado cumpre organizar e manter (...).
44.º
Em consideração do que antecede, a frustração de expectativas legítimas que para o círculo dos aposentados e reformados decorre da aplicação do teor dos citados artigos 77.º e 78.º não se afigura constitucionalmente tolerável em vista dos parâmetros valorativos decorrentes do princípio da proteção da confiança, atendendo à 'situação específica' das pessoas que integram o referido círculo e à proteção acrescida que lhes é devida, mesmo que em face de um interesse público de realização imperativa e do caráter transitório das medidas ablativas.
45º
Acresce que, no plano das exigências de proporcionalidade, no quadro da necessária articulação entre o princípio da proteção da confiança e o princípio da proibição do excesso, as soluções normativas impugnadas, na sua aplicação cumulativa, vão para além dos 'limites de razoabilidade e de justa medida'.
46º.
Com efeito, atentos a especificidade da situação dos aposentados e reformados afetados pelas medidas ablativas em questão e o cúmulo de sacrifício que as mesmas carregam, sobressai aqui a intensidade da afetação dos respetivos interesses e expectativas legítimas, estando em causa «reduções significativas, capazes de gerarem ou acentuarem dificuldades de manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de compromissos assumidos (...)», para me socorrer de expressão constante do Acórdão n.º 396/2011 do Tribunal Constitucional.
47.º
A excessiva onerosidade revelada pelos montantes pecuniários que os aposentados e reformados visados perdem não é despicienda, estando em causa perdas significativas para os patrimónios dos cidadãos atingidos em termos que acarretam a 'frustração do «investimento na confiança»', sobressaindo, outrossim, o desvalor das medidas questionadas à luz de uma aplicação articulada dos princípios da proibição do excesso e da proteção da confiança.
48.º
Assim sendo, estamos perante a afetação, com elevado grau de intensidade, de uma posição de confiança das pessoas especificamente visadas, constitucionalmente desconforme, afigurando-se a mesma desproporcionada pelo excessivo acréscimo de sacrifício e pela medida de esforço exigidos a este círculo determinado de cidadãos.
49.º
Pelo que as normas em causa são ainda inconstitucionais, por violação dos princípios da proteção da confiança e da proibição do excesso, ambos subprincípios densificadores do princípio do Estado de direito acolhido no artigo 2.º da Constituição”.
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos e a solicitação do requerente no Processo n.º 8/2013 de atribuição de prioridade para a apreciação e decisão, o autor da norma, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos e deu a sua concordância à pretendida atribuição de prioridade.
Por despacho do Presidente do Tribunal foi ordenada a incorporação de todos processos e conferida prioridade à sua apreciação e decisão.
Foram apensos por linha uma nota explicativa de reflexão sobre as questões financeiras e jurídicas implicadas e quatro pareceres de jurisconsultos, que foram enviados ao Tribunal por iniciativa do proponente da norma, bem como dois pareceres enviados pelo Provedor de Justiça.
Elaborado o memorando a que alude o artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, cabe decidir.
II – Fundamentação
A. Enquadramento preambular e descrição geral das medidas de consolidação orçamental previstas na Lei n.º 66-B/2012
1. De acordo com o enquadramento constante do Relatório que acompanhou a Lei do Orçamento de Estado para 2013, o conjunto das normas impugnadas inscreve-se no âmbito da concretização de uma orientação estratégica comprometida com o prosseguimento do esforço de consolidação orçamental previsto no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) acordado entre o Governo português e o FMI, a Comissão Europeia e o BCE, nos termos do qual os limites quantitativos para o défice orçamental em 2012, 2013 e 2014, apesar de inicialmente fixados em 4,5%, 3,0% e 2,3%, respetivamente, foram revistos para 5%, 4,5% e 2,5%.
Segundo o Governo, «[a] revisão dos limites para o défice orçamental é justificada pelo diferente padrão do processo de ajustamento. Em particular verificou-se uma queda mais acentuada na procura interna, compensada parcialmente por uma maior contribuição das exportações líquidas para a atividade económica. Ao mesmo tempo verificou-se uma queda mais acentuada da massa salarial. Estes desenvolvimentos acentuaram os efeitos dos estabilizadores automáticos, reduzindo as receitas fiscais (em 1,6 pp. do PIB) e as contribuições para a segurança social (em 0,4 pp.) e aumentando as despesas com o subsídio de desemprego (em 0,2 pp.).» (Relatório do OE2013, pág. 42).
Ainda de acordo com a mesma fonte, «[o]s novos limites são consistentes com a necessária consolidação orçamental e têm por base o reconhecimento que o cumprimento dos anteriores limites só seria possível com custos económicos e sociais excessivamente elevados» (Relatório do OE2013, pág. 42).
Apresentado como “um exercício particularmente difícil” (Relatório do OE2013, pág. 45), o Orçamento do Estado para 2013, em especial as medidas suplementares de contenção orçamental no mesmo previstas, foi elaborado tendo em vista respeitar o limite de 4,5% do PIB para o défice orçamental”, respondendo por essa via à «necessidade imperiosa de continuar o processo de acumulação de credibilidade e confiança junto dos credores, bem como de honrar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português e, bem assim, de salvaguardar a realização das suas tarefas fundamentais perante os seus cidadãos» (Relatório do OE2013, pág. 39).
Tais medidas de consolidação orçamental têm uma natureza heterogénea, contemplando intervenções, quer pelo lado da receita, quer pelo lado da despesa. De acordo com a estimativa avançada pelo Governo, terão um efeito agregado de valor correspondente a 3,2% do PIB.
Entretanto, na sequência da sétima revisão regular do programa de Assistência Económica e Financeira os limites quantitativos para o défice orçamental em 2013, 2014 e 2015 foram revistos, respetivamente, para 5,5%, 4% e 2,5%.
2. As medidas adotadas pelo lado da receita, cujo impacto orçamental estimado ascende a 4.312,4 milhões de euro, correspondente a 2,6% do PIB (Quadro II.3.1, pág. 47 do citado relatório), «visam promover maior igualdade na distribuição do impacto das medidas de austeridade entre os diversos setores da sociedade portuguesa de forma a garantir que os contribuintes que revelam uma maior capacidade contributiva suportarão, na medida dessa capacidade, um esforço acrescido no esforço de consolidação (…), distribuído este equitativamente pelo “i) setor público e setor privado, por um lado; e pelos ii) titulares de rendimentos do trabalho e rendimentos de capital e da propriedade, por outro» (Relatório do OE2013, pág. 60).
Tais medidas, com base nas quais a previsão da receita fiscal para 2013 foi estimada no valor de M€ 35.947,7 – representando um acréscimo de 10,2% face à estimativa de execução da receita fiscal para 2012 (Relatório do OE2013, pág. 95) – são, entre outras, as seguintes:
Medidas relativas ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, concretizadas nas alterações ao respetivo Código introduzidas pelo artigo 186.º da Lei n.º 66-B/2012, contemplando estas a alteração da estrutura de taxas e de escalões do IRS, a introdução de uma sobretaxa de 3,5% – inicialmente perspetivada, de acordo com a versão constante da Proposta de Lei n.º 103/XII, em 4% –, a manutenção da taxa adicional de solidariedade ao último escalão de rendimentos e o agravamento para 28% da taxa liberatória aplicável aos rendimentos de capital, designadamente juros e dividendos, e às mais-valias em partes de capital e outros valores mobiliários, o que suporta a estimativa de que a receita proveniente do IRS venha a situar-se no valor de 12.066,3 milhões de euro, correspondente a uma variação de 30,7% relativamente à receita prevista para 2012 e a aproximadamente 32,74% da previsão global da receita fiscal para 2013 (cf. Relatório do OE2013, Quadro III.1.5., pág. 95), ainda que com a afetação resultante do abaixamento final da sobretaxa referida;
Medidas relativas ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, incluindo a manutenção de uma taxa adicional, a título de derrama estadual, de 3% sobre os lucros superiores a €1,5 M, e o abaixamento de €10M para €7,5M do limite a partir do qual o lucro tributável fica sujeito à aplicação de uma taxa adicional de 5% (Relatório do OE 2013, pág. 61), determinados no âmbito das alterações ao Código do IRC introduzidas pelo artigo 191.º da Lei n.º 66-B/2012, as quais suportam a estimativa de que a receita líquida em sede de IRC venha a situar-se em M€4.559,5, o que representa um crescimento de 3,9% face à receita homóloga prevista para 2012 e corresponde a cerca de 12,68% da previsão global da receita fiscal para 2013 (cf. Relatório do OE2013, Quadro III.1.5., pág. 95)
Medidas relativas ao Imposto de Selo, as quais, associando-se ao impacto resultante da sujeição dos imóveis habitacionais de valor igual superior a 1 milhão de euros à taxa agravada de 1%, em sede de Imposto do Selo, resultante das alterações introduzidas pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, incluem a criação de uma nova taxa de 20% sobre os prémios dos jogos sociais do Estado superiores a 5.000 euro, determinada pelo artigo 206.º da Lei n.º 66-B/2012, bem como a autorização legislativa para a criação de um imposto sujeito a uma taxa máxima de 0,3% sobre a generalidade das transações financeiras que tenham lugar em mercado secundário, resultante do artigo 239.º da mesma Lei, suportando a estimativa de um acréscimo de 15,4% face à receita homóloga prevista para 2012 (Relatório do OE2013, pág. 95).
Medidas relativas a outros impostos indiretos, como o Imposto sobre o Valor Acrescentado (artigo 195.º da Lei n.º 66-B/2012), o Imposto de Consumo sobre o Tabaco (artigo 207.º da Lei n.º 66-B/2012) e o Imposto sobre Bebidas Alcoólicas (artigo 207.º da Lei n.º 66-B/2012), cujo acréscimo estimado em face da receita homóloga prevista para 2012 é de 2,2%, 2,7% e 1,6%, respetivamente (Relatório do OE2013, págs. 95 e 97).
3. Do lado da despesa, o esforço de consolidação orçamental concretiza-se na adoção de medidas que totalizam aproximadamente 2.700 milhões de euro (Relatório do OE2013, pág. 135) – 1.700 dos quais se estima serem absorvidos pelo aumento de despesa face ao exercício de 2012 decorrente da reposição parcial de subsídios aos funcionários públicos e pensionistas –, representando uma diminuição estimada de 0,6% do PIB face ao exercício anterior (Relatório do OE2013, Quadro II.3.1, pág.47), entre as quais se incluem as seguintes:
(i)Manutenção do congelamento nominal de remunerações para os trabalhadores das administrações públicas e do setor empresarial do Estado, bem como dos titulares de cargos políticos e outros altos cargos públicos, através da reprodução das seguintes medidas, constantes dos Orçamentos de 2011 e 2012:
a– manutenção das reduções entre 3,5% e 10% para salários superiores a 1500 euro/mês (artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012);
b– proibição, como regra geral, de quaisquer valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões (artigo 35.º da Lei n.º 66-B/2012);
c– proibição de atribuição de prémios de gestão aos gestores de empresas públicas, entidades reguladoras e institutos públicos (artigo 37.º da Lei n.º 66-B/2012).
(ii) Suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente nos termos que vigoraram em 2012 (artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012).
(iii) Redução anual de efetivos em 2%, com impacto estimado de redução da despesa em 0,2% do PIB, em valores brutos face ao ano anterior (€330 M) - Relatório do OE 2013, págs. 47 e 49.
(iv) Outras medidas de racionalização dos custos com pessoal para redução da despesa no valor estimado de €249M (Relatório do OE 2013, pág. 50), contemplando a:
a. Redução do número de contratos de trabalho a termo resolutivo (artigo 59.º da Lei n.º 66-B/2012).
b. Alteração das regras de atribuição do abono de ajudas de custo nas deslocações em serviço (alteração ao Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de abril, introduzida pelo artigo 41.º da Lei n.º 66-B/2012) da redução de subsídio de residência/habitação atribuído a titulares de cargos públicos (alteração ao Decreto-Lei n.º 72/80, de 15 de abril, introduzida pelo artigo 43.º da Lei n.º 66-B/2012), com a consequente redução dos valores atualmente previstos.
c. Redução em 50% do valor das subvenções pagas aos trabalhadores que, no âmbito da mobilidade especial, se encontram de licença extraordinária (artigo 34.º da Lei n.º 66-B/2012);
Redução adicional na compensação sobre o valor do pagamento do trabalho extraordinário em dia normal de trabalho, aplicável aos trabalhadores cujo período normal de trabalho não exceda as sete horas por dia ou as trinta e cinco horas por semana, equivalente a 12,5 % da remuneração na primeira hora e a 18,75% da remuneração nas horas ou frações subsequentes (artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012) e a redução para 25% do valor do acréscimo remuneratório devido por cada hora de trabalho extraordinário prestado em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, e em dia feriado (artigo 45.º, n.º 2, da Lei n.º 66-B/2012)
(v) Medidas no âmbito da proteção social e aposentação ou reforma, contemplando:
a. Alteração das regras relativas à atribuição do subsídio de doença no âmbito do Regime de Proteção Social Convergente, através do não pagamento de baixas até 3 dias e a redução de 10% na remuneração base diária (sem possibilidade de reembolso) para baixas médicas a partir do 4.º até ao 30.º dia (alteração ao Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de março, introduzida pelo artigo 76.º da Lei n.º 66-B/2012);
b.Fixação em 65 anos da idade de aposentação estabelecida no regime geral do Estatuto da Aposentação (artigo 81.º da Lei n.º 66-B/2012).
b. Instituição de uma contribuição adicional sobre pensões (Contribuição Extraordinária de Solidariedade – CES) entre 3,5% e 10% para pensões mensais a partir de €1.350 (artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012).
c. Suspensão de 90% do pagamento do subsídio de férias ou equivalente a aposentados e reformados cuja pensão mensal seja superior a €1100 (artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012);
(vi) Agravamento em 50% da redução de transferências a conceder às Fundações identificadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 79-A/2012, de 25 de setembro, e proibição da realização de quaisquer transferências para as fundações que não acederam ao censo desenvolvido em execução do disposto na Lei n.º 1/2012, de 3 de janeiro, ou cujas informações incompletas ou erradas impossibilitaram a respetiva avaliação (artigo 14.º da Lei n.º 66-B/2012);
(vii) Compromisso para a redução de encargos nas parcerias público-privadas do setor rodoviário no valor expectável em 2013 de 30 % face ao valor originalmente contratado (artigo 143.º da Lei n.º 66-B/2012);
(viii) Medidas para a redução dos custos operacionais no âmbito do setor empresarial do Estado, contemplando a:
Redução no seu conjunto, no mínimo, em 3% do número de trabalhadores face aos existentes em 31 de dezembro de 2012, com exceção dos hospitais, E.P.E. (artigo 63.º da Lei n.º 66-B/2012).
Na medida em que o cálculo do impacto orçamental é aferido face ao ano de 2012, a suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente aos funcionários públicos e a suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias aos pensionistas não são contabilizadas como medidas de poupança do lado da despesa, sendo antes descontado do total de medidas do lado da despesa o montante correspondente à reposição do subsídio de Natal ou equivalente aos funcionários públicos e pensionistas (no valor de 1.673,5 milhões de euro), obtendo-se uma diminuição da despesa de apenas 1.025,6 milhões de euros (Relatório do OE2013, Quadro II.3.1., pág. 47).
4. O último dado relevante para o enquadramento das medidas consagradas nas normas impugnadas diz respeito aos pressupostos com base nos quais foi definida a estratégia orçamental do Governo concretizada na Lei n.º 66-B/2012.
De acordo com o Relatório da Lei do Orçamento de Estado, o cenário macroeconómico para 2013 prevê uma contração do PIB em 1% em média anual, valor que, por um lado, aponta para uma inversão da tendência registada desde 2011 – no ano de 2011 verificou-se uma contração do PIB em 1,7%, sendo estimada em 2012 uma contração do crescimento económico em 3% – e, por outro, reflete as características de ajustamento da economia portuguesa verificadas em anos anteriores, na medida em que se prevê uma contração adicional do consumo privado de 2,2%, associada à taxa de desemprego estimada de 16,4%, bem como à redução do rendimento disponível das famílias (Relatório do OE2013, págs. 24-25).
Entretanto, há já outros indicadores que revelam um agravamento destes dados, que permitem situar a contração do PIB em 2,3% em média anual, a contração adicional do consumo privado em 3,5%, e a atual taxa de desemprego em 18,2%.
B. Normas que estabelecem a manutenção da redução remuneratória e suspendem total ou parcialmente o pagamento do subsídio de férias ou equivalente (artigos 27º e 29º)
1. Enquadramento
5. A Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento do Estado para 2013, determina, no seu artigo 27.º, n.º 1, que a «partir de 1 de janeiro de 2013 mantém-se a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a €1500, quer estejam em exercício de funções naquela data quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, conforme determinado no artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, alterada pelas Leis n.ºs 48/2011, de 26 de agosto, e 60-A/2011, de 30 de novembro, e mantido em vigor pelo n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 64 -B/2011, de 30 de dezembro, alterada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio», redução essa que será de: «a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a €1500 e inferiores a € 2000; b) 3,5 % sobre o valor de €2000 acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exceda os €2000, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5% e 10%, no caso das remunerações iguais ou superiores a €2000 até €4165; c) 10 % sobre o valor total das remunerações superiores a €4165».
Através desta norma, a Lei n.º 66-B/2012 faz transitar para o ano de 2013 o regime instituído pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) e já transposta para o ano de 2012 pelo artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), assim operando uma redução, entre 3,5% e 10%, em função do respetivo montante, das remunerações superiores a €1.500 que devam ser pagas, através de dinheiros públicos, a um amplo universo de sujeitos no qual se incluem os titulares de órgãos de soberania, dos demais órgãos constitucionais e de cargos públicos, os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, os gestores públicos e equiparados, e os trabalhadores na Administração central, regional e local do Estado, bem como em empresas, fundações e estabelecimentos públicos.
Em relação às normas pretéritas suas congéneres – isto é, ao disposto nos n.ºs 1, 2 e 9 do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e no n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro -, a disposição constante do artigo 27.º não contém qualquer modificação relevante da regra aplicável, o que permite concluir que a redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público persistirá em 2013 sem qualquer modificação objetiva ou subjetiva. Não há qualquer compressão ou ampliação dos coeficientes legais, mínimo e máximo, aplicáveis e/ou dos montantes remuneratórios a que os mesmos se encontram indexados, nem limitação ou expansão do universo de sujeitos abrangidos pela medida, com exceção da eliminação da referência expressa aos governadores e vice-governadores civis constante da alínea j) do n.º 9 do artigo Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o que resulta da transferência de competências dos governos civis para outras entidades da Administração Pública, determinada pelo Decreto-Lei n.º 114/2011, de 30 de novembro.
Deste ponto de vista, o alcance do artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012 consistirá na imposição às pessoas que auferem rendimentos salariais no âmbito do setor público, pelo terceiro ano consecutivo, da redução remuneratória que vigorou nos anos de 2011 e 2012, nos exatos termos em que a mesma foi fixada e vigorou, em qualquer um desses anos.
6. A par da manutenção da redução nas remunerações introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, determina, no seu artigo 29.º, n.º 1, que durante «a vigência do PAEF, como medida excecional de estabilidade orçamental é suspenso o pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês às pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º, cuja remuneração base mensal seja superior a €1100».
O n.º 2 deste artigo estabelece, por sua vez, que “[a]s pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º, cuja remuneração base mensal seja igual ou superior a €600 e não exceda o valor de €1100 ficam sujeitas a uma redução no subsídio de férias ou nas prestações correspondentes ao 14.º mês, auferindo o montante calculado nos seguintes termos: subsídio/prestações = 1320 - 1,2 x remuneração base mensal”.
Nos termos destas disposições legais, determina-se a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês para pessoas que auferem remunerações salariais de entidades públicas – cujo universo é feito expressamente coincidir com o dos titulares de retribuições sujeitas à redução determinada pelo artigo 27.º da mesma lei –, estabelecendo-se que tal medida visa aplicar-se durante o período de vigência do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado pelo Estado Português com o Fundo Monetário Internacional e as instituições competentes da União Europeia.
Ressalta destas normas que, apesar de impor aos trabalhadores do setor público, pelo segundo ano consecutivo, a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês iniciada com Lei n.º 64-B/2011, a Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, ao contrário daquela, não prevê a concomitante suspensão do subsídio de Natal ou quaisquer prestações correspondentes ao 13.º mês, o qual, nos termos do artigo 28.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, será pago em duodécimos.
7. A suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês aos trabalhadores do setor público é determinada nos termos em que foi fixada para o ano de 2012 pelo artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, persistindo estruturada a partir de uma diferenciação baseada em dois níveis de rendimento:
- para os rendimentos mensais ilíquidos entre €600 e €1.100, o legislador manteve a fórmula 'subsídios/prestações = 1320 – 1,2 X remuneração base mensal', já anteriormente prevista no artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro;
- para os rendimentos mensais superiores a €1.100, encontra-se prevista a ablação da totalidade do subsídio de férias ou equivalente, nos termos e na medida em que a mesma fora determinada para o ano de 2012 pelo n.º 1 do artigo 21.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro.
8. De acordo com o artigo 31.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a redução remuneratória e a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês determinadas nos artigos 27.º e 29.º do mesmo diploma, respetivamente, é ainda aplicável aos valores pagos por contratos que visem o desenvolvimento de atividades de docência ou de investigação e que sejam financiados por entidades privadas, pelo Programa Quadro de Investigação e Desenvolvimento da União Europeia ou por instituições estrangeiras ou internacionais, exclusivamente na parte financiada por fundos nacionais do Orçamento do Estado.
Apesar de a inconstitucionalidade do artigo 31.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, ser concomitantemente invocada pelos requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2013, trata-se, de acordo com os fundamentos em que assenta, de uma inconstitucionalidade meramente consequencial, no sentido em que, de acordo com a perspetiva seguida, será determinada, direta e exclusivamente, pela natureza remissiva da norma impugnada.
Trata-se, portanto, de um vício que reside, não na opção de estender o regime definido nos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, ao universo caracterizado no artigo 31.º do mesmo diploma, em razão da respetiva natureza ou especificidade, mas do efeito que a inconstitucionalidade daquele regime projetará sobre a validade constitucional da norma que para ele remete.
Por essa razão, não deverá ser objeto de tratamento autónomo.
2. Âmbito temporal de vigência
9. Enquanto que a norma constante do artigo 27.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (relativa às reduções salariais), à semelhança do que sucedeu com as correspondentes normas dos artigos 19.º e 20.º das Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) e 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), respetivamente, não especifica o termo final do período a que destina a aplicação da redução das remunerações totais ilíquidas mensais de valor superior a €1500 aos trabalhadores do setor público, a norma inserta no artigo 29.º, n.º 1, da mesma Lei, tal como a que constava do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (relativa à supressão do subsídio de férias), para além de assumirem expressamente a natureza “excecional” e o caráter “orçamental” das medidas nelas previstas, definem o seu âmbito temporal de vigência, fazendo-o coincidir com o da vigência do PAEF.
A questão relativa à determinação do período de vigência de normas inseridas em leis orçamentais que, acompanhadas ou não de um elemento delimitador do respetivo âmbito temporal de vigência, afetam o valor da remuneração dos trabalhadores do setor público não é nova, tendo começado por colocar-se no âmbito da fiscalização da constitucionalidade do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2011), que determinou, pela primeira vez, a redução dos vencimentos mensais, pagos por dinheiros públicos, superiores a €1500, entre 3,5% e 10%, consoante o seu montante.
Quanto a saber se as reduções impostas pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, operavam a título definitivo ou a título meramente transitório, o acórdão n.º 396/2011, que se pronunciou sobre essa disposição, recusou extrair da ausência de uma cláusula de temporalidade uma conclusão favorável à definitividade da medida, tomando por base a natureza das normas em causa e os preceitos constitucionais relativos à vigência das leis do Orçamento.
Segundo foi então afirmado, apesar de “não consist[irem] numa mera inscrição de verbas, em normas de aprovação dos mapas de receitas e despesas” e se poderem suscitar por isso “dúvidas quanto à sua natureza especificamente orçamental”, as normas então impugnadas “apresenta[vam] uma imediata incidência financeira, já que visa[vam] diretamente reduzir o valor das despesas inscritas no orçamento para o ano a que respeita”, não podendo ser por isso consideradas cavaliers budgétaires.
Tendo por dificilmente sustentável a perspetiva segundo a qual essas normas regulariam, afinal, «matéria alheia à função específica e mais estrita do orçamento, enquanto instrumento de programação anual económico-financeira da atividade do Estado», o Tribunal assumiu o entendimento de que se tratava de disposições que tinham a função de dar «suporte normativo a uma dada previsão de despesas, e sendo a sua aplicação indispensável à sua correta execução, elas repercut[iam-se] diretamente no próprio quadro contabilístico do orçamento, integrando-se substancialmente neste diploma, como sua componente essencial».
Concluiu-se, assim, que as normas constantes do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, na medida em que “não se projeta[vam], com independência, para fora da aprovação e execução do Orçamento do Estado”, tinham “caráter orçamental”, pelo que, «por força de regra constitucional (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição)”, não poderiam gozar senão de vigência anual, o que tornava desnecessária a determinação autónoma do “termo final da sua vigência”, pois este encontrar-se-ia «definido constitucional e legislativamente (artigo 4.º, n.º 1, da Lei de enquadramento orçamental – Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, na redação da Lei n.º 48/2004, de 24 de agosto)».
Apesar de assim concluir, o Tribunal considerou, todavia, não poder «ignorar-se que as reduções remuneratórias estabelecidas na Lei do Orçamento do Estado de 2011 t[inham] como objetivo final a diminuição do défice orçamental para um valor precisamente quantificado, respeitador do limite estabelecido pela União Europeia, no quadro das regras da união económica e monetária», para que “fo[ra] estabelecida uma calendarização por etapas anuais”, prevendo-se para 2013 a “satisfação plena de tal objetivo”.
No contexto descrito, poderia dizer-se que «as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no Orçamento de 2011 mais não representa[riam] do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende[ria] por um horizonte temporal mais alargado».
Porém, na medida em que o legislador não optara “por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013)”, aquele dado “não invalida[ria] a conclusão de que elas vigorar[iam] segundo a sua natureza de medidas de caráter orçamental” –, isto é, com base num princípio de anualidade –, apenas levando «a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de idêntico sentido, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e em que se integram, ou seja, até 2013».
De qualquer forma, segundo o Tribunal, esta prognose, a ser tida em conta, «apenas pode[ria] fundar a conclusão de que estas medidas ter[iam] uma duração plurianual, sem pôr em causa o seu caráter transitório, de acordo com a sua razão de ser e natureza, de resposta normativa a uma conjuntura excecional, que se pretende corrigir, com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade».
10. Embora em termos não inteiramente coincidentes, o problema relativo à determinação do âmbito temporal de vigência das normas que afetam o valor da remuneração dos trabalhadores do setor público inscritas em leis orçamentais voltou a colocar-se no âmbito da fiscalização da constitucionalidade do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), que determinou, no respetivo n.º 1, a suspensão “durante a vigência do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), como medida excecional de estabilidade orçamental” do pagamento de subsídios de férias e de Natal ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e/ou 14.º meses aos trabalhadores do setor público cuja remuneração base mensal seja superior a €1.100.
Neste caso, decidido pelo acórdão n.º 353/2012, a questão colocada consistiu em saber se a inscrição daquela medida numa lei orçamental determinaria a sujeição do respetivo âmbito temporal de vigência aos limites para esta legal e constitucionalmente fixados, ou se, pelo contrário, tal âmbito deveria ser estabelecido a partir da cláusula de temporalidade inserta na própria norma do n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, hipótese em que passaria a contemplar, não apenas o ano de 2012, mas também os de 2013 e 2014, por ser esse o período de vigência do PAEF.
Tendo prevalecido este último entendimento, o Tribunal considerou então que «como os artigos 21.º e 25.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, remet[iam] para o período de vigência do PAEF, a duração da suspensão de pagamentos neles decretada, tal medida não pod[eria] deixar de ter, pelo menos, a duração de 3 anos, abrangendo os anos de 2012, 2013 e 2014».
11. Atenta, desde logo, a coincidente estrutura temporal das normas constantes dos artigos 27.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, por um lado, e dos artigos 29.º, n.º1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, por outro, não há razão para divergir do juízo sobre a temporalidade das medidas impugnadas subjacente aos julgamentos efetuados através dos Acórdãos n.º 396/2011 e 353/2012.
A limitação ao ano de 2011 do âmbito temporal de vigência da redução salarial, sem indicação de qualquer termo final, determinada pelo artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, tal como normativamente a perspetivou o Acórdão n.º 396/2011, encontra-se implicitamente assumida e confirmada pela opção de renovar, primeiro no artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e agora no artigo 27.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a norma que impôs aquele efeito. De facto, se tal norma tivesse consagrado a título definitivo a redução das remunerações dos trabalhadores do setor público superiores a €1.500, aquela renovação apresentar-se-ia, não só desnecessária, como até mesmo contraditória, já que, neste caso, a simples inércia do legislador seria suficiente para assegurar a manutenção da redução salarial aos trabalhadores do setor público para os anos de 2012 e 2013.
Embora a consecutividade da medida consistente na redução das remunerações dos trabalhadores do setor público superiores a €1.500 constitua, por isso, apenas o resultado da reprodução do regime instituído no 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, primeiro pelo artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e agora pelo artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012, a respetiva propensão plurianual, baseada na calendarização dos objetivos orçamentais a cujo prosseguimento a mesma se encontrava já então funcionalizada, não deixou de ser caracterizada no Acórdão n.º 396/2011, que a considerou compatível com a natureza transitória da afetação imposta.
Apesar de a plurianualidade da redução das remunerações dos trabalhadores do setor público se tornar agora, senão prospetiva, pelo menos retrospetivamente mais evidente, persistem as razões que, no contexto normativo subjacente ao 19.º, n.º1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, conduziram o Tribunal a não pôr em causa o seu caráter transitório e temporário
Considerado o respetivo enquadramento orçamental, tal caráter continua a resultar com clareza da circunstância de se tratar de uma medida inscrita na estratégia de consolidação orçamental, através da redução da despesa, tendo em vista o cumprimento dos limites quantitativos para o défice (Relatório, págs. 46 e 48).
Pode concluir-se, assim, que as distintas opções legislativas, quanto à indicação de um termo final para a redução de remunerações, por um lado, e a suspensão de subsídios, por outro, não inviabilizam a qualificação unitária, que a ambas abrange, de medidas com caráter transitório. Apenas, no segundo caso, ficou normativamente expressa uma duração correspondente à do PAEF, o que, de todo o modo, como adiante veremos, não dispensa, para dar essa vigência temporal à suspensão, a renovação da medida em cada orçamento desse período, dada a regra da anualidade orçamental – exigência exatamente coincidente com a que se submete a redução de remunerações, para obter aplicação plurianual.
Nada de substancial distingue, pois, quanto a este ponto, os dois regimes, apresentando eles de comum uma vigência temporária, não definitiva – a característica que foi tida em conta nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012 e é verdadeiramente relevante, como fator de valoração.
C. Questões de constitucionalidade comuns às normas dos artigos 27º e 29º
12. No Processo n.º 2/2013, o requerente suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 29º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 com base na violação do princípio da capacidade contributiva e do princípio da igualdade proporcional. Relativamente à mesma norma, os requerentes no Processo n.º 5/2013, invocaram, além da desconformidade com o princípio da igualdade perante os encargos públicos e o princípio da proporcionalidade, a infração ao princípio da proteção da confiança e ao princípio da anualidade do orçamento, a que se refere o artigo 106º, n.º 1, da Constituição.
Os requerentes no Processo n.º 8/2013 alargaram o pedido também à norma do artigo 27º, e imputaram conjuntamente às duas disposições um juízo de inconstitucionalidade por violação do respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da Constituição; por violação do princípio da confiança enquanto elemento estruturante do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º; por violação do princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrado no artigo 13.º; por violação do direito à contratação coletiva consagrado no artigo 56.º, n.º 3; por violação do direito ao salário consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a); por violação das obrigações decorrentes de contrato na elaboração do Orçamento do Estado nos termos do artigo 105.º, n.º 2, e ainda por violação do caso julgado no acórdão n.º 353/2012.
Articulando o objeto de qualquer dos pedidos, interessa começar por analisar as questões de constitucionalidade que, sendo comuns às referidas disposições dos artigos 27º e 29º, não são influenciadas pelo diferente conteúdo precetivo das normas e justificam um tratamento uniforme, deixando para um momento posterior a análise da alegada violação do princípio da confiança e do princípio da igualdade proporcional, que pode implicar uma diferenciada ponderação em relação a cada um dos preceitos que está especificamente em causa.
Por outro lado, uma vez que a redução da remuneração mensal base imposta pelo artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012 apenas atinge as retribuições superiores a €1500, a dúvida de constitucionalidade relativa ao princípio da existência condigna - também invocado pelos requerentes -, apenas poderá colocar-se quanto à suspensão parcial do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês determinada pelo n.º 2 do artigo 29.º daquele diploma, que atinge os titulares de remunerações base mensais iguais ou superiores a €600 que não excedam o valor de €1100, pelo que apenas se justificará apreciar essa matéria a propósito dessa outra disposição.
Neste sentido, tomar-se-ão em conta, por agora, as questões relativas ao caso julgado, à regra da anualidade orçamental, à regra do artigo 105º, n.º 2, da Constituição, ao direito à contratação coletiva, à aplicabilidade da constituição fiscal e ao direito à retribuição.
1. Ofensa do caso julgado
13. Pode, desde já, ter-se por manifestamente infundada a invocação, no pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2012, da violação do caso julgado, como um dos fundamentos da alegada inconstitucionalidade das normas dos artigos 27.º, 29.º e 31.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Essa alegação socorre-se da declaração de inconstitucionalidade emitida no acórdão n.º 353/2012. Tal declaração recaiu sobre as normas da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, que suspenderam, total ou parcialmente, os subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores com funções públicas e dos reformados. Não é esse o conteúdo precetivo das normas agora em apreciação, conclusão que não é infirmada por uma eventual identidade da medida da afetação patrimonial que elas possam causar na esfera das categorias de sujeitos abrangidos, por efeito da aplicação cumulativa de outras medidas.
No caso em apreço, apenas poderá estar em causa a pretensão de lançar mão da fundamentação de uma anterior decisão de inconstitucionalidade sobre determinada norma como critério invalidante de um outro preceito que produza idêntico efeito prático. Ainda que possa admitir-se que a fundamentação jurisprudencial de uma decisão de inconstitucionalidade tenha a virtualidade de desempenhar um papel de orientação de futuras atuações legislativas (mas sem eximir o legislador à sua responsabilidade política própria, quando decide tomar medidas alternativas às declaradas inconstitucionais), é constitucionalmente inadmissível pretender que essa fundamentação tenha força de caso julgado e seja, por si, invalidante de uma nova solução legislativa.
2. Ofensa da regra da anualidade orçamental
14. Ao contrário da norma que determina a redução dos salários dos trabalhadores do setor público para o ano de 2013, a norma relativa à suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente, constante do artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012 contém uma cláusula de temporalidade, através da qual o respetivo âmbito temporal de vigência é feito coincidir com o da vigência do PAEF.
Para os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 5/2013, em tal cláusula residirá um dos fundamentos para a sua invalidação constitucional.
Tal vício decorrerá, assim, da pretensão de um efeito plurianual gerado pela indexação do âmbito de aplicação temporal à vigência do PAEF, o que constituirá uma violação do princípio da anualidade estabelecido no artigo 106.º, n.º 1, da Constituição.
A regra da anualidade do orçamento foi expressamente consagrada na versão originária da Constituição de 1976 (artigo 108.º), tendo sido eliminada pela revisão de 1982 e reposta, de forma direta e autónoma, no âmbito da revisão de 1997, constando agora do n.º 1 do artigo 106.º da Lei Fundamental.
Mesmo perante a versão de 1982, a doutrina e a jurisprudência mantiveram o entendimento de que, apesar da ausência de um expresso imperativo constitucional, a opção do legislador constituinte se mantivera inalterada, devendo, por isso, continuar a considerar-se consagrada a regra da anualidade.
Procurando delimitar o âmbito de aplicação dessa regra, o acórdão n.º 358/92 considerou que o mesmo “se reporta ao Orçamento propriamente dito, donde decorre que 'o princípio da anualidade do Orçamento (...) só será violado quando a uma certa previsão de receita ou de despesa do Orçamento – à previsão de uma receita do respetivo mapa; ou à dotação de certas verbas de um mapa de despesa – se atribuir uma duração plurianual' (cfr., no mesmo sentido, o acórdão n.º 108/88)”.
Ora, não é esse o efeito produzido pela cláusula de temporalidade inserta na norma orçamental constante do artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012.
Na medida em que a referida cláusula, apesar de definir para cada uma das normas em que se insere um termo final de vigência que ultrapassa o ano a que se refere o exercício orçamentado, não tem, ela própria, uma expressão orçamental equivalente – isto é, não se traduz numa previsão de receita ou de despesa de duração correspondente —, a respetiva vocação plurianual, não só não dispensa a reiteração nas leis orçamentais subsequentes abrangidas ainda pelo período de vigência do PAEF, como não viola, por aquela razão, a regra constitucional da anualidade do orçamento, até porque esta, apesar de consagrada de “forma rigorosa” no n.º 1 do artigo 106.º da Constituição, «é compatível com a orçamentação plurianual, admitida pelo n.º 3 do artigo 105.º ao estabelecer a possibilidade de orçamentação por programas» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra, 2006, pág. 236).
Consequentemente, a norma do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, não viola o princípio constitucional da anualidade, consagrado no artigo 106.º, n.º 1, da Constituição.
3. Violação da regra do n.º 2 do artigo 105.º da Constituição
15. Os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2012 alegam ainda que a redução das prestações pecuniárias a cargo do Estado-empregador viola a norma extraída do n.º 2 do artigo 105.º da Constituição, na parte em que manda elaborar o orçamento “tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato”. A relação jurídica de emprego público, entre o Estado e os trabalhadores ao seu serviço, configuraria uma relação contratual, de que o valor da remuneração é elemento essencial, devendo ser esse o valor orçamentado na rubrica das despesas atinentes aos custos salariais.
Não sofre dúvida de que “os encargos com o pessoal do serviço do Estado” integram “as obrigações decorrentes da lei ou do contrato” a ter em conta na elaboração do Orçamento do Estado (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2010, pág.1103).
Mas essa norma não é aqui autonomamente convocável.
Enquanto regra respeitante ao Orçamento de Estado, a norma constante do n.º 2 do artigo 105.º da Constituição estabelece a necessidade de uma correspondência financeira ou contabilística entre a dotação orçamental prevista e as obrigações legais e contratuais que oneram o Estado tal como estas se apresentam no momento em que aquela adquire valor e eficácia jurídica, isto é, no momento da publicação da lei do orçamento. Mas nada nos diz quanto à substância e valor monetário dessas obrigações, em nada obstando que estes sejam orçamentalmente definidos de modo diferente do que resultaria de anteriores instrumentos jurídicos. Para ajuizar da validade ou não dessa alteração e da sua medida, o n.º 2 do 105.º, não é parâmetro adequado, justamente porque se configura como uma norma adjetiva, que se limita a impor a necessária inscrição orçamental para que possa estar satisfeito o requisito da cabimentação, como condição do processamento e pagamento das obrigações assumidas pelo Estado. Mas nada rege, quanto à definição dessas obrigações.
Na verdade, a questão de constitucionalidade para que remete o comando inscrito no n.º 2 do artigo 105.º da Constituição é a de saber se a falta de dotação orçamental para satisfazer aquelas obrigações deverá inquinar a validade do orçamento e não, sequer também, a de saber se são ou não constitucionalmente legítimas as normas concomitantemente aprovadas que, fazendo baixar o valor dos encargos do Estado por via da redução das prestações pecuniárias devidas aos trabalhadores do setor público, tornam as verbas correspondentemente inscritas, assim proporcionalmente reduzidas, suficientes para aquele efeito.
A resposta às questões de constitucionalidade suscitadas quando à redução de remunerações e à suspensão do subsídio de férias não depende, em absoluto, do disposto no n.º 2 do artigo 105.º da Constituição, pelo que a alegação de violação dessa norma não tem pertinência de fundamentação do pedido de declaração de constitucionalidade.
4. Violação do direito de contratação coletiva
16. Para os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2012, as normas constantes do n.º 15 do artigo 27.º e do n.º 9 do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, ao disporem que os regimes de redução remuneratória aí previstos têm natureza imperativa, prevalecendo sobre instrumentos de regulação coletiva de trabalho e contratos de trabalho e não podendo ser por isso afastados ou modificados pelos mesmos, violam o disposto no n.º 3 do artigo 56.º da Constituição.
Esta norma confere às associações sindicais o direito e a competência de exercer o direito de contratação coletiva, “garantido nos termos da lei”.
Deve começar por dizer-se que a existência de normas legais imperativas, entendendo-se como tais as normas que estabelecem cláusulas fixas (que não podem ser substituídas) ou que impõem condições mínimas para a tutela da relação laboral (que apenas podem ser substituídas por outras disposições que prevejam um regime mais favorável), não é, em si, contraditória com o direito à contratação coletiva. Apenas significa que tais normas consagram o estatuto legal do contrato – aplicável aos trabalhadores abrangidos por contrato de trabalho em funções públicas – e que não põem em causa o estatuto contratual, que é constituído, além do mais, pelas normas dos instrumentos de regulamentação coletiva que não contrariem aquelas outras disposições. A interligação entre essas diferentes disposições e a sua adição às cláusulas do contrato, definindo, na sua globalidade, o regime jurídico da relação laboral, não representa uma qualquer violação do direito instituído pelo artigo 56º, n.º 3, da Constituição (cfr. artigos 3º e 478º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho, e 4º, n.º 1, do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro).
Por outro lado, e ainda que as normas em causa, por consagrarem reduções remuneratórias, possam ser qualificadas como “legislação do trabalho”, para efeitos do âmbito de incidência do artigo 56.º da Constituição, o certo é que, conforme pacificamente resulta da doutrina e da jurisprudência constitucionais, o n.º 3 daquele preceito, embora atribua às associações sindicais a competência para o exercício do direito de contratação coletiva, “devolve ao legislador a tarefa de delimitação do mesmo direito, aqui lhe reconhecendo uma ampla liberdade constitutiva” (acórdão n.º 94/92 e, no mesmo sentido, Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, pág. 1118).
O direito à autonomia contratual coletiva, apesar de constitucionalmente colocado sob reserva de lei, implica que não possa deixar de haver um espaço abrangente de regulação das relações de trabalho que se encontre submetido à disciplina contratual coletiva, o qual não pode ser aniquilado por via normativo-estadual. Sendo este direito garantido «nos termos da lei», tal significa que “a lei não pode deixar de delimitá-lo de modo a garantir-lhe uma eficácia constitucionalmente relevante, havendo sempre de garantir uma reserva de convenção coletiva, ou seja, um espaço que a lei não só não pode vedar à contratação coletiva, como deve confiar a esta núcleos materiais reservados” (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 745).
Assim configurada, a questão a resolver consistirá então em saber se o legislador ordinário, ao retirar à regulamentação coletiva uma certa matéria — no caso, a possibilidade de fixar para a retribuição do trabalho normal um valor distinto daquele que resulta da aplicação das medidas orçamentais consagradas para o ano de 2013 nos artigos 27.º e 29.º, todos da Lei n.º 66-B/2012 – veio “reduzir de tal modo aquele espaço da autorregulação constitucionalmente garantido que põe em causa a possibilidade de realização do direito de contratação coletiva” (acórdão n.º 94/92).
Considerando a atendibilidade do interesse público prosseguido através do esforço de consolidação orçamental – ponto que mais detidamente desenvolveremos no âmbito da ponderação implicada nos princípios da proteção da confiança e da igualdade – não parece que da obrigação que ao legislador ordinário constitucionalmente se impõe de “deixar sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto” à negociação coletiva possa extrair-se um argumento para a invalidação constitucional do caráter necessariamente imperativo das normas orçamentais que, com base naquele interesse público, impõem, a título excecional e transitório, a redução do valor anual da retribuição dos trabalhadores do setor público.
Subtrair ao âmbito da negociação coletiva a faculdade de derrogar o regime consagrado nas normas em questão, não só constitui a condição que torna tais normas aptas a prosseguir o fim a que se dirigem, como não representa uma intromissão nos “núcleos materiais reservados”, que o legislador ordinário se encontra constitucionalmente obrigado a não excluir do âmbito material da reserva de contratação coletiva.
17. O argumento retirado da pretensa retroatividade atribuída às normas em causa não deverá fazer variar os termos da solução.
Não estando em causa a afetação da estabilidade dos contratos de trabalho geradores do direito à retribuição cujo montante é conjunturalmente atingido pelas normas cujo caráter imperativo se impugna, a suposta eficácia retroativa resume-se, afinal, à impossibilidade de as convenções coletivas se imporem para futuro à lei imperativa e não à possibilidade de a lei imperativa se sobrepor retroativamente a estas, invalidando efeitos pretéritos que ao respetivo abrigo hajam sido produzidos.
A conclusão no sentido da inexistência de fundamento para a invalidação constitucional, através do n.º 3 do artigo 56.º da Constituição, das normas constantes do n.º 15 do artigo 27.º e do n.º 9 do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, é assim de manter.
5. Aplicabilidade de normas da “constituição fiscal”
18. Tal como se encontra fundamentado, o vício de inconstitucionalidade imputado pelo requerente do pedido que deu origem ao Processo n.º 2/2013 às normas constantes do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012 desenvolve-se sob o pressuposto de que, embora a suspensão do pagamento do subsídio de férias aos trabalhadores do setor público se possa apresentar, “do ponto de vista contabilístico”, como uma “medida que incide sobre a despesa pública”, tal distinção é contabilística e formal pois, “de um ponto de vista substantivo e jurídico-constitucional”, aquela suspensão «traduz-se num esforço contributivo acrescido que lhes é unilateralmente exigido para o financiamento do Estado e que envolve uma ablação do seu rendimento anual, pelo que consistirá num verdadeiro imposto».
Com base nesta qualificação, sustenta o requerente que a medida de suspensão do pagamento do subsídio de férias aos trabalhadores do setor público “mantém um tratamento tributário diferenciado para certas categorias de cidadãos”, o que o leva a controverter a respetiva legitimidade constitucional, à luz de um parâmetro de controlo integrado por uma norma específica da chamada “constituição fiscal”, mais precisamente a constante do artigo 104.º da Constituição. Na ótica do pedido, tal medida viola também o critério da capacidade contributiva consagrado nesta disposição, o único critério “constitucionalmente admitido na tributação do rendimento pessoal”, “o qual corporiza operativamente o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos entre os cidadãos”.
19. A atribuição de natureza tributária à medida de suspensão do pagamento do subsídio de férias aos trabalhadores do setor público pressupõe que o valor suprimido por essa via possa ser qualificado como imposto, isto é, como uma “prestação pecuniária, coativa, unilateral, sem o caráter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos” (Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5.º edição, Coimbra, 1996, pág. 258), ou, em todo o caso, como um tributo parafiscal, dele próximo, a operar por via da despesa sob a forma de “contenção ou (eliminação) do gasto público (neste sentido, António Carlos dos Santos, “A nova parafiscalidade: a tributação por via de cortes na despesa com remunerações de funcionários e pensionistas”, Revista do Ministério Público, ano 33, n.º 129 (2012), pág. 51).
Quanto ao estatuto da relação jurídica afetada pelas medidas de redução remuneratória impostas aos trabalhadores do setor público pelas Leis n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, essa não foi, todavia, a orientação seguida por este Tribunal nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012, respetivamente.
Assumindo implicitamente a necessidade de uma distinção entre as atuações do Estado enquanto titular do poder político soberano, concretizadas na edição de normas que se dirigem e impõem à generalidade dos cidadãos, e atuações do Estado-empregador, que ocorrem no âmbito da relação laboral estabelecida com os trabalhadores do setor público, os acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012 apreciaram a legitimidade constitucional das medidas relativas à redução das remunerações e à suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente impostas pelos artigos 19.º e 21.º das Leis n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, respetivamente, no âmbito deste segundo enquadramento, perspetivando-as a partir do direito à retribuição inerente à relação jurídica de emprego público.
E não há razões para divergir deste entendimento.
20. Considerada a caracterização do universo dos sujeitos afetados pelas medidas constantes dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012 – universo esse que é, em todos os casos, o definido no n.º 9 do artigo 27.º –, percebe-se que o mesmo remete para o mais lato dos sentidos admitidos pela delimitação conceitual da tradicional noção de “função pública”, abrangendo por isso, «não só todos os funcionários e agentes do Estado e demais pessoas coletivas de direito público mas também os titulares de cargos públicos, incluindo os próprios titulares dos órgãos de soberania», isto é, todos “quantos explicitam um qualquer desempenho funcional na Administração Pública, Estado e outras entidades públicas” (Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, Coimbra, 1999, pág. 22) e cuja remuneração é por isso, assegurada através de verbas públicas.
Este sentido lato, delimitado a partir da relação de emprego público, apenas coloca fora do conceito a atividade de entes não públicos, ainda que finalizada ou revertível ao interesse geral (idem, pág. 27).
Ao fazerem coincidir o seu âmbito subjetivo de aplicação com o universo dos trabalhadores do setor público elencados no n.º 9 do artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012, as normas constantes dos respetivos artigos 27.º e 29º têm subjacente aquele entendimento amplo correspondente ao conceito de agentes administrativos ou servidores públicos, abrangendo quem presta trabalho a qualquer título pelo exercício de funções públicas.
Mesmo nesta aceção, estamos sempre em face de situações em que o Estado se vincula com particulares numa relação que o obriga, em contrapartida da prestação de determinada atividade, ao pagamento de uma retribuição.
21. Em relação ao universo, assim caracterizado, dos trabalhadores do setor público, a concentração numa única e mesma entidade — o Estado — das qualidades de sujeito ativo da relação jurídico-tributária e de sujeito passivo da relação que o obriga a uma prestação remuneratória pode conduzir a que a nitidez da diferenciação entre as intervenções realizadas numa e noutra esfera se esbata. Ademais, a relativa indiferenciação dos efeitos práticos produzidos na esfera patrimonial dos sujeitos afetados pode compreensivelmente direcionar para a qualificação como imposto, como forma, no limite, de prevenir que o Estado contorne abusivamente as apertadas exigências da constituição fiscal.
Todavia, esta conceção radicalmente garantística impõe que qualquer correção do desequilíbrio orçamental que contenda com posições individuais só possa constitucionalmente ser levada a cargo por via tributária, pelo aumento da carga fiscal. O que significaria uma drástica limitação do exercício do poder político soberano na orientação das medidas a tomar no campo das finanças públicas.
Não parece que esta seja uma imposição constitucional.
Os princípios e normas estruturantes do sistema fiscal não podem ser automaticamente erigidos em critérios determinantes da via fiscal, como via única de obter ou poupar recursos financeiros, sempre que este resultado implique perdas privadas. Sob este ponto de vista, são diferenciáveis e não necessariamente justificativos de um mesmo tratamento a retenção na fonte de um acréscimo de imposto incidente apenas sobre trabalhadores da Administração Pública e devido ao Estado-fiscal e a supressão transitória de uma parcela da remuneração devida pelo Estado-empregador no âmbito da relação estabelecida com aqueles.
A opção do Estado em seguir esta segunda via não a situa obviamente em terreno constitucionalmente neutro, do ponto de vista da repartição dos encargos públicos. Mas a atendibilidade da ideia valorativa que esse critério concretiza passa, como adiante veremos, pela aplicação de princípios estruturantes, designadamente o da igualdade (na sua enunciação mais genérica e não na sua refração, no domínio fiscal), não pressupondo nem autorizando a transmudação normativa da natureza da medida, convertendo uma intervenção realizada no domínio da relação de emprego público numa intervenção de natureza fiscal ou parafiscal.
A norma constante do artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, convocada pelo requerente do pedido que deu origem ao Processo n.º 2/2013, não serve, por isso, como parâmetro autónomo de constitucionalidade.
6. Violação do direito à retribuição
22. Reconduzida ao âmbito da relação jurídica de emprego público a posição subjetiva afetada pelas normas constantes dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012, importa agora verificar se as mesmas, singularmente e em resultado do seu efeito cumulativo, põem em causa, de forma constitucionalmente inadmissível, o direito à retribuição dos trabalhadores do setor público, tal como invocado pelos requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2013.
Tendo em conta a dupla configuração das atribuições patrimoniais a cargo do Estado-empregador abrangidas pelas referidas normas – redução do valor das remunerações mensais superiores a €1.500 (artigo 27.º) e suspensão do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês (artigo 29.º) – impõe-se, antes de mais, ajuizar se esta última cabe no conceito de retribuição.
No que respeita aos trabalhadores que exercem funções públicas, esta natureza foi reconhecida, desde logo, no Decreto-Lei n.º 372/74, de 20 de agosto, que instituiu, com caráter de obrigatoriedade, o subsídio de Natal, e criou o subsídio de férias. Conforme resulta do preâmbulo desse diploma, teve-se em vista, com o mesmo, aumentar “substancialmente os vencimentos do funcionalismo público civil”, cujo poder de compra havia sido fortemente abalado pela evolução dos preços nos anos anteriores. Ainda de acordo com o referido preâmbulo, esse aumento foi efetuado “segundo um esquema de aumentos degressivos em valor absoluto”, bem como com a instituição, com caráter de obrigatoriedade legal, do 13.º mês (subsídio de Natal) e com a criação do subsídio de férias (cujo valor era, então, equivalente a metade da remuneração mensal).
Atualmente, a ideia de que estes subsídios constituem parte da “remuneração anual” resulta claramente do artigo 70.º, n.º 3, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, o qual dispõe que «a remuneração base anual é paga em 14 mensalidades, correspondendo uma delas ao subsídio de Natal e outra ao subsídio de férias, nos termos da lei.» (em idêntico sentido, ainda que com uma formulação diferente, dispõem os artigos 207º e 208º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro).
Essa é também a conclusão que se retira dos princípios gerais em matéria laboral, e, designadamente, dos artigos 258.º e seguintes do Código do Trabalho. Pode dizer-se que, no âmbito do contrato de trabalho, a retribuição em sentido estrito compreende a denominada “retribuição base” – correspondente à parcela retributiva contratualmente devida que condiz com o exercício da atividade desempenhada pelo trabalhador de acordo com o período normal de trabalho que tenha sido acordado e as demais prestações pecuniárias pagas regularmente como contrapartida da atividade, aqui se incluindo os complementos salariais certos, que correspondem a prestações fixas que se vencem periodicamente, entre os quais subsídios anuais como sejam o subsídio de Natal (artigo 263.º do Código do Trabalho) e o subsídio de férias (artigo 264.º, n.º 2, do Código do Trabalho).
23. Quanto à natureza da prestação pecuniária correspondente ao subsídio de férias ou 14.º mês, a sua integração no conceito de retribuição foi também o entendimento seguido no acórdão n.º 353/2012.
Conforme aí se escreveu, «atualmente, tanto o subsídio de férias como o de Natal, quer no regime jurídico do direito privado, quer no do direito público, têm a natureza de retribuição, isto é, de contrapartida ligada ao trabalho prestado, integrando a remuneração anual».
Daí que - como se concluiu nesse aresto - «a suspensão do pagamento do subsídio de férias e de Natal se traduza numa redução percentual do rendimento anual das pessoas afetadas, tal como sucede com os cortes salariais determinados pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2011) e que o artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento de Estado para 2012) manteve em vigor […], representando, da mesma forma, uma diminuição dos seus meios de subsistência».
24. Assente este pressuposto, importa averiguar se os cortes salariais e a suspensão do subsídio de férias afeta a invocada garantia da irredutibilidade dos salários.
Esta questão foi debatida no acórdão n.º 396/2011, onde, a propósito das normas constantes do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, se escreveu o seguinte:
«Não consta da Constituição qualquer regra que estabeleça a se, de forma direta e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários. Essa regra inscreve-se no direito infraconstitucional, tanto no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (artigo 89.º, alínea d)), como no Código do Trabalho (artigo 129.º, n.º 1, alínea d)).
Vem arguido que tal garantia, ainda que integrando a legislação ordinária, goza de “força constitucional paralela”, por via do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição.
Deve começar por se anotar que tal regra de direito ordinário apenas vale para a retribuição em sentido próprio. Na verdade, ela não abrange, por exemplo, as ajudas de custo, outros abonos, bem como o pagamento de despesas diversas do trabalhador (Maria do Rosário Ramalho, Direito do Trabalho, II, Situações laborais individuais, Coimbra, 2006, págs. 564 e 551).
[…] Mas importa sobretudo sublinhar que a regra não é absoluta. De facto, a norma que proíbe ao empregador, na relação laboral comum, diminuir a retribuição (artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código de Trabalho) ressalva os “casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação coletiva do trabalho”. Quanto à relação de emprego público, admite-se que a lei (qualquer lei) possa prever reduções remuneratórias (cfr. o citado artigo 89.º, alínea d)). O que se proíbe, em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
Deste modo, não colhe a argumentação de que existiria um direito à irredutibilidade do salário que, consagrado na legislação laboral, teria força de direito fundamental, por virtude da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição. Se assim fosse, o legislador encontrar-se-ia vinculado por tal imperativo, o que, como vimos, não sucede. Em segundo lugar, não se pode dizer, uma vez garantido um mínimo, que a irredutibilidade do salário seja uma exigência da dignidade da pessoa humana ou que se imponha como um bem primário ou essencial, sendo esses os critérios materiais para determinar quando estamos perante um direito subjetivo que se possa considerar 'fundamental' apesar de não estar consagrado na Constituição e sim apenas na lei ordinária (Cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª edição, Coimbra, 2009, págs. 79-80).
De resto, o legislador constituinte teve a preocupação de estabelecer uma densa rede protetiva da contrapartida remuneratória da prestação laboral, dando consagração formal, no texto da Constituição, às garantias que entendeu serem postuladas pelas exigências de tutela, a este nível, da condição dos trabalhadores. Assim é que, para além do reconhecimento do direito básico à retribuição, manda-se observar o princípio de que “para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna” (alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º), fixa-se como incumbência do Estado “o estabelecimento e a atualização do salário mínimo nacional” (alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo), acrescentando-se, na revisão de 1997, a imposição constitucional de “garantias especiais dos salários” (n.º 3 do artigo 59.º). Não é de crer que o programa constitucional, tão exaustivamente delineado, nesta matéria, só fique integralmente preenchido com a atribuição da natureza de direito fundamental legal ao direito à irredutibilidade da retribuição, qualificação para a qual não se descortina fundamento material bastante.
Direito fundamental, esse sim, é o 'direito à retribuição', e direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, como é pacífico na doutrina e este Tribunal tem também afirmado (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 620/2007). Mas uma coisa é o direito à retribuição, outra, bem diferente, é o direito a um concreto montante dessa retribuição, irredutível por lei, sejam quais forem as circunstâncias e as variáveis económico-financeiras que concretamente o condicionam. Não pode, assim, entender-se que a intocabilidade salarial é uma dimensão garantística contida no âmbito de proteção do direito à retribuição do trabalho ou que uma redução do quantum remuneratório traduza uma afetação ou restrição desse direito.
Inexistindo qualquer regra, com valor constitucional, de direta proibição da diminuição das remunerações e não sendo essa garantia inferível do direito fundamental à retribuição, é de concluir que só por parâmetros valorativos decorrentes de princípios constitucionais, em particular os da confiança e da igualdade, pode ser apreciada a conformidade constitucional das soluções normativas em causa.
Tem sido essa, aliás, a orientação constante deste Tribunal, sempre que chamado a julgar questões atinentes, direta ou indiretamente, a reduções remuneratórias. Foi assim no acórdão n.º 303/90, sobre vencimentos dos ex-regentes escolares, no acórdão n.º 786/96, sobre alterações ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, com repercussão no subsídio da condição militar, e no acórdão n.º 141/2002, referente à fixação de limites de vencimentos a funcionários em funções em órgãos de soberania, a membros dos gabinetes de órgãos de soberania, a funcionários dos grupos parlamentares e a funcionários das entidades e organismos que funcionam juntos dos órgãos de soberania, a qual importou uma efetiva e significativa redução dos vencimentos auferidos por esses sujeitos. Independentemente do sentido das pronúncias, foi exclusivamente à luz do conteúdo normativo desses princípios que elas foram emitidas.
Não estando em causa a afetação do direito a um mínimo salarial, uma vez que a redução remuneratória apenas abrange retribuições superiores a 1.500 euro, valor muito superior ao do salário mínimo nacional, a irredutibilidade apenas poderá resultar do respeito pelo princípio da proteção da confiança e porventura, ainda, do princípio da igualdade».
25. Não há razões para afastar este entendimento, expresso no acórdão n.º 396/2011, quanto à não atribuição de estatuto jusfundamental ao direito à irredutibilidade de prestação, nem como direito autónomo, materialmente constitucional, nem como uma dimensão primária do direito fundamental à justa retribuição consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, da Constituição.
E ele é extensivo, por identidade de razão, à prestação pecuniária correspondente ao subsídio de férias ou a quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês.
Não se perspetivam, na verdade, fundamentos qualitativamente diferenciados que contrariem o que, por referência à parcela principal da retribuição, foi considerado no acórdão n.º 396/2011.
Assim, tal como o juízo que incidiu sobre as normas constante do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, também a avaliação da legitimidade constitucional das medidas constantes dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012, deverá desenvolver-se sob a assunção de que a natureza e a densidade jurídico-constitucionais do direito à justa retribuição, consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP, e do direito à irredutibilidade do seu montante, inscrito na lei ordinária, não são nem coincidentes nem sincrónicas.
Mas a colocação do direito à intangibilidade salarial fora do âmbito de tutela do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP apenas permite sustentar a diferenciação de campos valorativos e de parâmetros de valoração entre o direito à retribuição e o direito à irredutibilidade do seu montante, de tal modo que a diminuição unilateral deste não constitui sempre, por implicação necessária, uma afetação daquele. O facto de o direito a um certo quantum de remuneração não estar protegido pelo artigo 59.º, n.º 1, alínea a), significa apenas e tão-só a inaplicabilidade, em princípio, desta regra como parâmetro de valoração, não assegurando, sem mais, a constitucionalidade da medida em causa. Uma vez fixado, por critérios de direito ordinário, o conteúdo do direito ao salário (sem precisa determinação constitucional), uma mudança legislativa que afete negativamente esse conteúdo tem que encontrar justificação bastante, à luz dos princípios constitucionais pertinentes, sob pena de inconstitucionalidade.
É esse controlo que, de seguida, faremos.
D. Questões de constitucionalidade relativas à norma do artigo 27º (princípio da proteção da confiança e princípio da igualdade proporcional)
26. Os requerentes no Processo n.º 8/2013, sem perder de vista a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional relativamente à redução salarial imposta aos trabalhadores da Administração Pública pelo artigo 19º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, mantêm o entendimento de que a renovação dessa medida pelo terceiro ano consecutivo e agora no âmbito da Lei do Orçamento do Estado para 2013, viola o princípio da proteção da confiança, bem como o princípio da proporcionalidade na imposição de sacrifícios aos trabalhadores do setor público.
Como é sabido, começando por analisar o primeiro desses parâmetros de constitucionalidade, a lesão da confiança pressupõe, num primeiro momento, que, ao editar a norma contestada, o legislador ordinário haja intervindo em sentido contrário às legítimas expectativas que os particulares depositavam na continuidade da ordem jurídica, na sua duração estável e na previsibilidade da sua mutação.
No citado acórdão n.º 396/2011, o Tribunal considerou que, em princípio, “uma redução remuneratória abrangendo universalmente o conjunto de pessoas pagas por dinheiros públicos não cai na zona de previsibilidade de comportamento dos detentores do poder decisório” e que o «quase contínuo passado de aumentos anuais dos montantes dos vencimentos, na função pública, legitima uma expectativa consistente na manutenção, pelo menos, das remunerações percebidas e a tomada de opções e a formação de planos de vida assentes na continuidade dessa situação».
Embora sem deixar de considerar que as reduções então introduzidas, «na medida em que contraria[vam] a normalidade anteriormente estabelecida pela atuação dos poderes públicos, nesta matéria, frustra[vam] expectativas fundadas», tanto mais que se tratava de «reduções significativas, capazes de gerarem ou acentuarem dificuldades de manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de compromissos assumidos pelos cidadãos», o Tribunal não deixou por isso de colocá-las em contexto, chamando a atenção para a “conjuntura de absoluta excecionalidade, do ponto de vista da gestão financeira dos recursos públicos”, caracterizada pela forte pressão que “o desequilíbrio orçamental” havia gerado sobre a “dívida soberana portuguesa, com escalada progressiva dos juros” e pelas “sérias dificuldades de financiamento” com que se confrontavam então “o Estado português e a economia nacional”, o que permitia já então pôr «em dúvida, em face deste panorama, se, no momento em que as reduções entraram em vigor, persistiam ainda as boas razões que, numa situação de normalidade, levam a atribuir justificadamente consistência e legitimidade às expectativas de intangibilidade de vencimentos».
Como não pode deixar de reconhecer-se a relativização das expectativas que podem legitimamente criar-se em torno da irredutibilidade das remunerações a pagar por verbas públicas, é agora, por força da manutenção da situação de excecionalidade financeira, mais acentuada e evidente.
Ainda que o legislador não tenha optado por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias inscritas no Orçamento de 2011 um horizonte temporal mais alargado, permitindo caracterizar essas medidas como sendo de natureza orçamental e de vigência anual, a verdade é que – como o mesmo aresto fez notar - era praticamente certa a sua duração plurianual e a necessidade da sua inclusão nas leis do orçamento dos anos subsequentes, como forma de dar resposta normativa a uma conjuntura excecional que se pretendia corrigir.
Não se trata, assim, de uma mutação da ordem jurídica com que os destinatários das normas dela constantes, no contexto global em que foi introduzida, não pudessem verdadeiramente contar, sendo que as ponderosas razões de interesse público que motivaram a alteração legislativa operada pelo questionado artigo 27.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013 não permite, por outro lado, considerá-la carecida de fundamento prevalecente em termos que justifiquem a emissão de um juízo de inconstitucionalidade autonomamente fundado na violação do princípio da segurança jurídica.
27. Num outro plano, o Tribunal, no acórdão n.º 396/2011, ao confrontar as reduções remuneratórias previstas no artigo 19.º na Lei do Orçamento do Estado para 2011 com o princípio da igualdade, centrou a questão de constitucionalidade no «facto de os destinatários das medidas (…) serem apenas as pessoas que trabalham para o Estado e demais pessoas coletivas públicas, ou para quaisquer das restantes entidades referidas no n.º 9 do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2011, de 31 de dezembro», deixando de fora «os trabalhadores com remunerações por prestação de atividade laboral subordinada nos setores privado e cooperativo, os trabalhadores por conta própria, bem como todos quantos auferem rendimentos de outra proveniência».
Considerando indiscutível que «com as medidas [então] em apreciação, a repartição dos sacrifícios impostos pela situação excecional de crise financeira não se faz de igual forma entre todos os cidadãos com igual capacidade contributiva, uma vez que elas não têm um alcance universal, recaindo apenas sobre as pessoas que têm uma relação de emprego público», o Tribunal centrou a avaliação da legitimidade constitucional das normas impugnadas em saber se as soluções nelas consagradas seriam “arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos”.
Depois de assim definir o problema de constitucionalidade suscitado perante o princípio da igualdade, o Tribunal concluiu pela existência de um fundamento legítimo para a diferenciação implicada na redução das remunerações base superiores a €1.500 aos trabalhadores do setor público, fazendo-o coincidir, por um lado, com a inexistência de “razões de evidência” suscetíveis de neutralizar a ideia segundo a qual, “pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata” para a redução do “peso da despesa do Estado, com a finalidade de reequilíbrio orçamental”, e, por outro, com a circunstância de, em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não se encontrar “em posição de igualdade com os restantes cidadãos”. Essas razões conduziram ao entendimento de que o “sacrifício adicional” transitoriamente exigido a essa categoria de pessoas não consubstanciava, naquele contexto de excecionalidade, “um tratamento injustificadamente desigual”.
Não há agora motivo para alterar este julgamento, sendo que a questão que pode colocar-se, sob tal perspetiva, é a de saber se o efeito cumulado da redução da remuneração mensal base com a suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente a que se refere o artigo 29º, poderá representar já uma violação do princípio da igualdade proporcional.
Essa será, no entanto, questão a analisar no âmbito de apreciação da norma do artigo 29.º.
E. Questões de constitucionalidade relativas à norma do artigo 29.º
1. Considerações gerais
28. A Lei Fundamental é sensível às variações, para menos, do nível da concretização legislativa que possa conhecer o direito à retribuição, proporcionando um controlo, não quanto à redutibilidade, em si mesma considerada, mas quanto aos termos da sua efetivação – isto é, quanto às suas razões e medida. Esse controlo atua por intervenção mediadora dos princípios da proteção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade, que densificam a ideia de sujeição do poder público a princípios e regras jurídicas, integrando, nessa aceção, a ideia de Estado de direito inscrita no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição). Também neste campo, a liberdade conformadora do legislador encontra-se constitucionalmente vinculada por aqueles princípios.
A ablação por via ordinária de parte significativa dos rendimentos do trabalho imposta aos trabalhadores do setor público, apesar de não se encontrar constitucionalmente vedada nos termos em que o é a supressão, a suspensão ou a extinção do direito à retribuição propriamente dito, não se torna por isso constitucionalmente insindicável e pressupõe o esclarecimento das razões, necessariamente de interesse público, que conduziram o Estado a intervir unilateralmente naquele sentido no âmbito da relação de emprego público a que se acha vinculado enquanto empregador.
Essas razões constam do Relatório do Orçamento de Estado para 2013 (págs. 39 a 41), onde a adoção do conjunto de medidas relativas à remuneração dos trabalhadores do setor público se encontra justificada nos seguintes termos:
«[…]
Torna-se assim evidente que, subjacente às medidas de consolidação orçamental propostas para 2013, numa conjuntura económico-financeira de contornos cuja excecionalidade é claramente demonstrada pela necessidade de ajuda internacional a que o País se viu, e continua a ver, forçado a recorrer, está a salvaguarda de valores e princípios estruturantes da ordem constitucional portuguesa.
Com efeito, a manutenção da capacidade de financiamento da economia nacional, diretamente dependente do equilíbrio das contas públicas afigura-se desde logo imprescindível, quer à garantia de realização das tarefas fundamentais constitucionalmente cometidas ao Estado quer à própria sustentabilidade do Estado Social e dos direitos económicos e sociais dos cidadãos.
Acresce que, as medidas visadas prosseguem um propósito de justiça intergeracional, na medida em que visam contribuir para a redução dos encargos lançados sobre as gerações futuras.
Por último, a adoção destas medidas deve ser enquadrada no âmbito do princípio constitucional da realização da integração europeia, no quadro do qual se inserem as obrigações em matéria de finanças públicas – e em particular de rigor e disciplina orçamentais – que impendem sobre Portugal enquanto membro da área do euro.
A realização destes valores e princípios constitucionalmente consagrados justificam amplamente a introdução destas medidas, as quais se norteiam por ponderosas razões de interesse público e de preponderância do bem comum, em face do contexto económico-financeiro e social do País.
Se as circunstâncias de verdadeira excecionalidade que levaram Portugal a solicitar ajuda financeira internacional não se encontram ainda superadas, e por isso justificam, neste contexto, as medidas de consolidação orçamental introduzidas, não se ignora também que estas mesmas medidas não podem deixar de ser aferidas à luz dos princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança que, em qualquer Estado de Direito, sustentam as relações entre o Estado e os cidadãos.
A este propósito cabe salientar, de um modo especial que, por um lado, na sequência da declaração de inconstitucionalidade emitida pelo Tribunal Constitucional das medidas previstas nos artigos 21.º e 25.º da Lei do Orçamento do Estado para 2012 e, por outro, o facto de a medida substitutiva encontrada inicialmente pelo Governo (envolvendo um elemento de desvalorização fiscal), não ter merecido o consenso necessário à sua adoção, as medidas agora propostas assumem-se como a única opção que garante a prossecução do objetivo traçado, tendo em vista o cumprimento do limite de 4,5% do PIB para o défice orçamental, satisfazendo, ao mesmo tempo, as exigências dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.
A suspensão, no próximo exercício orçamental, de apenas um dos subsídios, designadamente o de férias, relativamente aos trabalhadores do setor público, complementada com a introdução de uma sobretaxa de 4 % sobre todos os rendimentos sujeitos a IRS, na parte que excede o salário mínimo nacional, visa extrair as devidas consequências da decisão do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade, com efeitos a partir de 2013, das normas dos artigos 21.º e 25.º da Lei do Orçamento do Estado para 2012. Como é sabido, tal decisão considerou que as citadas normas, ao envolverem a suspensão dos dois subsídios, de férias e de Natal, dos trabalhadores do setor público se traduziam numa violação do princípio da igualdade na dimensão da justa repartição dos encargos públicos.
Neste âmbito, cumpre desde logo salientar o caráter progressivo da sobretaxa ora introduzida e pela sua cumulação com a sobretaxa de solidariedade aplicável aos titulares de rendimentos mais elevados, sem incidir porém sobre a parte dos rendimentos que equivalem ao salário mínimo nacional, em linha com o objetivo prosseguido pelo princípio constitucional no que respeita à progressividade do sistema fiscal. Salvaguardam-se assim os princípios da igualdade e da justiça social, os quais determinam uma justa repartição dos encargos públicos pelos cidadãos, sem no entanto desacautelar a situação daqueles que se encontram em situação económica mais frágil.
A introdução da sobretaxa deve, aliás, ser enquadrada no conjunto das outras medidas de caráter fiscal ora introduzidas, as quais atingem especialmente os titulares de rendimentos mais elevados, assim como os rendimentos de capital – sem embargo de se reconhecer que, pelo maior impacto que representa, boa parte destas medidas se projetam também em sede de reformulação dos escalões de IRS. Foi, assim, a necessidade de respeitar as exigências da igualdade, da justiça e da equidade entre os cidadãos na repartição dos sacrifícios que esteve na base da adoção das medidas de substituição do disposto nos artigos 21.º e 25.º da Lei do Orçamento do Estado para 2012.
Na verdade, essa mesma preocupação levou o Governo a complementar a medida de suspensão de um dos subsídios, relativamente aos trabalhadores do setor público, com um conjunto de medidas transversais de caráter fiscal, envolvendo, designadamente, para além da aludida sobretaxa sobre os rendimentos das pessoas singulares, o aumento da taxa liberatória sobre rendimentos de capitais, a manutenção da taxa de solidariedade sobre os rendimentos mais elevados, a reavaliação de imóveis em sede de IMI, a limitação à dedutibilidade dos gastos financeiros, como juros, em sede de IRC, a equiparação da taxa de imposto para todas as formas de tabaco, a introdução de uma sobretaxa sobre património imobiliário, incidente sobre imóveis de valor patrimonial superior a um milhão de euros, ou a autorização para a introdução de um imposto sobre transações financeiras, sem esquecer a já mencionada reformulação dos escalões do IRS.
[…]
Através destas medidas, e do seu efeito conjugado, procura respeitar-se a igualdade proporcional perante os impostos e, desse modo, respeitar a justa repartição dos encargos públicos.
Ao mesmo tempo, não se ignora que algumas das medidas de contenção orçamental atingem apenas os trabalhadores do setor público. Porém, o alcance de tais medidas é agora substancialmente limitado, através da reposição de um dos subsídios, ou prestações equivalentes, sendo essa mesma reposição compensada através da imposição de uma sobretaxa sobre os rendimentos sujeitos a IRS, extensível a todos os contribuintes que auferem rendimentos superiores ao salário mínimo nacional. Ao que acaba de ser dito acresce ainda que, em linha com todas as decisões do Tribunal Constitucional sobre medidas de consolidação aprovadas para os últimos exercícios orçamentais, se torna admissível efetuar alguma diferenciação entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado, diferenciação essa que se justifica, além do mais, pelo caráter transitório das medidas, as quais se encontram estritamente limitadas na sua aplicação temporal à verificação de um equilíbrio efetivo das contas públicas.
[…]»
29. Conforme se depreende desta exposição, o interesse público cuja prossecução conduziu o legislador à adoção das medidas constantes das normas aqui impugnadas subsiste relacionado com a “consecução de fins de redução da despesa pública e de correção de um excessivo desequilíbrio orçamental” (acórdão n.º 396/2011), de acordo com um programa que, apesar de plurianual, se mantém “temporalmente delimitado”.
Tais fins encontram-se agora sujeitos a uma concretização calendarizada, definida no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, de acordo com a qual, na sequência da revisão de que foram objeto, os limites quantitativos para o défice se encontram fixados em 5,5% e 4%, para os anos de 2013 e 2014, respetivamente.
O PAEF, conforme se escreveu no acórdão n.º 353/2012, “implicou a satisfação de determinadas condições prévias por parte das autoridades portuguesas”, sendo constituído por um «conjunto de instrumentos jurídicos, os quais foram aprovados, por um lado, pelo Governo Português e, por outro lado, pelo Conselho Executivo do Fundo Monetário Internacional, bem como pelo Governo Português e pela Comissão Europeia (em nome da União Europeia) e pelo Banco Central Europeu».
Tais instrumentos jurídicos – integrados por um “memorando técnico de entendimento e por um memorando de políticas económicas e financeiras que estabelecem as condições da ajuda financeira a Portugal por parte do Fundo Monetário Internacional – são completados pelo memorando de entendimento relativo às condicionalidades específicas de política económica, assinado entre o Governo Português e a União Europeia e adotado com referência ao Regulamento do Conselho (UE) n.º 407/2010, de 11 de maio de 2010, que estabelece o Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, em especial o artigo 3.º, n.º 5, do mesmo, descrevendo este as condições gerais da política económica tal como contidas na Decisão de Execução do Conselho n.º 2011/344/UE, de 17 de maio de 2011, sobre a concessão de assistência financeira a Portugal.
Conforme se escreveu ainda no acórdão n.º 353/2012, tais «memorandos são vinculativos para o Estado Português, na medida em que se fundamentam em instrumentos jurídicos – os Tratados institutivos das entidades internacionais que neles participaram, e de que Portugal é parte – de Direito Internacional e de Direito da União Europeia, os quais são reconhecidos pela Constituição, desde logo no artigo 8.º, n.º 2. Assim, o memorando técnico de entendimento e o memorando de políticas económicas e financeiras baseia-se no artigo V, Secção 3, do Acordo do Fundo Monetário Internacional, enquanto o memorando de entendimento específicas de política económica se fundamenta, em última análise, no artigo 122º, n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia».
Tais documentos impõem a adoção pelo Estado Português das medidas neles contempladas como condição do cumprimento faseado dos contratos de financiamento celebrados entre as mesmas entidades, dos mesmos resultando que «Portugal deve adotar um conjunto de medidas e de iniciativas legislativas, inclusivamente de natureza estrutural, relacionadas com as finanças públicas, a estabilidade financeira e a competitividade, as quais deverão ocorrer durante um período de 3 anos» (acórdão n.º 396/2011).
30. Instrumentalmente pré-ordenadas à realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, num contexto de particular excecionalidade, as medidas impugnadas encontram-se dirigidas à prossecução de um interesse público real, percetível, claro e juridicamente enquadrável, coincidente com a preservação da capacidade de financiamento do Estado no âmbito das obrigações assumidas e, por essa via, com as possibilidades de realização das tarefas fundamentais a seu cargo.
A questão não é, portanto, a da existência de um interesse público com cuja prossecução as medidas em causa possam ser funcionalmente relacionadas – o que exclui a possibilidade de considerá-las arbitrárias – mas a de saber se, do ponto de vista da posição jurídica afetada, a relação entre esse interesse e estas medidas, o modo como o legislador ordinário a estabeleceu e valorou, e, essencialmente, a opção que nessa valoração fez radicar — que é a de fazer recair sobre as pessoas que auferem remunerações por verbas públicas o esforço adicional correspondente à redução das retribuições base superiores a €1.500 e à suspensão total ou parcial do pagamento do subsídios de férias, ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º meses a partir de €600 — traduzem ou não, no contexto que resulta da Lei do Orçamento de Estado para 2013, uma intervenção proibida pelos princípios da proteção da confiança, da igualdade e/ou da proporcionalidade.
2. Princípio da proteção da confiança
31. De acordo com os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 5/2013, a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias aos trabalhadores do setor público determinada pelas normas constantes do artigo 29.º da Lei n.º 66-A/2012 é contrária ao princípio da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito contemplado no artigo 2.º da Constituição.
Pese embora a fluidez de contornos e o grau de indeterminação de conteúdo que ao princípio da proteção da confiança são recorrentemente apontados (acórdão n.º 237/98) – o que o tornará especialmente sensível às circunstâncias de tempo e de lugar que definem o contexto em que é chamado a intervir –, pode afirmar-se que o mesmo leva «postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica» (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs. 11/83, 10/84, 17/84, 89/84, 303/90 e 237/98).
No caso vertente, embora se reconheça, em relação à suspensão do subsídio de férias, que possa ter ocorrido um acréscimo de expectativas decorrente da circunstância de o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 353/2012, ter julgado inconstitucionais as medidas de suspensão do subsídio de férias e de Natal introduzidas pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, não se afigura que a adoção de uma tal medida, ainda que subsequente à formulação desse juízo de inconstitucionalidade, mereça, na exclusiva perspetiva da tutela da confiança, uma ponderação substancialmente distinta daquela que suscitou a manutenção da redução salarial.
Com efeito, a suspensão do subsídio de férias – que já havia sido adotada, no anterior exercício orçamental, em cumulação com a suspensão do subsídio de Natal – integra-se, ainda, numa linha de atuação programada, de caráter plurianual, que visa a realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, num contexto de particular excecionalidade, o que manifestamente configura a prossecução de um interesse público real, percetível, claro e juridicamente enquadrável, coincidente com a preservação da capacidade de financiamento do Estado no âmbito das obrigações assumidas e, por essa via, com as possibilidades de realização das tarefas fundamentais a seu cargo.
32. De todo o modo, a violação do artigo 2.º da Constituição manter-se-ia na dependência da possibilidade de reconhecer nas medidas de redução da retribuição constantes Lei n.º 66-B/2012 uma postergação «intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada” daqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático” (acórdão n.º 12/2012).
Esta ideia de arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, tem sido definida pelo Tribunal Constitucional por referência a dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Ora, no caso, há, por um lado, indícios consistentes da necessidade de manutenção de medidas de contenção orçamental, e, por outro lado, por todas as razões já antes expostas, são patentes as razões de interesse público que justificam as alterações legislativas, pelo que não se pode dizer que estejamos perante um quadro injustificado de instabilidade da ordem jurídica.
3. Princípio da igualdade
33. De acordo com o sentido reiterado e uniforme da jurisprudência deste Tribunal, “só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem” (acórdão n.º 47/2010).
Sob tal perspetiva, a questão suscitada pela norma constante do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, é a de saber se a manutenção da redução da remuneração mensal base, associada à suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente e ambas conjugadas com a manutenção das outras medidas de contenção remuneratória como a proibição de valorizações para trabalhadores do setor público, correspondem a um tratamento proporcionalmente diferenciador do segmento atingido perante o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, na sua dimensão de “igualdade perante a repartição de encargos públicos”.
Mais concretamente, tratar-se-á de saber se a medida da diferença constitucionalmente tolerada se esgotou na redução remuneratória temporária determinada pela Lei n.º 55-A/2010 e subsequentemente reiterada, ou, apesar de ultrapassada já, no contexto da Lei do Orçamento de Estado para 2012, pela associação àquela da suspensão do pagamento dos dois subsídios (cfr. o acórdão n.º 353/2012), é ainda respeitada, pela Lei do Orçamento do Estado para 2013, pela cumulação daquela redução com a suspensão do pagamento de um dos subsídios.
A igualdade proporcional só é aferível no contexto, pelo que há que atender ao conjunto diversificado de medidas, teleologicamente unificadas, que acompanham as de manutenção das reduções da remuneração mensal base e de suspensão total ou parcial de um dos dois subsídios. Para além da menor expressão quantitativa do sacrifício por estas imposto (em confronto com o resultante da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, tendo em conta que só é afetado o subsídio de férias), constata-se, nesta perspetiva alargada, que agora se prevê, em simultâneo (contrariamente ao que sucedera no âmbito daquele diploma), medidas de abrangência universal. Concebidas as intervenções redutoras do nível remuneratório como parte de um todo, só no que a elas diz respeito se pode apontar a repartição inigualitária de sacrifícios anteriormente sob apreciação.
Mas, por outro lado, e em sentido inverso, não podemos abstrair do facto de ao impacto das reduções das remunerações dos trabalhadores do setor público se dever adicionar o impacto que, a par dos demais contribuintes, tais trabalhadores sofrerão em resultado do aumento generalizado da carga fiscal, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Sendo, por força deste aumento, menor o rendimento disponível, maior é a específica incidência negativa, no nível de vida dos sujeitos atingidos, do abaixamento das remunerações.
Para além do diferente enquadramento normativo, há que atender à situação atual das finanças públicas e à evolução que ela sofreu desde as primeiras “medidas de austeridade”. A questão a resolver é, por isso, diferente de qualquer uma daquelas que, recaindo sobre as reduções remuneratórias previstas na Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2011) e na Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento de Estado para 2012), foram decididas, respetivamente, nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012.
34. Todavia, se muda o objeto de valoração, daí não se segue que deva mudar o critério de apreciação que o Tribunal então enunciou e aplicou. Esse critério conserva plena validade, apenas podendo eventualmente ser outro o resultado da sua aplicação, em face da não coincidência do alcance das reduções remuneratórias, atentos o seu teor e o contexto, normativo e factual, em que se inserem.
Tal critério diz respeito, num primeiro momento, à existência de um fundamento para a própria opção de diferenciar e, num segundo momento, à medida em foi decidido concretizar tal diferenciação.
A questão, que fora já analisada no acórdão n.º 396/11, foi igualmente debatida no acórdão n.º 353/2012, que apreciou a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 21.º e 25.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro – que haviam determinado a suspensão total ou parcial do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e, ou, 14.º meses, quer para pessoas que auferiam remunerações salariais de entidades públicas, quer para pessoas que auferiam pensões de reforma ou aposentação através do sistema público de segurança social.
Nesse caso, rejeitada a possibilidade de excluir o caráter arbitrário da diferenciação através de um fundamento baseado na superioridade média das retribuições auferidas pelos trabalhadores do setor público e/ou da maior garantia de subsistência do respetivo vínculo laboral, o Tribunal considerou subsistir, como razão justificativa para o tratamento diferenciado dos que auferem remunerações e pensões do Orçamento do Estado, apenas “a eficácia das medidas adotadas na obtenção de um resultado de inegável e relevante interesse público”.
Situando no domínio relativo à pertinência orçamental das medidas o fundamento material para a diferenciação no âmbito da repartição dos encargos públicos, o Tribunal ajuizou como defensável a asserção segundo a qual, “pela sua certeza e rapidez na produção de efeitos”, a opção tomada se revelava “particularmente eficaz”, “numa perspetiva de redução do défice a curto prazo”, mostrando-se desse modo “coerente com uma estratégia de atuação, cuja definição cabe[ria] dentro da margem de livre conformação política do legislador”.
Perspetivando o fundamento para a diferenciação introduzida a partir da natureza e especificidade da conjuntura subjacente e dos efeitos tidos em vista pelo legislador ordinário, o Tribunal concluiu pela admissibilidade de “alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia”, excluindo a possibilidade de, no “contexto económico e financeiro” então presente, ser considerada “injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros”.
35. Também quanto à caracterização do fundamento com base no qual é possível excluir o caráter arbitrário da opção que, quanto à repartição dos encargos públicos em contextos de emergência financeira, aponte para a consideração diferenciada da posição daqueles que auferem rendimentos pagos por verbas públicas não há razões para divergir do juízo seguido nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012.
Numa conjuntura de progressiva acentuação do défice das contas públicas e da consequente dificuldade de obtenção, em condições sustentáveis, de meios normais de financiamento, houve que proceder a um esforço de correção do desequilíbrio orçamental para o qual, enquanto titular do poder político soberano, o Estado foi convocado. No quadro do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro para o efeito ajustado, tornou-se necessário adotar decisões de opção quanto ao âmbito de incidência de medidas orçamentais penalizadoras do nível de vida dos cidadãos, ainda que numa situação de excecionalidade.
Neste complexo campo de ponderação, não é patentemente desrazoável que o legislador tenha atribuído às despesas com as remunerações dos trabalhadores com funções públicas um “particularismo suficientemente distintivo e relevante para justificar um tratamento legal diverso do concedido a situações equiparáveis (sob outros pontos de vista)”. O que distingue as verbas despendidas com as remunerações dessa categoria de trabalhadores é o seu impacto certo, imediato e quantitativamente relevante nas despesas correntes do Estado, que poderia produzir, no curto prazo, efeitos favoráveis à satisfação dos objetivos de redução do défice orçamental que se pretendia atingir.
A opção concretizada na afetação dessas remunerações e o tratamento diferenciado que ela configura encontram, assim, suficiente suporte na sua peculiar relação com os fins das normas questionadas. O critério conducente à desigualdade, em si mesmo (pondo, pois, de lado, por enquanto, a medida dessa desigualdade, adiante analisada), assenta na situação objetiva, em termos da fonte dos rendimentos laborais, dos destinatários das reduções em causa: sendo eles, e apenas eles, pagos pela afetação de recursos públicos, e não podendo o Estado, por isso mesmo, submeter a idêntica medida os que dela ficam excluídos, não tem fundamento constitucional pretender-se que o princípio da igualdade exige a omissão de qualquer redução salarial, independentemente do estado das finanças públicas.
É certo que os modos de intervenção estão condicionados pela estratégia escolhida e pelos índices percentuais de correção orçamental a que o Estado se vinculou internacionalmente. Outras opções de base, quanto à política de consolidação orçamental, são teoricamente admissíveis. Mas, justamente, esse é o domínio da definição das linhas de atuação política, sujeito a controvérsia e debate nas instâncias próprias, e reservado ao legislador democraticamente legitimado. O Tribunal afirmou-o com toda a clareza nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012, podendo ler-se no primeiro daqueles arestos que não lhe cabe apreciar a maior ou menor bondade das medidas implementadas, mas apenas “ajuizar se as soluções impugnadas são arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos”.
Ora, uma intervenção com um alcance redutor (apenas) das remunerações dos que são pagos por verbas públicas não é, face ao que ficou dito, em si mesma, arbitrária.
Esta conclusão inscreve-se, de resto, na orientação geral do Tribunal quanto ao princípio da igualdade. Este princípio, na sua dimensão de proibição do arbítrio, constitui um critério essencialmente negativo (Acórdão n.º 188/90) que, não eliminando a “liberdade de conformação legislativa” – entendida como a liberdade que ao legislador pertence de “definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” –, comete aos tribunais não a faculdade de se substituírem ao legislador, «ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (do que seria a solução ideal do caso)», mas sim a de «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão n.º 270/09, que remete para os Acórdãos da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983, pág. 120, e do Tribunal Constitucional n.º 750/95).
36. A conclusão de que à redução salarial concretizada na norma constante do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012 subjaz um critério ponderativo racionalmente credenciável não é todavia, suficiente para assegurar a respetiva validade constitucional.
Desde logo porque o princípio da igualdade exige que, a par da existência de um fundamento material para a opção de diferenciar, o tratamento diferenciado assim imposto seja proporcionado. Se o princípio da igualdade permite (ou até requer, em certos termos) que o desigual seja desigualmente tratado, simultaneamente impõe que não seja desrespeitada a medida da diferença. Ainda que o critério subjacente à diferenciação introduzida seja, em si mesmo, constitucionalmente credenciado e racionalmente não infundado, a desigualdade justificada pela diferenciação de situações nem por isso se tornará “imune a um juízo de proporcionalidade” (acórdão n.º 353/2012).
A desigualdade do tratamento deverá, quanto à medida em que surge imposta, ser proporcional, quer às razões que justificam o tratamento desigual – não poderá ser “excessiva”, do ponto de vista do desígnio prosseguido —, quer à medida da diferença verificada existir entre o grupo dos destinatários da norma diferenciadora e o grupo daqueles que são excluídos dos seus efeitos ou âmbito de aplicação.
37. Os dois níveis de comparação em que, do ponto de vista operativo, se desdobra o princípio da igualdade (acórdão n.º 114/2005) introduzem no tema da repartição dos encargos públicos uma nova dimensão problemática, ela própria multidirecional: a igualdade proporcional implica a consideração do grau de diferenciação imposto, quer na sua relação com as finalidades prosseguidas – o que pressupõe que as medidas diferenciadoras sejam impostas em grau necessário, adequado e não excessivo do ponto de vista do interesse que se pretende acautelar (cfr. acórdãos n.ºs 634/93 e 187/2001) –, quer no âmbito da comparação a estabelecer entre os sujeitos afetados pela medida e os sujeitos que o não são e, do ponto de vista daquela finalidade, entre uns e outros e o Estado. Estão em causa limites do sacrifício adicional imposto àqueles sujeitos: para além de certa medida, esse acréscimo de sacrifício traduz um tratamento inequitativo e desproporcionado, não podendo ser justificado pelas vantagens comparativas que esse modo de consolidação orçamental possa apresentar quando comparado com alternativas disponíveis.
Apesar do reconhecimento de uma diferença justificativa de (alguma) desigualdade de tratamento, não pode ignorar-se que subsiste entre os sujeitos afetados e os sujeitos não afetados pela opção expressa no artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, de outro ponto de vista também digno de consideração (o da justa repartição dos encargos públicos), uma dimensão de igualdade a que a solução de diferenciação não poderá ser insensível. De outro modo, a distinção introduzida no âmbito da repartição dos encargos públicos não se revela proporcional à medida daquela diferença, tornando-se intolerável, do ponto de vista daquela dimensão da igualdade.
38. De forma mais ou menos expressa, esta ordem de considerações – através da qual se realiza a aproximação ao conceito de “justa medida” – encontra-se subjacente aos juízos que, ainda que com consequências opostas, foram formulados no âmbito dos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012.
Neste último, o Tribunal, no ponto central da fundamentação, expendeu o seguinte:
«Nestes termos, poderá concluir-se que é certamente admissível alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo considerar, no atual contexto económico e financeiro, injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros.
Mas, obviamente, a liberdade do legislador recorrer ao corte das remunerações e pensões das pessoas que auferem por verbas públicas, na mira de alcançar um equilíbrio orçamental, não pode ser ilimitada. A diferença do grau de sacrifício para aqueles que são atingidos por esta medida e para os que não o são não pode deixar de ter limites.
Na verdade, a igualdade jurídica é sempre uma igualdade proporcional, pelo que a desigualdade justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade. A dimensão da desigualdade do tratamento tem que ser proporcionada às razões que justificam esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva».
Na medida em que nenhuma das imposições de sacrifícios descritas teria então “equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que aufer[iam] rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes”, o Tribunal considerou que a «diferença de tratamento [era] de tal modo acentuada e significativa que as razões de eficácia da medida adotada na prossecução do objetivo da redução do défice público para os valores apontados nos memorandos de entendimento não te[riam] uma valia suficiente para justificar a dimensão de tal diferença (…)». Daí a conclusão de que «o diferente tratamento imposto a quem aufere remunerações e pensões por verbas públicas ultrapassa os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional».
39. O contexto orçamental, quer no plano normativo, quer no da execução, no âmbito do qual se determina a manutenção em vigor, para o ano de 2013, da redução das retribuições mensais base imposta pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro – e transposta para o ano de 2012 pelo n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro –, associando-lhe a suspensão total ou parcial do pagamento de um dos dois subsídios ou prestações remuneratórias complementares, não coincide com o vigente aquando da elaboração dos dois orçamentos anteriores.
Quanto à premência da prossecução da finalidade que justificou a diferenciação gerada no âmbito da irredutibilidade salarial, não poderá dizer-se que ela se encontra atenuada pela evolução posterior. Resulta antes do Relatório do Orçamento do Estado para 2013 que o défice para o ano de 2012 será superior ao inicialmente previsto. De todo o modo, certo é que, não obstante a revisão dos objetivos do défice para 2013, está prevista, na linha da estratégia implementada, a obtenção de valores sucessivamente mais baixos. Para alcançar esses valores, acordados com a União Europeia e com o Fundo Monetário Internacional, após a 5.ª atualização do PAEF, não é plausível que se tenha tornado dispensável a perduração de medidas de contenção orçamental.
Por outro lado, do ponto de vista da ponderação de medidas de alcance geral, que melhor assegurem a repartição justa dos encargos públicos, verifica-se que elas foram tomadas, mas não em substituição integral das medidas que afetam exclusivamente os funcionários públicos e equiparados. Trata-se antes de medidas adicionais, quer pelo lado da receita, quer pelo lado da despesa, que se aplicam cumulativamente com a redução de vencimentos e a suspensão do pagamento do subsídio de férias.
Algumas destas últimas medidas repercutem-se especialmente na situação profissional e nível remuneratório dos trabalhadores em funções públicas, ou, mais em geral, nos rendimentos do trabalho. É o caso da redução adicional na compensação sobre o valor do pagamento do trabalho extraordinário em dia normal de trabalho, aplicável aos trabalhadores cujo período normal de trabalho não exceda as sete horas por dia ou as trinta e cinco horas por semana, equivalente a 12,5 % da remuneração na primeira hora e a 18,75% da remuneração nas horas ou frações subsequentes (artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012) e da redução para 25% do valor do acréscimo remuneratório devido por cada hora de trabalho extraordinário prestado em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, e em dia feriado (artigo 45.º, n.º 2, da Lei n.º 66-B/2012) – medidas, aliás, igualmente impugnadas, não obstante terem sido apresentadas como fatores de compensação para o desagravamento do nível de ablação da retribuição anual dos trabalhadores do setor público decorrente da reposição de um dos dois subsídios abrangidos pela suspensão determinada pelo artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011. É o caso, também, da proibição, como regra geral, de quaisquer valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões (artigo 35.º da Lei n.º 66-B/2012) e da atribuição de prémios de gestão aos gestores de empresas públicas, entidades reguladoras e institutos públicos (artigo 37.º da Lei n.º 66-B/2012), bem como a redução anual de efetivos em 2%, com impacto estimado de redução da despesa em 0,2% do PIB, em valores brutos face ao ano anterior (330 M€). No âmbito ainda das medidas de racionalização dos custos com pessoal, encontram-se igualmente previstas a redução do número de contratos de trabalho a termo resolutivo (artigo 59.º da Lei n.º 66-B/2012), a alteração das regras de atribuição do abono de ajudas de custo nas deslocações em serviço (alteração ao Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de abril, introduzida pelo artigo 41.º da Lei n.º 66-B/2012), a redução de subsídio de residência/habitação atribuído a titulares de cargos públicos (alteração ao Decreto-Lei n.º 72/80, de 15 de abril, introduzida pelo artigo 43.º da Lei n.º 66-B/2012), a redução em 50% do valor das subvenções pagas aos trabalhadores que, no âmbito da mobilidade especial, se encontram de licença extraordinária (artigo 43.º da Lei n.º 66-B/2012) e ainda a redução no seu conjunto, no mínimo, em 3% do número de trabalhadores face aos existentes em 31 de dezembro de 2012, com exceção dos hospitais, E. P. E. (artigo 63.º da Lei n.º 66-B/2012).
As medidas adotadas pelo lado da receita – através das quais se visa promover uma «maior igualdade na distribuição do impacto das medidas de austeridade entre os diversos setores da sociedade portuguesa de forma a garantir que os contribuintes que revelam uma maior capacidade contributiva suportarão, na medida dessa capacidade, um esforço acrescido no esforço de consolidação» (Relatório, pág. 60), vão onerar também a situação de quem recebe remunerações de entidades públicas. Este agravamento fiscal acrescerá, assim, ao esforço já exigido a estes mesmos contribuintes com a manutenção da redução das remunerações e a suspensão do pagamento do subsídio de férias. Mesmo a medida fiscal alegadamente consagrada para compensar a menor diminuição da despesa pública por força da reposição do subsídio de Natal – a “sobretaxa em sede de IRS” – abrange também os que estão sujeitos às reduções salariais.
40. Daqui se segue que, para o ano de 2013, continuará a exigir-se de quem recebe remunerações salariais de entidades públicas um esforço adicional que não é exigido aos titulares de outros rendimentos e, designadamente, aos titulares de rendimentos idênticos provenientes do trabalho, no âmbito do setor privado.
Esta opção de diferenciação é expressamente assumida no Relatório do Orçamento do Estado para 2013 (pág. 41), onde se refere o seguinte:
«[…]
Ao mesmo tempo, não se ignora que algumas das medidas de contenção orçamental atingem apenas os trabalhadores do setor público. Porém, o alcance de tais medidas é agora substancialmente limitado, através da reposição de um dos subsídios, ou prestações equivalentes, sendo essa mesma reposição compensada através da imposição de uma sobretaxa sobre os rendimentos sujeitos a IRS, extensível a todos os contribuintes que auferem rendimentos superiores ao salário mínimo nacional. Ao que acaba de ser dito acresce ainda que, em linha com todas as decisões do Tribunal Constitucional sobre medidas de consolidação aprovadas para os últimos exercícios orçamentais, se torna admissível efetuar alguma diferenciação entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado, diferenciação essa que se justifica, além do mais, pelo caráter transitório das medidas, as quais se encontram estritamente limitadas na sua aplicação temporal à verificação de um equilíbrio efetivo das contas públicas.»
A questão de fundo sobre a qual o Tribunal tem que se pronunciar, à luz do parâmetro constitucional fornecido pelo princípio da igualdade, é justamente a de saber se o alcance das medidas diferenciadoras “é agora substancialmente limitado”, como pretende o citado Relatório, em termos de ficar assegurada, na Lei do Orçamento para 2013, a observância daquele princípio.
41. Nesta análise, o Tribunal entende que deverá efetuar as seguintes ponderações.
Quando impôs a redução de vencimentos aos servidores do Estado na Lei do Orçamento para 2011 e, no ano seguinte, adicionou a essa a medida a ablação dos subsídios de férias e de Natal, o legislador invocou a necessidade urgente de corrigir os desequilíbrios orçamentais e o profundo agravamento das finanças públicas, considerando tais medidas como absolutamente necessárias para assegurar as metas exigentes a que Portugal se vinculou e para preservar a manutenção e sustentabilidade do Estado Social e garantir o financiamento da economia portuguesa (Relatório OE 2012, págs. 21-22).
Foi entendido que, pelo lado da despesa, só a diminuição dos salários permitia conseguir resultados a curto prazo, em vista à satisfação dos compromissos com instâncias europeias e internacionais, e essa era, nesse sentido, uma medida de garantia de eficácia certa e imediata, que não poderia ser compensada, com idênticos efeitos económicos-financeiros, através da redução de despesa por via da diminuição de outros encargos ou mediante um aumento de receitas por via fiscal.
Quando entramos no terceiro exercício orçamental consecutivo, que visa dar cumprimento ao programa de assistência financeira, o argumento da eficácia imediata das medidas de suspensão de subsídio não tem agora consistência valorativa suficiente para justificar o agravamento (em relação ao Orçamento de Estado para 2012) dos níveis remuneratórios dos sujeitos que auferem por verbas públicas.
Isso, tendo sobretudo em conta que os limites de consolidação orçamental atualmente definidos no Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), eram já antes impostos, num primeiro momento, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e, depois, em moldes formalmente mais vinculativos, pelo “Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, acordado com a Comissão Europeia, e do Memorando de Políticas Económicas e Financeiras, assinado com o FMI.
Sendo certo que existem diversas medidas de contenção de custos do funcionamento do Estado e da administração local que, em articulação com outras com impacto no lado da receita, se encontravam já previstas no Memorando de entendimento sobre as condicionalidades da política económica, subscrito em 17 de maio de 2011, com o apontado objetivo de correção do défice.
Quando uma redução dos salários do setor público, a pretexto da excecionalidade da situação económica, devia ser acompanhada de soluções alternativas de redução da despesa pública, não serve hoje de justificação para a supressão de um dos subsídios que integram a retribuição dos trabalhadores da Administração Pública, a par da diminuição da remuneração mensal, que essa seja ainda a medida que apresenta efeitos seguros e imediatos na redução do défice e a única opção – como se afirma no Relatório do OE para 2013 – para garantir a prossecução do objetivo traçado.
As razões que permitiriam reconhecer a impossibilidade de o legislador encontrar medidas sucedâneas, num contexto de urgência de obtenção de resultados – e que o acórdão n.º 396/2011 aceitou, por referência à redução salarial prevista na Lei do Orçamento de 2011 -, não apresentam o mesmo grau de convencimento em relação aos períodos orçamentais ulteriores. E, como se afirmou em declaração de voto aposta ao acórdão n.º 353/12, o decurso do tempo implica um acréscimo de exigência ao legislador no sentido de encontrar alternativas que evitem que, com o prolongamento, o tratamento diferenciado se torne claramente excessivo para quem o suporta, e exige ao legislador um ónus de fundamentação em termos de valores previsíveis para as diversas alternativas possíveis de aumento de receita ou redução de despesa.
42. Por outro lado, a medida de suspensão do subsídio de férias, cumulada com as reduções salariais que provêm já do exercício orçamental de 2011, que incidem sobre os trabalhadores do setor público, a par de um forte agravamento fiscal aplicável generalizadamente aos rendimentos do trabalho, não pode encontrar justificação suficiente no princípio da vinculação ao interesse público.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o que unifica e dá sentido ao regime próprio da função pública é a necessária prossecução do interesse público a título exclusivo, como logo explicita o artigo 269º, n.º 1, da Constituição, em concordância com o objetivo constitucional da Administração Pública que está expresso no precedente artigo 266º, n.º 1. No entanto, como acrescentam os mesmos autores, a vinculação exclusiva ao interesse público só afeta os trabalhadores da Administração Pública, quando no exercício das suas funções, não podendo a vinculação afetar ou limitar a sua vida privada ou o exercício dos seus direitos fora dela (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª edição, Coimbra, pág. 840).
A principal consequência dessa sua vinculação ao interesse público é a sujeição a uma situação estatutária, que se distingue de um estatuto tipicamente contratual, por se tratar de uma situação jurídica objetiva, definida legal e regulamentarmente, e que pode ser modificada unilateralmente pelo Estado através de uma nova normação jurídica. O legislador dispõe de liberdade conformativa para adaptar o regime da função pública às necessidades de interesse público que em cada momento se façam sentir.
Um dos aspetos mais relevantes da mais recente evolução legislativa no âmbito da relação jurídica de emprego público traduziu-se justamente na chamada laboralização da função pública, concretizada especialmente através do diploma que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e remunerações (Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro), e pelo qual a modalidade de constituição da relação de emprego por nomeação passou a revestir um caráter excecional, abrangendo no essencial as atividades que envolvam poderes de autoridade ou de soberania (artigo 10º), com o consequente alargamento do campo de aplicação do contrato de trabalho, que passou a constituir a modalidade comum da constituição da relação de emprego público (artigo 20º).
O Contrato de Trabalho em Funções Públicas, regulado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro (RCTFP) – que deu concretização prática a essa alteração legislativa -, que tem um regime decalcado do Código de Trabalho (CT), é expressamente qualificado como uma relação de trabalho subordinado de natureza administrativa (artigo 9º, n.º 3, da Lei n.º 12-A/2008), passando a sujeitar os trabalhadores adstritos à generalidade das atividades desenvolvidas pela Administração, a um regime de vinculação mais flexível do que aquele que decorria do anterior regime-regra de nomeação e equiparável ao da relação laboral de direito privado, e que simultaneamente implica para a entidade empregadora pública os mesmos condicionamentos, no âmbito da correspondente relação jurídica de emprego, que se encontram estabelecidos para o empregador privado.
Sintomático do paralelismo agora estabelecido entre a relação laboral privada e o contrato de trabalho em funções públicas é a recente Lei n.º 66/2012, de 31 de dezembro, que procedeu à uniformização das regras entre o RCTFP e o CT, entretanto alterado pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, mormente em matéria de flexibilização do horário de trabalho, retribuição do trabalho suplementar, eliminação do descanso compensatório remunerado, alteração do regime de contabilização dos dias de férias, regime de faltas ao trabalho e de cessação do contrato de trabalho, acentuando a aproximação às regras do Código do Trabalho.
De resto, atenta a possibilidade de modificação do estatuto profissional dos trabalhadores da Administração Pública, o Tribunal Constitucional pronunciou-se já no sentido de poder haver lugar a uma redução progressiva de vencimentos em caso de modificação orgânica dos serviços (situação analisada no acórdão do TC n.º 4/2003) ou ao congelamento dos suplementos remuneratórios em resultado de alterações no regime de carreiras (aspeto considerado no acórdão n.º 12/2012), questões que sempre terão de ser escrutinadas, no plano da constitucionalidade, à luz do princípio da proteção da confiança. O que não faz sentido é que se convoque a vinculação ao interesse público dos trabalhadores da Administração Pública, caracterizada pela referida situação estatutária ou pelo estatuto legal do contrato, como fundamento para a imposição continuada de sacrifícios a esses trabalhadores por via da redução unilateral dos salários, quando assim não se pretenda mais do que um objetivo de caráter geral em vista ao cumprimento das metas de redução do défice.
43. Por outro lado, relativamente a um argumento já invocado no Relatório do Orçamento para 2012, o Tribunal reitera o entendimento já formulado no acórdão n.º 353/2012 quanto à irrelevância, como parâmetro valorativo do princípio da igualdade, do estatuto qualitativo dos trabalhadores da Administração Pública por comparação com os trabalhadores do setor privado, quando o que está em causa é a imposição de um encargo específico que incide apenas sobre uma dessas categorias de trabalhadores.
Não deixam de ter aqui relevo considerações já antes expendidas, que não permitem tomar como assente a ideia de imutabilidade do vínculo laboral de emprego público – agora sujeito para a generalidade dos trabalhadores que exercem funções públicas a um regime idêntico ao previsto para a relação laboral privada -, e também a ideia, já expressa no citado acórdão n.º 353/2012, de não ser possível estabelecer um quadro comparativo, a nível quantitativo, das remunerações auferidas em qualquer dos setores de atividade, por estarem aí implicados diferentes tipos de trabalho e estatutos profissionais.
Independentemente, porém, da dificuldade de aferição, em termos qualitativos, da situação global dos trabalhadores do setor público por confronto com a dos trabalhadores do setor privado, o certo é que, do ponto de vista da repartição dos encargos públicos, o que é comparável é a posição subjetiva de um trabalhador da Administração Pública com a de um trabalhador com vínculo laboral privado, em pleno emprego, e com a mesma capacidade de ganho, ou com um qualquer outro titular de rendimentos de idêntica grandeza.
A imposição de sacrifícios mais intensos aos trabalhadores que exercem funções públicas não pode ser justificada por fatores macroeconómicos relacionados com a recessão económica e o aumento do desemprego, que terão de ser solucionados por medidas de política económica e financeira de caráter geral, e não por via de uma maior penalização dos trabalhadores que, no plano da empregabilidade, não suportam, ou não suportam em idêntico grau, os efeitos recessivos da conjuntura económica.
44. Em contrapartida, o legislador, na escolha da decisão política, não poderia ter deixado de atribuir um relevo autónomo ao princípio da igualdade perante os encargos públicos, que é realizado tendencialmente através do sistema fiscal.
E que constitui a necessária decorrência da caracterização Estado português como um estado fiscal, «em que a figura do imposto constitui o tipo regra de tributo, ou seja, em que o suporte financeiro normal de realização do bem comum da responsabilidade do Estado (e demais entes públicos) se traduz em encargos gerais …» (Casalta Nabais, o «atual O princípio do Estado Fiscal, in «Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor João Lumbrales», FDUL, 2000, pág. 386).
No caso vertente, o legislador, na sequência da declaração de inconstitucionalidade emitida pelo Tribunal Constitucional em relação às medidas previstas nos artigos 21º e 25º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, e pretendendo extrair as devidas consequências dessa decisão, determinou, em relação aos trabalhadores do setor público, a suspensão para o exercício orçamental de 2013 de apenas um dos subsídios, que é complementada, como medida compensatória desse aumento de despesa, pela aplicação de uma sobretaxa de 3,5%, e que faz reverter a favor dos cofres do Estado o pagamento em duodécimos do subsídio de Natal, que foi entretanto reposto.
Introduziu ainda um forte agravamento fiscal, que afeta todos os contribuintes, por via quer da redução dos escalões de IRS, quer de diversas outras medidas fiscais avulsas, em que avulta a redução das deduções à coleta (artigo 186º).
A pretendida execução da decisão do Tribunal Constitucional determinou, nestes termos, um agravamento da situação fiscal dos contribuintes em geral, e um agravamento, em particular, da posição dos trabalhadores da Administração Pública, que ficaram sujeitos, pelo efeito cumulado das reduções salariais, da supressão de um subsídio e do aumento da carga tributária, a uma perda de rendimento disponível superior àquela que já resultava das medidas que tinham sido implementadas no âmbito do Orçamento do Estado para 2012.
No Relatório do Orçamento do Estado para 2013, sustenta-se que, através de um conjunto de medidas transversais de caráter fiscal, que envolve a referida sobretaxa sobre os rendimentos das pessoas singulares, o aumento (reduzido) da taxa liberatória sobre os rendimentos de capitais e a manutenção da taxa de solidariedade sobre os rendimentos mais elevados, além do agravamento fiscal por via das alterações feitas ao Código do IRS pelo artigo 186º da Lei do Orçamento, se procurou respeitar “a igualdade proporcional perante os impostos e, desse modo, respeitar a justa repartição dos encargos públicos” (pág. 41). Considerando-se, nessa linha de argumentação, que o alcance das medidas de contenção orçamental que atingem apenas os trabalhadores do setor público são agora de alcance mais limitado.
Importa reter, no entanto, que a redução salarial aplicada aos trabalhadores da Administração Pública, por efeito da cumulação da diminuição da remuneração mensal, que vigora desde 2011, com a suspensão de um dos subsídios agora imposta, representa objetivamente um entorse ao princípio da igualdade de contribuição para os encargos públicos, implicando que certos sujeitos passivos do imposto (definidos em função de certo estatuto profissional) disponham de menor capacidade económica para satisfazer o aumento de encargos fiscais que foi imposto generalizadamente a todos os cidadãos.
Numa situação conjuntural em que se pretende fazer face a objetivos de consolidação orçamental, a penalização de uma certa categoria de pessoas por intermédio da conjugação de medidas de agravamento fiscal e de diminuição de salários, põe em causa o modo de distribuição dos encargos públicos.
O Tribunal decidiu já, através dos falados acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012, que é admissível efetuar alguma diferenciação entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado, apenas pelo facto de aqueles serem remunerados por verbas públicas. Não excluindo que o legislador, em excecionais circunstâncias económico-financeiras, e como meio de rapidamente diminuir o défice público, possa recorrer a uma medida de redução dos rendimentos de trabalhadores da Administração Pública, ainda que essa medida se traduza num tratamento desigual, relativamente a quem aufere rendimentos provenientes do setor privado da economia, por considerar que há ainda aí uma justificação que afasta a eventual violação do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos.
Na última dessas decisões, o Tribunal considerou, porém, que os efeitos cumulativos e continuados dos sacrifícios impostos às pessoas com remunerações do setor público, sem equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, corresponde a uma diferença de tratamento que não encontra já fundamento bastante no objetivo da redução do défice público. E implica por isso uma violação do princípio da igualdade proporcional, assente na ideia de que a desigualdade justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade e não pode revelar-se excessiva.
Não há motivo agora para alterar este juízo.
A concorrência de medidas de incidência geral é um dado de certo modo ambivalente, que não releva para a formulação de um juízo de igualdade proporcional. Persistindo uma diferença de tratamento, o aumento da carga fiscal idêntico para todos os contribuintes, independentemente da fonte dos seus rendimentos, não é suscetível de atenuar essa diferença, que afeta apenas quem recebe remunerações por verbas públicas.
O agravamento fiscal teve ainda um efeito de maior onerosidade para essa categoria de pessoas relativamente à situação que resultava das medidas precedentemente previstas na Lei do Orçamento de Estado para 2012.
E, por outro lado, a redução salarial tem vindo a ser acompanhada, entre outras, de medidas adicionais de congelamento de progressão na carreira e de valorização remuneratória, que, objetivamente, representam também uma alteração significativa da posição jurídica dos trabalhadores da Administração Pública (artigos 24.º, n.ºs 1 e 9, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, 20º, n.º 5, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 35º, n.ºs 1 e 12, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro).
45. Em suma, em relação à norma do artigo 29º, que determinou a suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente para os trabalhadores da Administração Pública, e apesar de ter sido acompanhada de um conjunto mais abrangente de medidas de caráter fiscal que afetam a generalidade dos contribuintes, o Tribunal entende que o seu efeito conjugado com a redução salarial prevista naquela outra disposição, desrespeita o princípio da igualdade proporcional e da justa repartição dos encargos públicos.
Não só porque o tratamento diferenciado dos trabalhadores do setor público não pode continuar a justificar-se através do caráter mais eficaz das medidas de redução salarial, em detrimento de outras alternativas possíveis de contenção de custos, como também porque a sua vinculação ao interesse público não pode servir de fundamento para a imposição continuada de sacrifícios a esses trabalhadores mediante a redução unilateral de salários, nem como parâmetro valorativo do princípio da igualdade por comparação com os trabalhadores do setor privado ou outros titulares de rendimento. E ainda porque a penalização de certa categoria de pessoas, por efeito conjugado da diminuição de salários e do aumento generalizado da carga fiscal, põe em causa os princípios da igualdade perante os encargos públicos e da justiça tributária.
46. Poderia dizer-se que o efeito cumulado de redução salarial decorrente das referidas normas dos artigos 27º e 29º não é aplicável às pessoas cuja remuneração base mensal seja igual ou superior a €600 e não exceda €1500, que, estando sujeitas a uma suspensão do pagamento do subsídio de férias, nos termos do n.º 2 deste último preceito, não se encontram abrangidas pela disposição remuneratória do artigo 27º, que apenas atinge as remunerações ilíquidas mensais superiores a €1500.
No entanto, como se afirmou no acórdão n.º 353/2012, perante a solução legislativa que resultava do artigo 21º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (que, para o ano de 2012, suspendeu o pagamento de férias e de Natal para pessoas com os mesmos níveis remuneratórios), estamos, neste caso, perante retribuições de tal modo exíguas que um sacrifício adicional por via da supressão, ainda que parcial, de complementos salariais que integram a retribuição, é já de si excessivamente gravoso. É certo que pela Lei do Orçamento do Estado para 2013 foi reposto o pagamento do subsídio de Natal (artigo 28º), mas, como já se fez notar, o valor correspondente é neutralizado pela incidência da sobretaxa em sede de IRS, a que se refere o artigo 187º, pelo que os trabalhadores da Administração Pública afetados pela medida prevista no artigo 29º, n.º 2, estão, na prática, em situação idêntica àquela que determinou o juízo de inconstitucionalidade formulado por aquele outro aresto.
E estas reduções suscitam ainda, do ponto de vista do princípio da igualdade, dificuldades acrescidas de validação constitucional, tendo em conta que rendimentos muitíssimo superiores, inclusive rendimentos do trabalho, a elas ficam imunes.
47. Poderia ainda questionar-se, neste universo de referência, se não é posto em causa o direito fundamental a uma existência condigna, hoje tido como uma emanação garantística nuclear do supraprincípio da dignidade da pessoa humana, que foi expressamente convocado pelos requerentes do pedido que originou o Processo n.º 8/2013.
Desde cedo, a jurisprudência do Tribunal reconheceu na dignidade da pessoa humana «um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto de validade das respetivas normas» (assim, acórdão n.º 105/90), diretamente convocável, também na área de tutela atinente às condições materiais de vida. Nessa jurisprudência, o núcleo essencial da garantia de existência condigna, inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana, tem sido perspetivado, de forma reiterada e constante, por referência ao valor do salário mínimo nacional, considerado como «a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador». Por tal valor «ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo» (acórdão n.º 62/2002).
Com base em tal enquadramento, o Tribunal tem entendido que a Constituição impõe a impenhorabilidade de pensões sociais de montante reduzido, que não exceda o salário mínimo nacional e, quanto aos rendimentos do trabalho, inviabiliza a penhora que conduzir à privação da disponibilidade do salário mínimo nacional, quando o devedor não for titular de outros bens ou rendimentos suscetíveis de penhora (acórdão n.º 177/2002), o que tem por base a ideia de que «na fixação dos montantes do salário mínimo ocorrem não só considerações atinentes ao princípio de justiça comutativa e à própria ideia de dignidade do trabalho, mas também outras razões sociais e económicas, como as necessidades dos trabalhadores, o aumento de custo de vida, a evolução da produtividade, a sustentabilidade das finanças públicas».
Em relação ao caso agora em análise, importa notar que o objeto de ponderação é uma intervenção normativa que afeta montantes remuneratórios de valor muito baixo, e o que está em causa é uma dimensão negativa da vinculação das entidades públicas aos direitos fundamentais, e não uma dimensão positiva, de criação ou manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à efetivação de um direito fundamental.
De todo o modo, considerando que o valor da retribuição mínima mensal garantida a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho se encontra fixado em €485 (Decreto-Lei n.º 143/2010, de 31 de dezembro) e que a medida agora prevista no artigo 29º, n.º 2, apenas afeta trabalhadores do setor cuja remuneração mensal seja igual ou superior a €600, não se torna, à partida, evidente a violação do princípio da sobrevivência condigna ou do direito ao mínimo de sobrevivência, à luz dos critérios que têm sido seguidos e densificados na jurisprudência constitucional.
48. Em face de todo o exposto, o tribunal pronuncia-se no sentido da insconstitucionalidade da norma do artigo 29.º, por violação do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos e do princípio da igualdade proporcional, e da inconstitucionalidade consequencial da norma do artigo 31.º.
F. Norma que reduz os valores da retribuição horária referentes ao pagamento de trabalho extraordinário devido aos trabalhadores do setor público (artigo 45.º)
49. Do conjunto das normas impugnadas relativas ao regime remuneratório dos trabalhadores do setor público, a última diz respeito ao pagamento do trabalho extraordinário.
De acordo com o n.º 1 do artigo 45.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, «durante a vigência do PAEF, como medida excecional de estabilidade orçamental, todos os acréscimos ao valor da retribuição horária referentes a pagamento de trabalho extraordinário prestado em dia normal de trabalho pelas pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º, cujo período normal de trabalho, legal e/ou convencional, não exceda 7 horas por dia nem 35 horas por semana são realizados nos seguintes termos: a) 12,5 % da remuneração na primeira hora; b) 18,75 % da remuneração nas horas ou frações subsequentes».
De acordo com o respetivo n.º 2, «[o] trabalho extraordinário prestado pelo pessoal a que se refere o número anterior, em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, e em dia feriado confere às pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º o direito a um acréscimo de 25% da remuneração por cada hora de trabalho efetuado».
O regime fixado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 45.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, tem, segundo o estabelecido no respetivo n.º 3, natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.
50. Embora em grau diferente, a medida excecional de estabilidade orçamental destinada a vigorar durante a vigência do PAEF, consistente na redução de todos os acréscimos ao valor da retribuição horária referentes a pagamento de trabalho extraordinário prestado em dia normal de trabalho pelos trabalhadores do setor público constava já da Lei do Orçamento de Estado para 2012, encontrando-se prevista no artigo 32.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro.
De acordo com o então estabelecido no respetivo n.º 1, o pagamento dos referidos acréscimos seria realizado através da aplicação do coeficiente de “25 % da remuneração na primeira hora” e de “37,5 % da remuneração nas horas ou frações subsequentes”, enquanto, por força do respetivo n.º 2, o “trabalho extraordinário prestado em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, e em dia feriado” determinaria o direito a um acréscimo de 50% da remuneração por cada hora de trabalho efetuado. Tal como o agora previsto no artigo 47.º da Lei n.º 66-B/2012, também o regime consagrado para 2012 nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da Lei n.º 64-B/2011, tinha, segundo o estabelecido no respetivo n.º 3, “natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos”.
51. Nos termos previstos no artigo 67º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, a remuneração dos trabalhadores que exerçam funções ao abrigo de relações jurídicas de emprego público é composta por remuneração base, suplementos remuneratórios e prémios de desempenho, sendo devidos os suplementos remuneratórios, designadamente, quando os trabalhadores, em certos postos de trabalho, fiquem sujeitos, de forma anormal e transitória, a prestação de trabalho extraordinário noturno, em dias de descanso semanal, complementar e feriados (artigo 73º, n.º 3, alínea a)). Sendo que esses suplementos são apenas devidos enquanto perdurem as condições de trabalho que determinaram a sua atribuição (artigo 73º, n.º 4).
Pela sua própria natureza, apesar de ser tido como um suplemento remuneratório e de corresponder à contrapartida do trabalho efetuado, o acréscimo pecuniário devido pela prestação de trabalho extraordinário não assume, contrariamente ao que sucede com os subsídios de férias e de Natal, o caráter de habitualidade ou regularidade que tipicamente caracteriza a prestação retributiva, em sentido técnico-jurídico. À semelhança do que sucede no âmbito da relação laboral privada, em que o conceito jus-laboral de retribuição (artigos 258.º e 260.º do Código de Trabalho), surge associado à “retribuição base” e às demais prestações pecuniárias pagas regularmente como contrapartida da atividade, assim entendidos como complementos salariais certos.
Não integrando o pagamento do trabalho extraordinário, pelo menos de forma direta e necessária, o conceito qualitativo de retribuição, é de afastar, desde logo, a invocada garantia constitucional da irredutibilidade do salário como parâmetro constitucional pertinente à aferição da validade da medida legislativa, ora questionada, que opera a redução dos coeficientes para o respetivo cálculo.
Por outro lado, sendo a remuneração proporcionada pelo trabalho suplementar de natureza variável e não prognosticável, porque dependente de decisões gestionárias da esfera exclusiva do empregador, também não merece acolhimento a invocação, nesta sede, de que uma tal medida violaria o princípio constitucional da confiança, aqui valendo, a fortiori todas as razões por que se considerou, em relação às medidas de redução e suspensão de pagamento que afetam componentes integrantes da retribuição (artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012) – onde a expectativa de imutabilidade é mais consistente e duradouramente formada – um dano de confiança suscetível de merecer censura constitucional.
52. Finalmente, importa verificar se a redução dos coeficientes para o cálculo do suplemento remuneratório devido aos trabalhadores do setor público, pela realização de trabalho extraordinário, determinada pelo artigo 45.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013, viola o princípio da igualdade, que também é invocado como fundamento do respetivo pedido de declaração de inconstitucionalidade.
O ponto de comparação que, numa primeira aproximação, deve ser diretamente tido em conta é o pagamento suplementar devido, por esta causa, aos trabalhadores do setor privado. Esse regime foi também recentemente alterado, por via da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que deu nova redação aos artigos 268.º e 269.º do Código do Trabalho. Os valores a aplicar sofreram uma redução para metade, sendo agora de 25% pela primeira hora ou fração desta, 37,5% por hora ou fração subsequente e 50% por cada hora ou fração, em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, ou em feriado. Esta redução visou dar cumprimento ao “Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego”, nos termos do qual (pág. 40) “é necessário aproximar os valores devidos em caso de prestação de trabalho suplementar daqueles que são aplicados em países concorrentes (…)”.
Os valores fixados no artigo 45.º da Lei n.º 66-B/2012 são precisamente metade destes. Quanto à possibilidade de alteração por instrumento de regulamentação coletiva, a situação é tendencialmente a mesma nos dois setores laborais, pois, se o n.º 3 do artigo 268.º do Código do Trabalho a admite e o n.º 3 do artigo 45.º dessa Lei a proíbe, a diferença é eliminada porque o artigo 7.º, n.º 4, da Lei n.º 23/2012 suspende a aplicação do n.º 3 do artigo 268.º durante dois anos e a norma do artigo 45.º só vigora “durante a vigência do PAEF”, ou seja, durante o mesmo período.
De todo o modo, a diferença de valores é de monta. Simplesmente, essa diferença não tem correspondência em valor significante para identificar, sem margem para dúvidas, uma situação de desigualdade desrazoável. Isto porque outros elementos da situação laboral, relevantes no mesmo campo de valoração e, logo, a terem que ser considerados numa ponderação mais abrangente – temos em mente, em especial, o horário normal de trabalho - diferenciam notoriamente os dois setores, com favorecimento global do trabalho em funções públicas.
É quanto basta para que não seja possível asseverar, com o grau de evidência exigível, que há aqui um tratamento desigual sem fundamento razoável.
53. Os requerentes no Processo n.º 8/2013 estendem à referida norma do artigo 45º a invocação da violação do caso julgado, da regra da anualidade do orçamento, do direito à contratação coletiva e do disposto no artigo 105º, n.º 2, da Constituição, nos mesmos termos aplicáveis às disposições que determinaram a redução salarial (artigo 27º) e a suspensão do subsídio de férias (artigo 29º). Valem, no entanto aqui, todas as considerações que foram já anteriormente expendidas a esse propósito, pelo que nenhum desses parâmetros constitui também fundamento para um juízo de inconstitucionalidade.
G. Norma que suspende parcialmente o pagamento do subsídio de férias de aposentados e reformados (artigo 77.º)
54. O artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, norma que suspende parcialmente o pagamento do subsídio de férias de aposentados e reformados, é objeto dos pedidos formulados nos Processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013.
Determina-se nesse preceito, durante a vigência do PAEF, e como medida excecional de estabilidade orçamental, a suspensão do pagamento de 90 % do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês, pagas pela Caixa Geral de Aposentações, pelo Centro Nacional de Pensões e, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, aos aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados cuja pensão mensal seja superior a €1100 (n.º 1).
E ainda, nos termos do n.º 4, uma redução no subsídio ou prestações equivalentes aos aposentados cuja pensão mensal seja igual ou superior a €600 e não exceda o valor de €1100, que é calculada segundo a fórmula: subsídio/prestações = 1188 - 0,98 x pensão mensal.
O mesmo regime é aplicável correspondentemente ao valor mensal das subvenções mensais vitalícias, depois de atualizado por indexação às remunerações dos cargos políticos considerados no seu cálculo, na percentagem que deve ser aplicada às pensões de idêntico valor anual (n.º 5).
A suspensão parcial do subsídio de férias de aposentados e reformados é, por outro lado, aplicável cumulativamente com a contribuição extraordinária de solidariedade a que se refere o artigo 78º (n.º 6).
No caso das pensões ou subvenções pagas, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza e grau de independência ou autonomia, nomeadamente as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, e empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal, o montante relativo ao subsídio cujo pagamento é suspenso nos termos dos números anteriores deve ser entregue por aquelas entidades na CGA, não sendo objeto de qualquer desconto ou tributação (n.º 7).
Por outro lado, o disposto nesse artigo abrange todos os aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que recebam as pensões e/ou os subsídios de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês, pagos pelas entidades referidas no n.º 1, independentemente da natureza pública ou privada da entidade patronal ao serviço da qual efetuaram os respetivos descontos ou contribuições ou de estes descontos ou contribuições resultarem de atividade por conta própria, com exceção dos reformados e pensionistas abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 127/2011, de 31 de dezembro, alterado pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, e das prestações indemnizatórias correspondentes atribuídas aos militares com deficiência abrangidos, respetivamente, pelo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 93/83, de 17 de fevereiro, 203/87, de 16 de maio, 224/90, de 10 de julho, 183/91, de 17 de maio, e 259/93, de 22 de julho, e pelas Leis n.ºs 46/99, de 16 de junho, e 26/2009, de 18 de junho, pelo Decreto-Lei n.º 314/90, de 13 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 146/92, de 21 de julho, e 248/98, de 11 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 250/99, de 7 de julho (n.º 8).
O regime assim fixado tem ainda natureza imperativa e excecional, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais (n.º 9).
55. Entre os argumentos apresentados pelos requerentes para fundamentar as suas dúvidas quanto à constitucionalidade do artigo 77.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, contam-se os seguintes:
Em primeiro lugar, consideram-se extensivos à questão de suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias, ou de quaisquer prestações correspondentes ao 14° mês, a reformados e pensionistas, os argumentos aduzidos a propósito da suspensão de parte ou da totalidade do subsídio de férias aos trabalhadores ativos do setor público, ainda que com adaptações, acrescendo ainda a essa dúvida de constitucionalidade, uma outra sobre a conformidade das mesmas normas com o princípio da proteção da confiança.
Se no caso dos trabalhadores do setor público a desigualdade de tratamento tributário em relação aos trabalhadores do setor privado pode ter, de acordo com a jurisprudência constitucional, uma justificação dentro de certos limites, centrada no critério do 'recebimento por verbas públicas' por parte dos primeiros, no caso dos reformados, cuja situação específica o Tribunal Constitucional reconhece no acórdão n.º 353/2012, o referido critério justificante não vale exatamente da mesma forma, já que as pensões recebidas de instâncias públicas tiveram, como contrapartida, as contribuições que os mesmos e as entidades empregadoras efetuaram para a segurança social durante a sua vida de trabalho.
Resulta da jurisprudência constitucional, nomeadamente do acórdão n.º 72/2002, a existência de uma “substancial diferença entre a situação de trabalhador no ativo e a de aposentado”, não sendo legítimo, sem desvalor para o princípio da igualdade, confundir-se a situação do servidor público, no plano dos condicionamentos decorrentes do exercício de funções, com a situação do aposentado.
A desconsideração do princípio da capacidade contributiva pelos preceitos sindicados (articulados com outras disposições de agravamento fiscal constantes do diploma), na medida em que não toma em conta os rendimentos e necessidades do agregado familiar, é suscetível de gerar situações de tributação regressiva do rendimento de reformados, importando aferir se existe fundamento para essa situação de desigualdade em que o reformado pensionista é sujeito a um esforço contributivo específico em razão da sua condição e se esse esforço viola, ou não, o princípio da proibição do excesso.
Também a frustração de expectativas legítimas que para o círculo dos aposentados e reformados decorre da aplicação das normas questionadas não se afigura constitucionalmente tolerável em vista dos parâmetros valorativos decorrentes do princípio da proteção da confiança, atendendo à “situação específica” das pessoas que integram o referido círculo e à proteção acrescida que lhes é devida, mesmo que em face de um interesse público de realização imperativa e do caráter transitório das medidas ablativas.
A excessiva onerosidade revelada pelos montantes pecuniários que os aposentados e reformados visados perdem não é despicienda, estando em causa perdas significativas para os patrimónios dos cidadãos atingidos em termos que acarretam a frustração do «investimento na confiança»”, sobressaindo, outrossim, o desvalor das medidas questionadas à luz de uma aplicação articulada dos princípios da proibição do excesso e da proteção da confiança.
Assim sendo, estamos perante a afetação, com elevado grau de intensidade, de uma posição de confiança das pessoas especificamente visadas, constitucionalmente desconforme, afigurando-se a mesma desproporcionada pelo excessivo acréscimo de sacrifício e pela medida de esforço exigidos a este círculo determinado de cidadãos.
Pelo que as normas em causa são ainda inconstitucionais, por violação dos princípios da proteção da confiança e da proibição do excesso, ambos subprincípios densificadores do princípio do Estado de direito acolhido no artigo 2.º da Constituição.
56. Por confronto com a norma do artigo 29.º, que determina a suspensão do pagamento de subsídio de férias ou equivalente às pessoas a que se refere o n.º 9 do artigo 27.º, a norma do artigo 77.º, agora sob juízo, tem alcance não inteiramente coincidente. Por um lado, sendo a pensão mensal superior a €1100, o subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês são suspensos apenas em 90% (n.º 1 do artigo 77.º), ao passo que o subsídio das pessoas com remunerações base mensais superiores a esse montante são, como vimos, integralmente suspensas (n.º 1 do artigo 29.º). Por outro lado, as formas de cálculo da redução variável a que ficam sujeitas as pensões ou remunerações cujo montante se situa no intervalo entre €600 e €1100 não se sobrepõem (cfr. o n.º 2 do artigo 29.º e o n.º 4 do artigo 77.º), sendo ligeiramente menos penalizadora a aplicável às pensões.
Todavia, estas diferenças quanto ao objeto, pela sua diminuta expressão quantitativa, não são de molde a alterar a ponderação valorativa que anteriormente foi feita a propósito da suspensão do subsídio de férias dos trabalhadores em funções públicas no ativo, ainda que a apreciação se centre agora na distinção quanto à posição jurídica dos sujeitos atingidos, que, no caso dos reformados e aposentados, se reporta à titularidade do direito à pensão, e não já do direito à retribuição.
Adotando a mesma ordem de sequência que foi seguida nas questões anteriormente tratadas, importa, em primeiro lugar, caracterizar o estatuto jusfundamental do direito à pensão, para decidir se nele se pode fundar uma pretensão de tutela que o torne resistente a qualquer suspensão de pagamento. O foco primordial incidirá na questão de saber se, estando agora em causa o direito à pensão, e não o direito ao salário, essa circunstância introduz um fator de valoração capaz de justificar uma pronúncia em sentido divergente da anteriormente emitida. Se se concluir pela negativa, resta averiguar se, no âmbito da ponderação dos princípios pertinentes, e em particular o da tutela da confiança, são repetíveis, mutatis mutandis, os elementos argumentativos anteriormente utilizados, ou se o estatuto de aposentado ou reformado interpela diferentemente as valências protetivas desses princípios, por forma a fundamentar um juízo não coincidente.
1. O direito à pensão como manifestação do direito à segurança social (artigo 63.º da Constituição)
57. O direito a receber uma pensão de aposentação foi definido por este Tribunal, no acórdão n.º 72/2002, como uma manifestação do direito à segurança social reconhecido a todos no artigo 63º da Constituição, radicado no princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito nos artigos 1º e 2º da Constituição, que visa assegurar, designadamente, àqueles que terminaram a sua vida laboral ativa, uma existência humanamente condigna. Considerou ainda o Tribunal que algumas dimensões do direito à pensão de aposentação – como é o caso da contagem do tempo de serviço para efeitos de aposentação – podem ter natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, aplicando-se-lhe o regime destes, constante do artigo 18.º da Constituição (veja-se o teor do acórdão n.º 411/99).
Mais recentemente, no acórdão n.º 3/2010, que versou sobre as alterações ao regime legal da aposentação dos trabalhadores da Administração Pública, quer no que se refere às condições de aposentação, quer no que concerne ao cálculo da pensão, o Tribunal entendeu (na linha de jurisprudência anterior, designadamente do acórdão n.º 188/2009) que o controlo da constitucionalidade das normas em causa deveria limitar-se ao confronto com os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, entre os quais o da igualdade ou o da tutela da confiança legítima. Por estar em causa um direito económico, social e cultural (o direito à segurança social do qual decorre o direito dos pensionistas), em tudo o que vá para além de um conteúdo mínimo, ou nuclear, as concretizações legislativas específicas do direito à segurança social estão, no entender do Tribunal, sujeitas a uma larga margem de livre conformação por parte do legislador. Nestes termos, pode ler-se no acórdão citado:
“Deve, contudo, deixar-se claro que o direito à segurança social, previsto no artigo 63.º, n.º 1, da Constituição, 'como um todo', é um direito de natureza essencialmente económica e social, sendo portanto passível de uma maior margem de livre conformação, por parte do legislador, do que a generalidade dos direitos, liberdades e garantias, uma vez que a sua aplicabilidade direta (não estando excluída), é necessariamente mais limitada como se infere do artigo 18.º, n.º 1, da Constituição. Não há dúvida de que 'os direitos sociais contêm também - ou podem conter - um conteúdo mínimo, nuclear ou, porventura essencial diretamente aplicável' (Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 634). Mas é certo, também, que esse conteúdo mínimo ou nuclear diretamente aplicável tem um âmbito relativamente mais restrito do que nos direitos, liberdades e garantias e que, portanto, o legislador sempre manterá, em matéria de direitos económicos e sociais, uma mais ampla margem de livre conformação.
[…] Sendo o direito à segurança social um direito de caráter essencialmente económico e social, a sua realização depende, sobretudo, de prestações positivas de terceiros, isto é, dos atuais contribuintes para o sistema de segurança social e, em última análise, do Estado. Isso explica que, por regra, o seu conteúdo não se possa definir de forma independente da legislação. É ao legislador que incumbe fazer as necessárias ponderações que garantam a sustentabilidade do sistema e a justiça na afetação de recursos.
Deste modo, a mera sucessão de leis no tempo em matéria de segurança social não é, em geral, passível de afetar o próprio direito à segurança social 'como um todo', salvo os casos em que esteja em causa o mínimo de existência condigna, o que não sucede na situação em análise, em que as alterações legislativas estão muito longe de traduzir uma supressão da proteção mínima àqueles que, por força da idade, perderam a capacidade de auferir rendimentos pelo trabalho.
O direito à segurança social não é, de modo algum, um direito imune à possibilidade de conformação legislativa. As condições de acesso ao direito à aposentação e a concreta forma de cálculo das respetivas pensões não são intocáveis pelo legislador, podendo este legislar de modo a definir tais condições e tal valor.”
58. Nestes termos, é lícito concluir que a jurisprudência constitucional portuguesa é cautelosa no que respeita à tutela, sustentada no direito à segurança social, de posições jurídicas concretas dos pensionistas. Ou seja, tem-se entendido que os requisitos exigidos para se adquirir o direito à pensão, bem como as regras de cálculo ou a quantia efetiva a receber, ainda que cobertos pelo princípio da proteção da confiança, poderão ceder, dentro de um limitado condicionalismo, perante o interesse público justificativo da revisibilidade das leis.
É certo que, no aresto acima mencionado (acórdão n.º 3/2010), estavam em causa as expectativas, eventualmente tuteladas do ponto de vista jurídico, dos futuros pensionistas. Ou seja, tratava-se, então, no fundo, de direitos a constituir. No que respeita à questão ora em análise, a situação não é exatamente idêntica, uma vez que estão em causa direitos já constituídos, posições jurídicas de cidadãos que adquiriram definitivamente o estatuto de pensionistas, com um conteúdo já perfeitamente definido pelas regras legais em vigor, no momento relevante para o seu cálculo. Este facto não é, no entanto, suficiente, do ponto de vista do direito à segurança social, para fundamentar posição distinta da assumida anteriormente pelo Tribunal quanto às regras de cálculo da pensão.
Repare-se que as alterações ao regime da aposentação da função pública então em causa atingiam a generalidade dos funcionários e não apenas aqueles que se encontrassem em início de carreira, incluindo aqueles que se encontravam a pouco tempo de poder requerer o estatuto de aposentados. Em regra, os cidadãos nesta situação passaram a ter direito a uma pensão calculada com base em duas parcelas: uma de acordo com o estatuto anterior e outra, respeitante ao tempo de serviço posterior às alterações ao regime legal. Nestes termos, viram-se afetados pela alteração legislativa trabalhadores da Administração Pública com um longo período de tempo de serviço e que eram titulares de uma legítima e forte expectativa jurídica, tendo então o Tribunal entendido que esse facto não era bastante para fundamentar um juízo de inconstitucionalidade, face à gravidade do interesse público então em causa (a sustentabilidade do sistema de pensões), cuja salvaguarda fundamentava o reconhecimento de uma ampla liberdade de conformação por parte do legislador.
Ora, na presente situação, é igualmente indiscutível a existência de um interesse público relevante – a necessidade de garantir a sustentabilidade económico-financeira do Estado –, pelo que, do ponto de vista do princípio da igualdade, não existe uma diferença muito significativa entre aqueles que adquiriram já o estatuto de pensionistas e os trabalhadores que, contando já com uma longa carreira contributiva, se encontram prestes a preencher os requisitos legais para atingirem a mesma condição jurídica.
59. É, assim, de concluir que o reconhecimento do direito à pensão e a tutela específica de que ele goza não afastam, à partida, a possibilidade de redução do montante concreto da pensão. O que está constitucionalmente garantido é o direito à pensão, não o direito a um certo montante, a título de pensão. Este resulta da aplicação de critérios legalmente estabelecidos, mas de valor infraconstitucional.
A única norma constitucional que tem incidência no montante da prestação é a do n.º 4 do artigo 63º, que manda contabilizar “todo o tempo de trabalho” para o cálculo das pensões de velhice e de invalidez, independentemente do setor de atividade em que tiver sido prestado. O que se pretende, no entanto, aí salientar é o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho, permitindo a acumulação dos tempos de trabalho prestados em várias atividades e os respetivos descontos para os diversos organismos de segurança social (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 819), o que não justifica, em si, a garantia de um determinado valor da pensão devida a um trabalhador em situação de aposentação.
2. O direito à pensão como manifestação do direito de propriedade (artigo 62.º da Constituição)
60. Como decorre da argumentação dos requerentes do Processo n.º 5/13, pode estar também em causa o direito à propriedade privada, na sua vertente de propriedade societário-pensionista, protegido pelo artigo 62º da Constituição.
No âmbito jurídico germânico, é corrente e generalizadamente aceite, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência constitucional, a extensão do âmbito de proteção da garantia da propriedade privada às posições jurídicas subjetivas de direito público com conteúdo patrimonial. Pode aí colher-se uma elaboração dogmática em torno da admissibilidade da fundamentação da tutela dos direitos dos pensionistas no direito de propriedade, bem como acerca da extensão e consequências, no plano jurídico-constitucional, dessa mesma tutela.
Assim, o Tribunal Constitucional federal alemão tem considerado que devem ser consideradas “propriedade” aquelas posições jurídicas relativas a prestações do sistema público de segurança social que (i) estiverem adscritas ao titular do direito e (ii) se basearem numa prestação própria. A mesma instância jurisdicional teve já oportunidade de esclarecer que não é possível cindir a prestação de reforma em parte financiada pelo Estado e em parte resultante da contribuição própria, e que, portanto, se deve entender que a garantia constitucional da propriedade abrange a totalidade da posição jurídica. Do mesmo modo, da aplicação dos critérios elaborados pela dogmática geral da propriedade à matéria de prestações da segurança social resulta que a validade de normas legislativas que venham afetar posições jurídicas relativas a prestações sociais deverá ser aferida face aos critérios elaborados para a determinação do conteúdo e limites da propriedade, que são determinados pelo Tribunal Constitucional alemão em função do princípio da proporcionalidade.
61. Também a nível do direito internacional convencional, é comum o estabelecimento dessa conexão. Desde logo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem repetidamente afirmado que os princípios relativos ao direito de propriedade, consagrado no artigo 1.º do Protocolo 1 da CEDH, se aplicam, em termos gerais, às situações em que estejam em causa pensões. Aquela disposição não garante, porém, o direito a adquirir propriedade ou a exigir uma quantia concreta a título de pensão. Todavia, quando um Estado tenha legislação que institua e regule o pagamento de pensões – independentemente de a sua natureza ser ou não contributiva – essa legislação gera um “interesse proprietário” que está abrangido pelo âmbito do mencionado Protocolo 1. Assim, a redução ou cancelamento de uma pensão pode ser considerada como uma interferência no gozo da propriedade que carece de fundamentação adequada. Nestes termos, é necessária uma intervenção por via legislativa, justificada pela necessidade de prossecução de um interesse público, e observando o princípio da proporcionalidade nas suas várias dimensões (cfr., por todos, o acórdão do TEDH Grudic c. Serbia, de 17 de abril de 2012).
62. No fundo, os elementos de direito comparado a que vem de fazer-se referência permitem-nos chegar a uma dupla conclusão. Por um lado, doutrina e jurisprudência têm procurado fundar a tutela dos pensionistas no direito de propriedade nas situações em que os catálogos de direitos fundamentais que definem o parâmetro de validade das medidas legislativas e/ou administrativas passíveis de pôr em causa os direitos adquiridos dos pensionistas não contêm disposições relativas a direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente, ao direito à segurança social. Por outro lado, os critérios doutrinais e jurisprudenciais avançados para delimitar as consequências da tutela das prestações sociais – incluindo as pensões – em face do direito fundamental à propriedade privada acabam por reconduzir-se, de forma mais ou menos direta, à avaliação da conformidade das medidas passíveis de afetar as posições jurídicas em causa com os princípios da proteção da confiança e, acima de tudo, da proporcionalidade, nomeadamente na sua vertente de proibição do excesso.
63. No quadro constitucional português, e ainda que se admita a existência de uma dimensão proprietária no direito dos pensionistas, a sua proteção no específico âmbito de tutela do artigo 62.º é duvidosa, tendo em conta que existe uma norma dedicada ao direito à segurança social, aí se incluindo o direito à pensão - artigo 63.º (recusando essa possibilidade, Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pág. 963, com fundamento em que isso conduziria a uma alteração do conceito constitucional de propriedade). Acresce que não existe, no nosso sistema de segurança social, uma relação direta entre a pensão auferida pelo beneficiário e o montante das quotizações que tenha deduzido durante a sua vida ativa (embora haja uma relação sinalagmática entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações – artigo 54º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). Isso porque o sistema previdencial não assenta num sistema de capitalização individual, mas num sistema de repartição, pelo qual os atuais pensionistas auferem pensões que são financiadas pelas quotizações dos trabalhadores no ativo e pelas contribuições das respetivas entidades empregadoras (artigo 56º da mesma Lei), de tal modo que não pode considerar-se que as pensões de reforma atualmente em pagamento correspondam ao retorno das próprias contribuições que o beneficiário tenha efetuado no passado. Regime que se torna extensivo à proteção social da função pública por via da convergência com o sistema de segurança social, que foi já implementado, na sequência do disposto no artigo 104º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 117/2006, de 20 de junho.
A obtenção de mais forte tutela a partir do direito de propriedade, como direito ao montante da pensão fixado, encontraria fundamento se pudesse ser estabelecida a equiparação plena dos efeitos ablatórios da suspensão do pagamento de parte da pensão à expropriação por utilidade pública. Pois então estaríamos indiscutivelmente situados no núcleo essencial do que é reconhecidamente uma dimensão do direito de propriedade de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Mas essa equiparação não tem fundamento. Reduções parciais do quantitativo de uma prestação social não podem ser consideradas uma expropriação parcial, por dois motivos essenciais. Não se trata, em primeiro lugar, da subtração, através de um ato jurídico, de uma posição jurídica concreta, mas da determinação, em termos gerais e abstratos, do conteúdo de toda uma categoria de direitos. Não pode esquecer-se, em segundo lugar, que estamos perante uma posição com uma forte componente social, tanto do ponto de vista genético como funcional, correspondente à participação num fundo comum de solidariedade, organizado pelo Estado, a partir de contribuições de todos os trabalhadores e das entidades empregadoras, e parcialmente financiado por transferências de verbas do orçamento geral do Estado. O que, inequivocamente afasta esta posição das que têm uma exclusiva fonte pessoal, da esfera própria do titular.
Como se impõe concluir, rejeitada que seja a inclusão desta medida no âmbito de proteção do n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, uma pronúncia definitiva sobre a questão de constitucionalidade fica sempre dependente do resultado da aplicação dos parâmetros de aferição que resultam dos princípios constitucionais da igualdade e da proteção da confiança, em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
3. A suspensão de 90% do subsídio de férias dos pensionistas à luz dos princípios da proteção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade
64. No que respeita a este aspeto do problema, importa, antes de mais, reiterar que, do ponto de vista da tutela jurídico-constitucional, a proteção conferida ao direito à pensão não é substancial ou qualitativamente diferente da dispensada ao direito ao salário. De facto, trata-se, em ambos os casos, de direitos económicos, previstos, respetivamente, no artigo 63º e no artigo 59º da Constituição.
O que se pode dizer é que a Constituição é bastante mais explícita quanto ao elevado grau de proteção que lhe merece o salário: estabelece o direito a uma justa retribuição do trabalho, retribuição esta que deve ter em conta a duração e intensidade das tarefas desempenhadas, a sua penosidade ou perigosidade e as exigências por elas impostas em termos de conhecimentos, práticas e capacidades. Neste sentido, e sempre em condições de igualdade, o salário deve garantir uma existência condigna, a nível tanto individual como familiar, 'compatíveis com o nível de vida exigido em cada etapa do desenvolvimento económico e social'.
Quanto às pensões de reforma, a Constituição não contém disposições tão impressivas, sendo mesmo omissa sobre o regime de prestações do sistema de segurança social. Contudo, e como acima se viu, o direito à pensão de reforma sempre resultará de uma interpretação sistemática e combinada do direito à segurança social e ainda do direito à segurança económica das pessoas idosas, consagrado no artigo 72º, n.º 1, da Constituição (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 576/96).
Não obstante, situando-se o direito ao salário e o direito à pensão de reforma ou de aposentação no mesmo plano, não se descortina uma razão para que, em relação a medidas passíveis de afetar, de forma inadmissível, qualquer desses direitos, se não deva basear um juízo de constitucionalidade em idênticos parâmetros, sem que isso impeça a consideração das características específicas de trabalhadores no ativo e de pensionistas, bem como das suas condições de vida gerais, quando seja necessário averiguar a conformidade com os princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança.
Nestes termos, valem para os pensionistas, com as necessárias adaptações, o que se equacionou em relação aos trabalhadores da função pública, quanto ao significado e impacto da redução de rendimentos determinada pela suspensão do subsídio de férias, conjugada com um significativo aumento da carga fiscal, em virtude da alteração de escalões e da sobretaxa de IRS.
Como elemento diferenciador, numa visão de conjunto, importa considerar a cumulação desta medida, no âmbito subjetivo em causa, com a contribuição extraordinária de solidariedade, medida de incidência exclusiva sobre as pensões, mas que, na prática, coloca os pensionistas com pensões de valor superior a €1350 em situação equivalente aos trabalhadores no ativo, no ponto em que essa contribuição acaba por corresponder à redução salarial que a estes tem vindo a ser aplicada desde 2011.
65. No entanto, parece razoável sustentar que os pensionistas serão titulares de uma posição jurídica especialmente tutelada, no que respeita, em particular, ao princípio da proteção da confiança, o que parece ter sido também reconhecido pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 353/12, quando aí se afirmou que a «situação específica dos reformados e aposentados se diferencia da dos trabalhadores da Administração Pública no ativo, sendo possível quanto aos primeiros convocar diferentes ordens de considerações no plano da constitucionalidade».
Estamos, na verdade, perante um direito já constituído, e constituído mediante “descontos” efetuados durante toda a carreira contributiva, que é reportado ao passado como um facto já consumado. Chegado o momento em que cessou a vida ativa e se tornou exigível o direito às prestações, o pensionista já não dispõe de mecanismos de autotutela e de adaptação da sua própria conduta às novas circunstâncias, o que gera uma situação de confiança reforçada na estabilidade da ordem jurídica e na manutenção das regras que, a seu tempo, serviram para definir o conteúdo do direito à pensão.
Por outro lado, é legítima a confiança gerada na manutenção do exato montante da pensão, tal como fixado por ocasião da passagem à reforma. Sobretudo porque o nosso sistema é um sistema de benefício definido, em que se garante a cada pensionista uma taxa fixa de substituição sobre os vencimentos de referência.
E isso reflete-se também na tutela do investimento na confiança, que, sem dúvida, é de presumir ter existido por parte do titular do direito, e que decorre, não propriamente do facto de o pensionista ter efetuado contribuições enquanto trabalhador ativo – já que o nosso sistema é financiado por repartição e não por capitalização – mas da circunstância de, contando com o caráter definido do benefício, poder não ter sentido, justificadamente, a necessidade de se precaver por outras formas quanto a uma possível perda de rendimentos.
Sendo certo que se verificam, de forma clara e em grau elevado, todos os pressupostos exigíveis do lado da tutela da confiança, a dúvida só pode residir na relevância do interesse público que determinou a alteração legislativa, questão que remete para um controlo de proporcionalidade em sentido estrito, e para uma ponderação entre a frustração da confiança, com a extensão de que esta se revestiu, e a intensidade das razões de interesse público que justificaram a alteração legislativa.
66. O proponente da norma abordou esta questão no Relatório do Orçamento de Estado para 2013, em que se faz a seguinte referência (pág. 41):
Por outro lado, e no que toca ao princípio da proteção da confiança, a circunstância de o nosso modelo de segurança social não ser configurado com base num sistema de capitalização, não pode deixar de pesar na ponderação das razões de interesse público, atrás invocadas, suscetíveis de justificar a medida. A esses razões acresce, de um modo especial, a própria sustentabilidade do sistema de segurança social, bem como a sua capacidade de continuar a assegurar o respetivo funcionamento em relação a gerações futuras.
As razões de interesse público a que aí se pretendia aludir radicam, por outro lado, nas conhecidas dificuldades de conjuntura económico-financeira e na necessidade de adoção de medidas de consolidação orçamental, de que – segundo se afirma – depende a própria manutenção e sustentabilidade do Estado Social (pág. 39).
No plano de análise em que nos colocamos, tudo ponderado, face à excecionalidade do interesse público em causa e o caráter transitório da medida, pode ainda entender-se, no limite, que a supressão de 90% do subsídio de férias aos pensionistas não constitui uma ofensa desproporcionada à tutela da confiança, justificando-se uma pronúncia no sentido de não desconformidade constitucional por referência a esse parâmetro de aferição.
67. É, no entanto, também necessária uma ponderação da específica posição jurídica dos pensionistas, no que se refere ao princípio da igualdade, tomando-se aqui como termo de referência comparativo a situação dos trabalhadores da função pública (que sofrem redução de vencimentos acrescida da suspensão do subsídio de férias, mas não a sujeição à contribuição extraordinária de solidariedade), os titulares de rendimentos sobre que não incidem nenhuma dessa medidas, ou os pensionistas que estão sujeitos à contribuição extraordinária de solidariedade, mas não à suspensão do subsídio de férias, por não integrarem o sistema de previdência público.
Foi já com fundamento na violação do princípio da igualdade proporcional que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 353/12 declarou a inconstitucionalidade da norma do artigo 25º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, que determinou, para o exercício orçamental de 2012, a suspensão dos subsídios de férias e de Natal ou equivalentes de aposentados e reformados, entendendo-se então que a argumentação aduzida para formular um juízo de inconstitucionalidade, nesse plano, quanto a idêntica medida aplicável aos trabalhadores da Administração Pública, era extensiva à situação dos reformados e pensionistas, sem necessidade de abordar aspetos específicos que em relação a estes a implementação da medida poderia autonomamente suscitar.
O Tribunal considerou, nessa decisão, que os efeitos cumulativos e continuados dos sacrifícios impostos às pessoas com remunerações ou pensões do setor público - resultante da redução salarial imposta aos trabalhadores da Administração Pública, implementada em 2011 e mantida em 2012, acrescida da supressão dos subsídios de férias e de Natal, aplicada em 2012, e que se estendeu, nesse ano, aos reformados e pensionistas -, não tem equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, correspondendo a uma diferença de tratamento que não encontra justificação bastante no objetivo da redução do défice público. Concluindo que o diferente tratamento imposto a quem aufere remunerações e pensões por verbas públicas ultrapassa os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional, apesar de se reconhecer a grave situação económico-financeira e a necessidade do cumprimento das metas do défice público estabelecidas nos referidos memorandos de entendimento.
Ora, há boas razões para considerar que a situação de desigualdade perante os encargos públicos que justificou esse juízo de inconstitucionalidade é agora mais evidente no que se refere aos pensionistas.
O Relatório do Orçamento do Estado para 2013 menciona a situação específica em que se encontram os reformados e pensionistas e, como aí se refere, foi precisamente “o reconhecimento do caráter específico da sua situação que conduziu o legislador a decidir, não só pela reposição de um montante equivalente a um dos subsídios, à semelhança do sucedido com os trabalhadores do setor público, mas também pela manutenção do pagamento equivalente a 10% do outro subsídio, ao contrário do que ocorrerá com os trabalhadores no ativo, aos quais será aplicada uma redução de 100%”.
Parece daqui depreender-se que, do ponto de vista de política legislativa, a medida da diferença que a situação particular dos pensionistas e, em especial, a sua maior debilidade perante as alterações das condições gerais de vida, pode justificar se reconduz ao menor sacrifício que lhes é imposto, em virtude de a supressão do subsídio de férias não atingir a sua integralidade, mas apenas o montante equivalente a 90%, situando-se a diferença no valor residual de 10% por comparação com a medida homóloga aplicada aos trabalhadores da Administração Pública no ativo.
Deve, no entanto, notar-se que, pelo efeito cumulado do conjunto das medidas que foram aplicadas, os pensionistas sofreram agora uma penalização superior à dos trabalhadores do setor público por referência ao ano de 2012.
De facto, o legislador determinou a reposição do pagamento de um dos subsídios, tal como se verificou com os trabalhadores do setor público, e manteve o pagamento de 10% do outro subsídio, ao contrário do que ocorreu com os trabalhadores no ativo, aos quais foi aplicada uma redução de 100%. Mas, em contrapartida, os pensionistas ficaram sujeitos a uma contribuição extraordinária de solidariedade (artigo 78º), que equivale à redução salarial já sofrida pelos trabalhadores no ativo, no que respeita às pensões até €5030,64, e que excede em muito essa redução salarial, no que se refere às pensões que se situem entre esse valor e €7545,96, que suportam, a esse título, uma taxa adicional de 15%, e ainda mais quanto às pensões acima deste último montante, sobre as quais incide a taxa adicional de 40%.
Acresce que sobre os contribuintes em geral passou a incidir uma sobretaxa de 3,5% (artigo 187º), que aplicada aos titulares de pensões de reforma ou aposentação absorve, na prática, o pagamento do subsídio de Natal que havia sido reposto, deixando os pensionistas, nesse plano, em situação idêntica à dos trabalhadores do setor público no ativo, que, por efeito da incidência dessa mesma sobretaxa, se viram privados do montante correspondente a esse mesmo subsídio. A que ainda acresce o forte agravamento fiscal que decorre, de entre outras medidas, da alteração da estrutura dos escalões de rendimento coletável em IRS e da diminuição ou exclusão de deduções à coleta.
De tudo resulta que os pensionistas, por via da aplicação da contribuição extraordinária de solidariedade, que pretendeu estabelecer uma equiparação com a redução salarial da remuneração mensal imposta aos trabalhadores do setor público (sem considerar já a situação mais gravosa daqueles que auferem pensões mais elevadas), passaram a sofrer uma diminuição do rendimento disponível em medida idêntica à que já se verificava em relação a esses trabalhadores. Agravando-se também por essa via a situação de desigualdade, não só em relação a pensionistas que não sofrem a suspensão do subsídio de férias, como também em relação aos titulares de outros rendimentos, que apenas foram confrontados com o agravamento fiscal generalizado, que incide sobre todos os contribuintes.
É por isso de manter em relação à norma do artigo 77º o julgamento de inconstitucionalidade que foi já formulado no que se refere à norma do artigo 29º, n.º 1, aplicável aos funcionários e agentes administrativos, tanto que em relação aos pensionistas não se aplica, até por maioria de razão, qualquer dos argumentos já analisados a propósito desta última disposição, que, na perspetiva do proponente da norma, poderia justificar o tratamento diferenciado, o que se torna agora particularmente evidente por virtude da inexistência de uma vinculação ao interesse público, por parte dos pensionistas, e pela impossibilidade de se estabelecer, quanto a eles, qualquer padrão comparativo com os trabalhadores do setor privado no ativo.
68. Resta referir que as considerações já antes formuladas relativamente à disposição do artigo 29º, n.º 2, se aplicam mutatis mutandis ao universo de pensionistas que não se encontra abrangido pela contribuição extraordinária de solidariedade, que só afeta, segundo uma taxa progressiva, as pensões de valor mensal superior a €1350.
Trata-se de pensões de valor de tal modo baixo, que a supressão, ainda que parcial, do pagamento do subsídio de férias, independentemente do efeito cumulado de outras medidas, é de si excessivamente gravoso e justificativo de um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade proporcional.
H. Contribuição extraordinária de solidariedade (artigo 78.º)
69. Os requerentes nos Processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013 consideram que as normas nos números 1 e 2 do artigo 78.º, e a título consequente, as restantes normas do mesmo artigo, enfermam de inconstitucionalidade com base, em síntese, nos seguintes fundamentos:
- A contribuição extraordinária de solidariedade criada pelas mencionadas normas pode ser definida como um imposto diverso do IRS, pelo que ao refletir uma fragmentação da tributação do rendimento das pessoas singulares, com agravamentos fiscais ditados para certas categorias de cidadãos, viola o princípio da unidade do imposto sobre o rendimento pessoal, previsto no n.º 1 artigo 104.º da Constituição;
- A mesma contribuição, na medida em que tributa, em acumulação com os agravamentos parafiscais previstos no artigo 77.º e com os agravamentos orçamentais em sede de IRS, uma categoria específica de pessoas em razão de critérios ligados à sua condição ou estatuto de inatividade laboral e não do critério constitucional da capacidade contributiva, discrimina negativamente, de forma desproporcionada e sem justificação constitucional, os pensionistas, em relação aos trabalhadores no ativo, do que resulta a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, garantidos pela disposição do n.º 1 do artigo 104.° conjugada com as normas dos artigos 13.° e 18.°, n.º 2, da Constituição.
- Ao interpretar-se a CES como sacrifício adicional, redução de rendimento análoga à que é mantida para os funcionários públicos, colocam-se em causa os princípios da proteção da confiança e da igualdade perante os encargos públicos, na medida em que configura uma diferenciação discriminatória dos pensionistas na participação nos encargos com a diminuição do défice público.
- As normas violam ainda o núcleo essencial de direitos patrimoniais de propriedade, garantidos pelo n.º 1 do artigo 62.° da CRP e de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 18.° da Constituição.
70. A Lei n.º 66-B/2012 institui, no artigo 78.º, uma medida com a mesma designação daquela que fora já prevista nas leis que aprovaram os orçamentos do Estado para 2011 e 2012 (artigos 162º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 20.º, n.º 1, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro), mas que se caracteriza, genericamente, não só pelo acréscimo da sua base de incidência, como também pelo alargamento do universo das pensões atingidas.
Passam a estar abrangidas pela contribuição extraordinária de solidariedade (CES) pensões de montante significativamente inferior (a partir de €1350) e a medida passa a afetar, para além das pensões pagas por entidades públicas, todas as prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título a aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que não estejam expressamente excluídas por disposição legal. São irrelevantes, para este efeito, e por força da lei, a designação das prestações (pensões, subvenções, subsídios, rendas, seguros, indemnizações por cessação de atividade, prestações atribuídas no âmbito de fundos coletivos de reforma ou outras), a forma que revistam (por exemplo, pensões de reforma de regimes profissionais complementares), bem como a natureza pública, privada, cooperativa ou outra, e o grau de independência ou autonomia da entidade processadora (incluindo-se as suportadas por institutos públicos, entidades reguladoras, de supervisão ou controlo, empresas públicas, de âmbito nacional, regional ou municipal, caixas de previdência de ordens profissionais e por pessoas coletivas de direito privado ou cooperativo).
Deste modo, as pensões pagas a um único titular passam agora a estar sujeitas a uma contribuição extraordinária de solidariedade, cuja taxa varia de forma progressiva, nos seguintes termos:
- 3,5% sobre a totalidade das pensões de valor mensal entre €1350 e €1800;
- 3,5% sobre o valor de €1800 e 16% sobre o remanescente das pensões de valor mensal entre €1800,01 e €3750, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5% e 10%;
- 10% sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a €3750.
Acresce que, neste último escalão, são aplicadas, em acumulação com a taxa de 10%, as seguintes percentagens:
- 15% sobre o montante que exceda 12 vezes o valor do IAS €5030,64) mas que não ultrapasse 18 vezes aquele valor (€7545,96);
- 40% sobre o montante que ultrapasse 18 vezes o valor do IAS (€7545,96).
A CES passa assim a abranger, não apenas as pensões pagas por entidades públicas (Caixa Geral de Aposentações, Centro Nacional de Pensões ou quaisquer outras entidades públicas, diretamente ou por intermédio de fundos de pensões), mas ainda, por força do n.º 3 do artigo 78.º, «todas as prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título a aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que não estejam expressamente excluídas por disposição legal, incluindo as atribuídas no âmbito do sistema complementar, designadamente no regime público de capitalização e nos regimes complementares de iniciativa coletiva». Estão, assim, inequivocamente abrangidas pela medida as pensões a cargo dos comummente designados primeiro e segundo pilares do sistema de segurança social, ou seja, as dos regimes previdenciais geridos pelo Estado e as que correspondem aos rendimentos proporcionados por planos de pensões criados por regimes previdenciais de natureza complementar de iniciativa empresarial ou coletiva.
O n.º 3 do artigo 78.º, numa interpretação a contrario, afasta a possibilidade de sujeição à CES de planos de pensão de iniciativa individual (que constituem o terceiro pilar do sistema), na medida em que, no corpo da disposição, manda incluir neste regime apenas as pensões atribuídas “nos regimes complementares de iniciativa coletiva”. Sendo assim, parece que terão que corresponder a esta característica todos os regimes complementares a que é feita menção nas várias alíneas desse preceito, incluindo as prestações resultantes de descontos ou contribuições efetuados em “atividade por conta própria” (alínea c) do n.º 3 do artigo 78.º).
Um elemento que se mantém idêntico ao das medidas adotadas nos Orçamentos de Estado anteriores é a consignação do valor resultante da CES, que, nos termos do n.º 8 do artigo 78.º, «reverte a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., no caso das pensões atribuídas pelo sistema de segurança social e pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, e a favor da CGA, I.P., nas restantes situações», mantendo-se, assim, adstrito a uma finalidade específica.
71. No Relatório sobre o Orçamento de Estado para 2013, o Ministério das Finanças inclui a CES na lista de “medidas do lado da redução de despesa”, explicando que, com ela, se “visa alcançar um efeito equivalente à medida de redução salarial aplicada aos trabalhadores do setor público em 2011 e 2012 e que será mantida em 2013, com a diferença de que os limites de rendimento a partir da qual a mesma é aplicada aos reformados e pensionistas são inferiores em 10% aos limites fixados para os ativos. (...) Esta diferença de limites explica-se pelo facto dos rendimentos de pensões já não estarem sujeitos a contribuições para sistemas de previdência (RGSS ou CGA), contribuições essas que para os rendimentos do trabalho ascendem a 11% sobre o rendimento bruto auferido. Procurou-se, deste modo, criar uma situação de tendencial proximidade de efeito líquido na aplicação das medidas, entre ativos e pensionistas, tendo por referência níveis de rendimento equivalentes (após contribuições obrigatórias para sistemas de previdência). Para pensões de elevado valor (superiores a €5.030), cumulativamente à redução de 10%, é exigida ainda uma contribuição extraordinária de solidariedade aos pensionistas, em linha com medida semelhante já aplicada em 2012”.
Todavia, esta qualificação poderá ser questionada no ponto em que, ao contrário dos anos anteriores, recaem no âmbito de incidência da CES quaisquer rendimentos de pensões ou equivalentes “independentemente da natureza pública, privada, cooperativa ou outra, e do grau de independência ou autonomia da entidade processadora” (artigo 78.º, n.º 3, alínea b)), aí se incluindo as pensões ou similares pagas por pessoas coletivas de direito privado ou cooperativo, como são os casos, por exemplo, das instituições de crédito, através dos respetivos fundos de pensões, das companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões e, até de direito público, como a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS), relativamente às quais não existe qualquer relação com a despesa do Estado.
A dúvida quanto à qualificação como medida do lado da despesa, foi também levantada, do ponto de vista contabilístico, no Parecer Técnico n.º 6/2012 da Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República, no qual se afirma, a propósito da CES que “o Ministério das Finanças considerou esta medida no lado da despesa mas, estando em causa a aplicação de uma contribuição sobre o valor das pensões (prevista no artigo 76º da proposta de lei do OE/2013), esta situação estará na fronteira entre uma redução de despesa ou um aumento de receita”.
No sentido da qualificação como “receita do sistema previdencial” aponta ainda o modus operandi da efetivação da medida, conforme o previsto no n.º 8 do artigo 78.º, que determina, no caso de pensões não pagas por entidades públicas, que as entidades processadoras procedam à retenção na fonte do valor correspondente à contribuição e a entreguem, dentro de determinado prazo, à Caixa Geral de Aposentações, em correspondência com os procedimentos similares de arrecadação de receitas em sede fiscal.
72. Deste modo, no que se refere às pensões processadas e pagas pelo sistema público de segurança social, a CES assume o efeito prático de uma medida de redução de despesa. Até ao limite de €5030,64 visa obter, como se esclareceu no Relatório do OE para 2013, um efeito equivalente à redução salarial que tem vindo a ser aplicada aos trabalhadores do setor público desde 2011, o que surge evidenciado também pela correspectividade do valor percentual da dedução relativamente à redução remuneratória também prevista no artigo 27º, n.º 1, da Lei do OE. E o efeito continua a ser, ainda neste mesmo âmbito, de redução da despesa pública quanto às pensões sobre que incide a percentagem adicional de 15%, quando o montante que exceda 12 vezes o valor do IAS (€5030,64), e de 40%, quando o montante que ultrapasse 18 vezes o valor do IAS (€7545,96). Ainda que, neste último caso, se sujeite os respetivos titulares a um contributo mais gravoso, por se tratar de prestações de valor elevado que se entendeu poderem suportar um sacrifício extraordinário em nome do princípio da solidariedade, face às dificuldades crescentes de sustentabilidade da segurança social e do sistema público de pensões, sujeito no ano de 2013 a um acréscimo de esforço financeiro que, em último termo, teria se ser coberto por transferências do Orçamento de Estado.
Neste âmbito de incidência, a norma do n.º 2 do artigo 78º da Lei do OE, tendo o referido efeito de diminuição conjuntural das pensões, por força da aplicação de taxas fortemente progressivas, não deixa de constituir um instrumento financeiro de redução de despesa pública, visto que estamos ainda perante pensões do chamado primeiro pilar de proteção social, e que são suportadas pelo orçamento da segurança social ou da Caixa Geral de Aposentações, apenas se diferenciando relativamente à norma do n.º 1, na apreciação da questão de constitucionalidade, por se tratar, nesse outro caso, da imposição de um sacrifício muito mais intenso.
Já o mesmo não pode afirmar-se quanto à sujeição das pensões dos regimes substitutivos e dos regimes complementares, de iniciativa pública ou de iniciativa coletiva privada, à contribuição extraordinária de solidariedade, nos termos genericamente previstos para as pensões atribuídas pelo sistema de segurança social ou pela CGA. Neste caso, as entidades processadoras devem efetuar a dedução da contribuição e entregá-la à CGA, até ao dia 15 do mês seguinte àquele em sejam devidas as prestações (artigo 78º, n.º 8), pelo que a CES produz aqui o efeito exclusivo de um aumento de receita, por via da transferência de verbas para o sistema público de segurança social.
73. Embora financeiramente suscetível de ser perspetivada de modo ambivalente, privilegiando o efeito prático do lado da despesa ou da receita consoante o seu âmbito subjetivo de incidência, a CES é juridicamente configurada no preceito que institui a medida, de modo unitário, como uma contribuição para a segurança social, ainda que apresente a particularidade de ser exigida aos atuais beneficiários dos regimes previdenciais. Aliás, em conformidade com esta natureza de tributo para a segurança social e não de redução formal do montante da prestação, nos termos do artigo 53.º do CIRS, o valor da pensão, apurado sem ter em conta a incidência da CES, continua a fornecer a indicação do rendimento bruto tributável pela categoria H. O montante que resulta da aplicação da CES entra, porém, no passo seguinte, como dedução específica para apuramento da matéria coletável, nos termos da alínea b) do n.º 4 do referido preceito que manda deduzir “as contribuições obrigatórias para regimes de proteção social …”.
Sem dúvida que a incidência, em geral, de uma obrigação contributiva sobre os próprios beneficiários ativos representa um desvio ao funcionamento do sistema, na medida em que introduz uma nova modalidade de financiamento da segurança social que abarca os próprios beneficiários das prestações sociais, pondo em causa, de algum modo, o princípio da contributividade, que tem pressuposta a ideia de uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações (artigo 54º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). O que se torna ainda mais evidente quando a obrigação incide sobre os beneficiários de modalidades privadas de proteção social, que são exteriores ao sistema público de segurança social.
No entanto, a circunstância de o sistema previdencial assentar fundamentalmente no autofinanciamento, através das quotizações dos trabalhadores e das contribuições das entidades empregadoras, não obsta a que possa recorrer a outras fontes de financiamento, incluindo outras receitas fiscais legalmente previstas, como decorre do artigo 92.º da Lei n.º 4/2007.
A receita obtida através de um tributo parafiscal que incide sobre os pensionistas dos regimes complementares e substitutivos não deixa de corresponder a uma forma de financiamento da segurança social, em termos que equivalem às quotizações dos trabalhadores no âmbito da obrigação contributiva. Num contexto de emergência económica e financeira, a contribuição visa, por outro lado, contrariar a tendência deficitária da segurança social e permitir satisfazer os compromissos assumidos com as prestações do regime geral de segurança social e de proteção social da função pública.
E importa reter que os regimes complementares se encontram especialmente regulados nos artigos 81º e seguintes da Lei n.º 4/2007, e, ainda que de iniciativa privada, integram também o sistema de segurança social, que assenta num princípio de complementaridade, traduzido na articulação de várias formas de proteção social públicas, sociais, cooperativas, mutualistas e privadas com o objetivo de melhorar a cobertura das situações abrangidas e promover a partilha de responsabilidades - artigo 15º (sobre o fundamento e legitimidade dos regimes complementares, Ilídio das Neves, Os regimes complementares de segurança social, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXVI, n.º 4, Outubro-Dezembro de 1994, págs. 286 e segs.).
A contribuição, mesmo quando exigida aos titulares de complementos de reforma, está, por isso, estreitamente associada aos fins da segurança social, além de que esses pensionistas beneficiam da solvabilidade do sistema e tiram vantagem do seu eficaz financiamento, na medida em que o reforço de proteção social que poderão obter por via da atribuição de prestações complementares só se torna efetivo se o Estado continuar a satisfazer pontualmente as prestações concedidas pelo sistema previdencial, de que eles são também destinatários.
As considerações que antecedem justificam, por maioria de razão, a sujeição à contribuição extraordinária de solidariedade dos pensionistas dos denominados regimes especiais, dada a natureza substitutiva das prestações que aí estão em causa (artigo 53º da Lei n.º 4/2007).
74. Tratando-se de uma contribuição para a segurança social, como tudo indica, não obstante a sua atipicidade, ela não está sujeita aos princípios tributários gerais, e designadamente aos princípios da unidade e da universalidade do imposto, não sendo para o caso mobilizáveis as regras do artigo 104.º, n.º 1, da Constituição relativas ao imposto sobre o rendimento pessoal.
Isso porque a contribuição para a segurança social prevista no artigo 78º da Lei do Orçamento do Estado apresenta diversos traços diferenciadores da conceção tributária estrita dos impostos, quer quanto aos objetivos, quer quanto à estrutura jurídica. É uma receita consignada, na medida em que se destina a satisfazer, de modo imediato, as necessidades específicas do subsistema contributivo da segurança social, distinguindo-se por isso dos impostos, que têm como finalidade imediata e genérica a obtenção de receitas para o Estado, em vista a uma afetação geral e indiscriminada à satisfação de encargos públicos. E não possui um caráter de completa unilateralidade uma vez que os regimes complementares têm o seu suporte jurídico-institucional no sistema de segurança social globalmente considerado, e não deixam de manter uma relação de proximidade com o regime contributivo (que é, por natureza, obrigatório), retirando um benefício indireto do seu eficaz funcionamento (quanto à caracterização jurídica da contribuição para a segurança social, Ilídio das Neves, Direito da Segurança Social, Coimbra, 1996, pág. 360).
Trata-se, assim, de um encargo enquadrável no tertium genus das “demais contribuições financeiras a favor dos serviços públicos”, a que passou a fazer-se referência, a par dos impostos e das taxas, na alínea i) do n.º 1 do art.º 165.º da Constituição.
A situação não é, por isso, também, inteiramente equivalente à analisada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/93 (cuja orientação foi depois também seguida pelo acórdão n.º 1203/96), em que se considerou (ainda que apenas para verificar se a determinação da incidência e da taxa da contribuição está sujeita a reserva de lei) que as contribuições para a segurança social que têm como sujeito passivo a entidade patronal, «quer sejam havidas como verdadeiros impostos, quer sejam consideradas como uma figura contributiva de outra natureza, sempre deverão estar sujeitas aos mesmos requisitos a que aqueles se acham constitucionalmente obrigados». Esta sujeição às regras constitucionais, na lógica argumentativa do acórdão, decorre do facto de «as prestações pecuniárias em que estas contribuições se traduzem, talqualmente os impostos, revestirem caráter definitivo e unilateral», caracterização que não é inteiramente transponível para o tributo em causa, pelas considerações já precedentemente formuladas, nem sequer quando a contribuição incide sobre pensões dos regimes complementares e substitutivos.
E, deste modo, independentemente das variantes que a norma do artigo 78º, ao prever a contribuição extraordinária de solidariedade, possa colocar - quer quando esta equivale a uma medida de redução de despesa, quer quando constitui uma estrita medida de obtenção de receita -, a questão de constitucionalidade que vem suscitada acaba por reconduzir-se à alegada violação do direito de propriedade e dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.
75. Um aspeto que se torna evidente, por tudo o que já anteriormente se expôs, é que os pensionistas afetados pela medida não se encontram na mesma situação de qualquer outro cidadão, justamente porque são beneficiários de pensões de reforma ou de aposentação e de complementos de reforma, e é a sua distintiva situação estatutária que determina a incidência da CES, como medida conjuntural, com a finalidade específica de assegurar a sua participação no financiamento do sistema de segurança social, num contexto extraordinário de exigências de financiamento que, de outra forma, sobrecarregariam o Orçamento do Estado ou se transfeririam para as gerações futuras.
A Constituição não estabelece a proporção em que o financiamento da segurança social depende de qualquer uma das suas fontes, sendo essa matéria que está em grande medida à disposição do Estado no âmbito da sua liberdade de conformação política e legislativa (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 817).
No caso concreto, a imposição de um tributo com a natureza de uma contribuição para a segurança social, traduz-se, em grande parte, na imediata redução de despesa por via da dedução de uma percentagem dos montantes devidos a título de pensão de reforma ou de aposentação pelas próprias entidades a que está consignada e, noutra parte, incidindo sobre titulares de complementos de reforma e de pensões com um regime especial, corresponde a uma forma de financiamento que é assegurada pelos beneficiários ativos de prestações. Podendo descortinar-se na sua própria condição de pensionistas o fundamento material bastante para, numa situação de exceção, serem chamados a contribuir para o financiamento do sistema, o que afasta, à partida, o caráter arbitrário da medida.
A sujeição dos pensionistas a uma contribuição para o financiamento do sistema de segurança social, de modo a diminuir a necessidade de afetação de verbas públicas, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de atuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador.
E os quantitativos das novas contribuições fixados pelo artigo 78º, da Lei do Orçamento do Estado, não se revelam excessivamente diferenciadores, face às razões que se admitiram como justificativas da imposição desta medida penalizadora dos pensionistas, sendo as percentagens relativas ao montante das pensões constantes do n.º 1, similares às das reduções das remunerações de quem aufere por verbas públicas, constantes do artigo 27.º do mesmo diploma, e que foi considerado situarem-se ainda dentro dos limites do sacrifício exigível, de que se excluiram todos aqueles que auferem pensões inferiores a €1350.
E se as percentagens das contribuições que incidem sobre as pensões abrangidas pelo n.º 2, do mesmo artigo 78º, atingem valores bem mais elevados, elas também incidem sobre pensões cujo montante não deixa de justificar um maior grau de progressividade. A prossecução do fim de interesse público que preside a esta medida e a sua emergência, aliadas a um imperativo de solidariedade, tem uma valia suficiente para fundamentar a diferenciação estabelecida entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 78º.
76. Quanto à análise dos princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança não pode deixar de se ter presente quer a recente evolução verificada no regime previdencial de segurança social quer, sobretudo, a natureza conjuntural da CES.
No que se refere ao regime previdencial de segurança social, o critério de determinação dos montantes das pensões, que provinha do Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de setembro, e em certa medida era ainda tributário do modelo concebido nos anos 60 (limitando-se a considerar como remuneração relevante para fixação do montante global da pensão a correspondente aos melhores 10 anos dos últimos 15 da carreira contributiva), foi profundamente alterado pela Lei de Bases da Segurança Social aprovada pela Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, que estipulou o princípio segundo o qual o cálculo de pensões de velhice devia ter por base os rendimentos de trabalho de toda a carreira contributiva (artigo 57.º, n.º 3).
O Governo e os parceiros sociais comprometeram-se entretanto a adotar medidas destinadas a assegurar o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social, incluindo no que se refere à reformulação do cálculo das pensões, e nessa sequência foi publicado o Decreto-Lei n.º 35/2002, de 19 de fevereiro, que veio estabelecer como regra a consideração, para efeitos do cálculo da pensão, das remunerações anuais revalorizadas de toda a carreira contributiva, medida que era justificada não só pela necessidade de assegurar sustentabilidade financeira do sistema de segurança social, mas também por razões de justiça social (Acordo para a Modernização da Proteção Social, de 20 de novembro de 2001).
E posteriormente foi celebrado um novo acordo de concertação social que teve em vista complementar a reforma de 2001/2002, e que pretendeu realizar dois objetivos essenciais: (i) acelerar o prazo de transição para a nova fórmula de cálculo das pensões; (ii) introduzir um limite superior para o cálculo das pensões baseado nos últimos anos da carreira contributiva (Acordo sobre a Reforma da Segurança Social, de 10 de outubro de 2006).
São esses objetivos que surgem plasmados no novo regime do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, publicado em desenvolvimento da atual Lei de Bases da Segurança Social, que visou dar concretização prática ao princípio da aceleração da transição para a nova fórmula de cálculo de pensões, tornando-se aplicável aos contribuintes inscritos até 31 de dezembro de 2001 (e, portanto, àqueles cuja carreira contributiva decorreu em parte ainda na vigência do Decreto-Lei n.º 329/93) (artigos 33º e 34º) e estabeleceu uma limitação do montante da pensão destinada a impedir que, por razões de justiça social e equidade contributiva, venha a ser atribuída uma pensão que se mostre ser excessiva (artigo 101º).
Por outro lado, foi introduzido um fator de sustentabilidade no cálculo do montante da pensão, que permite uma regressão do seu valor em função da alteração da esperança média de vida - artigo 35º (sobre a evolução legislativa do sistema de segurança social, o acórdão n.º 188/2009, que se pronunciou pela não inconstitucionalidade da norma que fixou um teto máximo para o valor das pensões).
77. Também no domínio do sistema de proteção social da função pública, foram introduzidas importantes alterações.
A Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, veio insituir mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social no que respeita às condições de aposentação e cálculo das pensões, e nesses termos, a Caixa Geral de Aposentações deixou, a partir de 1 de janeiro de 2006, de proceder à inscrição de subscritores (artigo 1º), sendo que o pessoal que inicie funções a partir dessa data ao qual, nos termos da legislação vigente, fosse aplicável o regime de proteção social da função pública em matéria de aposentação (em razão da natureza da instituição a que venha a estar vinculado, do tipo de relação jurídica de emprego de que venha a ser titular ou de norma especial que lhe conferisse esse direito), é obrigatoriamente inscrito no regime geral da segurança social (artigo 2º).
E o Decreto-Lei n.º 117/2006, de 20 de junho, veio também estabelecer a transição do regime de proteção social dos funcionários e agentes da Administração Pública, em contrato de trabalho, para o regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem, passando a cobrir as eventualidades de proteção na doença, doenças profissionais, maternidade e desemprego através dos regimes jurídicos do subsistema previdencial, com as particularidades previstas nesse diploma.
78. Esta evolução de política legislativa aponta já para uma gradual adaptação do quadro legal das pensões aos novos condicionalismos sociais, de modo a garantir-se a maior equidade e justiça social na sua concretização, e que corresponde a um dos princípios legalmente assumidos do sistema previdencial (artigo 63º da Lei n.º 4/2007).
Por outro lado, as normas ora impugnadas surgem impulsionadas por uma necessidade conjuntural e emergente de redução da afetação de verbas públicas à manutenção do sistema de segurança social.
A CES foi, na realidade, concebida exclusivamente para fazer face, juntamente com outras medidas, à situação de crise económico-financeira, que terá transitoriamente também exigido, no quadro das opções de base feitas pelo poder político, um urgente reforço do financiamento do sistema de segurança social, à custa dos próprios beneficiários.
Perante a conjugação de uma diminuição das receitas do sistema de segurança social, face ao forte aumento do desemprego, redução dos salários e às novas tendências migratórias, com um aumento das despesas com o apoio ao desemprego e às situações de pobreza, e à consequente necessidade do Estado subsidiar o sistema de segurança social, agravando desse modo o défice público, o legislador, a título excecional e numa situação de emergência, optou por estender aos pensionistas o pagamento de contribuições do sistema de segurança social do qual são direta ou indiretamente beneficiários, apenas durante o presente ano orçamental.
É, pois, atendendo à natureza excecional e temporária desta medida, tendo por finalidade a satisfação das metas do défice público exigidas pelo Programa de Assistência Económica e Financeira, que a sua conformidade com os princípios estruturantes do Estado de direito democrático deve ser avaliada.
79. São conhecidos, e foram já aqui recordados, os critérios a que o Tribunal Constitucional dá relevância para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança».
E não pode deixar de reconhecer-se que as pessoas na situação de reforma ou aposentação, tendo chegado ao termo da sua vida ativa e obtido o direito ao pagamento de uma pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de segurança social, têm expectativas legítimas na continuidade do quadro legislativo e na manutenção da posição jurídica de que são titulares, não lhes sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação a um possível desenvolvimento da atuação dos poderes públicos suscetível de se repercutir na sua esfera jurídica.
Todavia, em face do condicionalismo que rodeou a implementação da contribuição extraordinária de solidariedade, não só as expectativas de estabilidade na ordem jurídica surgem mais atenuadas, como são sobretudo atendíveis relevantes razões de interesse público que justificam, em ponderação, uma excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual.
Como já resulta da ponderação efetuada noutro local, a propósito deste princípio, o interesse público a salvaguardar, não só se encontra aqui perfeitamente identificado, como reveste uma importância fulcral e um caráter de premência que lhe confere uma manifesta prevalência, ainda que não se ignore a intensidade do sacrifício causado às esferas particulares atingidas pela nova contribuição.
No que se refere às pensões abrangidas pelo n.º 2 do artigo 78º, cabe adicionalmente referir que essas prestações já haviam sido objeto de uma contribuição extraordinária de solidariedade de 10 %, incidindo sobre o montante que excede aquele valor, por força do artigo 162º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Lei do OE de 2011), e que veio a ser agravada, em termos idênticos aos agora previstos, através do n.º 15 do artigo 20º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do OE de 2012).
Não há, pois, nenhuma evidência, em todo este contexto, de uma infração ao princípio da proteção da confiança.
80. Nem parece que possa ter-se como violado o princípio da proporcionalidade, em qualquer das suas vertentes de adequação, necessidade ou justa medida.
Como observa Reis Novais, o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido, ou, mais rigorosamente, devem, de forma sensível, contribuir para o alcançar.
No entanto, o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução do um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado (Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, págs. 167-168).
No caso vertente, é patente que a incidência de um tributo parafiscal sobre o universo de pensionistas como meio de reduzir excecional e temporariamente a despesa no pagamento de pensões e obter um financiamento suplementar do sistema de segurança social é uma medida adequada aos fins que o legislador se propôs realizar.
Quanto a saber se para atingir esse objetivo, o meio efetivamente escolhido é o necessário ou exigível, por não existirem outros meios, em princípio, tão idóneos ou eficazes, que pudessem obter o mesmo resultado de forma menos onerosa para as pessoas afetadas, não se vislumbra, num critério necessariamente de evidência, a existência de alternativas que, mantendo uma coerência com o sistema no qual estas medidas se situam, com igual intensidade de realização do fim de interesse público, lesassem em menor grau os titulares das posições jurídicas afetadas.
Nestes termos, a medida cumpre o princípio da necessidade.
Por fim, a norma suscitada não se afigura ser desproporcionada ou excessiva, tendo em consideração o seu caráter excecional e transitório e o patente esforço em graduar a medida do sacrifício que é exigido aos particulares em função do nível de rendimentos auferidos, mediante a aplicação de taxas progressivas, e com a exclusão daqueles cuja pensão é de valor inferior a €1350, relativamente aos quais a medida poderia implicar uma maior onerosidade.
Acresce que, em termos práticos, ela corresponde, em grande parte, a uma extensão da medida de redução salarial já aplicada aos trabalhadores do setor público em 2011 e 2012, e que foi mantida em 2013, a qual no acórdão n.º 396/2011 também se considerou não ser desproporcionada ou excessiva.
Relativamente à previsão do n.º 2 do artigo 78º da Lei do Orçamento do Estado, a questão de constitucionalidade justifica, no entanto, outros desenvolvimentos, por estar aí em causa a aplicação de taxas fortemente progressivas que se alega revestirem uma natureza confiscatória.
81. Defende o Requerente do pedido formulado no processo n.º 2/2013 que a carga de esforço tributário que é potenciada pelo disposto no artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado pode, igualmente, pôr em causa direitos patrimoniais conexos com o direito de propriedade privada, que se reconduz à norma do n.º 1 do artigo 62.º da Constituição e que beneficia, com adaptações, do regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias contido no seu artigo 18°.
O mesmo argumento foi já mobilizado relativamente à suspensão parcial do subsídio de férias dos reformados e pensionistas, mantendo-se válidas as considerações que, a esse propósito, foram formuladas.
De facto, essa perspetiva poderia arrancar da ideia de que o conceito de propriedade vertido no citado preceito constitucional não se circunscreve aos direitos reais tipificados no Código Civil, mas engloba outros direitos com relevância económica direta, tais como os salários ou as pensões de reforma, constituindo um equivalente de «património» (sobre estes aspetos, Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, págs. 547 e segs.; Sousa Franco/Oliveira Martins, A Constituição Económica Portuguesa, Coimbra, 1993, pág. 174).
A posição foi também sufragada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 491/02, em que se entendeu que «o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais» – incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades» (no mesmo sentido ainda os acórdãos n.ºs 273/04 e 374/03).
No entanto, mesmo que situemos o direito à pensão neste plano de análise, a violação do direito à propriedade, por virtude da redução do montante das prestações que forem devidas a esse título, apenas poderia colocar-se se fosse possível afirmar um estrito princípio de correspectividade no âmbito da relação jurídica de segurança social, de modo a que existisse efetiva equivalência entre o montante das contribuições e o valor das prestações.
Todavia o princípio que vigora é antes de uma equivalência global que poderá sempre ser corrigida em função do princípio da solidariedade, como um dos fatores estruturantes do sistema de segurança social (João Loureiro, Adeus ao estado social? O insustentável peso do não-ter, BFD 83 (2007), págs. 168-169).
Estes aspetos foram analisados no já citado acórdão n.º 188/2009, onde se afirmou:
A referência legal a uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações parece pressupor um princípio contratualista de correspectividade entre os direitos e obrigações que integram a relação jurídica de segurança social. Mas diversos outros indicadores apontam no sentido de que o legislador pretendeu apenas referir-se à necessária interdependência entre o direito às prestações e a obrigação de contribuir, o que não significa que exista uma direta correlação entre a contribuição paga e o valor da pensão a atribuir (cfr. Ilídio das Neves, Direito da Segurança Social. Princípios Fundamentais numa Análise Prospetiva, Coimbra, 1996, págs. 303 e segs.).
Em primeiro lugar, o âmbito material do sistema previdencial não se circunscreve às pensões de invalidez e velhice, mas abrange diversas outras eventualidades que determinam perda de rendimentos de trabalho, como a doença, maternidade, paternidade e adoção, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais, ou a morte, não estando excluído, sequer, que a proteção social que assim se pretende garantir seja alargada, no futuro, em função da necessidade de dar cobertura a novos riscos sociais (artigo 52º da Lei n.º 4/2007).
E, pela natureza das coisas, não há, em relação a cada situação e categoria de beneficiários, uma plena correspondência pecuniária entre os valores comparticipados ao longo da carreira contributiva e os benefícios obtidos em consequência da verificação das eventualidades que se encontram cobertas pelo sistema previdencial.
Por outro lado, a obrigação de contribuir não impende apenas sobre os beneficiários, mas também, no caso de exercício de atividade profissional subordinada, sobre as respetivas entidades empregadoras (obrigação que para estas se constitui com o início do exercício da atividade profissional dos trabalhadores ao seu serviço - artigo 56º, n.ºs 1 e 2), sendo o respetivo montante determinado por aplicação de taxa legalmente prevista às remunerações que constituam a base de incidência contributiva (artigo 57º, n.º 1).
Além disso, a lei pode prever limites contributivos, quer através da aplicação de limites superiores aos valores das remunerações que servem de base de incidência, quer por via da redução da taxa contributiva, isto é, do valor em percentagem que deve incidir sobre a base salarial para a determinação do quantitativo exato da contribuição ou quotização (artigo 58º).
Acresce que a falta do pagamento de contribuições relativas a períodos de exercício de atividade dos trabalhadores por conta de outrem, que lhes não seja imputável, não prejudica o direito às prestações (artigo 61º, n.º 4), e na determinação dos montantes das prestações podem ser tidos em consideração, para além do valor das remunerações registadas, que constitui a base de cálculo, outros elementos adicionais, como a duração da carreira contributiva e a idade do beneficiário (artigo 62º, n.ºs 1 e 2).
Todos os referidos aspetos do regime legal conduzem a concluir que o cálculo do montante da pensão não corresponde à aplicação de um princípio de correspectividade que pudesse resultar da capitalização individual das contribuições, mas radica antes num critério de repartição que assenta num princípio de solidariedade, princípio este que aponta para a responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e se concretiza, num dos seus vetores, pela transferência de recursos entre cidadãos – cfr. artigo 8º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), da Lei n.º 4/2007 (neste sentido, João Loureiro, ob. e loc. cit.).
82. O argumento não tem idêntica validade quanto aos complementos de reforma, que funcionem segundo um regime de capitalização. No entanto, como se assinalou, os regimes complementares estão associados ao sistema de segurança social na sua integralidade, e estando em causa a incidência de uma contribuição similar às quotizações dos trabalhadores no ativo, não se vê em que termos é que esses rendimentos devam encontrar-se cobertos pelo âmbito de proteção do direito de propriedade, quando ainda estamos no domínio da parafiscalidade.
Na verdade, a responsabilidade do Estado na tomada de decisões político-legislativas, no domínio do financiamento dos regimes de segurança social, resulta da sua qualidade de garante superior do sistema, com a incumbência de organizar, coordenar e subsidiar um programa de proteção social dos cidadãos nas situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade de trabalho - artigo 63º, n.º 2, da Constituição (Ilídio das Neves, Direito da Segurança Social, citado, pág. 334).
O legislador dispõe de liberdade de conformação para delimitar a fronteira entre o sistema básico de segurança social público e os sistemas privados complementares (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, págs. 646-647), o que também pressupõe, por efeito do englobamento dos diferentes regimes no sistema único de segurança social, o enquadramento normativo da obrigação contributiva.
83. Tenha-se, por último, em consideração que a redução das pensões, mesmo quando influenciadas pela aplicação de taxas contributivas percentuais muito elevadas – como sucede em relação às pensões abrangidas pelo n.º 2 do artigo 78º -, não corresponde a uma ablação do direito à pensão, constituindo antes uma medida conjuntural de caráter transitório, justificada por situação de emergência económica e financeira, pelo que não pode ainda aqui atribuir-se a essa contribuição uma natureza confiscatória.
A questão das taxas confiscatórias tem sido matéria tratada, no domínio tributário, no âmbito do princípio da proporcionalidade ou proibição de excesso, considerando-se que, implicando o imposto uma restrição ao direito de propriedade, o tributo não pode assumir uma tal dimensão quantitativa que absorva «a totalidade ou a maior parte da matéria coletável», nem pode ter um efeito de estrangulamento, impedindo «o livre exercício das atividades humanas» (Diogo Leite de Campos/Mónica Leite de Campos, Direito Tributário, Coimbra, 1996, pág. 148, e Diogo Leite de Campos, As três fases de princípios fundamentantes do Direito Tributário, in O Direito, ano 139º, 2007, pág. 29), ou pondo em causa que «a cada um seja assegurado um mínimo de meios ou recursos materiais indispensáveis (…) [à] dignidade [da pessoa humana]» (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª Edição, pág. 162).
A variável quantitativa não é, contudo, contrariamente ao que possa parecer, única ou determinante. Para aferição do que seja ou não imposto confiscatório, apela-se a uma ideia de equidade ou «tributação equitativa»: «saber se um imposto tem efeitos confiscatórios não depende apenas dos montantes das respetivas taxas. Importa, isso sim, aferir desses efeitos confiscatórios em relação a determinado contribuinte em concreto. O fator decisivo não é aquilo que o imposto retira ao contribuinte, mas o que lhe deixa ficar» (Luís Vasconcelos Abreu, Algumas notas sobre o problema da confiscatoriedade tributária em sede de imposto sobre o rendimento pessoal», in Fisco, n.º 31, maio 1991, págs. 26 e segs.).
Transpondo esta doutrina para o caso aqui em análise, considerando que as taxas adicionais de 15% e 40% são aplicadas só a partir de rendimentos especialmente elevados e deixam ainda uma margem considerável de rendimento disponível, e – como se referiu já - revestem caráter transitório e excecional, não se afigura que se lhes possa atribuir caráter confiscatório.
O Tribunal pronuncia-se, nos termos expostos, pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 78º.
I. Contribuição sobre os subsídios de doença e de desemprego (artigo 117.º, n.º 1)
84. Os autores do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/13 suscitam a questão de constitucionalidade da norma do artigo 117.º, n.º 1, alegando, no essencial, que a sujeição dos beneficiários de prestações do sistema previdencial a uma contribuição de 5% sobre o montante dos subsídios concedidos por doença e de 6% sobre o montante de subsídios concedidos em caso de desemprego, consubstancia, na prática, uma redução das correspetivas prestações sociais, e põe em causa a aplicação do princípio constitucional da igualdade, uma vez que os trabalhadores que deles beneficiam não se encontram em situação idêntica à dos demais trabalhadores devido à impossibilidade temporária de obtenção de meios de subsistência. Entendem ainda que viola os artigos 59.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 63.º, n.º 3, da Constituição, que consagram o direito de todos os trabalhadores à assistência material, o direito a assistência e justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional e ainda o direito à proteção dos cidadãos na doença, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
85. O citado artigo 117.º sujeita os montantes dos subsídios concedidos no âmbito das eventualidades de doença ou de desemprego a uma “contribuição”, respetivamente, de 5% e de 6%, com exceção das situações previstas nos seus n.ºs 2 e 3 (subsídios referentes a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias e situações de majoração do subsídio de desemprego previstas no artigo 118.º). A referida contribuição será deduzida pelas instituições de segurança social do montante das prestações por ela pagas e constituirá uma receita do sistema previdencial (n.º 4 do artigo 117.º).
O regime jurídico de proteção social em caso de doença encontra-se regulado no Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 146/2005, de 26 de agosto, 302/2009, de 22 de outubro, pela Lei n.º 28/2011, de 16 de junho, e pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho. Trata-se de uma prestação cuja atribuição visa a compensação da perda de remuneração em consequência de incapacidade temporária para o trabalho por doença. Em termos gerais, têm direito ao subsídio por doença os beneficiários do subsistema previdencial no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem e dos trabalhadores independentes (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/2004). Nos termos do artigo 16.º do referido diploma, o montante diário do subsídio de doença é calculado pela aplicação à remuneração de referência (artigo 18.º) de uma percentagem variável (entre 55% e 100%), em função da duração do período de incapacidade para o trabalho ou da natureza da doença, sendo que o montante diário não pode ser inferior a 30% do valor diário da retribuição mínima mensal (artigo 19.º, n.º 1).
Por seu turno, o subsídio de desemprego destina-se a compensar a perda das remunerações de trabalho de quem perdeu o emprego de forma involuntária. Em geral, tem direito ao subsídio de desemprego quem tenha estado vinculado por contrato de trabalho e esteja em situação de desemprego involuntário ou tenha suspendido o contrato de trabalho com fundamento em salários em atraso e, em qualquer caso, tenha capacidade e disponibilidade para o trabalho e esteja inscrito para procura de emprego no centro de emprego da área de residência (Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro, alterado, por último, pelo Decreto-Lei n.º 64/2012, de 15 de março).
Num caso como no outro, estamos perante prestações contributivas (incluídas no regime geral de segurança social contributivo e obrigatório) e substitutivas de rendimento de trabalho (sistema previdencial).
Cumpre, ainda, salientar que, tendo a norma do artigo 117.º natureza orçamental, aplica-se-lhe o correspondente regime de vigência anual (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição).
86. Quer o regime do subsídio por doença, quer o regime do subsídio de desemprego sofreram recentes alterações, por via, respetivamente, dos citados Decretos-Leis n.ºs 133/2012 e 64/2012, que, pelo menos em parte, e como expressamente se refere nos respetivos preâmbulos, foram ditadas pela atual situação económica e financeira do País e pela necessidade de cumprimento das medidas constantes do Memorando de Entendimento.
Tais alterações, no âmbito da proteção na eventualidade de doença, traduziram-se essencialmente na adequação das percentagens de substituição do rendimento perdido em função de novos períodos de atribuição do subsídio de doença, protegendo-se diferentemente períodos de baixa até 30 dias e períodos mais longos, entre 30 e 90 dias; na introdução de uma majoração de 5% das percentagens para os beneficiários cuja remuneração de referência seja igual ou inferior a €500, que tenham três ou mais descendentes a cargo, em determinadas condições; na alteração da forma de apuramento da remuneração de referência nas situações de totalização de períodos contributivos, passando a considerar-se o total das remunerações desde o início do período de referência até ao dia que antecede a incapacidade para o trabalho.
No caso do subsídio de desemprego, procedeu-se à majoração temporária de 10% do respetivo montante nas situações em que ambos os membros do casal sejam titulares de subsídio de desemprego e tenham filhos a cargo, abrangendo esta medida igualmente as famílias monoparentais; foi reduzido de 450 para 360 dias o prazo de garantia para o subsídio de desemprego; foi introduzida uma redução de 10% sobre o valor do subsídio a aplicar após 6 meses de concessão, como forma de incentivar a procura ativa de emprego; reduziu-se o limite máximo do montante mensal, mantendo-se os valores mínimos; reduziu-se o período de concessão do subsídio, possibilitando-se a ultrapassagem desse limite para trabalhadores com carreira contributiva mais longa; criou-se a possibilidade do pagamento parcial do montante único das prestações de desemprego.
87. O Relatório sobre o Orçamento de Estado para 2013 não se refere especificamente à “contribuição” a que as prestações por doença e desemprego passaram a estar sujeitas, nos termos do artigo 117.º aqui questionado. No entanto, infere-se do “Relatório sobre a Sustentabilidade Financeira da Segurança Social”, anexo àquele Relatório (pág. 261) que o sistema previdencial tem vindo a revelar uma tendência deficitária de 2006 para 2012 (com exceção de 2008) e que «o momento atual, com a diminuição das receitas contributivas e o aumento da despesa com prestações sociais, conduz a uma revisão dos cenários e ao reforço da necessidade de se virem a tomar medidas estruturais que contrariem esta tendência». Ao longo do citado Relatório sobre o Orçamento de Estado há várias referências ao aumento da despesa com prestações sociais, em particular, com o subsídio de desemprego (págs. 29, 30, 42 e 264) e salienta-se a necessidade de operar «um esforço financeiro suplementar do Orçamento de Estado que assegura o equilíbrio da situação orçamental do sistema de segurança social com uma transferência extraordinária» (pág. 121).
88. A “contribuição” agora prevista tanto pode ser vista como uma redução do montante das prestações de subsídio por doença e de subsídio de desemprego, tendo em conta que diminui as despesas com as referidas prestações no âmbito do orçamento da segurança social (qualificação que lhe é atribuída pelos requerentes), como uma contribuição (tal como é designada pela própria lei), na medida em que constitui obrigatoriamente uma receita do sistema previdencial (artigo 117.º, n.º 4), traduzindo uma receita para o orçamento da segurança social a suportar pelos próprios beneficiários ativos, apresentando, neste ponto, alguma similitude com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade a que se refere o artigo 78º da Lei do Orçamento do Estado, aplicável aos aposentados e reformados, e já antes analisada.
Em relação à contribuição incidente sobre os subsídios por doença e desemprego, afigura-se ser, em todo o caso, mais evidente a sua caracterização como medida de redução de despesa, tendo em conta que, contrariamente ao que sucede com a CES, é exclusivamente no interior do sistema público, que se processa e paga o subsídio, que se obtém o resultado orçamental pretendido, por minoração do conteúdo da posição creditória dos beneficiários de uma prestação previdencial. O valor da contribuição é, na verdade, descontado na importância a receber pelo beneficiário, por compensação parcial entre crédito e débito, tudo se passando como se a prestação a que o beneficiário tem direito fosse reduzida no seu montante.
E é este, em último termo, o efeito prático produzido na esfera dos obrigados à “contribuição” e que tem correspondência direta no modus operandi legalmente previsto para a sua efetivação, por força do n.º 4 do artigo 117.º, quando aí se dispõe que a contribuição é «deduzida pelas instituições de segurança social do montante das prestações por elas pagas».
A circunstância de se tratar de uma “contribuição” que obedece a uma taxa fixa, de montante reduzido, invariável e não progressiva, sem qualquer isenção na base, incidente sobre uma prestação decorrente de situações eventuais e não certas, como a pensão por reforma ou aposentação, reforça o entendimento de que estamos perante uma situação que se não enquadra no universo tributário, tratando-se antes de uma redução do montante dos subsídios a que têm direito.
89. Porém, mesmo que entenda tratar-se de uma medida de natureza tributária destinada a obter uma receita suplementar para o sistema previdencial da segurança social, não pode deixar de qualificar-se essa medida como um tributo parafiscal equivalente às contribuições para a segurança social, ainda que incidindo sobre os sujeitos ativos da relação prestacional, e que, pela sua própria natureza, e à semelhança do que também sucede com a CES, não se encontra subordinada aos princípios da constituição fiscal, e, designadamente, aos princípios da unicidade e da universalidade do imposto.
A incidência de uma obrigação contributiva sobre os próprios beneficiários ativos, isto é, sobre aqueles que, em determinado momento, se encontram na situação de risco social que é coberto pelo pagamento de prestações substitutivas dos rendimentos de trabalho, poderá pôr em causa, num sentido estrito, o princípio da contributividade e a correlação entre a quotização e o direito no futuro a uma prestação social, mas não descaracteriza, em si, a relação jurídica contributiva, ou seja, a existência de uma relação jurídica do tipo tributário.
A sobrecarga contributiva fixada nestes termos, que vai onerar precisamente as categorias de sujeitos que se encontram numa posição de vulnerabilidade - em razão da qual foi organizado o sistema de proteção -, não suscita em si um problema de invalidade constitucional por referência ao direito à segurança social (artigo 63º, n.º 3, da Constituição), constituindo antes um desvio ao funcionamento do sistema, na medida em que introduz uma nova modalidade de financiamento da segurança social que abarca os próprios beneficiários das prestações sociais. Podendo apenas discutir-se, em tese geral, a razoabilidade ou a proporcionalidade da medida.
Assim sendo, mesmo na perspetiva de que estamos perante uma receita do sistema previdencial, a questão que é colocada pelos requerentes reconduz-se a saber se é constitucionalmente legítimo, por referência aos princípios decorrentes dos artigos 59º, n.º 1, alíneas e) e f), e 63º da Lei Fundamental, operar a diminuição do montante pecuniário que é devido nas situações de doença ou desemprego. E a resposta a essa questão não será diversa daquela que puder ser formulada quando se entenda, diferentemente, que o artigo 117º da Lei do Orçamento não pretendeu mais do que instituir uma medida de redução de despesa.
90. O n.º 3 do artigo 63.º da Constituição, inserido no capítulo dedicado aos “Direitos e deveres sociais”, estabelece que «[o] sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho». Especificamente quanto aos trabalhadores que “involuntariamente se encontrem em situação de desemprego”, o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), inserido no capítulo dedicado aos “Direitos e deveres económicos”, confere expressamente a esses trabalhadores o direito a “assistência material”. Assim, o subsídio de desemprego, que tem uma «função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado», constitui um «direito fundamental dos trabalhadores», embora a sua concretização esteja dependente das «disponibilidades financeiras e materiais do Estado» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág. 1160, e acórdão n.º 275/2007).
A inserção sistemática do artigo 59.º revela que os direitos consagrados neste preceito são configurados como direitos económicos, sociais e culturais, ainda que algumas das dimensões dos direitos aí enunciados possam ter uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias, aplicando-se-lhes, quando assim seja, o regime dos direitos liberdades e garantias, nos termos do artigo 17.º (idem, pág. 1148).
Diversamente do que acontece com o subsídio de desemprego, não há, na Constituição, uma referência expressa à assistência material por doença não profissional. O âmbito de tutela da alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição abrange apenas os acidentes de trabalho e as doenças profissionais, pelo que esse preceito, contrariamente ao invocado, não fornece um parâmetro adequado de fiscalização da norma aqui questionada. No ordenamento infraconstitucional, esse direito está concretizado nas prestações por riscos profissionais, designadamente prestações por incapacidade e por morte. Diversamente, a “doença” que permite acionar o subsídio aqui em causa é necessariamente uma doença não profissional e não decorrente de acidente de trabalho.
No entanto, como referem os autores há pouco citados (ob. cit., pág. 1161), «da conjugação do artigo 59.º, n.º 1, alínea e), com o artigo 63.º, n.º 3, resulta que a lei deve prever formas de assistência material aos trabalhadores que, não estando desempregados, se encontram, por outro fundamento (v. g. doença), impedidos temporariamente da prestação de trabalho, sem prejuízo da liberdade de conformação do legislador (v. g. excluindo o subsídio de doença nos primeiros dias de faltas ao trabalho)». Pode até sustentar-se que o disposto no n.º 3 do artigo 63.º basta para fundar tal conclusão, pois, sendo a doença aí encarada como causa de incapacidade para o trabalho e da consequente perda de remuneração, a proteção que, por imperativo constitucional, o sistema de segurança social deve assegurar, contra essa eventualidade, não pode deixar de abarcar, sob pena de um défice de tutela, formas de assistência material.
91. Em suma, a Constituição assegura diretamente um direito dos trabalhadores a assistência material quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego e dirige um comando ao legislador no sentido de este prever, no sistema de segurança social, formas de assistência material aos trabalhadores em situação de doença. Foi este o imperativo a que o legislador deu execução, no âmbito do subsistema previdencial, através dos regimes jurídicos de proteção social nas eventualidades de desemprego e doença.
No entanto, a Constituição não assegura o direito a um concreto montante de assistência material, mesmo em caso de desemprego, pelo que a irredutibilidade dos montantes prestacionais não se inclui no âmbito de proteção do direito dos trabalhadores à assistência material em situação de desemprego e, por maioria de razão, no âmbito do direito à assistência em situação de doença.
Só assim não seria se a redução em causa fosse de tal ordem que descaracterizasse estas prestações, inviabilizando a função previdencial por elas desempenhada (substituição das remunerações) e dando-lhes um cunho que pouco as diferenciaria das prestações assistencialistas. Mas não será esse o caso de uma redução na ordem dos 5% ou 6%, como a que aqui está em causa.
Por outro lado, quer no caso do subsídio de desemprego quer no caso do subsídio por doença, a contribuição agora imposta é acompanhada por outras medidas de sentido inverso, que aumentam as prestações a que têm direito, em determinados casos específicos, os trabalhadores em situação de desemprego involuntário ou os trabalhadores doentes. Será este o efeito da majoração do montante do subsídio de desemprego quando ambos os cônjuges estejam desempregados e tenham filhos (artigo 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013), ou da alteração da forma de apuramento da remuneração de referência relevante para o subsídio de doença, a qual passa a considerar o total das remunerações desde o início do período de referência até ao dia que antecede a incapacidade para o trabalho – artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 133/2012.
Ora, o cumprimento do programa constitucional de proteção dos cidadãos na doença e no desemprego, depende, em cada momento histórico, de fatores financeiros e materiais, sendo tarefa do legislador definir o elenco das situações que carecem de proteção e o conteúdo do correspondente direito social.
O que tem aplicação no caso vertente. E é tanto mais assim quanto é certo, pelo menos em face dos dados normativos atualmente vigentes, estarmos perante uma medida excecional, de caráter transitório, uma vez que as reduções das prestações devidas aos beneficiários de subsídio de doença e de desemprego apenas se encontram previstas para o corrente ano orçamental.
Nestes termos, tudo induz a concluir que a norma não é constitucionalmente desconforme por referência aos parâmetros invocados pelo requerente.
92. Uma dificuldade séria é, no entanto, suscitada pela ausência de uma qualquer cláusula de salvaguarda que impeça que os montantes pecuniários correspondentes aos subsídios de doença e de desemprego, por força da dedução agora prevista, possam ficar abaixo do limite mínimo que o legislador fixou, em geral, para o conteúdo da prestação devida para qualquer dessas situações.
Sendo o montante diário do subsídio de doença calculado pela aplicação à remuneração de referência de uma percentagem variável em função da duração do período de incapacidade para o trabalho ou da natureza da doença (artigo 16º do Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, na redação por último introduzida pelo Decreto-Lei n.º 133/12, de 27 de junho), determina o artigo 19º desse diploma que esse montante diário não pode ser inferior a 30% do valor diário da retribuição mínima mensal estabelecida para o setor de atividade do beneficiário, ainda que não possa ser superior ao valor líquido da remuneração de referência que lhe serviu de base de cálculo (n.ºs 1 e 3).
Por outro lado, o montante diário do subsídio de desemprego, fixado em 65% da remuneração de referência e já reduzido em 10% a partir de 180 dias de concessão (artigo 28º do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro, na redação do Decreto-Lei n.º 64/2012, de 15 de março), não pode ser inferior, em regra, ao valor do indexante dos apoios sociais (artigo 29º, n.º 1), que se encontra fixado atualmente em €419,22 (artigo 79º da Lei n.º 64-B/2011, de 20 de dezembro).
Não está, por conseguinte, excluído que a contribuição sobre subsídios de doença e desemprego, implicando, na prática, uma redução dos montantes pecuniários a que os beneficiários têm direito, venha a determinar que a prestação a auferir fique, em certos casos, aquém do nível mínimo que foi já objeto de concretização legislativa e que se encontra sedimentado por referência a uma certa percentagem da retribuição mínima mensal, no caso do subsídio por doença, ou ao indexante dos apoios sociais, no caso do subsídio de desemprego.
93. Uma tal solução pode confrontar-se, desde logo, com o princípio da proporcionalidade, que impõe que a solução normativa se revele como idónea para a prossecução dos fins visados pela lei, se mostre necessária por não ser viável ou exigível que esses fins sejam obtidos por meios menos onerosos para os direitos dos cidadãos, e se apresente ainda como uma medida razoável, e, por isso mesmo, não excessiva ou desproporcionada (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, ppág. 392-393).
Pretendendo o legislador reforçar o financiamento da segurança social e contrariar o défice resultante da diminuição de receitas contributivas e do aumento de despesa com as prestações sociais, dificilmente se poderá conceber como adequada uma medida que, sem qualquer ponderação valorativa, atinja aqueles beneficiários cujas prestações estão já reduzidas a um montante que o próprio legislador, nos termos do regime legal aplicável, considerou corresponder a um mínimo de sobrevivência para aquelas específicas situações de risco social.
Por outro lado, uma tal opção legislativa é de todo desrazoável, quando é certo que ela atinge os beneficiários que se encontram em situação de maior vulnerabilidade por não disporem de condições para obterem rendimentos do trabalho para fazer face às necessidades vitais do seu agregado familiar, e abrange as prestações sociais que precisamente revestem uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado, e que era suposto corresponderem, no limite, ao mínimo de assistência material que se encontrava já legalmente garantido.
94. Além disso, justifica-se questionar se não poderá estar aí em causa a garantia da existência condigna.
O Tribunal Constitucional, como já foi referido a seu tempo a propósito da norma do artigo 29º, n.º 2, sem pôr em causa a liberdade de conformação do legislador na definição do conteúdo dos direitos sociais a prestações, a quem são dirigidas, em primeira linha, as diretrizes constitucionais, tem vindo a reconhecer, ainda que indiretamente, a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente condigna ou a um mínimo de sobrevivência, seja a propósito da atualização das pensões por acidentes de trabalho (acórdão n.º 232/91), seja a propósito da impenhorabilidade de certas prestações sociais (acórdãos n.ºs 62/02, 349/91, 411/93, 318/99, 177/02), fundando um tal direito na conjugação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à segurança social em situações de carência, e estabelecendo como padrão o salário mínimo nacional ou o salário mínimo garantido. O direito às condições mínimas de existência condigna foi evidenciado, por outro lado, mais recentemente, através do acórdão n.º 509/02, não apenas na sua dimensão negativa, mas como um direito a prestações positivas do Estado, num caso em que se pronunciou pela inconstitucionalidade de um diploma que limitava o âmbito subjetivo dos beneficiários de uma determinada prestação, dela excluindo os jovens entre os 18 e os 25 anos sem encargos familiares.
Sabe-se que através da atribuição de prestações sociais por doença ou desemprego, o que se tem em vista não é assegurar os mínimos vitais de cidadãos em situação de carência económica e contribuir para a satisfação das suas necessidades essenciais, mas antes garantir, no âmbito do sistema previdencial, assente num princípio de solidariedade de base profissional, o pagamento de prestações pecuniárias destinadas a compensar a perda da remuneração por incapacidade temporária para o trabalho ou impossibilidade de obtenção de emprego.
Os limites mínimos que o legislador fixa para essas prestações compensatórias, ainda que não tenham por referência os critérios de fixação do salário mínimo nacional, não deixam de constituir a expressão de um mínimo de existência socialmente adequado.
No caso, a norma sindicada, ao instituir a contribuição sobre os subsídios de doença e de desemprego, não salvaguardou a possibilidade de a redução do montante que resulta da sua aplicação vir a determinar o pagamento de prestações inferiores àquele limite mínimo, não garantindo o grau de concretização do direito que deveria entender-se como correspondendo, na própria perspetiva do legislador, ao mínimo de sobrevivência de que o beneficiário não pode ser privado.
Embora não possa pôr-se em dúvida a reversibilidade dos direitos concretos e das expectativas subjetivamente alicerçadas, não pode deixar de reconhecer-se que haverá sempre de ressalvar, ainda que em situação de emergência económica, o núcleo essencial da existência mínima já efetivado pela legislação geral que regula o direito às prestações nas eventualidades de doença ou desemprego, pelo que poderá estar, também, aqui em causa o parâmetro constitucional da existência condigna.
O Tribunal pronuncia-se, nestes termos, no sentido da inconstitucionalidade da sobredita norma do artigo 117º, n.º 1.
J. Alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (artigo 186.º, na parte em que altera os artigos 68.º, 68.º-A, 78.º e 85.º)
1. Alteração dos escalões de rendimento coletável do IRS (artigos 68º e 68º-A)
95. Os mesmos requerentes questionam ainda a constitucionalidade do artigo 186.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, na parte em que altera os artigos 68.º, 78.º e 85.º e adita o artigo 68.º-A ao Código do IRS.
A Lei veio reduzir o número de escalões de rendimento coletável de oito para cinco e, em geral, aumentar as taxas normais e médias aplicáveis a cada escalão. A comparação mais detalhada entre o regime anterior e o atual revela o seguinte:
? Foram fundidos os anteriores dois primeiros escalões (o escalão inicial até €4 898 e o 2.º escalão balizado entre €4 898 e €7 410, aos quais se aplicavam taxas normais de 11% e 14%, respetivamente), passando o 1.º escalão a abranger o rendimento coletável até €7 000, com uma taxa normal de 14,5%. Manteve-se inalterada a regra do “mínimo de existência”, no âmbito da qual não são tributados os sujeitos titulares de rendimentos predominantemente originados em trabalho dependente ou em pensões, com «um rendimento líquido de imposto inferior ao valor anual da retribuição mínima mensal acrescida em 20%» [em 2011 e 2012, € 8148 (485x14=6790x20%)] ou «cuja matéria coletável, após aplicação do quociente conjugal, seja igual ou inferior a €1911» (artigo 70.º do CIRS, na redação dada pela citada LOE2012);
? O atual 2.º escalão (rendimento coletável entre €7000 e € 20 000 ao qual se aplicam taxas normal e média de 28,5% e 23,6%, respetivamente) corresponde ao anterior 3.º escalão (que se situava entre €7410 e €18375, com taxas normal e média de 24,5% e 19,599%);
? O atual 3.º escalão (rendimento coletável entre €20 000 e €40 000, ao qual se aplicam taxas normal e média de 37% e 30,3%, respetivamente) corresponde ao anterior 4.º escalão (que se situava entre €18375 e €42 259, com taxas normal e média de 35,5% e 28,586%);
? O atual 4.º escalão (rendimento coletável entre €40 000 e €80 000, ao qual se aplicam taxas normal e média de 45% e 37,65%, respetivamente) corresponde ao anteriores 5.º, 6.º e, em parte, 7.º escalões (que se situavam: o 5.º escalão, entre €42 259 e €61 244, com taxas normal e média de 38% e 31,5040%; o 6.º escalão, entre €61 244 e €66 045, com taxas de 41,5% e 32,2310%; e o 7.º escalão, entre €66 045 e €153 300, com taxas de 43,5% e 38,6450%);
? O 5.º e último escalão (rendimento coletável superior a €80 000, ao qual se aplica a taxa de 48%) corresponde aos anteriores 7.º (em parte) e 8.º escalões (o 7.º escalão abrangia rendimentos coletáveis entre €66 045 e €153 300, com taxas de 43,5% e 38,6450%; e o 8.º escalão incluía os superiores a €153 300, com uma taxa de 46,5%);
? A taxa adicional de solidariedade aplica-se ao rendimento coletável incluído no último escalão e é de 2,5% nos rendimentos entre €80 000 e €250 000 e de 5% nos rendimentos superiores a €250 000 (enquanto que a anterior “taxa de solidariedade” era de 2,5% e aplicava-se a rendimentos superiores a €153 300, limite inferior do anterior 8.º escalão).
Do exposto, forçoso é concluir que as alterações aos artigos 68.º e 68.º-A do CIRS, operadas pela Lei n.º 66-B/2012, conduzem a um agravamento da carga fiscal, resultante, quer da redução do número de escalões, quer do aumento das taxas normais e médias aplicáveis a cada escalão. Como se lê no Relatório sobre o Orçamento do Estado para 2013 (pág. 67), «tendo em conta as alterações propostas estima-se, para o total da economia, que a taxa média de IRS aumente dos atuais 9.8% para 11.8%, quando se considera apenas as alterações à estrutura de escalões e taxas de IRS.» Aí se refere, também, que as «alterações introduzidas na estrutura de taxas de IRS, embora contribuam para aumentar a receita cobrada em sede de IRS, procuraram combinar, por um lado, a salvaguarda das famílias de mais baixos rendimentos através da manutenção do mínimo de existência, e por outro, aumentar a progressividade do imposto» e que «[e]mbora as alterações propostas em sede de IRS tenham sido desenhadas de modo a distribuir o esforço por uma parte significativa da população […] uma parte muito significativa da carga fiscal está concentrada nos agregados de maior rendimento, deste modo, os contribuintes situados dois últimos decis contribuem com cerca de 86% do total de receita cobrada neste imposto» (págs. 65-66).
96. Os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2013 consideram que estas alterações aos escalões e taxas do IRS violam o princípio da progressividade, em síntese, porque o respeito deste princípio não se satisfaz com a mera existência de mais do que um escalão, e porque tal alteração reduz a progressividade de forma incompatível com a Constituição.
A questão da progressividade dos escalões do imposto sobre o rendimento pessoal não foi, até à data, diretamente analisada pelo Tribunal Constitucional. No acórdão n.º 399/2010, o Tribunal debruçou-se sobre duas alterações ao artigo 68.º, n.º 1, do CIRS (efetuadas pelas Leis n.ºs 11/2010 e 12-A/2010) que introduziram um novo escalão e novas taxas no imposto sobre o rendimento pessoal. No entanto, as questões de constitucionalidade aí tratadas em nada se assemelham à que agora é colocada, pois naquele aresto esteve essencialmente em causa a (ir)retroatividade de tais medidas.
No caso em apreço, a única questão que é colocada pelos requerentes é a da compatibilidade destas normas com o princípio da progressividade fiscal, pelo que é esta a questão que será agora objeto de análise.
97. O sistema fiscal, ou seja, o conjunto (articulado e integrado) dos impostos, tem dois objetivos essenciais constitucionalmente definidos: a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza (artigo 103.º, n.º 1, da Constituição).
Ora, como salientam Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 1089), esta vinculação do sistema fiscal à ideia de justiça social e à diminuição da desigualdade na distribuição social dos rendimentos e da riqueza exige que o mesmo seja progressivo.
Essa exigência está expressamente consagrada no âmbito da tributação do rendimento pessoal. De acordo com o n.º 1 do artigo 104.º, o imposto sobre o rendimento pessoal visa «a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».
A progressividade fiscal requer que a relação entre o imposto pago e o nível de rendimentos seja mais do que proporcional, o que só pode alcançar-se aplicando aos contribuintes com maiores rendimentos uma taxa de imposto superior. Por outras palavras, há progressividade quando o valor do imposto aumenta em proporção superior ao incremento da matéria coletável.
A progressividade é passível de mais do que uma justificação teórica. Numa certa perspetiva, ela surge associada ao princípio da capacidade contributiva, à luz da teoria marginalista, segundo a qual «o rendimento vale tanto menos para o contribuinte quanto maior ele é» (cfr. autores citados em Sérgio Vasques, Capacidade Contributiva, Rendimento e Património, Fiscalidade, Revista de Direito e Gestão Fiscal, 23, julho-setembro 2005, Separata, págs. 15-45). Para os defensores desta perspetiva, «o princípio da capacidade contributiva exige que os contribuintes sejam tratados com igualdade e que os seus pagamentos impliquem um sacrifício igual para cada um deles, resultando daí que a tributação progressiva será mais justa que a proporcional, pois que o sacrifício objetivo que é imposto pela tributação é tanto menor quanto maior for o rendimento» (Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, 4.ª edição, Coimbra, pág. 195).
Ao controlo de constitucionalidade interessa apenas um conceito normativo de progressividade, ajustado às opções de valor que informam toda a Constituição.
98. Progressividade é um conceito indeterminado, suscetível de graus muito diversificados de concretização. E não é possível inferir do imperativo constitucional o grau de amplitude que, em concreto. permita satisfazer o requisito de progressividade exigível. Ainda que mais detalhada, em domínio fiscal, do que muitas outras leis fundamentais, a Constituição portuguesa não se pronuncia sobre o número de escalões nem sobre a grandeza das taxas respetivas, questões que são deixadas à margem de apreciação político-legislativa. Na verdade, o grau de progressividade, assim como o nível de tributação, a carga fiscal ou a relação entre os diferentes impostos são questões de “política fiscal” que é, ela própria, um instrumento de política governamental (neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 1102).
Mas isso não significa que a Constituição não tenha estabelecido, nesta matéria, um conjunto de vinculações objetivas, que condicionam intensamente a ordem infraconstitucional e a liberdade do legislador ordinário, sobretudo quanto ao imposto sobre o rendimento pessoal.
Como contexto mais amplo (e também mais difuso) de referências valorativas, há a reter que a ordem constitucional comete ao Estado, especificamente através da política fiscal, a incumbência de operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (artigo 81.º, alínea b)).
No âmbito específico da “constituição fiscal”, estabelece-se a funcionalização do sistema fiscal a uma justa repartição dos rendimentos e da riqueza, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas (artigo 103.º, n.º 1).
Como corolário, prescreve-se, no artigo 104.º, n.º 1, visando a “diminuição das desigualdades”, a progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.
Numa interpretação articulada do conjunto dos segmentos do disposto no artigo 104.º, n.º 1, e integrada no contexto das opções constitucionais que enquadram esse regime, impõe-se a conclusão de que a progressividade aí expressamente consagrada é “um elemento intrínseco do Estado social configurado na Constituição” (assim, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., pág. 1089; Estabelecendo também uma ligação da progressividade ao princípio do estado social, Casalta Nabais, ob. cit., págs. 555-577).
99. Tendo isso presente, é seguro que nem todos os modos e graus de concretização de progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal satisfazem a exigência constitucional. Esse elemento conformador dessa espécie de imposto é estabelecido como forma de cumprimento, constitucionalmente vinculada, da tarefa que cabe ao sistema fiscal, no seu conjunto, de promover uma justa repartição dos rendimentos e da riqueza. Consequentemente, a Constituição exige mais do que uma qualquer progressividade, exige uma progressividade com a virtualidade intrínseca de contribuir para uma diminuição da desigualdade de rendimentos.
Assim, à luz da Constituição, não é possível validar um sistema de “progressividade mínima”, traduzido na existência de uma taxa única, proporcional (flat tax), associada à garantia da não tributação do rendimento correspondente ao mínimo de existência. Como salienta Saldanha Sanches (Manual de Direito Fiscal, pág. 237), o objetivo constitucional da “repartição justa dos rendimentos” não é compatível com uma progressividade mínima, pois a existência de um imposto de rendimento pessoal que vise a “diminuição das desigualdades” implica «um grau mais elevado de progressividade do que aquele que existe num sistema que, sem conter preocupações redistributivas, se limita a não tributar os rendimentos mínimos».
No caso em apreço, as alterações operadas pela Lei do Orçamento não são reconduzíveis a uma situação de mera proporcionalidade ou sequer de progressão mínima. O sistema continua a revelar suficiente sensibilidade à diferença de níveis de rendimento para se poder concluir que a fração livre de imposto é proporcionalmente mais elevada para os rendimentos mais baixos, com um assinalável grau de progressão.
Na verdade, o rendimento coletável continua a ser distinguido através da sua distribuição por um número considerável de escalões (cinco), suficientemente diferenciador de vários níveis de rendimento, aos quais são aplicáveis taxas progressivas, ou seja, crescentemente mais elevadas à medida que aumenta a matéria coletável (efeito que é acentuado pela existência de taxas normais e taxas médias dentro de cada escalão, com exceção do último).
A redução do número de escalões, ainda que associada a um aumento generalizado das taxas correspondentemente aplicáveis, deixa ainda de pé uma taxação progressiva, da qual não pode ser afirmado que se revela manifestamente inadequada a uma justa repartição de rendimentos. É certo que a diminuição do número de escalões coloca dentro do mesmo escalão rendimentos muito diferentes (há escalões em que o limite mínimo do rendimento coletável é metade do seu limite máximo) e essa diferença não será totalmente esbatida pela regra do n.º 2 do artigo 68.º que determina a divisão do quantitativo do rendimento coletável em duas partes e a correspondente aplicação de taxas diferenciadas: a taxa média (tendencialmente mais baixa) a uma parte do rendimento e a taxa normal ao excedente.
No entanto, ainda que as alterações aos escalões possam corresponder a uma certa diminuição do grau de progressividade, ela não é, em si mesma, inconstitucional. Concretamente, o número de escalões agora fixado (cinco), a existência de taxas diferenciadas e progressivas para os diversos escalões e a existência de duas taxas dentro de cada escalão (com exceção do primeiro), não permitem concluir pela violação do princípio constitucionalmente estabelecido, pois, ainda que o grau de progressividade tenha sido reduzido, essa redução situa-se na margem de livre conformação da política fiscal. Só não o seria se da nova configuração se pudesse afirmar – o que não é o caso – que ela ostensivamente não contribui para a repartição justa dos rendimentos.
100. O mesmo se diga relativamente à “taxa adicional de solidariedade” consagrada no artigo 68.º-A do CIRS. Esta corresponde a uma verdadeira “taxa adicional”, na medida em que “apenas” eleva a taxa aplicável ao último escalão, sendo certo que, com a alteração operada pela Lei do Orçamento, tal aumento é agora dotado de maior progressividade, nos termos acima referidos. Acresce que, contrariamente à alteração operada ao artigo 68.º, a manutenção de uma “taxa adicional de solidariedade” não pode deixar de se entender como limitada ao ano orçamental em curso, atenta a natureza extraordinária da medida em causa.
Por isso e também pelas razões já aduzidas a propósito da alteração da estrutura dos escalões e das taxas gerais previstas no artigo 68.º, não se afigura que a referida taxa adicional de solidariedade se apresente desconforme à Constituição.
Pelo exposto, o Tribunal pronuncia-se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 186.º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, na parte em que alterou os artigos 68.º e 68.º-A do CIRS.
2. Redução das deduções à coleta (artigos 78.º e 85.º CIRS)
101. As alterações operadas pela Lei do Orçamento do Estado para 2013 aos artigos 78.º e 85.º do CIRS, que os requerentes questionam, consubstanciam uma redução dos limites estabelecidos para as deduções à coleta relativas a despesas de saúde, de educação e formação, respeitantes a pensões de alimentos, encargos com lares e com imóveis e equipamentos novos de energias renováveis (78.º, n.ºs 7 e 8), bem como na redução do montante dos encargos com imóveis que são suscetíveis de dedução à coleta (85.º, n.º 1, alíneas a) a d)).
A revisão dos limites globais progressivos para as deduções à coleta (e para os benefícios fiscais) é apresentada, no Relatório do OE2013 (pág. 60), como uma medida fiscal do lado do aumento da receita, assim sumariada: «[s]ão, também, ajustados os limites globais progressivos para as deduções à coleta e para os benefícios fiscais, tendo em conta a nova tabela dos escalões do IRS, salvaguardando-se, contudo, os contribuintes do primeiro escalão (isentos da aplicação de qualquer limite ou teto máximo), o caso das pessoas com deficiência, bem como o princípio da proteção fiscal da família através da atribuição de uma majoração da dedução fiscal personalizante em função do número de filhos.»
Invocam os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2013, que as alterações no regime das deduções à coleta – na medida em que eliminam deduções ou que as colocam em patamares efetivamente simbólicos – não têm em conta as necessidades dos agregados familiares nem a real capacidade contributiva das famílias. Mais alegam, citando o acórdão n.º 84/2003, que o princípio da capacidade contributiva, não sendo irrelevante como parâmetro de aferição da constitucionalidade das normas de natureza fiscal, exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – critério esse em que a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica de cada um.
102. A questão que o Tribunal é chamado a resolver é a de saber se a redução ou eliminação da possibilidade de se efetuar deduções à coleta em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares é compatível com o princípio da capacidade contributiva (enquanto decorrência do princípio da igualdade fiscal) e com o princípio da consideração fiscal da família.
O problema não pode ser resolvido sem antes se esclarecerem devidamente os elementos que têm que ser postos em confronto: por um lado, determinar o alcance das normas questionadas, o que implica perceber qual o papel das “deduções à coleta”, no âmbito do IRS; por outro lado, esclarecer o posicionamento dos invocados princípios no plano constitucional, a fim de determinar o respetivo alcance paramétrico.
Para melhor compreender a função fiscal das “deduções à coleta”, importa relembrar como se apura o imposto em sede de IRS: ao rendimento bruto de cada categoria de rendimentos começam por ser feitos abatimentos automáticos, consoante a origem dos rendimentos, que são as denominadas “deduções específicas” (no caso dos rendimentos da categoria A, estão previstas nos artigos 25.º a 27.º do CIRS), obtendo-se o rendimento líquido de cada categoria que, depois de somado (englobamento), conduz ao “rendimento global líquido” que, após “dedução de perdas”, corresponde ao “rendimento coletável” (matéria coletável). Ao rendimento coletável apurado aplica-se a taxa do imposto (e o quociente conjugal, quando aplicável), assim se chegando (desde que salvaguardado o “mínimo de existência”, nos termos do artigo 70.º do CIRS) ao montante da coleta. É sobre esta que são feitas as deduções à coleta que, uma vez subtraídas, determinam o montante do imposto a pagar ou a receber.
Esta esquematização evidencia que, contrariamente às entretanto eliminadas “deduções à matéria coletável”, as atuais “deduções à coleta” não têm qualquer influência na determinação da taxa de imposto aplicável, pois não contribuem para diminuir o quantum sujeito a tributação, que vai determinar o escalão contributivo e a respetiva taxa. Como vimos, as deduções à coleta são efetuadas sobre o montante de imposto já apurado através da aplicação da taxa ao rendimento coletável.
A alteração (ocorrida em 1999) de considerar determinadas despesas como “deduções à coleta” (abatimentos ao próprio imposto) em vez de permitir que influenciassem a determinação do rendimento coletável através da anterior técnica das “deduções à matéria coletável” visou favorecer os sujeitos passivos com rendimento mais baixos em relação aos que têm rendimentos mais elevados. Na verdade, a conjugação do regime dos abatimentos (à matéria coletável) com as taxas progressivas, tende a resultar num maior benefício para os sujeitos com rendimentos mais elevados e a ser mais penalizador para os sujeitos passivos de baixos rendimentos, pois as deduções no cálculo da matéria coletável irão determinar o escalão em que se insere o sujeito passivo e a correspondente taxa, sendo que a redução do escalão corresponde a uma maior poupança para aqueles do que para estes (Saldanha Sanches, ob. cit., pág. 334).
No regime atual, as deduções à coleta abrangem, nomeadamente: a) as chamadas “deduções pessoais” (previstas no artigo 79.º CIRS), que correspondem a percentagens do valor do IAS, por cada sujeito passivo e por cada dependente, afilhado civil ou ascendente; b) as despesas, até determinado limite, designadamente, com a saúde, educação e habitação (artigos 78.º e 85.º, aqui questionados); c) determinados benefícios fiscais, tais como os relacionados com aplicações com planos poupança-reforma, prémios de seguro que cubram exclusivamente riscos de saúde e donativos (artigos 21.º, n.º 2, 74.º e 63.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais).
A soma das deduções à coleta previstas nos artigos 82.º, 83.º, 83.º-A, 84.º e 85.º (despesas com saúde, educação, pensões alimentos, lares e imóveis) não pode exceder os limites constantes da tabela do n.º 7 do artigo 78.º Por seu turno, a soma dos benefícios fiscais dedutíveis à coleta não pode exceder os limites constantes da tabela do n.º 2 do artigo 88.º do CIRS.
No caso em apreço, relembre-se, apenas estão em causa os limites das deduções à coleta aplicáveis à soma das deduções motivadas por despesas relacionadas com saúde, educação, pensões de alimentos, lares e imóveis (artigo 78.º, n.º 7, do CIRS) e, quando a estes últimos, também os limites dos montantes dedutíveis com encargos com imóveis (artigo 85.º, n.º 1).
Note-se que o atual conjunto das deduções à coleta não obedece a um critério orientador uniforme, antes corresponde ao acolhimento, pelo legislador ordinário, de situações muito diversas, cujo elemento comum é apenas o facto de constituírem despesas do sujeito passivo. Assim, as diferentes deduções à coleta têm um fundamento substantivo variável, dependente do tipo de despesas que são eleitas como dedutíveis.
No que aqui mais interessa, a consideração, como deduções à coleta, de certos encargos com a saúde, educação, lares ou habitação, reflete a perda da capacidade contributiva ligada a estas despesas. Isto é, estamos perante deduções pessoais ligadas à redução da capacidade contributiva que são usadas para determinar o rendimento líquido subjetivo. E que por isso têm de ser qualificadas como deduções pessoais ou abatimentos em sentido próprio – como formas de quantificação do imposto – e que conduzem à sua efetiva personalização (idem, pág. 335).
103. O princípio da capacidade contributiva representa uma certa conceção do sistema fiscal segundo a qual “cada contribuinte deve pagar na medida da sua capacidade”, opondo-se, assim, a uma conceção em função do princípio do benefício, que determinaria o dever de “cada um pagar na medida dos benefícios que recebe do Estado”.
Sendo certo que a Constituição não se refere expressamente ao princípio da capacidade contributiva, existe uma consistente construção doutrinária e jurisprudencial em torno desse conceito.
Sousa Franco (Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, citado, págs. 186-187), é perentório na afirmação de que a capacidade contributiva está subjacente à Constituição fiscal, extraindo-se da «forte personalização do imposto sobre o rendimento, com a consideração da situação do agregado familiar, fator que parece ser essencial – mas não único – para que se possa considerar que um sistema leva efetivamente em conta as faculdades contributivas». Saldanha Sanches (ob. cit., pág. 227), analisando a estrutura do sistema fiscal português que resulta dos artigos 103.º e 104.º da Constituição, conclui haver uma «definição indireta da capacidade contributiva como princípio estruturante do sistema através da tributação do rendimento». Casalta Nabais (ob. cit., págs. 445 e segs.) afirma que o princípio da capacidade contributiva extrai-se do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da Constituição. Também Sérgio Vasques (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, pág. 251), considera que o princípio da capacidade contributiva representa «o critério material de igualdade adequado aos impostos».
O Tribunal Constitucional, debruçando-se sobre um conjunto de normas da Lei Geral Tributária respeitante à avaliação indireta da matéria coletável, através de “métodos indiciários” ou de “presunções”, começou por afirmar que o princípio da capacidade contributiva não tem expressa consagração constitucional, sublinhando a dificuldade em «retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal», concluindo-se que, no caso aí em apreço, o princípio da capacidade contributiva não era sequer “parâmetro constitucional relevante” (acórdão n.º 84/2003).
Mas foi mais afirmativo em jurisprudência posterior. Reportando-se à admissibilidade constitucional de normas que estabelecem presunções em matéria tributária, veio a acolher o entendimento de que a capacidade contributiva, apesar da sua não consagração expressa na Constituição, mais não será do que «a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto» (cfr. acórdãos n.ºs 211/2003, 452/2003 e 601/2004).
É, assim, de reafirmar que o princípio da capacidade contributiva está implicitamente consagrado na Constituição, enquanto corolário tributário dos princípios da igualdade e da justiça fiscal e do qual decorre um comando para o legislador ordinário no sentido de arquitetar o sistema fiscal tendo em vista as capacidades contributivas de cada um.
A proposição mais elementar que flui do princípio da capacidade contributiva respeita ao modo de organizar a tributação, que, deverá necessariamente ser orientada para a seleção de fatos tributários que revelem a maior ou menor capacidade contributiva do sujeito, apontando-se, desde logo, o imposto sobre o rendimento, como o mais apto a espelhar a força económica dos contribuintes. Mas, como nota Saldanha Sanches (ob. cit., pág. 228), o princípio da capacidade contributiva padece de uma relativa “indeterminabilidade estrutural”, que coloca problemas na sua aplicação, quando confrontado com uma concreta solução legislativa. Essa indeterminação resulta do fato de, por um lado, o conceito de capacidade contributiva não caber numa definição exata e precisa, mas corresponder a um princípio ordenador do ordenamento jurídico tributário.
104. Das várias implicações inerentes à consideração da capacidade contributiva como critério estruturante do sistema fiscal, interessam agora, apenas, as que se relacionam com a necessidade de o imposto sobre o rendimento pessoal dever ter em conta «as necessidades e os rendimentos do agregado familiar» ? como expressamente se lê no n.º 1 do artigo 104.º da Constituição. Neste ponto, em particular, o conceito de capacidade contributiva associa-se à ideia de “personalização” do imposto, bem como à necessidade de considerar fiscalmente o agregado familiar.
A especificação constitucional que manda atender às necessidades e rendimentos do agregado familiar deve ser entendida como um comando para o legislador ordinário, que este está obrigado a respeitar na estruturação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, mas cujas implicações concretas, nos vários aspetos do respetivo regime, cabe ao legislador definir, desde que não ponha em causa o conteúdo essencial daquele comando constitucional (Casalta Nabais, ob. cit., pág. 530).
Concretamente, em matéria de deduções (objetivas e subjetivas) em sede de IRS, o legislador não pode deixar de ter uma ampla margem de apreciação, como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional. Como se salientou no acórdão n.º 173/2005, a respeito de “deduções específicas” (deduções objetivas, que correspondem a despesas indispensáveis à formação do rendimento), «matérias como a dos limites a deduções, sobretudo para rendimentos relativamente elevados, não podem considerar-se, à partida, como tipicamente merecedoras de uma estabilidade tal que as torne imunes a alterações, ou, mesmo, que possam fundar uma confiança digna de proteção na manutenção do respetivo regime».
105. O alcance das alterações questionadas, no caso vertente, é mais percetível se atentarmos na tabela constante do n.º 7 do artigo 78.º e confrontarmos a atual redação com que lhe tinha sido conferida pela Lei do Orçamento de Estado para 2012. Resulta dessa comparação que os limites para as reduções à coleta foram modificados nos seguintes termos:
? No escalão de rendimento coletável até €7000 (correspondente aos anteriores dois primeiros escalões, cujo limite superior era €7410), continuam a admitir-se deduções “sem limite”;
? No escalão de mais de €7000 até €20000, o limite é de €1250 (idêntico ao que vigorava para o anterior escalão de mais de €7410 até €18 375);
? No escalão de mais de €20 000 até €40 000, o limite foi reduzido para € 1000 (no anterior escalão de mais de €18 375 até €42 259, o limite era de €1 200);
? No escalão de mais de €40 000 até €80 000, o limite foi estabelecido em €500 (quando anteriormente o escalão entre €42 259 até €61 244 tinha um limite de €1 150; e o escalão entre €61 244 até €66 045 tinha um limite de €1 100);
? No último escalão, superior a €80 000, não há lugar a deduções (no regime anterior a inexistência de deduções começava no escalão de mais de €66 045).
Nos termos do n.º 8 do artigo 78.º, estes limites continuam a ser majorados em 10% por cada dependente ou afilhado civil que não seja sujeito passivo de IRS nos escalões com rendimento coletável entre €7 000 e €80 000 (anteriormente, esta majoração abrangia rendimentos coletáveis entre €7 410 e €66 045).
No que respeita às deduções dos encargos com imóveis (artigo 85.º) – que, relembre-se, devem ser somadas às demais deduções e, em qualquer caso, não podem exceder os limites globais constantes da citada tabela do n.º 7 do artigo 78.º – os limites baixaram de €591 para €296, quanto a importâncias relativas a juros de dívidas, prestações e rendas por contrato de locação financeira (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 85.º) e de €591 para €502, quanto a importâncias suportadas a título de renda, (alínea d) do n.º 1 do artigo 85.º).
Os escalões de rendimento coletável para efeito dos limites de deduções à coleta correspondem àqueles que se encontram definidos no artigo 68º para determinação da taxa aplicável ao imposto. E, assim, a redefinição dos limites às deduções resulta, em certa medida, da necessidade de adaptação à nova estrutura de escalões, que foi reduzida de sete para cinco níveis por efeito da alteração introduzida àquele preceito. Nos escalões intermédios, que situam logo acima do limiar em que não há restrição para as deduções, a alteração não é significativa. A redução dos limites das deduções é mais expressiva no atual 4.º escalão (rendimento coletável de mais de €40 000 até €80 000), pois o limite baixou para menos de metade (de €1 150 e € 1 100 passou para €500), embora a faixa superior deste escalão tenha passado a beneficiar da possibilidade de efetuar deduções (e da citada majoração por existência de dependentes ou afilhados civis), que anteriormente lhe estava vedada (rendimentos coletáveis entre €66 045 e €80 000). A exclusão de qualquer dedução, que operava, no regime precedente, a partir de rendimentos superiores a €66 045 (abrangendo os antigos 7º e 8º escalões), verifica-se agora a partir de rendimentos superiores a €80 000, a que corresponde atualmente o último escalão.
Em geral, estas alterações correspondem a uma diminuição dos descontos que cada sujeito passivo está autorizado a fazer ao imposto, embora tenha subido - como se referiu -, o limite do rendimento coletável a partir do qual não há lugar a deduções à coleta.
106. O maior grau de problematicidade quanto à conformidade constitucional do novo regime situa-se precisamente na redução substancial do limite das deduções à coleta nas situações em que o rendimento coletável oscila entre €40 000 até €80 000 e na total eliminação da possibilidade de dedução nos casos em que esse rendimento vai além deste último valor.
Há aqui objetivamente uma desconsideração da capacidade contributiva e do critério de tributação segundo as necessidades do agregado familiar, que tem como necessária consequência um agravamento do imposto a pagar por parte dos titulares de rendimentos mais elevados, contribuindo para diminuir o grau de personalização do imposto.
Não pode ignorar-se, em todo o caso, que as limitações às deduções à coleta operadas pela Lei do Orçamento do Estado de 2013 ocorrem num contexto de aumento generalizado da carga fiscal, em que um maior esforço de participação na satisfação os encargos públicos é exigido a todas as categorias de contribuintes a partir de um rendimento mínimo tributável.
Neste condicionalismo, pode entender-se que a adoção de soluções legislativas mais exigentes em relação a titulares de rendimentos mais elevados, no que se refere à dedução de despesas com a satisfação de necessidades básicas, como as de saúde, educação ou habitação – que esses contribuintes, em princípio, sempre estarão em condições de suportar -, pode ainda manter-se dentro dos critérios da constituição fiscal.
Um juízo de inadmissibilidade constitucional poderá colocar-se se entender que o princípio da capacidade contributiva impõe ao legislador infraconstitucional a previsão de deduções subjetivas, de forma a que o rendimento para a satisfação de necessidades básicas seja encarado como rendimento vinculado que o contribuinte não tem liberdade para o empregar de outro modo.
No entanto, e uma vez que – como se concluiu - o princípio da capacidade contributiva surge como um critério ordenador do sistema fiscal, que não fornece uma resposta precisa sobre quantum das deduções e os seus limites, não parece possível seguir essa outra via, e não pode deixar de enquadrar-se a opção consubstanciada nas alterações aos artigos 78.º e 85.º do CIRS dentro da margem de liberdade de conformação do legislador.
L. Sobretaxa em sede de IRS (artigo 187.º)
107. Os requerentes no Processo n.º 8/2013 invocam a inconstitucionalidade da norma do artigo 187º da Lei do Orçamento do Estado para 2013, que cria uma sobretaxa em sede de IRS, alegando, em síntese - para além da violação do caso julgado, que se já analisou antecedentemente -, que essa norma institui um novo imposto sobre o rendimento, sujeito a regras de retenção na fonte diversas das previstas para o IRS, e que, incidindo na proporção de 3,5% sobre todos os rendimentos, não respeita o princípio da unidade e da progressividade do imposto sobre o rendimento.
O citado artigo 187.º estabelece uma “sobretaxa em sede do IRS” de 3,5% que, na parte que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida (€485x14 = €6790), incide sobre o rendimento coletável, englobado nos termos do artigo 22.º do CIRS (ou seja, sobre o rendimento que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções específicas), acrescido dos rendimentos sujeitos às taxas especiais constantes do artigo 72.º, n.ºs 3, 6, 11 e 12 (rendimentos provenientes de gratificações, auferidos em atividades de “elevado valor acrescentado”, acréscimos patrimoniais não justificados e rendimentos de capitais devidos por entidades sedeadas fora de Portugal, em território sujeito a regime fiscal claramente mais favorável).
Ao montante do imposto devido a título de “sobretaxa” serão deduzidos os montantes referidos no n.º 2 do artigo 187.º: 2,5% do valor da retribuição mínima mensal garantida (€485x2,5% = €12,125) por cada dependente ou afilhado civil que não seja sujeito passivo de IRS e as importâncias retidas a título de retenção na fonte que, quando superiores à sobretaxa devida, conferem direito ao reembolso da diferença.
Do exposto resulta que a “sobretaxa em sede do IRS” está associada a este imposto, na medida em que incide sobre rendimentos apurados segundo regras do IRS (rendimento líquido englobado acrescido de determinados rendimentos sujeitos a taxas especiais), aplicando-se-lhe também as regras de liquidação e pagamento do IRS. No entanto, a referida “sobretaxa” apresenta elementos dissonantes das regras gerais do IRS:
? Tem uma taxa fixa (em vez de se lhe aplicarem as taxas gerais progressivas previstas no artigo 68.º do CIRS);
? É sujeita a um regime próprio de retenção na fonte (n.º 5 do artigo 187.º);
? Tem deduções à coleta próprias, quer quanto ao tipo de despesas atendíveis quer quanto aos seus limites (n.º 2 do artigo 187.º), distintas das previstas nos artigos 78.º e segs. do CIRS.
108. A obtenção de receita fiscal adicional, através do lançamento de uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS, já ocorreu em 2011, em plena execução orçamental, tendo sido politicamente fundamentada nas exigências de cumprimento do défice estabelecido para esse ano, no âmbito do PAEF, acordado com as instituições europeias e com FMI. Para esse efeito, a Lei n.º 49/2011, de 7 de setembro, veio estabelecer uma sobretaxa extraordinária de 3,5% para vigorar apenas no ano fiscal de 2011 (n.º 3 do artigo 2.º da citada Lei). Não obstante a transitoriedade da medida, ela foi consagrada através de um aditamento de duas normas ao CIRS (artigos 72.º-A e 99.º-A), cuja vigência entretanto caducou.
Na Lei do Orçamento do Estado para 2013, agora questionada, optou-se por técnica legislativa diversa: a sobretaxa em sede do IRS é agora consagrada, não em aditamento ao CIRS, mas em norma da própria lei do orçamento (artigo 187.º), sem que se faça qualquer referência à sua vigência temporal.
Não pode, no entanto, haver dúvida quanto ao caráter não permanente desta sobretaxa. É certo que o artigo 187.º não constitui uma mera discriminação de receitas e despesas do Estado, como é típico das normas com natureza especificamente orçamental. No entanto, como se salientou no acórdão n.º 396/2011, sobre norma diversa que colocava problema idêntico, estas são normas que «não podem ser consideradas cavaliers budgétaires, pois apresentam uma imediata incidência financeira, já que visam diretamente reduzir o valor das despesas [neste caso, aumentar as receitas] inscritas no orçamento para o ano a que respeita. Não pode, assim, sustentar-se que elas regulam matéria alheia à função específica e mais estrita do orçamento, enquanto instrumento de programação anual económico-financeira da atividade do Estado. Pelo contrário. Dando suporte normativo a uma dada previsão de despesas, e sendo a sua aplicação indispensável à sua correta execução, elas repercutem-se diretamente no próprio quadro contabilístico do orçamento, integrando-se substancialmente neste diploma, como sua componente essencial. E nisso parece esgotar-se a sua eficácia, pois não se projetam, com independência, para fora da aprovação e execução do Orçamento do Estado.»
Forçoso é, por isso, concluir que a sobretaxa em sede do IRS vertida no sobredito artigo 187.º constitui uma medida de caráter orçamental que, por força da regra do n.º 1 do artigo 106.º da Constituição, não pode gozar de vigência que não seja anual.
109. As questões de constitucionalidade que vêm entretanto suscitadas respeitam a saber se a sobretaxa é suscetível de violar os princípios da unidade e da progressividade do imposto sobre o rendimento, como tal consagrados no artigo 104º, n.º 1, da Constituição.
Para uma resposta afirmativa, quanto ao primeiro desses princípios, poderia concorrer a circunstância de a sobretaxa poder ser caracterizada como um imposto extraordinário ou um adicional extraordinário a um imposto, qualificação que foi, aliás, seguida no acórdão n.º 412/2012, a respeito da sobretaxa extraordinária de 2011 (ainda que se apreciasse aí apenas a validade constitucional da norma do artigo 2.º, n.º 4, da Lei n.º 49/2011, na parte em que fazia reverter integralmente a receita da sobretaxa para o Orçamento de Estado).
No entanto, e apesar de poder aceitar-se essa qualificação, não é evidente que implique uma violação ao princípio da unidade do imposto.
Deve começar por dizer-se, a este propósito, que o princípio acolhido no citado artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, levaria, no seu alcance máximo, à consagração de um “imposto único” que, englobando todos os rendimentos pessoais, submetesse essa base tributária a um regime unitário, a taxas iguais e progressivas, sem quaisquer distinções entre os diferentes tipos de rendimentos.
A unidade do imposto sobre o rendimento pessoal foi inscrita logo na versão originária da Constituição de 1976 (no então artigo 107.º), num contexto em que o sistema de impostos pré-constitucional assentava numa tributação parcelar (cedular) dos rendimentos, consoante a respetiva natureza (v.g. contribuição predial, industrial, imposto profissional) a que, mais tarde, foi adicionado um imposto complementar. Apesar do comando constitucional, o sistema cedular de tributação e a sua substituição pelo atual imposto sobre o rendimento das pessoas singulares só ocorreu com a reforma do sistema fiscal de 1984-1988, cujos objetivos foram assumidamente os da equidade, eficiência e simplicidade do sistema fiscal. E, ainda assim, essa reforma não atingiu plenamente a ideia da unidade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares: em sede de IRS mantêm-se, ainda hoje, diversos elementos de sentido contrário, designadamente, a utilização de várias categorias de rendimentos e, mais intensamente, a existência de taxas liberatórias para certas categorias de rendimentos.
Tendo isso presente, e a realidade pré-constitucional que a regra visou, em primeira linha, contrariar, ganha consistência a ideia de que é sobretudo a fragmentação de rendimentos pessoais, de acordo com as suas distintas fontes, e não tanto, como resulta da sobretaxa, a sobreposição de uma taxa suplementar às taxas já incidentes sobre um valor global de todo o rendimento pessoal, compreensivamente calculado, que põe em causa a observância da unidade.
Considerando a concentração de todos os rendimentos pessoais numa única base de incidência tributária como a dimensão essencial da regra constitucional da unidade, esta não é afetada, no fundamental, pelo regime da sobretaxa, não obstante as especificidades que ele apresenta, em relação ao do IRS. Os elementos dissonantes, incidindo aliás, em parte, sobre aspetos secundários, de pura “execção, como é a forma de liquidação, mais não representam do que uma acomodação (transitória) do sistema de imposto sobre o rendimento pessoal a interesses públicos relevantes. Essa iniciativa está incluída na margem de conformação que não pode deixar de caber ao legislador infraconstitucional, na medida em que a resposta normativa adequada a situações de grave dificuldade financeira do Estado exige juízos e ponderações que são próprios da função político-legislativa. E a resposta mantém-se dentro dos limites do constitucionalmente admissível, desde que não comprometa os valores, constitucionalmente tutelados, de igualdade e justiça fiscal, que incumbe à forma de tributação do rendimento pessoal contribuir para realizar, também através da regra da unidade.
110. Uma outra questão que se coloca é a de saber se a sobretaxa preenche o requisito da progressividade do imposto sobre o rendimento.
É sabido que a sobretaxa tem uma taxa fixa de 3,5%, que incide sobre os rendimentos que excedam, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida. Estamos assim perante um tributo que se afasta da lógica de progressividade que inspira o artigo 68º do Código do IRS, na medida em que pressupõe a aplicação de uma mesma taxa aos rendimentos cobertos pelo respetivo âmbito de incidência, independentemente dos montantes que, em cada caso, possam estar em causa. Não é possível, no entanto, afirmar que essa é uma taxa meramente proporcional. Estabelecendo a lei uma isenção até ao limite do valor anual da retribuição mínima mensal garantida, a subtração desse valor ao rendimento coletável, para efeito do cálculo da receita a cobrar, confere à sobretaxa um mínimo de progressividade, no ponto em que a coleta aumenta, não apenas em função da grandeza dos rendimentos tributados, mas também em razão da maior diferença do valor do rendimento por referência à remuneração mínima garantida.
Contudo, o ponto que parece ser decisivo, e que resulta da conclusão a que já antes se chegou quanto à regra da unidade, é que a consideração conjunta da sobretaxa e do IRS e ao seu efeito agregado sobre a esfera patrimonial dos contribuintes, mantém, na globalidade do sistema, um suficiente índice de progressividade. Ou seja, uma sobretaxa de taxa única conduz, sem dúvida, a uma progressividade em menor grau do imposto sobre o rendimento pessoal do que a que resultaria se a sobretaxa estivesse submetida a taxas marginais progressivas. Mas ela está ainda dentro da margem de liberdade do legislador fiscal, pois não se mostra manifestamente ofensiva da progressividade constitucionalmente exigida.
Foi essa também a solução a que se chegou no acórdão n.º 11/83, que se pronunciou, ainda que num contexto normativo diverso, sobre a constitucionalidade de um imposto extraordinário sobre os rendimentos, em que se tomou em linha de conta que, ainda que as taxas previstas não respeitem o princípio da progressividade, a tributação do rendimento pessoal não deixa de continuar a ser sujeita a uma taxa progressiva, por efeito das taxas fixadas na lei fiscal para outros impostos sobre o rendimento.
É de concluir que a criação de “sobretaxa em sede de IRS”, com natureza excecional e transitória, destinada a dar resposta a necessidades de finanças públicas extraordinárias, não contende com as regras da progressividade e da unidade na tributação do rendimento pessoal, estabelecidas no artigo 104.º, n.º 1, da Constituição da República.
M. Apreciação conjunta dos efeitos dos artigos 186.º e 187.º
111. Os requerentes do pedido que deu origem ao Processo n.º 8/2013 pedem, por último, a fiscalização da constitucionalidade da norma do artigo 186.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 (na parte em que altera os artigos 68.º, 71.º, 72.º, 78.º, 85.º e adita o artigo 68.º-A ao Código do IRS), bem como do seu artigo 187.º, reputando como inconstitucional a diferença de tratamento fiscal dispensada, por um lado aos rendimentos provenientes do trabalho e das pensões e, por outro, à tributação dos rendimentos do capital e, concretamente, na parte em que aqueles são sujeitos a taxas que podem ser superiores a 50% e estes ficam sujeitos à taxa liberatória única de 28% (quanto aos rendimentos obtidos em território português).
Entendem os requerentes que esta diferença de tratamento viola os artigos 13.º e 104.º da Constituição, enquanto contraria os princípios da igualdade na repartição dos encargos públicos, e o princípio da justiça fiscal, e que, além disso, é violadora do caso julgado formado pelo acórdão n.º 353/2012, visto que é manifesta a falta de equidade na repartição dos sacrifícios entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos provenientes de outras fontes.
A dúvida que se suscita prende-se com o exato sentido da alusão ao regime das taxas liberatórias e à integração sistemática que melhor lhe cabe, se na fundamentação, se no objeto do pedido.
Na lógica de todo o discurso argumentativo e da posição dos requerentes quanto ao agravamento da carga fiscal, parece seguro que não se pretende contestar, contrariamente ao teor literal do pedido, o artigo 186.º na parte em que altera os artigos 71.º e 72.º, ou seja, a subida de taxas a que generalizadamente os rendimentos tributáveis a essas taxas ficam sujeitos. Mas já é muito duvidoso se faz parte do objeto do pedido a impugnação desse regime, em si mesmo.
A verdade é que os requerentes não formulam nenhum pedido no sentido de ser apreciada a inconstitucionalidade dos citados artigos 71.º e 72.º, enquanto normas que acolhem taxas liberatórias para a tributação dos rendimentos aí discriminados. Apenas aludem a esse regime para estabelecerem o confronto entre os “níveis confiscatórios”, que atinge a taxa máxima de IRS, e a taxa liberatória. Ou seja, em sede do princípio da igualdade e da justiça fiscal, utilizam o tratamento que é dispensado aos rendimentos do capital tributáveis por aquelas taxas como ponto de comparação, para evidenciarem a inequidade das taxas a que ficam sujeitos os rendimentos do trabalho e das pensões.
Parece, deste modo, ser mais consistente com o sentido do pedido considerar que à referência ao regime das taxas liberatórias é atribuído um papel apenas fundamentador da conclusão que se quer tirar quanto à injustiça da taxação dos rendimentos do trabalho. É no plano argumentativo, para enfatizar a “manifesta falta de equidade na repartição dos sacrifícios entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos provenientes de outras fontes”, que se situa a referência aos rendimentos sujeitos a taxa liberatória.
Assim, em obediência ao princípio do pedido, o Tribunal considera, no âmbito do presente processo, que não constitui objeto do processo a matéria da constitucionalidade dos artigos 71.º e 72.º do CIRS, na medida em que neles se estabelecem taxas liberatórias para a tributação de determinados rendimentos.
112. A questão de constitucionalidade que cumpre decidir, nesta parte, é a de saber se é compatível com a Constituição, concretamente, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos e com o princípio da justiça fiscal, que o legislador estabeleça taxas aplicáveis à tributação do rendimento proveniente do trabalho e de pensões que podem ser superiores a 50%, enquanto que, no que respeita à tributação dos rendimentos de capital, lhes aplica uma taxa única de 28%.
Ou seja, o problema é o de saber se é constitucionalmente admissível a medida da diferença da carga fiscal que subjaz ao tratamento diferenciado (quanto às taxas aplicáveis) dos rendimentos abrangidos pela incidência normal do IRS, por um lado, e dos rendimentos sujeitos a taxas liberatórias ou especiais, por outro.
Para poder dar resposta cabal à questão colocada, o Tribunal teria primeiro que estabelecer os pontos de comparação entre as diferenças de tributação dos vários rendimentos sujeitos a IRS, para depois encontrar a medida dessa diferença e finalmente, confrontá-la com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos e com o princípio da justiça fiscal.
Ora, o universo de rendimentos abrangidos pelas taxas liberatórias e especiais dos artigos 71.º e 72.º do CIRS é tão variado, na natureza e origem desses rendimentos e nas razões eventualmente subjacentes à sua inclusão nessa sede, que não permite agrupar tais realidades num único conjunto para depois o pôr em confronto com os rendimentos, nomeadamente do trabalho e das pensões, que estão sujeitos a englobamento obrigatório e às taxas gerais do artigo 68.º do CIRS.
Desde logo, não é possível incluir nesta comparação os rendimentos auferidos por não residentes em território português, a que se reportam vários números dos artigos 71.º e 72.º, nem os rendimentos devidos por entidades que não tenham aqui domicílio (artigo 72.º, n.º 2), pois a tributação destas realidades não é fiscalmente comparável com a tributação dos rendimentos de trabalho e pensões obtidos em território nacional, por sujeitos aqui residentes.
Da mesma forma, não se afigura que os requerentes pretendam aqui questionar o tratamento diferenciado dado, por exemplo, às gratificações auferidas em razão da prestação de trabalho (artigo 72.º, n.º 3), nem pode concluir-se, sem mais, que o pretendam fazer quanto à tributação autónoma dos rendimentos prediais (artigo 72.º, n.º 7), pois omitem totalmente essa realidade.
Do quadro excessivamente impreciso que os requerentes traçam, resulta apenas a ideia de que o elemento reputado inconstitucional é o tratamento mais favorável da tributação dos rendimentos de capital (juros, dividendos), que ficam sujeitos à taxa liberatória de 28% (que concretiza o pagamento integral e definitivo do IRS através do mecanismo da retenção na fonte) e podem, ou não, ser objeto de englobamento se for essa a opção dos titulares (n.ºs 1 e 6 do artigo 71.º), bem como da tributação das mais-valias à taxa autónoma de 28% (n.ºs 1 e 4 do artigo 72.º), por confronto com o tratamento fiscalmente mais agravado dos rendimentos provenientes de salários e pensões.
Assim, o que aparentemente é pedido ao Tribunal é que compare a diferença de tratamento traduzida na consagração de uma taxa fixa (liberatória ou autónoma) para a tributação dos rendimentos de capitais e de mais-valias, por um lado, e no estabelecimento de taxas progressivas cujo intervalo se situa entre os 14,5% para um rendimento coletável até €7000 e 48% (a que acresce a taxa adicional de solidariedade entre 2,5% e 5%) para rendimentos coletáveis acima dos €80 000.
113. Esta é uma comparação inviável. Primeiro, porque tais taxas não incidem sobre rendimentos apurados da mesma forma; depois, porque sendo diferente a natureza das referidas taxas e o modo como operam, não é possível estabelecer uma comparação baseada no seu valor nominal; e ainda porque as taxas em causa correspondem a mecanismos com uma lógica de funcionamento diversa (progressiva vs proporcional) e que, por isso, concretizam de modo diferente a distribuição da carga fiscal: as taxas gerais assentam numa lógica de tributação pessoal, enquanto que as taxas liberatórias ou autónomas correspondem a uma tributação real.
Ainda que, em termos empíricos e genéricos, se possa concluir pela benevolência das taxas fixas de 28% relativamente às taxas gerais do IRS (situadas entre os 14,5% e os 48%), não é, em rigor, possível formular um juízo comparativo fiscal entre estas duas realidades tão distintas, para efeitos de retirar dessa comparação uma medida de diferença, sindicável em termos de igualdade e justiça fiscal.
Note-se, que as taxas proporcionais, que variam entre 14,5% e 48%, aplicam-se a rendimentos coletáveis divididos por escalões, enquanto que a taxa fixa, proporcional, de 28% se aplica a todos os rendimentos (de capital e de mais-valias) independentemente do seu montante. Se simplesmente se baixasse a taxa proporcional máxima de 48% (que incide, necessariamente, sobre o mais alto escalão de rendimento coletável) e se aumentasse a taxa proporcional fixa (liberatória ou autónoma) de 28% (que abrange indistintamente todos os montantes de rendimento), não se obteria necessariamente uma melhor solução, em termos de maior justiça e igualdade fiscal.
Em suma, não tendo os requerentes, como vimos, questionado a (in)admissibilidade constitucional de exceções à tributação geral (tendencialmente única, progressiva e personalizada) dos rendimentos, e mostrando-se inviáveis os termos da pretendida comparação, por estarem em causa taxas inscritas em mecanismos de diferente natureza e operatividade, mostra-se impossível encontrar a “medida da diferença” e, consequentemente, decai a invocada inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, da norma do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
b) Declarar a inconstitucionalidade consequencial da norma do artigo 31.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, na medida em que manda aplicar o disposto no artigo 29º dessa Lei aos contratos de docência e de investigação;
c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, da norma do artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
d) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 2.º da CRP, da norma do artigo 117.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
e) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 27.º, 45.º, 78.º, 186.º, na parte em que altera os artigos 68.º, 78.º e 85.º e adita o artigo 68.º-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) e 187.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Lisboa, 5 de abril de 2013.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano (com declaração de voto quanto à decisão da alínea d), que anexo) – Pedro Machete (vencido quanto às alíneas a), b) e c) da decisão, nos termos da declaração conjunta; vencido quanto à alínea d) e quanto aos juízos de não inconstitucionalidade contidos na alínea c) da decisão, relativamente à contribuição extraordinária de solidariedade e à redução das deduções à colecta previstas no Código do IRS, nos termos da declaração individual) – Maria João Antunes (vencida quanto às alíneas a), b) e c) da Decisão, pelas razões constantes da declaração conjunta anexada) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida parcialmente nos termos da declaração junta) – José Cunha Barbosa (vencido parcialmente nos termos da declaração conjunta que subscrevi e da declaração individual que junto) – Catarina Sarmento e Castro (acompanhei a decisão na parte em que declara a inconstitucionalidade das normas do art.º 29º, 77º e 117º, n.º 1; Fiquei parcialmente vencida quanto à norma do art.º 31º e quanto à norma do art.º 186º (na alteração ao art.º 78º e 85º do CIRS); fiquei vencida relativamente às normas do art.º 27º e 78º, nos termos da declaração de voto junta.) – Maria José Rangel de Mesquita (vencida parcialmente nos termos da declaração de voto anexa) – Fernando Vaz Ventura (vencido quanto ao juízo constante da alínea e) da decisão, na parte em que se decidiu não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 27º e 78º de Lei do Orçamento de Estado para 2013, nos termos da declaração de voto junta) – Maria Lúcia Amaral (vencida quanto às alíneas a), b) e c) da decisão, nos termos da declaração conjunta) – Vítor Gomes (Vencido quanto às als. A), b), c) e d) da decisão. Quanto `alínea d), aderindo, na parte correspondente ao essencial da declaração de voto do Senhor Cons. Pedro Machete) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 117.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, por entender que o legislador ao não estabelecer, ao contrário do que fez relativamente aos pensionistas e aos “funcionários públicos”, um patamar quantitativo a partir do qual seriam devidas as contribuições para a segurança social, não salvaguardando assim aqueles que recebem subsídios de baixo valor, impôs sacrifícios manifestamente desproporcionados, face aos interesses orçamentais visados, a quem a exiguidade dos rendimentos auferidos já impõe substanciais provações.
É, pois, a ausência do estabelecimento desse patamar, fixado segundo critérios de razoabilidade e de paridade com as outras categorias de cidadãos atingidos por cortes nos seus rendimentos, que determina a inconstitucionalidade da referida norma, por violação do princípio da proporcionalidade, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, da Constituição.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à alínea d) da decisão e quanto aos juízos de não inconstitucionalidade contidos na alínea e) da decisão, relativamente à contribuição extraordinária de solidariedade e à redução das deduções à coleta previstas no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
§ 1.º - Consideração prévia e de ordem geral
1. A Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2013 - concretiza os compromissos de Portugal assumidos no quadro da assistência financeira acordada internacionalmente e no âmbito da União Europeia em 2011 e pretende retirar consequências da declaração de inconstitucionalidade do Acórdão deste Tribunal n.º 353/2012 relativo à lei do Orçamento do Estado para 2012. Além disso, a Lei do Orçamento do Estado para 2013 toma em consideração a modificação das condições macroeconómicas, para pior, ocorrida em 2012, condições essas que continuaram a sofrer uma evolução negativa no período posterior à apresentação da proposta do Orçamento para 2013 e durante o primeiro trimestre da respetiva execução.
O presente acórdão não ignora estes desenvolvimentos. Contudo, faz relevar principalmente o interesse público premente na consecução das metas quantitativas no que respeita ao défice orçamental, sem retirar, depois, as inelutáveis consequências para a limitação da liberdade conformadora do legislador que decorrem do objetivo da consolidação orçamental a prosseguir naquele quadro normativo e nas condições impostas pela nova conjuntura económica. Isto é, o acórdão não discute – e bem – a “estratégia escolhida [e] os índices de correção orçamental a que o Estado se vinculou internacionalmente”, afirmando mesmo que “outras opções de base, quanto à política de consolidação orçamental, são teoricamente admissíveis, [m]as, justamente, esse é o domínio da definição das linhas de atuação política, sujeito a controvérsia e debate nas instâncias próprias, e reservado ao legislador democraticamente legitimado”. Aceita, portanto, que o fim político escolhido é consentâneo com a Constituição. Contudo, depois, não problematiza a realidade que justifica a Lei do Orçamento do Estado para 2013 e a que a mesma Lei se destina; limita-se a descrever os seus traços essenciais. Refere, é certo, a novidade da situação; mas não explicita as reapreciações e novas ponderações que tal novidade impõe, face às avaliações e ponderações subjacentes aos Acórdãos n.os 396/2011 e 353/2012.
Julgo ainda que o acórdão não faz uma leitura integrada do programa orçamental para 2013 nem o compreende como um todo dotado de coerência interna em que cada medida, para além da sua identidade própria, tem um significado e impacte direto e imediato quanto às possibilidades de alcançar a meta quantitativa definida para o défice.
A necessidade de compatibilização prática dos imperativos, entre si conflituantes nas presentes condições, de «garantir a independência nacional e criar as condições económicas e sociais que a promovam» e de «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos e sociais» (cfr. as alíneas a) e d) do artigo 9.º da Constituição) reduz muito significativamente o leque de opções do legislador. Em meu entender, e pelas razões adiante referidas, sob pena de uma menor fundamentação dos seus juízos de inconstitucionalidade e uma menor consistência dos mesmos face à realidade material apreciada, impunha-se que o Tribunal explicitasse claramente e com referência à presente realidade constitucional os pressupostos em que assentam as suas próprias ponderações e avaliações nos casos em que as mesmas se afastam das opções feitas pelo legislador. Não tinha – nem obviamente podia fazê-lo - de se lhe substituir; mas, tratando-se de uma lei orçamental vinculada à consecução de um determinado resultado quantitativo em matéria de défice, o afastamento das escolhas feitas pelo legislador exigiria a demonstração da evidência da sua inadmissibilidade constitucional no mencionado contexto normativo e económico. Não foi, todavia, e como referido, esse o caminho trilhado pelo acórdão, que se bastou com um enunciado meramente descritivo das diferentes condicionantes sem as ponderar suficientemente nos seus juízos de inconstitucionalidade.
2. Em 2011, confrontado com uma pressão crescente nos mercados financeiros que conduziu a uma forte subida dos spreads da sua dívida soberana, Portugal tornou-se incapaz de se refinanciar a taxas compatíveis com a sustentabilidade orçamental a longo prazo. Paralelamente, o setor bancário nacional, fortemente dependente do financiamento externo, especialmente da área do euro, viu-se cada vez mais afastado do financiamento pelo mercado. Perante tal grave perturbação económica e financeira, Portugal solicitou formalmente assistência financeira à União Europeia, aos Estados-Membros cuja divisa é o euro e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), tendo em vista apoiar um programa de políticas para restaurar a confiança e permitir o regresso da economia a um crescimento sustentável e, desse modo, salvaguardar a estabilidade financeira. Em 3 de maio de 2011, o Governo e uma missão conjunta da Comissão, do FMI e do Banco Central Europeu (BCE) chegaram a acordo relativamente a um vasto programa de políticas para três anos (até meados de 2014), a estabelecer num Memorando sobre as Políticas Económicas e Financeiras (MEFP) e num Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica (o «Memorando de Entendimento»). Tal programa de políticas económicas e financeiras – o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) – é avaliado trimestralmente e exige um esforço continuado e progressivo de consolidação orçamental tendo em vista determinadas metas quantitativas. As várias parcelas do apoio financeiro acordado são entregues somente no caso de o juízo conclusivo de cada avaliação ser positivo.
Depois de uma primeira revisão em alta dos valores iniciais operada em setembro de 2012, na sequência da quinta avaliação regular realizada pela missão conjunta da Comissão, do FMI e do BCE (e posteriormente aprovados pelo Eurogrupo e pelo ECOFIN), os valores daquelas metas fixados para os anos de 2013 e 2014 foram, respetivamente, e com referência ao valor do produto interno bruto (PIB), de 4,5% e 2,5% (por contraposição aos iniciais de 3% e de 2,3%). Já este ano, em março, e na sequência da sétima avaliação regular, foram fixados novos limites para o défice orçamental dos anos 2013, 2014 e 2015: respetivamente, 5,5%, 4,0% e 2,5%. Como se pode ler na Declaração da CE, do BCE e do FMI Sobre a Sétima Missão de Avaliação em Portugal:
« O crescimento real do PIB diminuiu acentuadamente no último trimestre de 2012, tendo o PIB real decaído 3,2 % em 2012. As projeções apontam agora para que a atividade económica decresça 2,3 % em 2013 […], vindo a crescer 0,6 % em 2014. Refletindo a redução da atividade, o desemprego poderá atingir um máximo superior a 18 %.
As perspetivas de crescimento mais fracas exigem um ajustamento da trajetória do défice orçamental. O défice orçamental atingiu 4,9 % do PIB em 2012. O tratamento estatístico de determinadas transações, tal como a concessão dos aeroportos (ANA), resultará porém num défice nominal mais elevado [o valor reportado ao Eurostat foi de 6,4% do PIB – e este é, portanto, o ponto real de partida para o ajustamento orçamental em 2013]. Embora o Governo esteja empenhado em respeitar uma trajetória em matéria de despesas amplamente coerente com o ajustamento orçamental estrutural, conforme previsto anteriormente, um crescimento inferior e níveis de desemprego mais elevados reduzirão as receitas e aumentarão as prestações sociais. A fim de permitir o funcionamento de estabilizadores orçamentais automáticos, o Governo solicitou – e as equipas da CE, do BCE e do FMI concordaram – a revisão dos objetivos em matéria de défice de 4,5 % para 5,5 % do PIB em 2013, e de 2,5 % para 4 % do PIB em 2014. O objetivo em matéria de défice para 2015 (2,5 % do PIB) ficará abaixo do limite de 3 % do Pacto de Estabilidade e Crescimento
Os novos objetivos em matéria de défice serão apoiados por um esforço de consolidação permanente, bem orientado e baseado na despesa. O Governo está a proceder a uma revisão completa e transparente das despesas públicas a fim de identificar possíveis poupanças capazes de permitir o cumprimento os objetivos em matéria de défice para 2013-2014. Estas medidas visam a racionalização e modernização da administração pública, a melhoria da sustentabilidade do sistema de pensões e maiores reduções de custos em todos os ministérios. Para consolidar a credibilidade da trajetória revista do défice orçamental, o Governo está empenhado em adotar e publicar nas próximas semanas uma versão detalhada do quadro orçamental de médio prazo, permitindo assim a conclusão formal da presente avaliação.»
A consolidação orçamental é, por outro lado, instrumental relativamente à contenção e diminuição da dívida pública. Recorde-se que o défice orçamental de um dado ano tem de ser financiado por uma de duas vias: alienação de património ou dívida pública. Esta última, segundo a 1.ª Notificação de 2013 realizada pelo Instituto Nacional de Estatística no âmbito do «Procedimento por Défices Excessivos», divulgada em 28 de março de 2013 (e disponível em http://www.ine.pt/xportal/xmain ), estima-se que tenha ascendido em 31 de dezembro de 2012 a 204 485 milhões de euros (o equivalente a 123,6% do PIB; mais 19 245 milhões de euros do que no final de 2011; a estimativa para aquele ano de 2012 consignada no Quadro II.2.3. do Relatório do Orçamento do Estado para 2013 , p. 44, era de 119,1% do PIB…). Correspondentemente, o défice orçamental relevante em termos de procedimento por défice excessivo, não obstante todo o esforço já realizado, evoluiu, como referido, de 4,4% em 2011, para 6,4% em 2012 (v. a mencionada Notificação). E o custo daquela dívida – traduzido no valor dos juros pagos aos credores - não é negligenciável: 7,29 mil milhões de euros em 2012 (mais cerca de 300 milhões de euros do que no ano anterior).
Isto não significa que o aludido esforço de consolidação não tenha produzido até à data os seus frutos. Aliás, o Relatório do Orçamento do Estado para 2013, p. 43, dá conta disso mesmo: “em termos de consolidação orçamental, o ajustamento tem sido substancial, tendo-se vindo a obter progressos na direção do equilíbrio de médio prazo. Com efeito, o défice estrutural deverá diminuir cerca de 4,5 p.p. em apenas dois anos (2011 e 2012), reduzindo-se cerca de metade. A redução da despesa pública, em particular da despesa corrente primária, tem tido um papel importante no prosseguimento deste objetivo (Gráfico II.2.2.)” (itálicos aditados). Com efeito, o saldo primário em 2010 era de –7% do PIB e, para 2012, o citado Relatório faz uma estimativa do mesmo saldo de apenas – 0,8%. Só que, para a contabilização da dívida pública, relevam também a componente cíclica e os juros que se vão vencendo.
No que se refere à estratégia de consolidação orçamental para 2013, o acórdão dá conta dos pressupostos em que assentou a preparação do Orçamento para 2013 - e que não consideram os ajustamentos feitos na sequência da mencionada sétima avaliação regular: o intencionado efeito agregado da consolidação de valor correspondente a 3,2% do PIB é devido, em larga medida, ao aumento da receita: 4,3124 mil milhões de euros (2,6% do PIB), contra 1,0256 mil milhões de euros (0,6% do PIB) do lado da despesa (cfr. também o Quadro II.3.1. do Relatório do Orçamento do Estado para 2013, p. 47). De salientar ainda a necessidade de encontrar medidas substitutivas daquelas que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais no seu Acórdão n.º 353/2012. A esse respeito, o Governo diz o seguinte (cfr. o Relatório do Orçamento do Estado para 2013, p. 46):
«A solução do Governo nesta matéria assenta numa abordagem abrangente que tem em conta as implicações do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Neste contexto, será reposto 1 subsídio aos funcionários públicos e 1,1 subsídios aos aposentados e reformados. O aumento de despesa para o Estado que resulta destas reposições será compensado por medidas de carácter fiscal. Estas medidas visam deliberadamente uma distribuição mais equitativa no esforço de consolidação orçamental entre i) sector público e sector privado, por um lado; e entre ii) rendimentos do trabalho e rendimentos de capital, por outro. A repartição do esforço entre o sector público e o sector privado será alcançada por via dos impostos diretos, com particular incidência no IRS, enquanto a repartição do esforço entre rendimentos do trabalho e do capital será garantida pela introdução de elementos adicionais de tributação sobre o capital e o património.» (itálicos aditados)
Importa a este respeito ter presente que, segundo os dados constantes do Quadro III.1.1. do mesmo Relatório, p. 90, a despesa pública prevista para 2013 corresponde a 46,8% do PIB (dos quais mais de 70% correspondem a despesas com pessoal e prestações sociais - isto é, cerca de 33% do PIB é afetado a estas duas rubricas).
Do lado da receita, prevê-se no citado Quadro, para 2013, um aumento das receitas fiscais e das contribuições sociais. Mas a verdade é que, não obstante o aumento de impostos verificado em 2011, em 2012 as receitas fiscais decresceram. E o mesmo deverá suceder com as contribuições sociais, em virtude do expectável aumento do desemprego. Tal diminuição das receitas fiscais já foi, de resto, confirmada pelo Instituto Nacional de Estatística (a quebra indicada é de 3,669 mil milhões de euros – cfr. o relatório intitulado Principais Agregados das Administrações Públicas, divulgado também em 28 de março de 2013 e igualmente disponível em http://www.ine.pt/xportal/xmain ). Esta situação é ainda agravada pela revisão em baixa do cenário macroeconómico feita na sequência da já citada 7.ª avaliação: a contração do PIB é agora estimada em 2,3% (e não 1%); e a taxa de desemprego em 18,2% (contra os anteriores 16,4%). No tocante à meta para o défice orçamental de 2013, estas últimas alterações são acomodadas, como referido, pelo novo valor permitido de 5,5% do PIB.
3. É perante estes dados da realidade que, do ponto de vista jurídico-constitucional, interessa relevar como fatores delimitadores da liberdade de conformação do legislador, tendo em conta o princípio da construção e aprofundamento da União Europeia e a própria relevância interna do direito internacional, incluindo o da citada União (respetivamente, artigos 7.º, n.º 5, e 8.º, ambos da Constituição): (i) o princípio da cooperação leal com a União Europeia e os demais Estados-membros (artigo 4.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia), em especial no tocante ao objetivo da estabilidade da «Zona Euro»; e (ii) o reconhecimento normativo expresso no próprio quadro da União de situações em que um Estado membro se encontre em dificuldades devidas a ocorrências excecionais que o mesmo Estado-membro não possa controlar justificativo de medidas excecionais (cfr. os artigos 122.º, n.º 2, 123.º e 125.º, todos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
Na verdade, e como resulta dos Considerandos 3, 4 e 5 do Regulamento (UE) n.º 407/2010 do Conselho, de 11 de maio de 2010 – o instrumento criador do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, a ativar no âmbito de um apoio conjunto União Europeia/FMI, e ao abrigo do qual foi aprovada a assistência financeira a Portugal pelas Instituições da União Europeia (cfr. a Decisão de Execução n.º 2011/344/UE, do Conselho, de 30 de maio de 2011) – a crise financeira mundial e a recessão económica que atingiram o mundo a partir de 2008 afetaram gravemente o crescimento económico e a estabilidade financeira e originaram uma acentuada deterioração das situações de défice e de dívida dos Estados-membros da área do euro, conduzindo a uma grave deterioração das condições de empréstimo em vários desses Estados-Membros; tal situação – caracterizada como excecional e como escapando ao controlo dos Estados-membros - poderia constituir uma séria ameaça para a estabilidade, unidade e integridade de toda a área do euro se não se lhe pusesse termo urgentemente.
O PAEF constitui, precisamente, e com referência a Portugal, o meio destinado a tal fim. O mesmo concretiza as medidas especificadas nos n.os 5 a 8 do artigo 3.º da mencionada Decisão n.º 2011/344/UE, do Conselho. A existência daquele Programa justifica-se, por conseguinte, em virtude de uma situação ou estado de emergência financeira, expressamente reconhecido como tal, e que ameaça simultaneamente a economia e finanças portuguesas e a estabilidade, unidade e integridade da própria «Zona Euro» globalmente considerada. Permanece válido, assim, para as diferentes medidas de estabilização orçamental que integram o mencionado Programa o que este Tribunal afirmou em relação às medidas do PEC (2010-2013) no seu Acórdão n.º 396/2011 (cfr. o n.º 5):
« [Constituem a] resposta normativa a uma conjuntura excecional, que se pretende corrigir com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade.»
É, aliás, esse o quadro expressamente assumido no Relatório do Orçamento do Estado para 2013, em ordem a justificar as diferentes medidas de consolidação orçamental constantes da Lei do Orçamento do Estado para 2013 (cfr. pp. 39 e 40):
« [N]o momento em que entramos no segundo ano da execução do PAEF, e quando já decorreu mais de metade do período em que o Estado Português se viu dependente do financiamento dele resultante, a alternativa que neste momento se coloca ao País é simples: continuar a percorrer, até ao termo de vigência do PAEF, a via difícil da consolidação orçamental, a qual inevitavelmente envolve sacrifícios para todos os Portugueses, mas com a certeza, porém, de que o País deixará, a breve trecho, de carecer de ajuda externa e recuperará, assim, a sua plena autonomia na condução da sua política, que naturalmente assenta na sua sustentabilidade económico-financeira; ou, pelo contrário, descurar as medidas de consolidação orçamental e regressar ao ponto de partida, da insolvência iminente do Estado Português. Esta última hipótese, que não pode ser configurada como opção viável, esvaziaria de conteúdo e de sentido todos os esforços e os enormes sacrifícios até ao momento assumidos pelos Portugueses, os quais teriam assim sido em vão, ao mesmo tempo que conduziria, seguramente, a sacrifícios bem superiores.
Acresce ainda que, conforme foi salientado nos relatórios dos Orçamentos do Estado para 2011 e 2012, da possibilidade de levar a bom termo o PAEF e, consequentemente, da adoção das medidas propugnadas pelo Governo, depende também, em primeira linha, a própria manutenção e sustentabilidade do Estado social.
Torna-se assim evidente que, subjacente às medidas de consolidação orçamental propostas para 2013, numa conjuntura económico-financeira de contornos cuja excecionalidade é claramente demonstrada pela necessidade de ajuda internacional a que o País se viu, e continua a ver, forçado a recorrer, está a salvaguarda de valores e princípios estruturantes da ordem constitucional portuguesa.
[…A]s medidas agora propostas assumem-se como a única opção que garante a prossecução do objetivo traçado, tendo em vista o cumprimento do limite de 4,5% do PIB para o défice orçamental, satisfazendo, ao mesmo tempo, as exigências dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.» (itálico aditado)
Decerto que o quadro de emergência descrito não tem, por si, força normativa: num Estado de Direito não vale a máxima salus populi suprema lex esto nem são os fins que legitimam os meios. Contudo, é igualmente uma exigência da própria normatividade – da força normativa das normas jurídicas - que a sua interpretação e aplicação tomem em linha de conta a realidade a que as normas se dirigem. E, em especial, no que se refere à Constituição e à fiscalização do seu cumprimento por parte dos órgãos do poder político, a cargo do Tribunal Constitucional, muito particularmente quando está em causa uma Lei do Orçamento do Estado, importa ter bem presentes as diferentes responsabilidades e possibilidades de cada instância quanto à avaliação e prognose de dinâmicas próprias da realidade constitucional.
Nessa perspetiva, e com referência ao caso vertente, mantém-se inteiramente atual, mas agora como posição de princípio, aquela que o Tribunal Constitucional assumiu no seu Acórdão n.º 396/2011 (cfr. o n.º 8):
« [À] situação de desequilíbrio orçamental e à apreciação que ela suscitou nas instâncias e nos mercados financeiros internacionais são imputados generalizadamente riscos sérios de abalo dos alicerces (senão, mesmo, colapso) do sistema económico-financeiro nacional, o que teria também, a concretizar-se, consequências ainda mais gravosas para o nível de vida dos cidadãos. As reduções remuneratórias [- mas o mesmo vale para as demais medidas de consolidação orçamental -] integram-se num conjunto de medidas que o poder político, atuando em entendimento com organismos internacionais de que Portugal faz parte, resolveu tomar, para reequilíbrio das contas públicas, tido por absolutamente necessário à prevenção e sanação de consequências desastrosas, na esfera económica e social. São medidas de política financeira basicamente conjuntural, de combate a uma situação de emergência, por que optou o órgão legislativo devidamente legitimado pelo princípio democrático de representação popular.
Não se lhe pode contestar esse poder-dever. Como se escreveu no Acórdão n.º 304/2001:
“ Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a proteção das expetativas dos cidadãos [e – acrescentar-se-á - as demais exigências] decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam ‘tocadas’ relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte”.»
Tal posição não pode deixar de implicar para o Tribunal Constitucional uma atitude de prudência na apreciação das medidas que lhe foram submetidas, a consciencialização dos limites funcionais da jurisdição constitucional e a ponderação das consequências da eventual rejeição daquelas medidas, incluindo a consideração das alternativas disponíveis. Decidindo no sentido da inconstitucionalidade de alguma das medidas em causa, impõe-se ao Tribunal um acrescido ónus de fundamentação em que os parâmetros da avaliação e a ponderação dos pressupostos e das consequências da sua decisão sejam devidamente explicitados. O mesmo ónus é ainda agravado pela posição assumida pelos órgãos do poder político – Governo e Assembleia da República – no quadro de compromissos relevantes do ponto de vista do direito internacional e do direito da União Europeia no sentido de o «pacote de medidas» de natureza económico-financeiras objeto do programa orçamental para 2013 corresponder ao meio indispensável à consecução dos objetivos de consolidação orçamental para este ano – o dito «pacote» é, na expressão Relatório do Orçamento do Estado para 2013, “a única opção que garante” tal desiderato.
4. Decorre do exposto supra no número 2, e muito em particular do cenário macroeconómico aí referido - e que é aquele que sustenta do ponto de vista material as opções do legislador -, não ser indiferente proceder à consolidação orçamental pelo lado da receita, aumentando-a, ou pelo lado da despesa, diminuindo-a. A diferença não é nem apenas contabilística nem meramente formal. E este é um dado a ter em conta na avaliação jurídico-constitucional das diferentes medidas de estabilização orçamental previstas na Lei do Orçamento do Estado para 2013, uma vez que, sem pôr em causa o objetivo da consolidação, frequentemente a rejeição de uma medida do lado da despesa só poderá ser compensada pelo acréscimo de medidas do lado da receita – sendo, portanto, a liberdade de escolha do legislador muito reduzida. De resto, esta preocupação torna-se ainda mais premente, tendo em conta a estratégia de consolidação orçamental subjacente à Lei do Orçamento do Estado para 2013: como referido, o intencionado efeito agregado da consolidação de valor correspondente a 3,2% do PIB é feito predominantemente do lado da receita. Isto significa que a rejeição de medidas de consolidação do lado da despesa, compensáveis apenas por medidas do lado da receita tem necessariamente um acrescido impacte negativo na consistência da mencionada estratégia e, por isso, na coerência interna daquela Lei.
De resto, a eficácia orçamental e a própria eficiência económica de cada uma daquelas duas vias é significativamente diferente. E juridicamente também é diferente o enquadramento constitucional da posição do Estado enquanto empregador, prestador ou titular do poder tributário (a que, de resto, o acórdão não foi insensível, pelo menos no plano conceptual).
O Estado controla a incidência e a taxa dos tributos, mas já não a sua coleta, uma vez que esta depende, em grande medida, da intensidade da atividade económica (argumento da eficácia). Como se acentua no acórdão, a propósito da redução remuneratória dos trabalhadores da Administração Pública, “o que distingue as verbas despendidas com as remunerações dessa categoria de trabalhadores [- tal como sucede com outras rubricas da despesa pública corrente, poderá acrescentar-se -] é o seu impacto certo, imediato e quantitativamente relevante nas despesas correntes do Estado”. Em segundo lugar, a receita fiscal traduz-se numa diminuição do rendimento disponível dos particulares e, mesmo que tal receita venha a ser afetada a despesas com pessoal e com prestações sociais, aumentando desse modo a procura interna (e, assim, contribuindo para a dinamização da economia por via do aumento do consumo), a verdade é que, por isso mesmo, e numa medida muito significativa, a poupança indispensável ao investimento não deixará de ser prejudicada (argumento da afetação da poupança). Finalmente – e esse é o aspeto mais crítico e específico da crise em que nos encontramos – está em causa na presente situação também a sustentabilidade da própria dívida externa portuguesa, de que a dívida pública é uma componente não negligenciável (aquela dívida inclui, além da componente imputável ao Estado, a dívida dos bancos, das empresas e de todos os particulares).
Segundo a Nota de Informação Estatística do Banco de Portugal, de 21 de fevereiro de 2013 (disponível em http://www.bportugal.pt/EstatisticasWEB/ ), sem prejuízo da evolução positiva ao nível da capacidade de financiamento (o saldo da balança corrente e de capital foi em 2012, e pela primeira vez em muitos anos, positivo: 0,8% do PIB), no final de 2012 a dívida externa líquida portuguesa situou-se em 164,6 mil milhões de euros, o equivalente a 99,1 % do PIB (12,8 pontos percentuais acima do observado no final de 2011).
Este valor, em si mesmo, é significativo a vários títulos.
Em primeiro lugar, ocorreu durante demasiado tempo um excesso do consumo sobre a produção, um excesso de despesa que teve de ser financiado por dívida (argumento do excesso de consumo ou do sobreendividamento). Em segundo lugar, o nível de endividamento líquido face ao exterior comprova a dependência de Portugal relativamente ao financiamento externo: o País, antes de concluir o ajustamento a que se comprometeu internacionalmente, e de recuperar parte significativa da sua capacidade líquida de financiamento, só pode continuar a funcionar cumprindo todas as suas tarefas constitucionais, mesmo que com sacrifícios acrescidos, desde que continue a obter financiamentos provenientes do exterior. Depois, a evolução negativa ao longo dos últimos anos só foi possível devido a um crescimento económico muito débil, quase anémico. Em quarto lugar, a conjugação dos três aspetos anteriores justifica as dúvidas dos credores internacionais quanto à real capacidade da «economia portuguesa» de «pagar aquilo que deve» (argumento da insustentabilidade da dívida externa) – circunstância que, por sua vez, explica o aumento dos spreads e as dificuldades em obter financiamento nos mercados sem apoio institucional externo (o que vale sobretudo para o Estado, mas, como se viu, em 2011 quando foi necessário pedir ajuda financeira externa, também diz respeito aos bancos). Finalmente, a inversão da trajetória de crescimento da dívida externa exige que a economia cresça e que a balança corrente e de capital apresente saldos positivos (segundo estimativas do FMI publicitadas na imprensa portuguesa, um crescimento do PIB da ordem dos 2% combinado com um saldo externo de cerca de 5% do PIB).
A consequência que se impõe retirar desta análise é a de que na atual crise financeira que Portugal atravessa há aspetos conjunturais e aspetos estruturais. Conjuntural foi – e continua a ser - a incapacidade do País se financiar autonomamente nos mercados. Porém, a necessidade de inverter a trajetória de endividamento – e, portanto, de reduzir drasticamente o consumo público e privado, ajustando-o à real capacidade produtiva – é estrutural, no sentido de que não é sustentável continuar ou retomar o caminho seguido até 2011. Daí ser pertinente apreciar muitas das medidas que na justificação da Lei do Orçamento do Estado para 2013 – o já aludido Relatório do Orçamento do Estado para 2013 - são apresentadas como «medidas excecionais de estabilidade orçamental» ou como «medidas conjunturais», não apenas como tal, mas, prospectivamente, enquanto medidas de caráter mais duradouro ou, porventura, mesmo estrutural. E, pelo menos prima facie, a passagem pelo crivo da admissibilidade estrutural imporá, até por maioria de razão, a sua aceitação temporária durante o período do exercício orçamental.
5. Assim, por exemplo, no que se refere à manutenção da redução remuneratória referente aos trabalhadores da Administração Pública (artigo 27.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013), concordando embora com o juízo de não inconstitucionalidade do acórdão, não me parece que o mesmo, em sede de avaliação do princípio da igualdade, na vertente da igualdade proporcional, se mostre fundamentado de modo consequente.
Desde logo, porque o «argumento da eficácia imediata das medidas de redução salarial» conserva – se é que não vê reforçada - a sua pertinência, pelas razões indicadas supra no número 4, e que não se reconduzem a uma urgência, por assim dizer, «pontual»; a urgência em causa é a que decorre da necessidade de regressar a uma certa «normalidade financeira» caracterizada pela desnecessidade de uma quase-tutela em que a «libertação» periódica de parcelas de um apoio financeiro pré-definido está condicionada a avaliações positivas.
Depois porque, sob pena de remeter o legislador exclusivamente para a via fiscal e de inviabilizar, pelo menos no curto e médio prazo, a redução da rubrica «despesas com pessoal» no total da despesa pública, é inevitável que o legislador nas atuais circunstâncias se socorra, em alguma medida, da diminuição das remunerações dos trabalhadores da Administração Pública. Com efeito, não só as mesmas remunerações representam encargos públicos, como não é possível a curto ou médio prazo – e provavelmente nem sequer é desejável – utilizar, em relação àqueles trabalhadores, um mecanismo com lógica idêntica à do despedimento coletivo, aplicável no âmbito das relações de trabalho de direito privado. A Administração do Estado tem responsabilidades e tarefas que a diferenciam qualitativamente de organizações com escopo lucrativo como as empresas, que podem e devem ajustar permanentemente a sua dimensão e âmbito de atividades, de modo a maximizarem o seu lucro. Por isso, o Estado e os seus serviços não podem ser geridos como empresas. Daqui decorre, como consequência lógica, que a situação de um trabalhador da Administração Pública e a de um trabalhador com vínculo laboral privado, em pleno emprego, e com a mesma capacidade de ganho, não é comparável, contrariamente ao que é assumido no acórdão. Do exposto decorre também que a imposição de sacrifícios mais intensos aos trabalhadores que exercem funções públicas pode ser justificada por fatores macroeconómicos relacionados com a necessidade imperiosa de reduzir ou financiar a despesa pública, prevenindo desse modo o recurso à via fiscal, tida como inconveniente por agravar a recessão económica e o aumento do desemprego – como sucedeu precisamente nas leis orçamentais referentes a 2011, 2012 e 2013.
Finalmente, também não compreendo por que se considera que o Governo não «executou» o Acórdão n.º 353/2012 – que expressamente admitiu a possibilidade de alguma diferenciação entre trabalhadores do setor público administrativo e do setor privado – em virtude de ter conjugado a diminuição de remunerações dos trabalhadores da Administração Pública com um aumento da carga fiscal aplicável a todos os cidadãos. Pode decerto discutir-se a medida do sacrifício imposto aos primeiros, mas o tipo de solução em si mesma considerada parece-me uma resposta ou reação legítima em face do mencionado Acórdão; não representa necessariamente (ou objetivamente) um “entorse ao princípio da igualdade de contribuição para os encargos públicos”. Tudo dependerá da medida do sacrifício adicional imposto (e, sobre esta, v. a declaração de voto conjunta relativa ao artigo 29.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013).
§ 2.º - Declaração referente à alínea d) da decisão: a não inconstitucionalidade do artigo 117.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (contribuição sobre prestações de doença e desemprego)
Vencido quanto ao juízo de inconstitucionalidade relativamente ao artigo 117.º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para 2013 que consagra uma «contribuição sobre prestações de doença e de desemprego».
1. O acórdão declarou inconstitucional o citado artigo 117.º, n.º 1, em virtude de o mesmo não conter “uma qualquer cláusula de salvaguarda que impeça que os montantes pecuniários correspondentes aos subsídios de doença e de desemprego, por força da dedução agora prevista, possam ficar abaixo do limite mínimo que o legislador fixou, em geral [entenda-se na legislação específica sobre estas duas prestações], para o conteúdo da prestação devida para qualquer dessas situações”. Porém, o acórdão reconhece igualmente não só que aquela redução corresponde a uma “medida excecional, de caráter transitório”, como “o cumprimento do programa constitucional de proteção na doença e no desemprego, depende, em cada momento histórico, de fatores financeiros e materiais, sendo tarefa do legislador definir o elenco das situações que carecem de proteção e o conteúdo do correspondente direito social”. E, se assim é, não pode considerar-se, à partida, constitucionalmente ilegítimo um retrocesso em relação a anteriores decisões político-legislativas.
Desde logo, pelas razões enunciadas supra no § 1.º, não posso concordar com o juízo de inconstitucionalidade formulado, porquanto o que está em causa no preceito em apreço é precisamente a definição legislativa, com caráter temporário e excecional, de novos valores – incluindo novos valores mínimos – mais reduzidos para aquelas duas prestações do sistema previdencial geral.
Será que, se em vez de consagrada num artigo autónomo da Lei do Orçamento do Estado para 2013 – como acontece com o artigo 117.º - tal opção legislativa tivesse sido objeto de uma alteração aprovada pela mesma Lei orçamental ao regime legal específico de cada uma daquelas duas prestações, a questão de constitucionalidade seria diferente? Ou ainda: deverá entender-se que os valores das mesmas prestações não podem ser fixados por um determinado período de tempo?
Creio que a resposta a qualquer uma destas interrogações é negativa, tendo em conta que está em causa a determinação legal do conteúdo de direitos sociais, que “depende, em cada momento histórico, de fatores financeiros e materiais”, e, como referido, por ser assim, não pode considerar-se, à partida, constitucionalmente ilegítimo um retrocesso em relação a anteriores decisões político-legislativas.
2. Por outro lado, as duas prestações em análise correspondem a aspetos parcelares de um regime de proteção social correspondente ao sistema previdencial geral, que não está vocacionado para satisfazer o direito a uma existência condigna, mas antes substituir parcialmente e mitigar a perda de remuneração nas eventualidades de doença e desemprego. Aquele direito – que corresponde a um corolário da dignidade da pessoa humana - é assegurado, na sua vertente positiva, fundamentalmente pelos diversos componentes do sistema de proteção social de cidadania previsto no artigo 26.º e seguintes da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro – Lei de Bases da Segurança Social.
3. Finalmente, no que se refere à apreciação do artigo 117.º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para 2013 à luz do princípio da proporcionalidade, é, desde logo, manifesto verificar-se o requisito da adequação: a redução do valor das prestações em causa é idónea a contribuir para o esforço de diminuição da despesa pública. Já quanto à razoabilidade, e uma vez que estão em causa reduções percentuais dos valores de prestações que podem, eles próprios, ser fixados a um nível mais baixo, não creio que exista evidência de que aquelas reduções sejam excessivas. Acresce que a poupança que se estima associada à diminuição do valor de tais prestações de que dá conta a Nota enviada pela Presidência do Conselho de Ministros a este Tribunal, a título de resposta aos diversos pedidos de fiscalização da Lei do Orçamento do Estado para 2013 - 153 milhões de euros (cfr. p. 3) – aponta no sentido de o interesse orçamental prosseguido ser suficientemente importante para justificar a medida.
§ 3.º - Declaração referente à alínea e) da decisão: a inconstitucionalidade do artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (contribuição extraordinária de solidariedade)
Vencido quanto ao juízo de não inconstitucionalidade relativamente ao artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 que consagra uma «contribuição extraordinária de solidariedade» (CES) a cargo dos pensionistas.
1. A contribuição extraordinária em causa é, como o acórdão evidencia, uma figura híbrida, mas que, mercê do seu regime unitário, deve ser perspetivada como uma única figura. Acresce que, pelas referências que contém a uma pluralidade de institutos relevantes no domínio da segurança social, deve ser descodificada de acordo com a pertinente legislação, com particular destaque para a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro - Lei de Bases da Segurança Social.
No Relatório do Orçamento do Estado para 2013 a dita contribuição é apresentada como uma «Medida do Lado da Redução de Despesa» que “visa um efeito equivalente à medida de redução salarial aplicada aos trabalhadores do setor público” (cfr. p. 51). E se o alcance da CES fosse apenas esse, até poderiam valer em relação a ela os argumentos que justificam o juízo de não inconstitucionalidade relativamente ao artigo 77.º - suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalentes de aposentados e reformados (cfr. a declaração de voto conjunta e supra o § 1.º). Todavia, o paralelismo não existe, seja na medida em que se pretende alcançar um «efeito corretivo» das pensões de valor mensal superior a 5 030,64 € (cfr. o n.º 2), seja no que se refere ao universo das pensões atribuídas no âmbito de regimes especiais (v.g. o regime dos advogados e solicitadores) ou de regimes complementares - o público e os privados - da segurança social. Daí ser compreensível que na já mencionada Nota da Presidência do Conselho de Ministros, ainda que sem um comprometimento definitivo, se admita poder tratar-se de um imposto - não um novo imposto sobre o rendimento dos reformados e pensionistas, mas um adicional ao imposto sobre o seu rendimento, instituído em benefício da segurança social e que, portanto, se reconduziria ainda ao mesmo imposto (cfr. p. 50).
No acórdão a medida é perspetivada simultaneamente como redução da despesa (pensões processadas no âmbito dos sistemas previdenciais públicos de segurança social – o sistema previdencial do artigo 50.º e seguintes da Lei de Bases da Segurança Social e o sistema correspondente ao regime de proteção social convergente objeto da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro) e como tributo parafiscal (pensões dos regimes complementares de iniciativa pública ou de iniciativa coletiva privada). Todavia, também se reconhece a sujeição da CES a uma disciplina unitária – a diferenciação de taxas em razão do valor das pensões distribuído por diversos escalões, o englobamento de todas as pensões, o modus operandi e a consignação prevista no artigo 78.º, n.º 8 – que convoca a ideia de um tributo.
E é esse o seu traço unificador mais marcante: atinge, diminuindo-os, os rendimentos de uma certa categoria de pessoas – as que se encontram em situação de reforma ou similar – que, tendo cumprido as suas obrigações contributivas, contavam agora com as prestações correspondentes. E, ao fazê-lo, para além de contrariar direitos definidos de acordo com a lei anterior, a CES quebra a relação de conexão entre a contribuição e o benefício. Com efeito, ainda que num sistema assente na repartição possa não existir uma rigorosa ou proporcional correlação entre o montante da contribuição e a perceção de uma futura pensão, a contribuição é sempre a contraprestação, o pressuposto causal e a medida do benefício.
No quadro da CES não é isso que se verifica: o valor da pensão auferida é um dado que indicia a capacidade de contribuir para os sistemas previdenciais públicos. A obrigação de contribuir – ou seja, de pagar a CES – é, nesta perspetiva, imposta unilateralmente para acorrer a despesas que, atento o subfinanciamento do sistema previdencial, também são gerais, funcionando a pensão como manifestação de capacidade contributiva e fonte de financiamento suplementar. Deste modo, a CES incide sobre um rendimento pessoal específico – a pensão – sobrecarregando o seu titular, já sujeito, nos termos gerais, ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. E a única especificidade de tal rendimento radica na qualidade de pensionista do seu titular – característica inadequada para justificar a dupla incidência da tributação do rendimento.
Recaindo aquele imposto e a CES sobre o mesmo rendimento – a pensão – compreende-se que o valor da primeira possa ser abatido ao rendimento global, para efeito de apuramento da matéria coletável em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (cfr. o artigo 53.º do respetivo Código), evitando-se, por essa via, a dupla tributação. Contudo, isso não impede que os contribuintes pensionistas – apenas por serem pensionistas - independentemente da sua capacidade contributiva, possam vir a ter de suportar uma taxa média de impostos sobre o rendimento pessoal superior à de outros contribuintes com rendimentos de outras categorias, incluindo os rendimentos do trabalho, e isto sem uma justificação objetiva fundada na própria natureza do rendimento (como pode acontecer com as taxas liberatórias, relativamente aos rendimentos de capital). Com efeito, tal sucede apenas porque se trata de pensionistas e porque se considera necessário reduzir o peso dos encargos com a segurança social no orçamento geral do Estado. Nessa medida, existe, desde logo, uma violação do princípio da igualdade.
Acresce que a mesma contribuição não toma em consideração, a qualquer título, as necessidades do agregado familiar - sendo certo que, por força da alínea f) do n.º 2 do artigo 67.º da Constituição, incumbe ao Estado, para proteção da família, “regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares”. Enquanto tributação autónoma em relação ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, não são tomadas em consideração na CES quaisquer mecanismos ou técnicas que permitam acomodar os encargos familiares, como é o caso do método do quociente conjugal, acompanhado no ordenamento fiscal português de um sistema de deduções à coleta. Ora, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, “o princípio da igualdade é desrespeitado quando pessoas em condições iguais pagam impostos desiguais”.
Assim, os rendimentos dos pensionistas são afetados mais penosamente em sede de tributação incidente sobre o rendimento pessoal do que os rendimentos de várias outras categorias de contribuintes. E não se vislumbra a justificação para tal penalização, independentemente da proveniência pública ou privada das pensões e da concreta capacidade contributiva dos pensionistas. O artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 viola, pelo exposto, o artigo 104.º, n.º 1, da Constituição.
2. Mas o mesmo preceito suscita preocupações adicionais.
Com efeito, a CES é não apenas híbrida, mas, na parte em que se reporta aos regimes especiais e complementares, antissistémica. Como o próprio acórdão deixa transparecer, o sistema de segurança social não é monolítico: ao lado do sistema previdencial, de natureza obrigatória e assente no princípio da contributividade, há que considerar outras realidades, como os sistemas complementares, que são facultativos e de base não necessariamente contributiva. O tratamento uniforme de realidades tão díspares conduz inevitavelmente a injustiças. Por outro lado, mesmo as necessidades de reforma dos sistemas previdenciais públicos (o geral e o específico da função pública) também não podem deixar de considerar diversas especificidades e de atender à proteção da confiança legítima.
3. Em primeiro lugar, no que se refere ao sistema previdencial e ao regime de proteção social convergente (v., respetivamente, a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, artigos 50.º a 66.º, e a Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro), não pode excluir-se em absoluto a admissibilidade de uma medida extraordinária de redução de despesa – como, por exemplo, a redução das pensões - paralela àquela que foi adotada em relação aos trabalhadores da Administração Pública. Se é certo que ambos os regimes previdenciais em causa funcionam com base num sistema de repartição, os mesmos, devido ao seu subfinanciamento estrutural, exigem em cada ano um contributo do Orçamento do Estado. E, numa situação de exceção como aquela que se vive, não deve ser afastada a possibilidade de os respetivos beneficiários serem chamados a dar o seu contributo para o esforço de consolidação global. Tal solução justifica-se tanto mais quanto a alternativa a tal contributo passaria por exigir um esforço acrescido aos atuais contribuintes para o sistema – os trabalhadores presentemente no ativo – sendo certo que os mesmos, por força das indispensáveis reformas no sistema da segurança social já realizadas e a realizar, e da evolução menos positiva da demografia, (já) estão neste momento a contribuir para o pagamento de pensões de valor muito superior àquele de que alguma vez irão poder beneficiar ao abrigo do mesmo regime previdencial.
Porém, uma coisa são as medidas pontuais de caráter excecional em vista de estabilização orçamental, outra, bem diversa, é a introdução de medidas corretivas e a aplicação do princípio da justiça ou solidariedade intergeracional com vista a assegurar a autossustentabilidade do próprio sistema. Não se pretende negar a necessidade ou conveniência de tais medidas reformadoras. As mesmas, todavia, carecem de ser pensadas e concebidas dentro do próprio sistema como uma sua reforma estrutural. Tal não se compadece nem com um limiar mínimo de aplicação tão elevado como o referido no artigo 78.º, n.º 1 (pensões acima de 1 350 €) nem com o tratamento indiferenciado de situações tão diversas (ao longo do tempo a base de cálculo da pensão variou muito – há quem tenha pensões calculadas com base em cinco, dez ou trinta anos de contribuições). Numa eventual reforma promotora da autossustentabilidade do sistema haverá que respeitar, ao lado da justiça intergeracional, também a justiça intrageracional. Do mesmo modo, haverá que atender à situação daqueles que, por terem confiado na suficiência da pensão atribuída no quadro do sistema previdencial, não sentiram necessidade de investir em esquemas complementares de reforma.
Em suma, um dos riscos associados à CES é justamente o de a mesma poder ser tomada como um «embrião de reforma» do sistema previdencial da segurança social, quando tal medida é, devido à indiferenciação que a caracteriza, totalmente inadequada para o efeito.
4. As disfunções da CES são ainda maiores na sua aplicação aos regimes especiais e ao sistema complementar.
Os primeiros, pelo seu caráter obrigatório e devido à base contributiva, substituem relativamente aos trabalhadores abrangidos o sistema previdencial geral. A legitimidade e autonomia legais dos mesmos decorrem, hoje, dos artigos 53.º e 103.º da Lei de Bases da Segurança Social e não se afigura que a sua existência contrarie o disposto no artigo 63.º da Constituição. Por outro lado, trata-se de sistemas autossuficientes e autossustentáveis, em relação aos quais o Estado não tem qualquer interferência, para além de os reconhecer enquanto modo idóneo de efetivação do direito à segurança social. Sem poder excluir a possibilidade do Estado exercer uma função regulatória em relação aos mesmos, enquanto garantidor último do sistema de efetivação de tal direito (cfr., por exemplo, os princípios do primado da responsabilidade pública e da unidade previstos, respetivamente, nos artigos 14.º e 16.º da Lei de Bases da Segurança Social), a verdade é que, à data, tal função não se encontra prevista, pelo que também nada justifica o desvio de verbas dos regimes especiais em benefício exclusivo do regime geral.
5. Quanto aos segundos, cumpre começar por recordar que revestem natureza complementar o regime público de capitalização e os regimes complementares privados de iniciativa coletiva (em que se integram os regimes profissionais complementares – artigo 83.º, n.º 2, da Lei de Bases da Segurança Social) e de iniciativa individual (cfr. o artigo 81.º, n.º 1, da Lei de Bases da Segurança Social). Trata-se, nos termos da lei, de “instrumentos significativos de proteção e de solidariedade social, concretizada na partilha das responsabilidades sociais, devendo o seu desenvolvimento ser estimulado pelo Estado através de incentivos considerados adequados” (cfr. o artigo 81.º, n.º 2, da Lei de Bases da Segurança Social). A adesão aos mesmos é voluntária e a sua «complementaridade» decorre da circunstância de as pertinentes prestações serem atribuídas em acumulação com aquelas que são concedidas pelos sistemas previdenciais (cfr. quanto ao regime público de capitalização, o artigo 82.º, n.º 1, da Lei de Bases da Segurança Social). Por outro lado, e diferentemente do que sucede com os regimes previdenciais gerais de caráter obrigatório – e que correspondem ao chamado «primeiro pilar» - os sistemas complementares assentam o respetivo financiamento em sistemas de capitalização individual: o benefício a receber por cada pensionista é função do capital investido que lhe seja imputável. Portanto, cada regime complementar deve ser autossustentável e suportar os seus riscos próprios e o beneficiário dos regimes complementares é, à partida, titular de um direito de crédito quantificável segundo regras pré-definidas. Tal benefício corresponde à remuneração da poupança realizada ou investida em vista da reforma.
Esta última circunstância, conjugada com a base contratual (ou para-contratual) dos regimes em análise, obriga, desde logo, a equacionar a tutela do direito à prestação complementar em termos distintos do direito estatutário à pensão definida na base de um sistema de repartição. Com efeito, e sem prejuízo da necessidade de apreciação de cada regime complementar em concreto, não pode afastar-se nesta sede, sem mais e tal como se faz no acórdão a propósito do direito à pensão qua tale, a pertinência da tutela do direito de propriedade, com todas as consequências em matéria de igualdade perante os encargos públicos.
Por outro lado, também não pode esquecer-se que todo o beneficiário de um regime complementar é, em princípio, igualmente beneficiário de um regime previdencial. Significa isto que o contributo para o financiamento dos sistemas previdenciais obrigatórios exigido aos beneficiários de regimes complementares é, por comparação com o que é exigido àqueles que são apenas beneficiários dos regimes previdenciais, não só duplicado, como agravado, em virtude do englobamento e da progressividade das taxas (cfr. os n.os 1, 2 e 5 do artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013) – circunstância que inculca uma violação da igualdade proporcional.
Acresce que, aceitando como exata a interpretação do âmbito de aplicação da CES feita no acórdão, nomeadamente no que se refere à não inclusão no n.º 3 do artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 dos regimes complementares de iniciativa individual a que se refere o artigo 84.º da Lei de Bases da Segurança Social (as pensões e benefícios do chamado «terceiro pilar»), não é inteligível a razão da diferença de tratamento face aos demais regimes complementares (as pensões e benefícios do chamado «segundo pilar»), e, de modo especial, no que se refere ao regime público de capitalização, expressamente definido pela lei como “de adesão voluntária individual” (cfr. o o artigo 82.º, n.º 1, da Lei de Bases da Segurança Social). Com efeito, fica por explicar por que é que quem confiou as suas poupanças ao Estado em vista da obtenção de um complemento de reforma é chamado a «participar» na CES e quem confiou as poupanças a uma instituição de crédito privada ou a uma seguradora já não tem de contribuir…
Finalmente, coloca-se aqui com toda a acuidade o problema da tutela da confiança.
A subtração de benefícios devidos no âmbito de sistema complementar da segurança social para financiar os sistemas previdenciais de caráter geral e obrigatório – e é esse inequivocamente o alcance da consignação de receitas estatuída no n.º 8 do artigo 78.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 – contraria não apenas pontualmente a confiança daqueles que agora são também beneficiários de regimes complementares, como, sobretudo, cria objetivamente insegurança quanto ao próprio sistema de segurança social e às bases em que assentará a sua indispensável reforma. Com efeito, já há muito, e seguramente desde a reforma da segurança social realizada em 2007, que são conhecidas as limitações estruturais dos sistemas previdenciais gerais existentes. Por isso mesmo, foi apontada como via alternativa a quem se encontra ainda no ativo o «investimento» em regimes complementares. É precisamente a essa luz que se entende o favorecimento de tais regimes previsto no já citado artigo 81.º, n.º 2, da Lei de Bases da Segurança Social: o Estado deve estimular o seu desenvolvimento através de incentivos. Por isso, recorrer agora aos mesmos regimes – aliás, não a todos, mas apenas àqueles em que a partilha de responsabilidades sociais é mais intensa, como acontece nos regimes de iniciativa coletiva; ou àqueles que, embora de iniciativa individual, se baseiam na confiança depositada no Estado, como acontece com o regime público de capitalização – para obter recursos necessários ao financiamento dos sistemas previdenciais gerais, não pode deixar de suscitar sérias dúvidas quanto à consistência e eficácia protetiva das soluções apontadas pelo próprio legislador como alternativas desejadas para assegurar uma evolução virtuosa do sistema de segurança social no seu todo.
É conhecida a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança. De acordo com essa jurisprudência (cfr., entre muitas, a síntese feita no Acórdão n.º 154/2010),
« [P]ara que esta última seja merecedora de tutela é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Como se disse no Acórdão n.º 188/2009, os dois critérios enunciados são finalmente reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou «testes». Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção.»
In casu, no que se refere aos beneficiários dos regimes complementares, é inequívoca a verificação dos primeiros três requisitos. Por outro lado, e quanto ao último «teste», não me parece que os benefícios financeiros imediatos para os sistemas previdenciais gerais possam suplantar os danos de confiança causados, já que o descrédito de alternativas consistentes àqueles regimes previdenciais tem a grande probabilidade de redundar, a prazo, num maior prejuízo para o sistema de segurança social globalmente considerado e numa menor garantia do direito fundamental à segurança social (artigo 63.º, n.º 1, da Constituição).
§ 4.º - Declaração referente à alínea e) da decisão: a inconstitucionalidade do artigo 186.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, na parte na parte em que altera o artigo 78.º do Código do IRS (eliminação e redução das deduções à coleta)
Vencido em parte, porquanto julgo inconstitucional a inadmissibilidade legal de deduções à coleta a partir de determinado valor do rendimento coletável.
Acompanho a fundamentação do acórdão, quer no tocante à teleologia das deduções à coleta, quer no que se refere à existência de um amplo espaço de conformação do legislador na fixação dos seus montantes. Considero, todavia, que, se o quadro de emergência económica e financeira em que o Orçamento do Estado para 2013 foi aprovado ainda pode justificar circunstancialmente uma redução drástica e a valores quase simbólicos do montante de algumas dessas deduções; o mesmo quadro já não explica a pura e simples irrelevância fiscal de despesas normalmente associadas às necessidades próprias do agregado familiar (em especial, as despesas de saúde, de educação e formação, as importâncias respeitantes a pensões de alimentos e os encargos com lares e com imóveis). Na exata medida de tal irrelevância, o legislador ordinário ultrapassou o espaço de livre conformação que lhe deve ser – e é - reconhecido neste domínio.
Com efeito, a impossibilidade absoluta de deduzir à coleta parte do valor daquele tipo de despesas no escalão de rendimento coletável superior a 80 000 euros redunda, desde logo, numa desconsideração do agregado familiar contrária à diretriz do artigo 67.º, n.º 2, alínea f), e ao estatuído no artigo 104.º, n.º 1, ambos da Constituição. Além disso, a mesma impossibilidade cria uma desigualdade de tratamento incompatível com o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição entre sujeitos passivos posicionados no mesmo escalão de rendimento coletável – uma desigualdade, por assim dizer, horizontal –, já que, ao impedir em absoluto tais deduções, a lei abstrai por completo da circunstância dos sujeitos passivos em causa viverem sozinhos ou antes integrados num agregado familiar, suportando as inerentes e acrescidas necessidades financeiras: por causa destas últimas, o rendimento disponível – ou seja, aquele que deve relevar para a determinação da capacidade contributiva no âmbito dos impostos sobre o rendimento (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária) – de quem vive sozinho é sempre superior ao de quem tem outros a seu cargo e com eles convive. Ora, se, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, “o princípio da igualdade é desrespeitado quando pessoas em condições iguais pagam impostos desiguais”, o mesmo princípio também não é respeitado na situação simétrica: quando pessoas em condições desiguais pagam impostos iguais.
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencida quanto à decisão de não inconstitucionalidade das normas do Orçamento de Estado para 2013 que estabelecem, para o ano de 2013, a redução salarial dos trabalhadores do setor público e o efeito equivalente a essa redução em certos contratos que visem a docência ou a investigação e nas pensões, ou seja as normas contidas no artigo 27.º, no artigo 31.º, quanto à aplicação do artigo 27.º aos contratos em causa, e no n.º 1 do artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento de Estado para 2013 (LOE).
2. É nas situações de emergência ou crise financeira que mais importa tomar em consideração o bem comum tutelado constitucionalmente, de tal modo que a repartição dos sacrifícios seja feita sem afetação dos princípios da solidariedade, da igualdade e da proteção das famílias.
O programa político de redução do défice não pode ser feito sem o respeito pela Constituição da República Portuguesa (CRP) e os seus princípios, desde logo o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
3. As normas em referência, tendo em conta o seu âmbito de aplicação, conduzem à identificação de grupos distintos de pessoas, sujeitos a regimes legais diferenciados. Na qualificação de situações como iguais ou desiguais, para efeitos da posterior aplicação do teste do princípio da igualdade, é determinante a razão de ser do tratamento jurídico que se lhes pretende dar. Ora, a aprovação das normas em causa tem como objetivo a redução do défice orçamental do Estado. Na medida em que visam solucionar um problema do Estado, enquanto coletividade, o interesse público por elas prosseguido diz respeito à generalidade dos cidadãos e não, unicamente, aos trabalhadores do setor público e/ou pensionistas.
4. Acresce que através das referidas normas são afetados direitos fundamentais, designadamente o direito à retribuição do trabalho consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP e o direito à pensão como manifestação do direito à segurança social consagrado no artigo 63.º, n.º 1, da CRP. De facto, o valor ou o montante das remunerações dos trabalhadores ou das pensões não pode deixar de estar abrangido pela esfera de proteção dos direitos fundamentais referidos pois representa um elemento essencial desses direitos. Se assim não fosse, a esfera de proteção ficaria comprimida a um conteúdo mínimo, de forma incompreensível e injustificável. A redução das remunerações ou das pensões representa uma restrição àqueles direitos que é constitucionalmente admissível mas que deve obedecer a parâmetros constitucionais, como o da proporcionalidade e o da igualdade.
5. Estando em causa o tratamento diferenciado de grupos de pessoas, o controlo do respeito pelo princípio da igualdade por parte do Tribunal Constitucional não deve cingir-se a um controlo de evidência ou de mera ausência de arbítrio, antes se impondo uma análise mais densa e exigente. Tanto mais quando, como nos casos em presença, como referi, são afetados direitos fundamentais.
E não se diga que, por a situação presente não se encontrar expressamente contemplado pela proibição do n.º 2 do artigo 13.º da CRP, a diferenciação de tratamento de grupos de pessoas deverá ficar reduzida a um controlo de mera proibição de arbítrio. É precisamente quando se identificam situações de diferença de tratamento de grupos de pessoas não previamente assinaladas como intoleráveis que se impõe densificar o teste de controlo das opções do legislador para evitar discriminações inaceitáveis por violação do princípio da igualdade previsto no n.º 1 do artigo 13.º da CRP.
6. A este respeito e na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, ultrapassando o teste do arbítrio, incidente sobre a razão do tratamento diferenciado, importa lançar mão de um teste mais exigente de controlo do princípio da igualdade (designado por aquele Tribunal como nova fórmula) que, prosseguindo uma igualdade proporcional ou ponderada, se preocupa com as diferenças existentes entre os grupos e a sua correspondência com as diferenças dos regimes aplicáveis. No caso da proibição do arbítrio inquire-se pela justificação constitucional de um tratamento diferenciado partindo de fora, na medida em que se pergunta por razões externas que o justifiquem, sem entrar em consideração com as características específicas de cada grupo; diferentemente, a nova fórmula visa determinar se nos atributos de cada grupo visado existe justificação para o tratamento diferenciado. Em primeiro lugar, identificando as diferenças entre os grupos e, estabelecidas estas, indagando da correspondência entre elas e a diferença de tratamento adotada pelo legislador.
Decisivo é, portanto, que cada diferença de tratamento tenha uma razão justificativa assente em diferenças objetivas entre os grupos, sendo que as diferenças devem ser tanto de maior natureza e de maior relevância quanto mais grave for a diferença de tratamento.
A maior densidade de controlo assim obtida, apelando embora a uma ideia de ponderação (igualdade ponderada), não deve ser confundida com o teste clássico da proporcionalidade dos direitos de liberdade. Este assenta no juízo de um fim que deve ser perseguido por um determinado meio, verificando, de seguida, a relação meio-fim, enquanto o teste da igualdade configura uma comparação entre grupos de destinatários de normas e regimes aplicáveis.
7. O Tribunal Constitucional tem vindo a justificar, em arestos anteriores, a diferença entre os grupos de trabalhadores em presença pelo facto de uns vencerem por verbas públicas (ou recursos públicos) e os outros não. Este argumento é relacionado com a eficácia da medida – que assim terá um impacto certo, imediato e quantitativamente relevante nas despesas do Estado.
Não posso acompanhar este argumento como fundamento da não inconstitucionalidade do artigo 27.º da LOE. A fórmula mais exigente de controlo do princípio da igualdade (igualdade ponderada), a que acima aludi, ao exigir a verificação de uma relação interna entre as diferenças detetáveis nos grupos de pessoas em causa e a diferença de tratamento dada pelo legislador, evidencia que as razões de eficácia não podem servir de justificação face ao princípio da igualdade, neste caso. A eficácia, não é uma característica de qualquer dos grupos destinatários da norma. Antes uma valoração externa da justificação da medida, em razão do resultado e não em razão das diferenças detetadas nos grupos de pessoas em confronto.
Por outro lado, a diferença anotada – da perceção por um grupo de remuneração através de verbas públicas – não revela natureza e relevância suficientes para justificar o grau de tratamento mais oneroso a que os trabalhadores do setor público estão sujeitos por via do artigo 27.º da LOE. A circunstância de a entidade empregadora ser um ente público ou privado – a diferença existente, de facto – não justifica a discriminação na redução dos vencimentos. A solução legal proposta assenta numa ideia de poder dispositivo unilateral do Estado sobre as remunerações de todos os trabalhadores do setor público e pressupõe que a garantia do direito fundamental à retribuição não tem igual expressão para todos os trabalhadores, o que não pode ser aceite. A Constituição não distingue o grau de garantia que merece a remuneração dos trabalhadores do setor público, privado ou do terceiro setor (artigo 59.º, n.º 3, da CRP).
Estas considerações são relevantes especialmente tendo em conta que, como acima se começou por salientar, todos devem contribuir para um objetivo que a todos aproveita: a diminuição do défice do Estado.
Não existe, pois, correspondência entre a característica identificadora do grupo de pessoas formado pelos trabalhadores do setor público e o tratamento diferenciado que lhes é proporcionado relativamente aos demais cidadãos portugueses.
8. Os motivos que me levam a considerar o artigo 27.º da LOE inconstitucional, à luz do princípio da igualdade, implicam a mesma conclusão quanto ao artigo 31.º da LOE, quando faz aplicar o artigo 27.º aos contratos por si abrangidos.
9. O raciocínio desenvolvido quanto ao princípio da igualdade também tem consequências relativamente ao meu juízo sobre a inconstitucionalidade parcial do artigo 78.º da LOE.
Visando as medidas contidas no n.º 1 do artigo 78.º da LOE equivaler à redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público, que considero inconstitucional nos termos do ponto anterior, inevitável será concluir que também a suspensão e a redução das pensões ali previstas enfermam de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
Também neste caso não se descortina diferença relativa ao grupo de pessoas em causa que justifique a diferença de tratamento. O estatuto de beneficiários ativos das prestações de que gozam os destinatários da contribuição extraordinária, não justifica a imposição aos pensionistas de um sacrifício adicional, relativamente aos outros cidadãos no equilíbrio das contas do Estado. Aceitá-lo, tendo em vista compensar a transferência extraordinária que houve necessidade de fazer do OE para o orçamento da segurança social (v. Relatório do OE 2013, p. 121), seria onerar especificamente um grupo de pessoas no financiamento das contas públicas.
10. Diferente se afigura a análise da medida prevista no n.º 2 do artigo 78.º, medida distinta da prevista no n.º 1, não só no que respeita aos objetivos visados, como pelo âmbito de incidência definido.
Dirigida que é apenas a uma parte do montante da pensão auferida, concretamente a parte que excede o montante máximo permitido para as novas pensões (v. artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio), a análise da medida orçamental contida no n.º 2 do artigo 78.º convoca a ponderação de razões de justiça proporcional e solidariedade intrageracional não neutralizadas pelo teste da igualdade empreendido no ponto anterior. Se este teste conduziu à inconstitucionalidade da redução, por via orçamental, de qualquer pensão (mesmo as mais elevadas), tendo em vista os fins prosseguidos de atenuação do défice do Estado, nada impede, porém, que apesar de invalidadas as reduções das pensões que visavam equivaler às reduções salariais dos trabalhadores do setor público, se introduza uma medida que, numa situação extraordinária de dificuldades financeiras do próprio sistema de segurança social, imponha um sacrifício mais intenso àqueles que vêm beneficiando (e hão de continuar a beneficiar) de condições privilegiadas que justificaram a atribuição daqueles valores de pensões. Condições de que os atuais contribuintes e futuros pensionistas não poderão beneficiar em razão das novas regras adotadas na reforma do sistema, tendo em vista dotá-lo de sustentabilidade financeira (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009, disponível em www.tribconstitucional.pt).
E sendo assim, a medida prevista no n.º 2 do artigo 78.º, vista de forma autónoma face à redução prevista no n.º 1, além de não se apresentar como desigualitária, não se revela desproporcionada, num contexto de crise a convocar medidas excecionais no prosseguimento do interesse público de sustentabilidade da Segurança Social e consequente atenuação das necessidades de financiamento através do OE.
11. Tendo em conta o que foi dito, por maioria de razão, acompanho o acórdão no que diz respeito à inconstitucionalidade dos artigos 29.º, 31.º, quanto à aplicação do artigo 29.º aos contratos aí referidos, e 77.º da LOE.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, para além do juízo de constitucionalidade formulado quanto às normas constantes da declaração de voto conjunto, também quanto ao juízo de não constitucionalidade relativamente à norma do artigo 78.º, pelas razões que, sucintamente, se passam a expor.
Haver-se-á, desde logo, de reconhecer que, relativamente ao previsto em anteriores leis, a medida prevista na mencionada norma introduz, agora, uma profunda reestruturação quanto ao seu âmbito quantitativo como qualificativo. Efetivamente, passam a estar abrangidas pela CES pensões de montante significativamente inferior ao que vinha acontecendo (a partir de € 1.350), sendo agora visadas, paralelamente às pensões pagas por entidades públicas, todas as prestações pecuniárias vitalícias devidas a qualquer título a aposentados, reformados, pré-aposentados ou equiparados que não estejam expressamente excluídos pela lei.
Apesar de, no relatório do Orçamento de Estado para 2013, o Ministério das Finanças voltar a incluir a CES na lista de “Medidas do Lado da Redução da Despesa”, visando com ela alcançar “um efeito equivalente à medida de redução salarial aplicada aos trabalhadores do setor público em 2011 e 2012”, certo é que tal qualificação é desmentida pela configuração assumida pela figura. Com efeito, não é pelo facto de a medida em causa incidir sobre todas as prestações pecuniárias vitalícias pagas a título de pensões - sejam elas devidas por entidades públicas ou não – que há que atribuir à CES uma “natureza híbrida”. Trata-se, pois, indiscutivelmente, de um instrumento que opera pelo lado da receita e que, não constituindo uma receita patrimonial, só pode reconduzir-se à família das receitas tributárias, rectius, das prestações pecuniárias coativas.
Ora, independentemente de saber se este tributo é um verdadeiro imposto ou uma contribuição financeira, maxime, um tributo parafiscal, sempre haverá que reconhecer que o mesmo viola um dos mais elementares princípios do Estado de Direito, a saber, o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos (artigo 2.º da CRP).
Cumpre explicar porquê.
Não há dúvidas que a norma em crise não consubstancia uma situação de retroatividade expressamente proibida pela Constituição. No entanto, estando em causa um tributo, o princípio da proteção da confiança não deixa aí de assumir particular relevo, se e na medida em que se achem verificados os seus pressupostos operativos. Assim, à semelhança do que vem a jurisprudência constitucional reconhecendo em numerosos e relevantes arestos (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 556/2003, 128/2009 e 399/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), a conclusão pela inadmissibilidade de uma medida à luz do princípio da proteção da confiança depende, em primeiro lugar, de um juízo sobre a consistência e legitimidade das expectativas dos cidadãos visados, e, em segundo lugar, de um juízo quanto à prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual sacrificado pela mesma, a efetuar nos termos do princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da proibição do excesso.
Ao contrário do que me parece decorrer do Acórdão, estes requisitos cumulativos encontram-se preenchidos na hipótese vertente. De facto, sendo certo que a CES não representa uma inovação do Orçamento de Estado para 2013, integrando já os orçamentos de 2011 e 2012, julgo que, escrutinadas as suas finalidades (v.g., garantir a sustentabilidade financeira dos sistemas de proteção social, adaptar o montante de algumas pensões ao esforço contributivo efetivamente verificado), a configuração que veio a assumir não era previsível nem expectável por parte dos contribuintes outrora não abrangidos.
Não se ignora, como aliás alertou o Acórdão n.º 399/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que o contexto de crise económico-financeira coloca, de per se, os cidadãos de sobreaviso, mitigando nessa medida a possível imprevisibilidade da atuação estadual nos domínios orçamental e tributário. Afigura-se-nos, ainda assim, que aqueles contribuintes detinham expectativas consistentes quanto à conservação do regime jurídico da CES, porquanto esta teria como desiderato, paralelamente à obtenção de receita, a correção de anomalias verificadas em algumas pensões a cargo do Estado (para além de que, como se afirma no Acórdão, se está perante pessoas «…na situação de reforma ou aposentação, portanto, chegadas ao termo da sua vida activa e obtido o direito ao pagamento de uma pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de segurança social, têm expectativas legítimas na continuidade do quadro legislativo e na manutenção da posição jurídica de que são titulares, não lhes sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação a um possível desenvolvimento da actuação dos poderes públicos susceptível de se repercutir na sua esfera jurídica.»).
Depois, tais expectativas devem ter-se por legítimas. Ou seja, não obstante existirem pensões cujos montantes se afiguram manifestamente excessivos face às contribuições efetuadas, tal excesso é produto de uma intervenção do legislador democraticamente legitimado, não sendo reconduzível a uma situação de fraude, ilegalidade ou omissão (Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2011, p. 267).
Finalmente, conclui-se que, atenta a configuração concretamente assumida pela CES – isto é, tendo em consideração as taxas praticadas e o seu âmbito de incidência objetivo e subjetivo – esta não respeita os ditames do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, revelando-se desnecessária e certamente desproporcionada em face dos fins públicos visados. Por um lado, a figura em crise sofre de um deficit claro de racionalidade: o seu âmbito subjetivo de aplicação é mais amplo do que aquilo que seria consonante com o escopo que lhe é inerente, circunstância, aliás, igualmente reveladora da sua inexigibilidade. Por outro, a ablação infligida a certos sujeitos passivos é muitíssimo severa, sobretudo se se tiver em conta não só a progressividade das taxas aplicadas, como a circunstância de ao esforço implicado pela CES acrescerem ainda as demais medidas do OE 2013 também incidentes sobre os rendimentos provenientes de pensões (concretamente, o agravamento das taxas gerais de IRS, a taxa adicional de solidariedade e a sobretaxa em sede de IRS).
Da imprevisibilidade e irracionalidade da alteração introduzida, conjugadas com a gravidade da penalização em que a mesma se traduz, decorre, em meu entender, a não prevalência do interesse público sobre os interesses particulares em presença, havendo que concluir, atento o iter percorrido, pela violação do princípio da proteção da confiança, dedutível do artigo 2.º da CRP, e, consequentemente, pela inconstitucionalidade da norma visada.
J. Cunha Barbosa
DECLARAÇÃO DE VOTO
I.
Acompanhei a presente decisão na parte em que declarou a inconstitucionalidade:
- da norma do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012 (alínea a) da decisão);
- da norma do artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012 (alínea c) da decisão);
- da norma do artigo 117.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012 (alínea d) da decisão).
II.
Fiquei parcialmente vencida:
- quanto à norma do artigo 31.º, da Lei n.º 66-B/2012 (alínea b) da decisão), que manda aplicar o disposto nos artigos 27.º e 29.º aos contratos de docência e de investigação (ver VI.);
- quanto à norma do artigo 186.º, da Lei n.º 66-B/2012, na parte em que altera os artigos 78.º e 85.º do CIRS, abolindo por completo as deduções à coleta relativas à satisfação de necessidades básicas como as de saúde, de educação ou habitação (alínea e) da decisão) (ver VII.).
III.
Relativamente às restantes normas impugnadas, a meu ver, o Tribunal deveria, ainda, ter formulado um juízo de inconstitucionalidade:
- quanto à norma do artigo 27.º, da Lei n.º 66-B/2012, que mantém, pelo terceiro ano consecutivo, a redução salarial da função pública (ver IV.);
- bem como quanto à norma do artigo 78.º, da Lei n.º 66-B/2012, que prevê a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) (ver V.).
Fiquei, consequentemente, parcialmente vencida relativamente à alínea e) da decisão.
As razões pelas quais, nestes pontos, dissenti da maioria são, no essencial, as seguintes:
IV.
Quanto à norma do artigo 27.º, da Lei n.º 66-B/2012, que prevê a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a € 1500:
Revisitando a decisão deste Tribunal respeitante às reduções remuneratórias impostas a quem recebe por verbas públicas (Acórdão n.º 396/2011), verifica-se que o fundamento essencial que, então, conduziu a que se salvasse tal medida de um juízo de inconstitucionalidade não pode, atualmente, merecer acolhimento. Na verdade, em 2011, o Tribunal, ao admitir tal redução remuneratória como não violadora da Lei Fundamental, fundou o seu entendimento na, à época, indiscutível urgência e imperatividade da solução: em face da invocada absoluta necessidade da obtenção, de forma rápida e certa, de um elevado valor precisamente quantificado, para, reduzindo o peso da despesa, coadjuvar a realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, a solução passaria necessariamente pela diminuição, excecional, das remunerações dos trabalhadores do ativo que auferem por verbas públicas, solução apresentada como indispensável em razão da sua eficácia imediata e certeza. E, nessa medida, aceitando não haver razões que, de modo evidente, demonstrassem a existência de outras soluções de igual eficácia, certeza e celeridade, o Tribunal, não afastando a indispensabilidade de tal medida, admitiu que a diferenciação então estabelecida se encontrava ainda dentro do limite do sacrifício, em virtude da sua transitoriedade e montantes, não decidiu pela sua desconformidade constitucional.
Volvidos três sucessivos exercícios orçamentais, o corte de remunerações, três vezes reiterado, não encontra já respaldo na Constituição: o argumento, fundamental, do resultado imediato perdeu-se, e torna-se incompreensível a invocação da imperatividade ou natureza insubstituível da solução para a preservação da capacidade financeira do Estado, por não haver soluções alternativas, de outra natureza, através das quais se chegasse a igual valor certo. Aliás, esta razão, utilizada no acórdão para fundamentar a inconstitucionalidade do artigo 29.º, a que aderi, não pode deixar de estender-se, a meu ver, ao artigo 27.º.
Acresce que o caráter cego da desigualdade mantida pelas reduções remuneratórias só pôde ser constitucionalmente suportável num contexto de efetiva provisoriedade, enquanto solução meramente conjuntural e imediata, justificada pela sua infungibilidade quando se procura atingir um objetivo legítimo e premente.
Refira-se que o facto de a medida, reconhecidamente anual, ter surgido inserida num plano plurianual, logo no primeiro exercício orçamental, não pode ser determinante para a sua aceitação automática por todo o período que a tal plano corresponda. E será ainda mais inaceitável que se possa assumir, por antecipação, a conformidade constitucional da medida por todo esse período, adotando-se a solução como justificada, à partida, independentemente da posterior evolução das condições em futuros exercícios orçamentais a exigirem, ou não.
Significativamente, o legislador, contrariamente à solução legal estabelecida para a suspensão dos subsídios, não consagrou expressamente, no caso das reduções remuneratórias, uma vigência plurianual.
Note-se que já anteriormente, pretendendo o Tribunal, no Acórdão n.º 396/2011, de modo veemente, vincar a transitoriedade da redução remuneratória, não deixou de sublinhar que a norma revestia cariz orçamental/anual. O Acórdão de 2011 referiu que mesmo uma vocação plurianual não dispensaria a renovação da solução nas leis orçamentais subsequentes, durante a vigência do (então) PEC, já que a norma caducaria no termo do ano a que se refere o orçamento.
Razões mais do que suficientes para reafirmar que, quando requerido, o Tribunal Constitucional pudesse reavaliar a solução reiterada, para apurar se o sacrifício adicional que é exigido a uma especial categoria de pessoas é, ainda, de modo evidente, a única forma de, atuando pelo lado da despesa, e com eficácia certa e imediata, atingir os objetivos pretendidos, sendo, tal solução, nessa medida, absolutamente indispensável.
A meu ver não o é. E a decisão agora prolatada parece corroborar isto mesmo (ponto 41 do Acórdão). Todavia, limitou-se a extrair consequências relativamente à suspensão dos subsídios, avaliando o agravamento relativamente ao ano de 2012, não estendendo tal juízo, a meu ver incompreensivelmente, às reduções remuneratórias. E também não deixa de sustentar que não serve hoje de justificação para a supressão de um dos subsídios que integram a retribuição dos trabalhadores da Administração Pública, a par da diminuição da remuneração mensal, que essa seja ainda a medida que apresenta efeitos seguros e imediatos na redução do défice e a única opção. Ora, valendo tal raciocínio relativamente à suspensão de subsídios, deveria valer também para as reduções salariais, considerando-se que a redução da remuneração dos trabalhadores que recebem por verbas públicas, globalmente considerada, não pode hoje ter-se como a única opção cujos efeitos seriam seguros e imediatos na redução do défice. Assim, mesmo não se considerando ultrapassada a difícil situação económica, e aceitando-se que se mantém o mesmo interesse público legítimo ligado a objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, com o decurso do tempo, não pode já justificar-se a imposição de uma redução remuneratória desigualitária com a sua imprescindibilidade (no sentido de opção única) para arrecadar um valor determinado de forma imediata.
Não tendo o Tribunal formulado um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que procedeu à redução remuneratória prevista no artigo 27.º, mantendo a redução, são ainda mais fortes as razões para concordar com a decisão de inconstitucionalidade no que respeita à suspensão do subsídio de férias prevista no artigo 29.º, aceitando, no essencial, os fundamentos avançados na decisão, já que esta outra forma de redução remuneratória, em conjunto com outras medidas de alcance geral, aprofundou o agravamento dos sacrifícios acumulados e continuados que levaram a que se considerasse violado o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos e o princípio da igualdade proporcional.
Mas, ainda que este acrescido sacrifício houvesse sido afastado por inconstitucionalidade, sempre, a meu ver, se deveria manter idêntica solução.
Por um lado, ainda em razão dos sacrifícios acumulados: os trabalhadores que recebem por verbas públicas, a par de medidas mais gerais que a todos afetam (como o aumento da carga fiscal, a diminuição dos escalões, o aumento das taxas e diminuição das deduções, a sobretaxa de 3,5% do IRS; mas também, de outras medidas que podem refletir-se no orçamento das famílias, como o aumento do IVA e do IMI), sofreram já sacrifícios acumulados e reiterados que os tocaram especialmente, entre os quais: a redução de remunerações iniciada em 2011 e mantida em 2012 (e, por força desta decisão, ainda em 2013), o congelamento de salários (com desvalorização agravada com a inflação), a proibição de valorizações remuneratórias decorrentes de progressões ou promoções, a alteração das regras das ajudas de custo nas deslocações em serviço, a redução adicional na compensação sobre o valor do trabalho extraordinário e, na prática, a suspensão dos subsídios de férias e de Natal de 2012, situações que agravaram o seu dia a dia, obrigaram à utilização de poupanças, diminuíram a sua capacidade de endividamento.
O que conduz à iniquidade da redução remuneratória não é já a ausência de esforço dos titulares de outros rendimentos, agora igualmente visados, ou do esforço de titulares de rendimento de trabalhadores do setor privado, também penalizados por medidas universais de agravamento fiscal, mas sim a inexistência de justificação suficiente para manter a assimetria, com tal efeito continuado de sacrifícios. E a assimetria é tanto mais pronunciada quanto menor é o rendimento disponível, já que o rendimento vale tanto mais quanto menor ele é.
Por outro lado, como salientei, fundamental é notar que, repetida em três exercícios orçamentais consecutivos, à redução salarial - seja ela resultante da redução remuneratória imposta pelo artigo 27.º, ou relativa aos subsídios (artigo 29.º) - não pode continuar a servir de justificação a invocação de que esta seria, ainda, a única opção que apresenta efeitos seguros e imediatos na redução do défice, em detrimento de outras soluções alternativas de redução da despesa pública.
Por todo o exposto, teria declarado a inconstitucionalidade do artigo 27.º, da Lei n.º 66-B/2012, que prevê a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas que recebem por verbas públicas, de valor superior a € 1500.
V.
Relativamente à norma do artigo 78.º, da Lei n.º 66-B/2012, que prevê a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES):
Contrariamente à maioria, considero que a CES é um tributo sujeito à Constituição fiscal, convocando o disposto no artigo 104.º, n.º 1, da CRP. Assim sendo, a CES viola, a meu ver, princípios basilares como o da universalidade do imposto, da igualdade perante os encargos públicos, da capacidade contributiva, e da proibição do excesso.
A CES foi concebida como uma medida puramente conjuntural, de obtenção de receita, que de forma unilateral e coativa incide sobre pensões do sistema público de segurança social (sistema previdencial da segurança social e sistema de proteção social da função pública, correspondentes ao 1.º pilar do sistema de segurança social) e sobre as prestações geradas pelos regimes complementares de segurança social (2.º pilar do sistema de segurança social), destinada a reforçar o financiamento da segurança social. Apesar de no relatório sobre o OE para 2013 a CES estar incluída na lista das medidas do lado da redução da despesa (qualificação que, aliás, não mereceu a concordância do Parecer Técnico da Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República), a verdade é que tal qualificação não pode aceitar-se, já que a CES não abrange apenas pensões que oneram o sistema público de segurança social, aplicando-se também às prestações do sistema complementar (e substitutivo) que nada pesam sobre aquele. E, por isso, também não pode colher a ideia de que com esta medida se busca a introdução de reduções da despesa com efeito equivalente à redução salarial dos trabalhadores do setor público.
A CES reveste, essencialmente, características de imposto de natureza parafiscal, sobre o rendimento de pensionistas e reformados, distinto do IRS, com escalões e progressividade diferentes deste, com distinta base de incidência (veja-se, nomeadamente, que é sobre o rendimento bruto, ao contrário do IRS, que incide sobre o rendimento após as deduções específicas).
Divirjo da maioria já que vejo na CES um caráter absolutamente unilateral, não sinalagmático, nem associado a um benefício individualizado ou a uma contraprestação específica a quem a ela fica sujeito. Isto assume particular evidência no caso das pensões pagas por pessoas coletivas de direito privado ou cooperativo, como as instituições de crédito, através dos fundos de pensões, das companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões, ou de pessoas coletivas de direito público como a Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados ou dos Solicitadores, já que estas, em si mesmas, em nada oneram o orçamento da Segurança Social. Mas também resulta claro do facto de, em geral, as contribuições para a segurança social virem sendo consideradas como prestação do trabalhador no ativo e do empregador para o pagamento de pensões, numa lógica de repartição, e não numa lógica de contraprestação a cargo do interessado (sistema PAYG). (ver p. 192-193)
Ao contrário da maioria, não tenho como suficiente para afastar a unilateralidade de tal prestação um qualquer difuso benefício que do sistema de segurança social retirem, de modo longínquo, os beneficiários das pensões dos regimes substitutivos ou, mesmo, os dos regimes complementares, no que ao complemento de pensão respeita.
O procedimento de arrecadação de receita (artigo 78.º, n.º 8), que se assemelha ao modo de arrecadação de receitas fiscais, também contribui para a qualificação da medida como imposto de natureza para fiscal.
Não se argumente, para furtar a CES à qualificação como imposto, que a CES é uma receita consignada a satisfazer as necessidades do subsistema contributivo da segurança social, o que afastaria a sua qualificação como imposto: na verdade, este tipo de contribuições destinadas à segurança social estão afetas ao financiamento de uma ampla categoria de despesas do sistema previdencial, mas também de outras, como as políticas ativas de emprego e de formação profissional (ver, v.g, Nazaré Costa Cabral, «Contribuições para a segurança social: um imposto que não ousa dizer o seu nome?», Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. IV, FDUL, 2010, p. 295).
Mas, mesmo que, em face da sua bizarria, admitisse que a CES é um tertium genus, não inteiramente enquadrável na categoria de imposto, sempre andaria próximo de jurisprudência do Tribunal Constitucional que sustentou a aplicação dos princípios constitucionais recortados para os impostos aos tributos intermédios (Acórdãos n.os 183/96 e 1203/96), salvo no que diz respeito ao princípio da reserva de lei formal. (Na doutrina, entre nós, Casalta Nabais também considera que a sua sede é a Constituição fiscal, Direito fiscal, 7.ª Edição, Coimbra, 2013, p. 586-587).
Em minha opinião, a indispensabilidade da aplicação do regime da Constituição fiscal a tributos sui generis como este, pretende obstar à criação deliberada, pelo legislador, de medidas de obtenção de receita intencionalmente equívocas que, por revestirem características de ambos os mundos, se furtariam à aplicação dos princípios e regras em matéria de impostos.
E, no caso em apreço, é particularmente visível que se justificam as razões de tutela.
Assim encarada a CES, defendo, por razões que aqui exponho sumariamente, que esta, recaindo apenas sobre uma só categoria de contribuintes, que corresponde a um universo específico de pessoas, delimitado em função da sua condição de inatividade laboral, se configura como um imposto de classe, uma medida seletiva, que não encontra fundamento racional bastante, sendo, consequentemente, violadora do princípio da universalidade e da igualdade tributária.
A CES também desrespeita a capacidade contributiva, pondo em causa a pessoalidade do imposto, ao não atentar nas necessidades e rendimentos reais do agregado familiar, isto é, não ponderando o real rendimento disponível, já que, contrariamente ao IRS, não leva em linha de conta deduções à coleta em matéria de saúde, educação, pessoas a cargo, por exemplo.
Saliente-se, igualmente, que considerar-se a CES como uma medida conjuntural de correção de pensões de elevado montante que não encontram correspondência nos descontos realizados, destinada a recuperar receitas, seria desrazoável: a adoção de tal mecanismo corretivo, onerando indistintamente todos os que recebem prestações sociais vitalícias, mesmo aqueles que tiveram uma efetiva carreira contributiva, havendo procedido a descontos suficientemente elevados ao longo da vida, assim tendo por base uma adequada sustentação contributiva constituída na vida ativa por si e pelas entidades empregadoras, violaria o princípio da proibição do excesso. Por outro lado, tal correção nunca poderia ter lugar através de uma medida episódica e, como acabamos de ver, cega.
Por fim, mas não menos importante, é de sublinhar que não acolho o argumento de que a CES se justificaria também por um dever de solidariedade intergeracional: um tal objetivo jamais pode ser prosseguido por uma medida meramente conjuntural e avulsa. Ora a CES, como foi concebida, enquanto receita extraordinária, não é uma medida estrutural, pensada para a solvabilidade do sistema, não podendo, por isso, ser encarada como uma medida com o propósito de reduzir encargos lançados sobre as gerações futuras.
Razões pelas quais, em meu entender, o Tribunal deveria ter declarado a inconstitucionalidade da Contribuição Extraordinária de Solidariedade.
Não havendo o Tribunal considerado a CES violadora da Constituição - o que a conservará - não posso, por maioria de razão, deixar de aderir, no essencial, aos argumentos utilizados no acórdão para fundamentar a inconstitucionalidade da suspensão do subsídio de férias dos aposentados, reformados e pensionistas, na medida em que a CES, juntamente com outras medidas de incidência geral, contribuiu para o agravamento dos sacrifícios acumulados que justificam a violação do princípio da igualdade proporcional.
No entanto, sempre se dirá que mesmo que a CES houvesse sido afastada por um juízo de inconstitucionalidade, ficando menos pesados os sacrifícios, a meu ver, seria sempre de manter idêntico juízo relativamente à suspensão dos subsídios de férias dos aposentados, reformados e pensionistas, por violação do princípio da proteção da confiança. A posição deste segmento da população, relativamente à dos trabalhadores do ativo, por exemplo, é digna de especial ponderação no que à proteção da confiança diz respeito (para tal muito contribuindo o direito à segurança económica das pessoas idosas, previsto no artigo 72.º, n.º 1, da CRP), já que é um grupo de pessoas muito mais sensível ao impacto das medidas de contração das prestações a que tem direito. Referimo-nos, afinal, a um segmento da população que, na sua maioria, se encontra em especial situação de vulnerabilidade e dependência e que, por naturais razões atinentes à sua idade (e, muitas vezes, à saúde) se mostra incapaz de reorientar a sua vida em caso de alteração inesperada das circunstâncias. Entendo, por estas razões, que não podem ser afetadas neste grau, as suas expectativas relativamente às prestações fixadas – e refiro-me, sobretudo, a certas faixas de pensões que realizaram efetivos descontos durante uma carreira contributiva – nem neste grau prejudicada a tutela do investimento na confiança que o acórdão também refere. Reconhecendo que o interesse público prosseguido com esta medida é, igualmente, digno de tutela, não pode, no entanto, em minha opinião, deixar de se considerar que é excessiva a medida da afetação da confiança infligida a uma faixa da população que depende desta prestação social para garantir a sua independência económica e a sua autonomia pessoal (tanto mais que foram já afetados por outras medidas gerais de austeridade, e que, nalguns casos, deles voltou, de novo, até, a depender a família).
Por último, faço notar que entendo que a CES partilha com a contribuição incidente sobre os subsídios de doença e desemprego a característica de medida de obtenção de receita, o que, não sendo consensual, não impede ter eu aderido ao fundamento do acórdão para declarar a inconstitucionalidade do artigo 117.º, independentemente da sua caracterização.
VI.
Estou parcialmente vencida quanto à norma do artigo 31.º, da Lei n.º 66-B/2012 (alínea b) da decisão), que manda aplicar o disposto nos artigos 27.º e 29.º aos contratos de docência e de investigação, já que o efeito da inconstitucionalidade do regime destes artigos se projeta sobre a validade constitucional do artigo 31.º. Atendendo ao sentido do meu voto, o artigo 31.º seria consequencialmente inconstitucional, não apenas na medida em que torna aplicável a docentes e investigadores o regime do artigo 29.º (suspensão de subsídios), mas também pela remissão que opera para o artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012 (redução remuneratória).
VII.
Fiquei, ainda, parcialmente vencida quanto à decisão relativa à norma do artigo 186.º, da Lei n.º 66-B/2012, na parte em que alterou os artigos 78.º e 85.º do CIRS, abolindo completamente as deduções à coleta relativas à satisfação de necessidades básicas como as de saúde, de educação ou habitação (pontos 102 a 107 do acórdão).
A maioria decidiu que não apenas a redução, mas também a total exclusão das deduções à coleta era, ainda, constitucionalmente tolerável. Ora, mesmo que seja possível sustentar-se que a Constituição não fixa um limite mínimo de deduções subjetivas, o que dificultaria um juízo de inconstitucionalidade ainda que estas assumam valores meramente simbólicos, dúvidas não pode haver quanto à necessidade, constitucionalmente firmada, de consideração das despesas relativas à satisfação de necessidades básicas, que sempre resulta contrariada quando a solução legislativa consista numa eliminação total das deduções que lhe respeitem.
Sublinhe-se que este tipo de deduções subjetivas pretende atender à diminuição da capacidade contributiva resultante de despesas imprescindíveis à existência, não se referindo a situações de benefícios fiscais encorajadores de comportamentos (de poupança, de aquisição de equipamentos, de cobertura de riscos, etc), que ficam numa zona de muito maior disponibilidade por parte do legislador.
Muito embora se aceite que o princípio da capacidade contributiva confere ao legislador fiscal margem de liberdade de conformação, não definindo com exatidão o quantum do limite mínimo admissível das deduções à coleta, sempre se dirá que a observância desse mesmo princípio não pode conviver com a total ablação destas em qualquer dos escalões. Se pode haver dúvida de concretização quanto ao grau da consideração dos descontos ao imposto derivados de necessidades básicas, dúvidas não pode haver de que o «grau 0» de deduções é incompatível com a exigência constitucional.
As deduções subjetivas relativas à satisfação de necessidades básicas, sendo essenciais para que se recorte o rendimento líquido disponível, permitem que cada contribuinte pague na medida da sua capacidade, desta forma se assegurando a igualdade através da personalização do imposto.
A exigência de um sistema de tributação que atenda à capacidade contributiva, considerando não apenas os rendimentos, mas também as necessidades do agregado familiar, tem suporte constitucional no artigo 104.º, que determina que o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades, devendo ter em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. Ao impor ao legislador que assim molde o sistema fiscal, a Constituição procura garantir uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a diminuição das desigualdades (artigo 103.º da Constituição).
Não aceito como válido o argumento de que a total exclusão das deduções à coleta seria admissível por penalizar titulares de rendimentos mais elevados que estariam em condições de suportar as suas necessidades básicas: independentemente das potenciais condições indiciadas pelo rendimento bruto (subjetivo) destes contribuintes, ao banir as deduções pessoais, o legislador infraconstitucional desconsiderou a real capacidade de cada contribuinte para pagar impostos, já que, sem elas, se perde um elemento diferenciador essencial na determinação de um rendimento disponível personalizado, o que conduz a um tratamento horizontalmente desigual.
A total insensibilidade às despesas básicas que reduzem a capacidade contributiva, mesmo que num só escalão, e ainda que seja o mais alto, sempre contrariaria a exigência de justiça horizontal, dentro do escalão, a que também deve obedecer a tributação.
E não se esqueça que a enorme redução nas deduções operada a partir do escalão de mais de €40 000, e a sua total abolição acima dos €80 000, foram instituídas em simultâneo com a redução do número de escalões e com a criação de uma sobretaxa extraordinária que, em conjunto, contribuíram fortemente para a diminuição da progressividade do imposto, o que agrava o impacto da desigualdade horizontal resultante da desconsideração das reais faculdades contributivas de cada um. Relembre-se, também, que o atual 5.º e último escalão (rendimento coletável superior a €80 000) corresponde, hoje, a parte do anterior 7.º escalão (que abrangia rendimentos coletáveis entre €66 045 e €153 300) e ao 8.º escalão (acima de €153 300), nele se contendo realidades muitíssimo diversas (o limite mínimo do rendimento coletável é praticamente metade do seu limite máximo).
Por outro lado, se o sistema agora gizado mantém a majoração das deduções à coleta por cada dependente ou afilhado civil, quando a elas haja lugar (em respeito pela obrigação de considerar fiscalmente o agregado familiar), passou a desconsiderar outras obrigações para com a família, abolindo totalmente, no escalão mais elevado, os abatimentos relativos a pensões de alimentos, bem como, no que respeita às obrigações para com a família mais alargada, excluindo os encargos com os lares de ascendentes (com a insensibilidade em que isso se traduz numa faixa etária especialmente vulnerável e particularmente carregada de despesas de saúde).
Sendo a capacidade contributiva o critério que o legislador deve eleger para medida do imposto de cada um - e independentemente das dificuldades de encontrar uma suficiente densificação do limite mínimo ainda constitucionalmente admissível (problema que logo se identifica no simbólico limite do 4.º escalão) - sempre se deveria concluir, sem dúvidas, que a total desconsideração das deduções à coleta desrespeita uma regra essencial da Constituição fiscal.
Assim sendo, considerei que a norma do artigo 186.º, da Lei n.º 66-B/2012, na parte em que alterou os artigos 78.º e 85.º do CIRS, abolindo completamente as deduções à coleta, não está em conformidade com a Lei Fundamental, por violação do princípio da capacidade contributiva enquanto critério da tributação.
VIII.
Acompanhei a declaração de inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 117.º, da Lei n.º 66-B/2012, subscrevendo os argumentos do acórdão. Contudo, entendo que o limite mínimo sustentado na decisão (e legalmente fixado, com o que isso tem de volatilidade) pode ainda tornar a medida demasiado penosa para alguns destinatários, sobretudo se pensarmos que, relativamente aos pensionistas e trabalhadores no ativo que recebem por verbas públicas, o legislador teve o cuidado de definir um patamar mais elevado, abaixo do qual as remunerações e pensões não seriam atingidas pelos cortes.
No caso destas contribuições sobre o subsídio de desemprego e de doença, não o tendo feito, o legislador deixou desprotegida uma categoria de cidadãos que recebem prestações de muito baixo valor, solução que está em desconformidade com o princípio da proporcionalidade (artigo 2.º da CRP). A solução adotada pelo Tribunal garante já alguma proteção que, a meu ver seria garantida de forma mais justa se o legislador tivesse fixado, ele mesmo, um patamar mínimo, segundo critérios de razoabilidade e paridade com outras categorias de cidadãos.
IX.
Se é verdade que, à partida, todas as normas gozam de presunção de constitucionalidade, não sendo exceção as normas orçamentais ou fiscais, a confiança creditada ao legislador não aumenta nos ciclos de crise. As leis orçamentais e fiscais, potencialmente ameaçadoras de direitos fundamentais, vivem sempre, como as demais, num tempo que é sempre o da Constituição. O prolongamento, ou mesmo o agravamento, dos momentos difíceis não deve trazer consigo um inelutável aligeirar do controlo da constitucionalidade das normas. Pelo contrário, bem se compreende que, nos momentos de tensão e de dificuldades várias, a Lei fundamental assuma papel destacado, enquanto bitola delimitadora da margem de liberdade de que dispõe o legislador. E se a energia vinculativa de uma norma constitucional pode, em certos aspetos e com apertados critérios, esmorecer no confronto com um interesse público de relevância absolutamente indiscutível, ainda e sempre a criatividade do legislador terá de funcionar no quadro da Constituição.
Com base nos fundamentos sumariamente enunciados, afastei-me do juízo maioritário quanto às normas acima mencionadas em IV. (redução remuneratória dos trabalhadores que recebem por verbas públicas), V. (CES), VI. (extensão do artigo 27.º aos contratos de docência e investigação) e VII. (no que respeita à total ablação de deduções à coleta), considerando que também estas padecem de inconstitucionalidade.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
A) Divergi das decisões expressas na alínea a) e na alínea c) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 29.º e do artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, exceto no que respeita à norma do n.º 2 do artigo 29.º e à norma do n.º 4 do artigo 77.º, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
Os artigos 29.º e 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, consagram medidas de suspensão do subsídio de férias ou equivalente dos trabalhadores do setor público e dos aposentados e reformados pagos por verbas públicas.
O presente Acórdão parte, na apreciação da questão de constitucionalidade, do critério de apreciação que enunciou e aplicou nos Acórdãos n.º 396/2011 e n.º 353/2012, reconhecendo que o mesmo conserva plena validade. Tal critério, respeita, por um lado, à existência de um fundamento para a diferenciação – daqueles que recebem remunerações e pensões pagas por verbas públicas – e, por outro lado, à medida dessa diferença.
Para tal convoca o princípio da igualdade proporcional que «implica a consideração do grau de diferenciação imposto, quer na sua relação com as finalidades prosseguidas – o que pressupõe que as medidas diferenciadoras sejam impostas em grau necessário, adequado e não excessivo do ponto de vista do interesse que se pretende acautelar (…) -, quer no âmbito da comparação entre os sujeitos afetados pela medida e os sujeitos que o não são e, do ponto de vista daquela finalidade, entre uns e outros e o Estado (…)», estando em causa os limites do sacrifício adicional imposto aos primeiros.
Entende-se que, no contexto de aprovação do Orçamento de Estado para 2013, de excecionalidade económico-financeira, subsistem as razões de interesse público, inerentes à «Estratégia de consolidação orçamental» determinada pelas obrigações específicas assumidas pelo Estado português ao nível internacional (Fundo Monetário Internacional) e da União Europeia, na sequência do pedido de ajuda financeira externa, que podem ainda justificar a diferença de tratamento daqueles que auferem rendimentos pagos por verbas públicas que, por essa razão, podem ser chamados a suportar um esforço adicional face ao imperativo de adoção de medidas de redução de despesa que concorram para o cumprimento daquelas obrigações.
O controlo constitucional agora convocado para as normas constantes dos artigos 29.º e 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o orçamento de Estado para o ano de 2013, não pode contudo deixar de ponderar a atenuação da medida da diferença entre os encargos impostos aos que auferem remunerações por verbas públicas e os que auferem remunerações por verbas privadas, cujos limites se tiveram por ultrapassados no Acórdão n.º 353/2012 pela Lei do Orçamento de Estado para 2012 na ablação, relativamente apenas aos primeiros, dos subsídios de férias e de Natal, por violação do princípio da igualdade proporcional. Com efeito, diversamente do então apreciado, o Orçamento de Estado para 2013, mantendo embora medidas de suspensão do pagamento subsídio em causa que oneram especialmente os trabalhadores e os pensionistas pagos por verbas públicas, atribui-lhes alcance mais reduzido (por apenas incidirem, no todo ou em parte, sobre o subsídio de férias ou equivalente) e previu igualmente, entre outras, medidas de natureza fiscal com alcance universal repartindo de modo diverso os encargos públicos. Por isso se entende que não se verifica de forma evidente a desigualdade de tratamento na repartição dos encargos públicos que justificou o juízo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 353/2012 por se encontrarem ultrapassados os limites do sacrifício. Assim, e sendo certo que, mesmo com a suspensão de apenas um dos subsídios devidos, no todo ou em parte, e não já dos dois, os trabalhadores e pensionistas do setor público se mostram, com o atual Orçamento, mais onerados na distribuição dos encargos públicos, por comparação com os trabalhadores e pensionistas do setor privado, a diferença de tratamento, fundamentada na diferença de posições dos abrangidos e dos excluídos da medida em causa, não se afigura excessiva e desproporcionada, enquanto expressão de uma medida excecional e transitória, não definitiva, justificada em face do interesse público de contenção da despesa pública e de redução do défice para tanto invocado.
Não obstante subsiste, em nosso entender, uma questão que deve ser apreciada não na perspetiva da medida da diferença entre os destinatários das medidas em causa e os demais cidadãos, mas na perspetiva dos efeitos da medida dentro do universo dos seus destinatários.
Com efeito, na sua formulação – e como se revela evidente por aplicação do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, e do n.º 4 do artigo 77.º da mesma Lei – a medida de «suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente» prevista naqueles artigos abrange trabalhadores do setor público e pensionistas pagos por verbas públicas que auferem menores rendimentos, abrangendo a faixa entre os 600 e os 1100 euros mensais, estando o primeiro destes limites próximo do mínimo de existência em termos de rendimento líquido de imposto previsto no n.º 1 do artigo 70.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
Secundando-se a fundamentação do acórdão na parte que respeita à não atribuição de estatuto jusfundamental ao direito à irredutibilidade do montante da retribuição (cfr. n.º 26), extensivo, por identidade de razão, à prestação pecuniária correspondente ao subsídio de férias ou a quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês, merecerá especial tutela a situação daqueles que, auferindo retribuições ou pensões mais baixas, ainda são abrangidos pelas medidas em análise. Estas medidas devem ser apreciadas tendo em conta a remuneração anual no seu todo considerada e o impacto sobre a capacidade de fazer face à subsistência, a práticas vivenciais em razão do agregado familiar compatíveis com uma existência condigna e autónoma e a encargos e compromissos assumidos. Não se afigura desrazoável supor que no segmento de rendimentos em causa o rendimento disponível para fazer face a onerações de rendimento justificadas por motivos de interesse público, seja muito diminuto ou mesmo inexistente, por todo o rendimento ser alocado à satisfação de necessidades essenciais inerentes à existência e a compromissos básicos que concorram para essa existência, como o custo da habitação, da alimentação, da saúde e dos transporte – e outros custos, designadamente os derivados de outros direitos fundamentais como o direito à educação ou o acesso à cultura.
Por essa razão, as medidas de suspensão do subsídio de férias ou equivalente, ainda que em parte, no que respeita ao segmento em causa, de rendimentos menos elevados representam face aos fins de interesse público por elas visados, um sacrifício que ultrapassará os limites de exigibilidade requeridos pelo princípio da proporcionalidade. Neste sentido mostrar-se-á desrespeitada uma das dimensões do princípio da igualdade proporcional, decorrente dos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa, na comparação entre os fins de interesse público e os meios em causa para os prosseguir por o sacrifício exigido ao segmento em causa assumir uma intensidade acrescida face aos demais abrangidos pela medida.
Pelo exposto nos pronunciámos no sentido da inconstitucionalidade das normas do n.º 2 do artigo 29.º e do n.º 4 do artigo 77.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
B) Divergi quanto à decisão expressa na alínea e) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
1. O artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, institui uma medida denominada «Contribuição extraordinária de solidariedade» que, no essencial – independentemente da sua perspetivação, na prática, como medida de redução de despesa ou de aumento de receita – se traduz numa ablação, com caráter progressivo, das prestações devidas em razão da qualidade de aposentado, reformado, pré-aposentado e equiparado.
O juízo de não inconstitucionalidade formulado pela maioria parece residir, no essencial, na inexistência de qualquer ofensa ao princípio da proteção da confiança e ao princípio da proporcionalidade. Divergimos todavia da conclusão alcançada.
2. No percurso que nos leva a diferente conclusão, afiguram-se relevantes os seguintes aspetos.
Em primeiro lugar, a configuração abrangente e unitária da medida. Configurada de modo abrangente – quer quanto ao âmbito objetivo de incidência no que respeita às prestações abrangidas, quer quanto ao âmbito subjetivo no que respeita aos beneficiários e entidades processadoras das prestações abrangidas (cfr. n.º 3 do artigo 78.º) – a medida em causa incide sobre as prestações devidas no quadro de diferentes sistemas (e dos correspondentes regimes) que, nos termos da lei, integram o Sistema de Segurança Social previsto no artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa e cuja organização, coordenação e subsídio aquele preceito comete ao Estado: o sistema de proteção social dos trabalhadores que exercem funções públicas (cfr. art. 6.º do Decreto-Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro), o sistema previdencial e o sistema complementar (cfr. art.ºs 23.º, 50.º e ss. e 81.º e ss. da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social). A medida em causa, configurada de modo unitário, afeta de igual modo as prestações devidas no quadro de cada um dos regimes que integram aqueles sistemas, a saber, em especial, respetivamente: o regime de proteção social convergente; o regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem e dos trabalhadores independentes e os regimes especiais; o regime público de capitalização e os regimes complementares de iniciativa coletiva – não sendo evidente, face à formulação da parte final do n.º 3 do artigo 77.º, a exclusão das prestações devidas no quadro dos regimes complementares de iniciativa individual.
Em segundo lugar, tendo em conta o caráter abrangente e unitário da medida, o objetivo, mencionado no Relatório sobre o Orçamento de Estado para 2013, de «alcançar um efeito equivalente à medida de redução salarial aplicada aos trabalhadores do setor público» (cfr. II, 3.1.1., p. 51) é em muito ultrapassado. Isto, tendo em conta quer o referido âmbito de aplicação (não se confinando aos pensionistas pagos por verbas públicas, seja no sistema previdencial, seja no sistema de proteção dos trabalhadores que exercem funções públicas), quer o caráter fortemente progressivo das percentagens aplicáveis, quer ainda o estabelecimento de uma percentagem máxima de redução das pensões muito superior à percentagem máxima de redução da retribuição dos trabalhadores do setor público no ativo. Assim, o pretendido paralelismo cessa na medida em que o âmbito da aplicação da contribuição em causa (ou âmbito de incidência) e respetivas taxas respeitam, unitariamente, a um universo muito mais abrangente e as percentagens e limites da dita contribuição excedem as aplicáveis à redução das remunerações dos trabalhadores do setor público.
Em terceiro lugar, o esforço imposto por via da medida em causa é exigido em razão da qualidade, particular e distinta face à generalidade dos cidadãos, de beneficiário de prestações de aposentação ou reforma ou equiparadas, devidas ao abrigo de diferentes regimes dos vários sistemas integrados no sistema de segurança social – mas sem atender todavia à diversa configuração das várias situações abrangidas por esses regimes, em especial a situação daqueles que, qualquer que seja o regime em que se integram, registam carreiras contributivas longas ou mesmo completas nos termos da lei aplicável no momento da aquisição do direito à prestação e, ainda, a origem no aforro privado das contribuições pagas para alguns dos regimes abrangidos, como sucederá em relação a componentes do denominado regime complementar. Assim configurada, a medida em causa afigura-se revestir a natureza de tributo por onerar, objetivamente, o rendimento percebido mediante prestações devidas em razão da qualidade particular de aposentado ou reformado (ou equiparado), independentemente de a entidade devedora assumir natureza pública ou privada e, assim, de as verbas envolvidas no pagamento das prestações devidas terem origem pública ou privada. O tributo em causa, admite-se, apresenta, pela sua configuração e traços de regime, uma natureza híbrida que a aproxima, por um lado, de um tributo fiscal – designadamente por se afigurar como uma prestação pecuniária sem caráter de sanção exigida unilateralmente pelo Estado com vista à realização de fins públicos, por se prever em termos de modus operandi um mecanismo de dedução e entrega e por se preverem taxas progressivas – e, por outro, de um tributo parafiscal, sob a forma de contribuição financeira a favor de entidades públicas – designadamente pela previsão de que o valor da contribuição reverte apenas a favor do IGFSS, IP ou da CGA, IP, ou pela possibilidade, prima facie, de enquadrar os valores pagos nas «contribuições obrigatórias para regimes de proteção social» que podem, nos termos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, ser objeto de dedução ao rendimento da categoria H (cfr. art.º 53.º, n.º 4, b) para efeitos de cálculo daquele imposto. Tal natureza não se revela contudo determinante para a sua apreciação à luz do princípio da proteção da confiança.
Em quarto lugar, do ponto de vista da conformidade das normas que preveem a medida com a Constituição da República Portuguesa, cumpre apreciá-la à luz da proteção constitucional conferida, em abstrato, à posição jurídico-subjetiva dos que têm a referida qualidade de pensionista (ou equiparado) e, assim, de beneficiário do sistema, numa ou em várias das suas vertentes e que por força do seu enquadramento na previsão legal, veem tal posição afetada – sendo a dimensão do universo em concreto abrangido irrelevante para a apreciação da referida conformidade – e à luz do interesse público que a instituição da medida, conjuntural e não definitiva, visa prosseguir num contexto de excecionalidade.
Dessa apreciação resulta que, mesmo admitindo-se que a proteção dos cidadãos pelo sistema de segurança social, incluindo na eventualidade de velhice ou invalidez, que a Constituição consagra no seu artigo 63.º, n.º 2, não implica a existência de um direito fundamental à irredutibilidade das prestações devidas, ou seja, que a Lei Fundamental não garante aos pensionistas o direito fundamental a um quantum prestacional imutável, fixado no momento da passagem à situação de aposentação ou reforma de acordo com a lei vigente nesse momento, deve sublinhar-se que à proteção conferida pela Constituição a todas as pessoas por via do enunciado do direito à segurança social, acompanhada pela incumbência cometida ao Estado de organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social e pelo enunciado das eventualidades que determinam a proteção pelo sistema (cfr. n.ºs 1 a 3 do artigo 63.º da CRP), acresce a particular relevância constitucional conferida pelo artigo 72.º aos idosos que, na eventualidade de velhice, adquirem o direito prestacional à pensão, nos termos fixados por lei, e ao seu direito à segurança económica – relevância hoje igualmente expressa no artigo 25.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia na parte em prevê o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente. Não pode perder-se de vista a especial necessidade de proteção dos que têm a qualidade de idoso que, em situações regra, coincidirá com a qualidade de aposentado, reformado ou equiparado que determinou o direito ao recebimento das prestações sociais sujeitas ao pagamento de uma «contribuição extraordinária de solidariedade», na medida em que a perda de rendimento por parte dos beneficiários das prestações em causa, por força dessa mesma qualidade, mais dificilmente pode ser compensada pelo exercício de uma atividade profissional, podendo implicar a afetação das práticas vivenciais e dos compromissos assumidos que assegurem a sua segurança económica e a sua existência condigna e independente em razão das suas necessidades específicas.
Por último, a medida em causa e as normas que a instituem inserem-se num contexto de excecionalidade económico-financeira e, em especial, na «Estratégia de consolidação orçamental» determinada pelas obrigações específicas assumidas pelo Estado português ao nível internacional (Fundo Monetário Internacional) e da União Europeia, na sequência do pedido de ajuda financeira externa.
Subjacentes à medida em causa invocam-se, por isso, interesses públicos a salvaguardar: em termos imediatos, um interesse público inerente ao imperativo de consolidação orçamental e ao cumprimento das obrigações a que o Estado português se encontra vinculado ao nível transnacional, internacional e europeu, que encontram fundamento nos artigos 7.º, n.º 6, e 8.º da CRP, incluindo a obrigação de cumprimento dos limites quantitativos estabelecidos, no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, para o défice orçamental nos anos de 2013 e 2014, com vista, em última análise, à sua contenção dentro dos valores de referência, a observar pelos Estados membros, a que se refere o n.º 2 do artigo 126.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e fixados no Protocolo (N.º 12) sobre o procedimento relativo aos défices excessivos; em termos mais mediatos, um interesse público inerente à própria garantia de realização das tarefas cometidas ao Estado pela Lei Fundamental e à sustentabilidade do Estado social – tal como se afirma no Relatório que acompanha o Orçamento de Estado para 2013 (cfr. II, II.1, p. 40).
3. Ora, na falta de parâmetro constitucional expresso que proteja o quantum devido a título de pensão aos já aposentados, reformados e a estes equiparados para o efeito – quer se entenda a contribuição extraordinária de solidariedade como redução ou como oneração de rendimentos, como se parece propor no artigo 78.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, e ainda que de modo não definitivo – entende-se, na linha argumentativa do presente Acórdão, que a ponderação entre a proteção do direito à pensão ou prestação a esta equiparada, por um lado, e a prossecução do interesse público subjacente à medida em causa, por outro – ou, como se afirma no Acórdão n.º 396/2011, entre «os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que o regula e o interesse público que justifica essa alteração» (cfr. II, n.º 8) –, se insere no quadro de análise do princípio da confiança, configurado como corolário e exigência do princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), e do princípio da proporcionalidade (idem). Na análise e aplicação destes princípios na situação vertente chegamos, todavia, a uma conclusão inversa à do presente acórdão pois, segundo cremos, ambos se mostram ofendidos pelas normas legais em presença.
3.1 Quanto aos requisitos da tutela jurídico-constitucional da confiança segundo os quais é necessário que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade, que tais expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, terem os privados feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento estadual» e, por último, que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (cfr. Acórdãos n.º 128/2009 e, posteriormente, n.º 188/2009 e n.º 3/2010), deve desde logo considerar-se que a previsão pelo legislador de uma contribuição extraordinária que abrange, de modo universal, o conjunto das pessoas que já adquiriram a qualidade de beneficiários de um direito social a uma prestação a título de pensão de aposentação ou reforma ou equiparada, qualquer que seja o regime ou regimes por que se encontram abrangidos e independentemente da natureza, pública ou privada, das verbas devidas e da consideração da duração das carreiras contributivas, não cai na zona de previsibilidade de comportamento dos poderes públicos.
Por um lado, não obstante a evolução legislativa verificada mencionada no presente Acórdão, em especial desde a década de noventa, no sentido, designadamente, da alteração da fórmula de cálculo das pensões e do estabelecimento de uma limitação do montante da pensão no regime geral da segurança social e da convergência entre o sistema de proteção social dos trabalhadores da função pública e aquele regime geral, certo é que o financiamento do sistema, na sua vertente previdencial, caracterizado como um sistema de repartição, tem assentado, no essencial, em prestações obrigatórias devidas pelos empregadores, públicos ou privados, e pelos que exercem uma atividade laboral (denominadas pela lei «contribuições» e «quotizações») – sem prejuízo de contribuições facultativas, resultantes de uma opção individual, para o regime complementar. Por outro lado, a expectativa de continuidade no que toca à não contribuição de todos os que já são beneficiários (tendo já contribuído) para o financiamento do sistema de segurança social também não se pode ter por invertida pela previsão de uma medida com idêntico nome na Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (art.º 162.º, n.º 1) e na Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (art.º 20.º, n.º 1 e n.º 15) – tendo em conta, em especial, o âmbito confinado de incidência desta medida e o limiar quantitativo da sua aplicação, sem paralelo na medida em análise.
Entende-se que a medida controvertida também frustra expectativas legítimas, justificadas e fundadas em boas razões dos respetivos destinatários, por a qualidade de beneficiário de um direito a uma prestação social com fundamento constitucional e legal já ter sido adquirida por força do preenchimento dos pressupostos de que depende a sua atribuição e que o legislador, no âmbito da sua livre margem de apreciação, fixou; expectativas fundadas, em especial, no caso de as pessoas afetadas pela medida registarem carreiras contributivas longas e, ainda, no caso de pensões na eventualidade de velhice (ou invalidez na medida em que sejam abrangidas), determinadas pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de exercício de uma atividade profissional remunerada que possa compensar a ablação decorrente da medida em causa.
Quanto ao requisito da tutela jurídico-constitucional da confiança que impõe que os privados tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento estadual» entende-se que o mesmo também se verifica por a prestação percebida a título de pensão ou reforma ou situação equiparada ser aquela que permitirá, em regra, custear a subsistência, manter práticas vivenciais, garantir a autonomia e fazer face a compromissos assumidos e, inclusive, a gastos inerentes à qualidade de idoso – qualidade que terá a generalidade dos pensionistas com carreiras contributivas longas ou completas – ou de inválido.
Por fim, quanto à ocorrência de razões de interesses público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa – e, assim, a prevalência das mesmas sobre a tutela da posição jurídico-subjetiva dos pensionistas abrangidos pela medida – e dada a sua invocação, nos termos atrás indicados, consideramos ocorrer uma afetação desproporcionada da posição de confiança que o grupo de beneficiários afetado nos parece merecer. O que melhor se verifica à luz do princípio da proporcionalidade.
3.2 Pode dar-se por adquirido que a medida em causa, por implicar, consoante a perspetiva em que se encare e a natureza da entidade processadora, uma redução de despesa ou um aumento de receita e cujo impacto financeiro foi estimado pelo Relatório do Orçamento de Estado para 2013 (cfr. II, 3.1.1, p. 51), contribui para fazer face à situação de défice orçamental (para o qual tem pesado o crescimento das prestações em caso de desemprego e o decréscimo das contribuições para a segurança social), pelo que, em termos orçamentais, pode consubstanciar uma medida adequada ou idónea para tal fim imediato. O mesmo não se revela evidente quanto à invocada sustentabilidade do Estado social, designadamente para as gerações futuras, dado tratar-se de uma solução conjuntural (para um problema também entendido como conjuntural).
Depois, ainda que se admita que a medida possa estar nos limites da necessidade, sendo porventura necessária em face da maior amplitude do universo de destinatários de eventuais medidas de financiamento alternativas relativamente aos atuais beneficiários da segurança social, entende-se que a mesma se afigura excessiva e desproporcionada – valoração justificada em razão da abrangência da medida em termos de âmbito de incidência, da desconsideração da diversidade de situações subjacentes à qualidade de beneficiário das prestações afetadas e, ainda, dos elevados limites das taxas aplicáveis.
Quanto ao âmbito de incidência, a medida em causa, configurada de modo unitário, abrange prestações que se integram no sistema complementar e nos regimes, nele integrados, de capitalização pública ou de iniciativa coletiva, incidindo por isso a taxa aplicável, consoante a entidade pagadora, sobre contribuições, facultativas, efetuadas a partir de aforro privado e/ou, inclusive, sobre o respetivo rendimento – pondo em causa, por alteração de pressupostos, os efeitos esperados de decisões individuais passadas de afetação de rendimento disponível tomadas face às regras jurídicas aplicáveis (a solvabilidade global do sistema, a beneficiar aqueles que se enquadram no sistema complementar, não parece corresponder sequer à justificação da própria medida, com fins imediatos muito determinados).
Quanto à não tomada em consideração da diversidade de situações subjacentes à qualidade de beneficiário das prestações afetadas pela medida assume particular relevo a desconsideração das situações de carreiras contributivas longas e mesmo completas relativamente às quais um argumento de redução conjuntural de pensões, ainda que mais elevadas, por insuficiência de contribuições em termos temporais, não se revelará procedente. De facto, o sacrifício imposto é tanto mais desmedido quanto o montante da prestação tenha maior correspondência com as contribuições efetivamente pagas ao longo da carreira contributiva.
Por último, as taxas aplicáveis apresentam-se como gravosas quer em termos de valor da taxa máxima, quer em termos da sua aplicação que se efetua a partir de um patamar de rendimento que – contrariamente às medidas com idêntica denominação previstas em leis do Orçamento de Estados anteriores – não funcionam apenas por aplicação em excesso de um patamar de rendimento elevado, mas a partir de um patamar de rendimento muito inferior.
Atendendo ao que ficou exposto a nossa pronúncia foi no sentido da inconstitucionalidade das normas do artigo 78.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
C) Divergi quanto à decisão expressa na alínea e) da Decisão do presente Acórdão no que respeita à norma do artigo 186º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, na parte em que altera o n.º 7 do artigo 78.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
A norma do n.º 7 do artigo 78.º do CIRS consagra os limites globais, progressivos em razão do escalão de rendimento coletável, para as deduções à coleta relativas a um conjunto de despesas suportadas pelos sujeitos passivos do imposto, entre as quais as despesas de saúde e as despesas de educação e formação.
Acompanha-se a fundamentação do acórdão e o juízo de não inconstitucionalidade formulado salvo no que respeita à impossibilidade de dedução de qualquer despesa no último escalão de rendimento coletável (escalão de rendimento coletável superior a 80 000).
Tal impossibilidade, segundo cremos, não respeita o comando contido no n.º 1 do artigo 104.º da Constituição, ainda que de modo amplo e como critério ordenador, segundo o qual as necessidades dos agregados familiares devem ser levadas em conta no quadro do imposto único sobre o rendimento pessoal. Tal corresponde a uma concretização do princípio da igualdade no domínio da tributação do rendimento pelo que a medida em causa, na parte em análise, desconsidera por completo a aplicação deste princípio dentro do segmento de contribuintes abrangido.
A exigência constitucional de diferenciação da situação dos contribuintes, por força do princípio da igualdade, afigura-se clara na obrigação imposta ao legislador fiscal de considerar quer os rendimentos, quer as necessidades do agregado familiar dos cidadãos, constituindo este último fator um elemento determinante para a diferenciação da situação dos contribuintes.
Deste modo, a norma, na parte em que não prevê deduções, desrespeita a vinculação derivada do princípio da igualdade, por tratar de forma igual o que é, ou pode ser, diferente. Isto, tendo em conta as diferentes necessidades dos agregados familiares dentro de cada escalão de rendimento coletável – a igualdade (e as diferenciações que a mesma imponha) deve ser aferida não apenas verticalmente mas também na sua dimensão horizontal. Com efeito, a exigência de previsão de deduções subjetivas à coleta, como forma de personalização do imposto sobre o rendimento pessoal decorrerá da situação concreta dos agregados familiares e das respetivas necessidades em matéria de, em especial, saúde, educação e formação, o que deve ser levado em consideração independentemente do nível de rendimento coletável.
Maria José Rangel de Mesquita
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Divirjo do entendimento que fez vencimento quanto ao juízo constante da alínea e) da decisão, na vertente em que se decidiu não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 27.º (corte nos vencimentos de quem recebe com verbas públicas) e 78.º (contribuição extraordinária de solidariedade sobre pensões pagas a aposentados, reformados, pré-aposentados e equiparadas), ambos da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro de 2013 (Lei do Orçamento do Estado para 2013), pelas razões que passo, sumariamente, a indicar.
2. Sem postergar a margem ampla de conformação do legislador democrático no domínio das políticas públicas e na escolha das orientações estratégicas que melhor permitam atingir o objetivo de consolidação orçamental, com reflexos na densidade do controlo da legitimidade constitucional da intervenção restritiva operada pela redução salarial estabelecida no artigo 27.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013, importa ter em atenção que a estabilidade e continuidade da retribuição integram o núcleo essencial da construção de um projeto de vida pessoal e familiar economicamente sustentável.
Ora, atingido o terceiro ano de ablação de parcela significativa do rendimento salarial de servidores públicos – e apenas deles – soma-se-lhe o forte agravamento da tributação, dissipando de forma acrescida o rendimento disponível, em muitas situações para níveis aquém do indispensável à satisfação de possíveis e naturais obrigações confiadamente assumidas em função do quantitativo remuneratório anterior, é bom sublinhar, estimuladas por políticas públicas e de supervisão no acesso ao crédito.
A valoração que fez vencimento quanto à apreciação da conformidade constitucional do artigo 27.º da Lei do Orçamento de Estado de 2013 louva-se, neste ponto, e com reafirmação do decidido no Acórdão n.º 396/2011, na excecionalidade da redução salarial de servidores públicos, sublinhando o seu caráter temporário e a instrumentalidade na satisfação – certa e segura – das obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado Português, indispensáveis para assegurar – e manter – o fluxo de crédito soberano em termos financeiramente suportáveis.
É certo que a Lei do Orçamento de Estado de 2013 sofre as limitações e constrangimentos decorrentes das fortíssimas dificuldades financeiras por todos reconhecidas e obedece à vinculação assumida no Plano de Assistência Económica e Financeira (PAEF) celebrado com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, no âmbito do qual são acordadas metas orçamentais bastante exigentes e com calendarização até 2014.
Mas não é menos certo que as vinculações e a incidência de limites sobre o défice orçamental e a dívida pública no plano europeu não se esgotam nesse plano de assistência económica e financeira balizado temporalmente. Essas condicionantes vinculativas decorrentes de fontes normativas a que Portugal se encontra adstrito, nos termos do artigo 8.º da Constituição, encontravam-se presentes há largos anos (artigo 104.º do TCE e 126.º do TFUE), antes do momento de assunção do quadro normativo decorrente do PAEF em que se esteia a reiteração da medida de corte de vencimentos. E, permanecendo os fatores que determinam as necessidades de financiamento, mostra-se fundado antecipar que irão exigir esforços e sacrifícios para além do horizonte temporal do PAEF, com intensidade não inferior ao que nele se estipula.
Como, igualmente, no plano prospetivo, a partir do elevado montante atingido pela dívida pública, encontra cabimento ter em consideração a possibilidade de recurso a mecanismos de assistência recentemente erigidos no âmbito europeu, em especial, ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Nesse quadro, eventual, mantém-se a exigência de celebração de memorando de entendimento e formulação de plano de ajustamento (cfr. artigos 13.º a 16.º do Tratado que instituiu o MEE, assinado em 2 de fevereiro de 2012).
Perante tal panorama, esperava-se que o legislador integrasse a medida numa estratégia de consolidação orçamental que conduzisse à sua reversão, finalizado o PAEF, com o mesmo grau de segurança e certeza em que se apoia a sua instituição. De acordo, aliás, com a natureza excecional e temporária (mesmo que plurianual) com que fora considerada no Acórdão n.º 396/2011, ou seja, como medida de consolidação orçamental one-off.
Porém, o relatório do Orçamento de Estado de 2013, não sinaliza qualquer programação de reversão do corte salarial, concretizadora da sua temporalidade (assim também aconteceu com o documento de estratégia orçamental 2012-2016, apresentado em Abril de 2012). Na verdade, e em formulação que se aproxima da estipulação unilateral de cláusula cum potuerit, condiciona a duração da medida (entenda-se, a sua reiteração em sucessivos orçamentos) à “verificação de um equilíbrio efetivo das contas públicas”, ao mesmo tempo que remete a sua abordagem para o domínio da “política de rendimentos” e de “racionalização dos custos com pessoal”. Ou seja, remete para o plano duradouro, como patamar remuneratório, perspetiva que não se altera com a possibilidade, até pelo efeito da erosão monetária, de se virem no futuro a atingir os níveis salariais nominais anteriores à ablação operada em 2011 e mantida no orçamento de 2012.
Assim sendo, mostra-se legítimo questionar a legitimidade constitucional de medida restritiva, que onera especialmente em tempo de crise económica quem desempenha funções que implicam a perceção de remuneração através de verbas públicas - sem esquecer que no universo de afetados encontram-se sujeitos que desempenham atividade no sector empresarial do Estado em concorrência direta com empresas privadas - e se cumula já por três anos consecutivos, apoiado primacialmente na praticabilidade derivada da suscetibilidade direta e imediata da retenção da prestação pecuniária por parte do ente Estado, optando pela veste de Estado-empregador.
Independentemente do juízo formulado no Acórdão n.º 396/2011, nos parâmetros valorativos em que se moveu a Lei do Orçamento de Estado de 2011, quanto à introdução da medida do corte salarial dirigida apenas aos servidores públicos – categoria de pessoas cuja vinculação especial à prossecução do interesse público não pode significar a limitação da vida privada e familiar e habilitação a posição de desfavor na perceção de direitos de natureza patrimonial por referência a outros credores de prestações públicas -, não creio que se possa mais configurar esse sacrifício discriminatório, no terceiro ano de aplicação, e com funcionalização genérica e ambígua ao “equilíbrio efetivo das contas públicas”, como materialmente justificado. Não basta a sua apresentação como medida de política financeira basicamente conjuntural, de combate a uma situação de emergência, por definição passageira e de curto prazo. Como criteriosamente apontou o Conselheiro Vítor Gomes em declaração de voto aposta no Acórdão n.º 353/2012 “o decurso do tempo implica um acréscimo de exigência para o legislador no sentido de encontrar alternativas que evitem, com o prolongamento, que o tratamento diferenciado se torne claramente excessivo para quem o suporta”.
Não significa o que se vem de referir a defesa da desconformidade constitucional de qualquer redução salarial dos servidores públicos. Significa que a intervenção racionalizadora da despesa pública, enquanto tarefa dirigida à correção duradoura de desequilíbrios fortemente penalizadores da prossecução das finalidades do Estado, e que se afirma como plenamente fundada no quadro económico e financeiro em curso, não credencia constitucionalmente a medida restritiva em apreço, de repetida e cumulativa intervenção discriminatória na chamada à participação (acrescida) de um conjunto de sujeitos no esforço de financiamento dos encargos públicos, contraídos para a satisfação de interesses que a todos pertencem, diferenciando-os negativamente face a outros com a mesma capacidade contributiva.
Por tais razões, entendo que o juízo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos (artigo 13.º da Constituição), deveria incidir também sobre a norma do artigo 27.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013.
3. Entendo que o mesmo juízo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, deve ser formulado quanto à norma constante do artigo 78.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, em que se institui medida designada como “contribuição extraordinária de solidariedade” (CES), incidente sobre pensões de reforma e de aposentação.
Em primeiro lugar, não oferece dúvida que a CES opera sacrifício acrescido sobre pensionistas e reformados, também onerados, como os demais contribuintes, com o aumento generalizado de impostos. Ora, não se vê que essa condição, em si mesma, justifique uma obrigação especial na satisfação dos encargos públicos e participação suplementar na correção de desequilíbrios orçamentais, tanto mais quando incidente sobre quem se encontra numa fase de vida que não permite procurar outras fontes de rendimento.
Não colhe, a meu ver, a justificação de que se trata de sacrifício equivalente às reduções salariais por parte de quem se encontra a beneficiar de verbas públicas e destinado a compensar o maior esforço orçamental com o sistema de segurança social na atual situação económica e financeira, desde logo porque a CES estende o seu âmbito de incidência a contribuintes cujas pensões não representam qualquer encargo para o orçamento da segurança social, como acontece com rendimentos proporcionados por planos de pensões criados por regimes previdenciais de iniciativa empresarial ou coletiva, geridos por entidades de direito privado ou cooperativo e até por entidades de direito público (caso da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores - CPAS). A medida abarca, assim, as pensões enquadráveis no primeiro e segundo pilares do sistema da segurança social, o que a diferencia profundamente da medida com a mesma designação consagrada nos orçamentos de estado de 2011 e 2012.
Também não colhe outra fonte de legitimação, avançada no relatório do OGE, no sentido de que se procura atingir a correção de disfunções na perceção de pensões formadas sem a devida correspondência contributiva, vistas como indispensáveis para assegurar a sustentabilidade do sistema de segurança social, de acordo com princípios de auto-sustentabilidade, justiça e solidariedade intergeracional. Não se vê como poderá a CES, enquanto medida anual e de emergência, atingir esse objetivo duradouro, desde logo porque não diferencia, como esperado, entre quem aufere pensão consolidada na sequência de mais de 30 ou 40 anos de contribuições e com ponderação da integralidade da carreira contributiva e outros beneficiários, cujas pensões não encontram apropriado lastro contributivo e sofrem de questionável justiça social, ao menos numa perspetiva diacrónica.
Igualmente, não se encontra fundamento comutativo bastante na intervenção ablativa em apreço, por efeito do princípio da equivalência na segurança jurídica ou do princípio de solidariedade de grupo. O aproveitamento da vantagem advinda da solidez do balanço da segurança social derivada do maior influxo de rendimentos durante o ano de 2013 não incide sobre os titulares de pensões em pagamento com intensidade significativamente acrescida relativamente aos demais sujeitos, beneficiários futuros, em particular se tivermos como referência aqueles que se encontram prestes a adquirir o direito a prestações do sistema previdencial.
A isto não se opõe a contribuição para a realização global de fim público de proteção social, pois trata-se de assegurar um direito de cidadania – direito à segurança social - que abrange inclusivamente quem para ela não pode contribuir e a todos pertence. Mesmo que o sistema assente numa lógica de repartição, e não de capitalização, a configuração atual da Lei de Bases da Segurança Social (lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro) procura assegurar que o esforço solidário incida de forma diversa sobre as várias categorias de pessoas através do princípio da adequação seletiva das fontes de financiamento (artigo 90.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, e Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de novembro), de acordo com a natureza e objetivos a que obedece cada um dos sistemas e subsistemas instituídos, conjugado com a regra da contributividade. Ora, e como sublinha Sérgio Vasques, “[o] que o principio da adequação seletiva das fontes de financiamento e a regra da contributividade significam, em suma, é que constituindo embora a segurança social um direito que é de todos, não são as contribuições a cargo dos trabalhadores que financiam as prestações a que todos têm direito” (Principio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, 2008, p. 185). Afastada que está a alteração da pensão – já formada - por parte quem efetue a prestação suplementar solidária representada pela CES – sem prejuízo da reconfiguração financeira global do sistema previdencial, garantindo a sua sustentabilidade - afigura-se-me claro que estamos perante financiamento que se afasta decisivamente do pressuposto e da finalidade do sistema de segurança social e que radica tão somente no alívio – anual - de parte de sistema que deverá ser suportada pelos impostos, ou seja, suportada por todos. Note-se que a consignação estipulada pela CES significa que haverá pensionistas chamados a participar no financiamento de subsistema ao qual nunca pertenceram nem podiam pertencer (CGA).
Neste quadro, falece a evidência de relação comutativa que permita considerar a CES, unitariamente considerada, como contribuição especial parafiscal incidente sobre pensionistas e reformados, em especial sobre pensionistas e reformados pertencentes tanto ao sistema previdencial como ao sistema complementar, incluindo os regimes complementares administrados por entidades não públicas. Mesmo que se possa descortinar relação sinalagmática indireta - o que tenho como muito duvidoso relativamente ao âmbito subjetivo do n.º 3 do artigo 78.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013 - afigura-se-me que esse nexo difuso aproxima a CES das contribuições para a segurança social por parte das entidades patronais, pelo seu acentuado caráter unilateral, relativamente às quais é reconhecida a sua equiparação aos impostos (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 7ª edição, 2012, p. 586 e 587 e Nazaré da Costa Cabral, Contribuições para a Segurança Social: Um imposto que não ousa dizer o seu nome, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correria, IV, 2010, p. 291 a 297, estendendo essa equiparação às várias espécies de contribuições para a segurança social).
Ficamos, assim, perante intervenção situada no plano da receita, encarando o valor da pensão (ou da sua soma, em caso de pluralidade de prestações, nos termos do n.º 5 do artigo 78.º Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro de 2013) como índice da capacidade contributiva e sujeita às exigências jurídico-constitucionais incidentes sobre os impostos. Aliás, na nota enviada ao Tribunal Constitucional, o proponente da medida admite raciocinar nesses termos, pugnando pela sua consideração como “adicional ao imposto sobre o seu rendimento, instituído em benefício da Segurança Social” (cfr. p. 50).
Ora, enquanto intervenção tributária com natureza equivalente de imposto, a CES não respeita a igualdade horizontal, fazendo sujeitos com iguais recursos participar de forma bem diferente no reequilíbrio do sistema de segurança social, consoante se encontrem a beneficiar de pensões ou aufiram rendimentos de outras categorias. Não se vê o que legitima materialmente tributar os rendimentos de aposentados e reformados em termos largamente majorados relativamente a outros rendimentos, como por exemplo os acréscimos patrimoniais injustificados inferiores a €100.00, sujeitos às taxas normais de IRS (artigo 72.º, n.º 11, do CIRS).
Em suma, considero que a norma do artigo 78.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, na medida em que configura oneração discriminatória dos pensionistas, reformados, pré-aposentados e equiparados na satisfação dos encargos com a diminuição do défice público sem fundamento legitimador, viola o princípio da igualdade, na vertente da igualdade tributária (artigo 104.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 13.º, ambos da Constituição), pelo que me pronunciei pela declaração da sua inconstitucionalidade, com esse fundamento.
Fernando Vaz Ventura
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencidos quanto às alíneas a), b) e c) da decisão pelas seguintes razões essenciais:
1. A questão que o Tribunal tem agora que resolver não é a mesma questão que se lhe colocou em 2012. Por um lado, o contexto externo que condicionou a elaboração do orçamento no ano de 2013 apresenta, face a anos anteriores, especificidades que não podem ser negligenciadas na construção de juízos de conformidade ou de desconformidade constitucional; por outro, a solução que o legislador encontrou para fazer face a essas especificidades – e para assim prosseguir, de acordo com a sua própria representação do interesse público, o imperativo da consolidação orçamental – é também substancialmente diversa da dos anos anteriores. Isto mesmo o reconhece o Acórdão de que dissentimos. Ao enquadrar previamente o caminho argumentativo que seguiu, o Tribunal não deixou de salientar as novas exigências (nomeadamente quando ao deficit) que se deparavam ao legislador orçamental em 2013, e de referir a diversidade de medidas do lado da receita (que incluem receitas outras que as não provenientes apenas dos rendimentos do trabalho) que o mesmo legislador estabeleceu em ordem a satisfazer aquelas exigências. A maioria, ao formular o juízo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, das normas constantes dos artigos 29.º e 77.º da Lei nº 66/B/2012, não deixou portanto de reconhecer a diferença específica que caracteriza a questão agora colocada ao Tribunal; no entanto, não retirou desse reconhecimento as consequências que, em nosso entender, seriam devidas. Por isso – e não obstante termos partido de premissas semelhantes à que foram adotadas pela argumentação maioritariamente seguida – não pudemos subscrever a conclusão final a que, com tal argumentação, se chegou.
2. Duas ideias essenciais parecem sustentar o juízo de inconstitucionalidade que, quanto a estas normas (e por violação do princípio da igualdade) o Tribunal formula.
A primeira é a de que, não obstante o acréscimo, no Orçamento do Estado para 2013, das medidas do lado da receita (que, aumentando a intensidade da carga fiscal incidente sobre todos e cada um dos contribuintes, aumentou também o grau de universalidade dos sacrifícios exigidos), sobre os funcionários e pensionistas que percebem por verbas públicas continua a impender um encargo especial, na medida em que, somando o encargo geral que também sobre eles recai (nomeadamente o decorrente do aumento da carga fiscal), com o sacrifício total ou parcial do pagamento do subsídio referente ao 14.º mês, esta categoria de cidadãos continua a ser chamada a contribuir para o esforço coletivo de consolidação orçamental em grau comparativamente maior ao de todos os outros.
A segunda ideia essencial é a de que esse grau maior de esforço, que o legislador persiste em exigir desta precisa categoria de cidadãos, comporta ainda (como se entendeu que comportava em 2012) uma violação do princípio da igualdade proporcional, princípio esse que terá a sua sedes materiae no artigo 13.º da CRP.
3. Não discutimos a premissa segundo a qual o Tribunal, ao efetuar o juízo de igualdade que lhe pede o artigo 13.º, está habilitado tanto a escrutinar a racionalidade do fundamento, invocado pelo legislador, para conferir a diferentes grupos de cidadãos tratamentos jurídicos diversos, quanto a, mais intensamente, escrutinar ainda a medida da diferença que é imposta, e a sua adequação ou razoabilidade face ao fundamento invocado. Concordamos que a Constituição, ao dispor que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, pede ao Tribunal este duplo escrutínio, e que tal exige que a jurisdição constitucional efetue um controlo mais intenso das escolhas do legislador do que aquele que seria efetuado, caso o “objeto de exame” se restringisse à racionalidade ou inteligibilidade do fundamento invocado para justificar a diferença. Além disso, concordamos ainda que o “acréscimo de intensidade de controlo” que, por esta via, é exigido à jurisdição constitucional, deve fazer-se (e só pode fazer-se) por intermédio da aplicação do princípio da proporcionalidade. O juízo quanto à razoabilidade da medida da diferença – a acrescer quanto ao juízo relativo á racionalidade ou inteligibilidade da sua própria razão de ser – é um juízo que só pode fazer-se utilizando os instrumentos que os “testes” da proporcionalidade conferem ao Tribunal. Nisto consiste, segundo entendemos, o princípio da igualdade proporcional.
No entanto, a intensidade do escrutínio que a aplicação deste princípio confere ao Tribunal não é fixa, antes variando de acordo com as matérias legisladas. Matérias há em que a intensidade do escrutínio é, e não pode deixar de ser, de grau particularmente elevado. E tal ocorrerá sempre que o legislador estabelecer diferenças entre as pessoas com base em razões, ou critérios, que, à partida, a Constituição exclui que possam servir para fundamentar tratamentos diversos, quaisquer que eles sejam. Nestas circunstâncias, o escrutínio do tribunal será seguramente severo, cabendo ao legislador a demonstração da “bondade” da sua escolha. Fora destas matérias, porém, o juízo de igualdade proporcional manter-se-á (como sempre o tem dito o Tribunal) como um juízo de controlo externo das ações do legislador, que pode conduzir à invalidação de escolhas legislativa que sejam à evidências desrazoáveis – quer no seu fundamento quer na sua medida -, mas que não leva, nem pode levar, a que o Tribunal se coloque na situação do legislador, escolhendo em vez dele a melhor solução.
4. A Constituição não veda, à partida, que se estabeleçam diferenças entre os cidadãos que percebem por verbas públicas e os outros, sempre que estão em causa (como o estão agora) razões de diferenciação dotadas do peso constitucional que detêm aquelas que se relacionam com os imperativos de consolidação orçamental. Isso mesmo o reconheceu o Tribunal no Acórdão nº 396/2011. Assim sendo, a matéria sobre a qual, no caso, incide o juízo do Tribunal não pertence seguramente ao grupo daquelas que requerem a adoção do mais severo ou intenso escrutínio jurisdicional. Dizendo de outro modo: a matéria sobre a qual, no caso, incide o juízo do Tribunal não pertence ao grupo daquelas em que, por exigência da Constituição, se devolve ao legislador o ónus da demonstração da “bondade” das suas escolhas.
É tendo em conta este dado, para nós impostergável, que se deve recordar o modo pelo qual o Tribunal - nas circunstâncias anteriores em que foi chamado a sindicar a constitucionalidade de normas do orçamento do Estado – aferiu o critério de aplicação do princípio da igualdade proporcional.
5. Tanto no Acórdão nº 396/2011 quanto no Acórdão nº 353/2012 foi o princípio densificado através de um duplo teste, que incidiu em especial sobre o modo de aferição da “medida da diferença”. Com coerência argumentativa, o Tribunal começou por averiguar da razão ou do fundamento da diferença estabelecida pelo legislador entre os cidadãos que eram alvo das medidas de redução remuneratória e os outros, que do âmbito de aplicação dessas medidas estavam excluídos. Depois, averiguou da medida da diferença, e da sua proporcionalidade. Para tanto, usou um duplo teste: (i) o de saber se, à evidência, podiam as medidas escolhidas pelo legislador (as reduções remuneratórias) ser tidas como dispensáveis; (ii) o de saber se elas se continham ainda dentro dos limites do sacrifício (imposto a quem era chamado a contribuir para os encargos públicos). Poderemos designar este standard de julgamento como contendo o teste negativo da não evidência da dispensabilidade e o teste positivo da contenção dentro dos limites do sacrifício. Na verdade, através dele o Tribunal fixou o seu próprio standard: os encargos especiais impostos pelo legislador seriam ainda conformes à Constituição conquanto, cumulativamente, não fosse evidente a sua dispensabilidade (teste negativo); e se contivessem ainda tais encargos no âmbito da “justa medida da diferença” ou dos “limites do sacrifício” (teste positivo).
Foi por, em 2011, se terem confirmado ambos os testes – na medida em que a primeira questão recebeu resposta negativa e a segunda resposta positiva – que se chegou a um juízo de não inconstitucionalidade. Mas já em 2012 o Tribunal respondeu afirmativamente à segunda questão. Tendo em conta a natureza logicamente cumulativa que os estalões dos dois testes apresentam, tal conduziu, inevitavelmente, ao juízo de inconstitucionalidade.
É este juízo que agora se repete, e é dele que dissentimos.
6. Na verdade, e ao contrário da maioria, não cremos, nem que possa dar-se resposta positiva à questão de saber se as medidas legislativas são, à evidência, dispensáveis, nem que possa dar-se resposta negativa à questão de saber se os encargos se incluem ainda nos “limites do sacrifício”. Face às circunstâncias específicas que rodeiam o problema colocado ao Tribunal em 2013, estamos convictos de que tais respostas não podem assertivamente ser dadas.
Dois argumentos essenciais parecem fundar a posição contrária assumida pela maioria. De acordo com o primeiro, ao aumentar a carga fiscal, e logo, a universabilidade dos encargos (que passam assim a ser repartidos de forma mais generalizada por todos os contribuintes) mas ao persistir em sobrecarregar adicionalmente os que recebem por verbas públicas, o legislador estará a desconsiderar a igualdade “externa” que une tanto uns como outros cidadãos, excedendo com isso a justa medida em que se deveria comportar o sacrifício sofrido pelos trabalhadores públicos e pensionistas. De acordo com o segundo argumento, a persistência da medida no tempo, por mais do que um só exercício orçamental, teria retirado força persuasora à ideia segundo a qual só essa medida seria eficaz para responder às urgências da consolidação.
A nosso ver, nenhum destes argumentos pode ser demonstrado.
Através do primeiro – que serve para que se responda negativamente à questão de saber se a medida legislativa se inclui ainda nos “limites do sacrifício” – o Tribunal atribuiu-se uma competência (de aferir a “justa medida” da diferença a partir de uma situação de igualdade a priorística que considera como um dado vinculante) que, segundo cremos, deveria caber ao legislador. É que, como já vimos, não é este um domínio em que a Constituição proíba a priori o estabelecimento de diferenças entre as pessoas, seja tendo em linha de conta o seu critério (pagos ou não pagos por verbas públicas), seja tendo em linha de conta o seu fim (redução da despesa pública por razões de equilíbrio orçamental). Por seu turno, através do segundo argumento – que serve para responder positivamente à questão da evidência da dispensabilidade da medida – o Tribunal, a nosso ver, fundou-se num dado que é jurisdicionalmente indemonstrável.
Ainda que, em tese, se pudesse sustentar que a perdurabilidade, no tempo, das medidas de suspensão do pagamento de subsídios a quem recebe por verbas públicas faria acrescer as responsabilidades do legislador no encontrar de soluções alternativas (menos gravosas para aquela categoria de cidadãos) nem por isso se pode concluir, no presente contexto orçamental, que o legislador incumpriu à evidência aquela responsabilidade. Vítor Gomes, Pedro Machete, Maria João Antunes, José Cunha Barbosa e Maria Lúcia Amaral.