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Processo n.º 889/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos autos com o NUIPC n.º 700/10.7TASTR, o arguido A. reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho do relator que não lhe admitiu o recurso para esse Tribunal do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que manteve a decisão da 1ª instância, de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado, por extemporaneidade.
2. Por despacho proferido em 21 de outubro de 2012, pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi a reclamação indeferida, com os seguintes fundamentos:
“1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.2012 foi mantida a decisão da 1.ª instância que rejeitara o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido A., por considerar que o mesmo tinha sido apresentado extemporaneamente.
2. Não se conformando, recorreu o arguido A. para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso não foi admitido nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, 432.º, 433.º e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
O arguido reclama da não admissão do recurso, nos termos do art. 405.º do CPP, onde além de transcrever as conclusões dos recursos interpostos para o Tribunal da Relação e para o STJ, refere que o recurso é legalmente admissível por o Tribunal da Relação ter conhecido, ex novo, de uma questão não colocada pelo recorrente no recurso (prazo presuntivo de 5 dias do n.º 3 art. 113.º, do CPP) e ainda que a não admissão do recurso configurará a supressão de um grau de jurisdição.
3. Verifica-se da reclamação de fls. 2 e segs, na parte em que se discute o acórdão da Relação que a mesma apresenta um caráter genérico e lateral ao objeto definido pelos termos e conteúdo do despacho reclamado, apresentando-se processualmente como uma motivação de recurso, e não da admissibilidade do recurso, tendo em conta o disposto no art. 405.º do CPP.
O reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 23.05.2012 que negou provimento ao recurso por ele interposto, mantendo a decisão recorrida que rejeitara o requerimento de abertura de instrução por ter sido apresentado extemporaneamente.
No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a redação do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do art. 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo».
O objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
É a acusação ou a pronúncia que definem e fixam o objeto do processo.
A atividade decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objeto da acusação.
O objeto do processo penal é o objeto da acusação ou da pronúncia, sendo este que delimita os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado
A este efeito chama-se a vinculação temática que consubstancia os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consecução do objeto do processo; o objeto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e deve considerar-se irrepetivelmente decidido (cf., Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, pp. 144-146).
Deste modo, antes da acusação, ou do despacho de pronúncia que tenha lugar na sequência de instrução, não se encontra ainda definido, para este efeito, o objeto do processo. Este é, pois, definido passada a fase de instrução com o trânsito em julgado do despacho de pronúncia.
Assim, o acórdão do Tribunal da Relação que, em consonância com o decidido em 1.ª instância rejeitou o requerimento de abertura de instrução por extemporâneo, não conheceu do objeto do processo, precisamente porque na fase em que o despacho recorrido foi proferido, e que foi objeto de acórdão da Relação, não se tinha ainda formado nem existia objeto do processo.
É assim insuscetível de recurso a decisão que o reclamante impugnou, nos termos do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
No respeitante à alegação do reclamante de que a Relação conheceu ex novo de questão processual, essa situação não releva, em sede de admissibilidade de recurso para o STJ, por respeitar a acórdão proferido sobre recurso vindo da 1.ª instância.
Por outro lado, como é jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no art. 32.º. n.º 1, da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição já concretizado aquando do julgamento pela Relação, independentemente desta ter rejeitado o recurso interposto, tendo em conta que perante a Relação o arguido teve a possibilidade de expor a sua defesa; a admitir-se o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, estar-se-ia a garantir um triplo grau de jurisdição, o que a Constituição não impõe.
A circunstância do Tribunal da Relação não apreciar o recurso, por considerar extemporânea a sua interposição, não modifica a natureza do recurso e a obrigatoriedade de sujeição a regras processuais.
O ónus do cumprimento de exigências processuais para a interposição do recurso é inerente à utilização e exercício de direitos processuais, não afetando a substância do direito.
O direito ao recurso, só pode ser cabalmente exercido uma vez verificados e cumpridos todos os pressupostos e condições de que depende.
E o art. 32.º, n.º 1, da CRP, desde que os mecanismos processuais estejam previstos, não dispensa o respeito por exigências e pressupostos processuais que os interessados devem satisfazer, como seja a interposição do recurso dentro do prazo legalmente estabelecido.
4. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
3. Notificado, o arguido A., interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:
“A., notificado da decisão proferida nos autos à margem referenciados que indeferiu a sua reclamação de 08 de outubro de 2012 e inconformado com a mesma
Vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional
O que faz nos termos do disposto no Art 75-A da LTC
O presente recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do Art 70 da LTC, indicando-se que a norma violada é a norma constante no nº 3 do Artº 113 do Código de Processo Penal, por violação das disposições constitucionais constantes dos nºs 1 e 2 do Art 32 da Constituição da Republica Portuguesa bem como a norma do nº 1 do Artº 18 da CRP e bem assim por violação do princípio da legalidade.
Assim, porque está em tempo e tem legitimidade, requer-se a admissão do presente recurso para o Tribunal Constitucional, o qual deverá seguir imediatamente e com efeito suspensivo, seguindo-se todos os seus legais termos até final.
O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade quer no seu recurso para o Tribunal da Relação quer na sua reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça.”
4. Por despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 19 de novembro de 2012, foi decidido não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, nestes termos:
“O recurso de constitucionalidade previsto no art.º 70.º n.º 1 da alínea b) da Lei 28/82, de 15/Nov, deve ter por fundamento a invocação de inconstitucionalidade de norma que haja sido suscitada durante o processo e que tenha sido aplicada como fundamento da decisão recorrida.
A decisão da Reclamação não aplicou a norma (art.º 113.º n.º 3 do CPP) invocada pelo recorrente.
Não admito, assim, o recurso para o Tribunal Constitucional – art.º 76.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82.”
5. Notificado, o arguido A. veio reclamar dessa decisão de não admissão, nos seguintes termos:
“(...)
O agora reclamante interpôs recurso para este Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do Art. 70 da LTC tendo indicado como norma violada o nº 3 do art. 113 do Código de Processo Penal por violação das disposições constitucionais constantes dos nºs 1 e 2 do Artº 32 da Constituição da República Portuguesa bem como a norma do nº 1 do Artº 18 da CRP e bem assim por violação do princípio da legalidade.
O recurso interposto não foi admitido com o fundamento da decisão da reclamação não ter aplicado a norma constante do nº 3 do Artº 113 do CPP invocada pelo recorrente ora reclamante. Acontece porém que a referida norma bem como as restantes invocadas no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal foram suscitadas quer no recurso para o Tribunal da Relação quer na reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tendo sido tempestivamente suscitada a interpretação materialmente inconstitucional feita pelos referidos Tribunais da citada norma, deve ser admitido o recurso interposto para este Tribunal uma vez que se suscitou tempestivamente a questão da inconstitucionalidade.
Tendo sido aplicada nas decisões recorridas a norma cuja inconstitucionalidade se suscita e expressamente consignado que tal interpretação não viola o disposto no nº 1 do Artº 32 da CRP porque os mecanismos processuais previstos não dispensam o respeito por exigências e pressupostos processuais que os interessados devem satisfazer,
Fez-se uma interpretação materialmente inconstitucional da citada norma legal a qual vida o Direito do reclamante ao recurso e consequentemente os seus direitos consagrados na referida norma e ainda o princípio da legalidade,
Pelo que deveria o recurso interposto pelo arguido para este Tribunal Constitucional ter sido admitido por ser legalmente admissível e tempestivo. “
6. Remetidos os autos a este Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, dizendo:
“(...)
4. Vendo o requerimento de interposição do recurso, parece-nos evidente que, ali, não vem identificada, com o mínimo de rigor, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
5. Indica-se como “norma violada” o artigo 113.º, n.º 3 do CPP “por violação das disposições constitucionais” que seguidamente indica, desconhecendo-se que questão de inconstitucionalidade o reclamante pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
6. Por outro lado, a decisão recorrida que se limitou a indeferir a reclamação (artigo 405.º do CPP) apenas aplicou as normas atinentes ao regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, no caso os artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
7. Ou seja, a decisão recorrida não aplicou, nem podia ter aplicado o artigo 113.º, n.º 3, do CPP, mas apenas a Relação quando negou provimento ao recurso interposto da decisão de 1.ª instância.
8. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre decidir
II. Fundamentação
7. Como decorre do supra narrado, o recorrente A. vem reclamar do despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que não lhe admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento em que a questão normativa colocada, dirigida ao preceituado no n.º 3 do artigo 113.º do Código de Processo Penal, não encontrava correspondência nos fundamentos decisórios em que assentou a decisão recorrida. Afirma-se que “[a] decisão da Reclamação não aplicou a norma (art.º 113.º, n.º 3 do CPP) invocada pelo recorrente”.
O recorrente, ora reclamante, diverge desse entendimento, argumentando com a suscitação tempestiva da questão de inconstitucionalidade e com a aplicação da norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada “nas decisões recorridas”.
Não lhe assiste razão.
8. Desde logo, a consideração plural de decisões recorridas não corresponde ao impulso recursório apresentado. O requerimento de interposição de recurso dirige a impugnação tão somente à decisão que indeferiu a reclamação quanto à não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem indicação de qualquer outra decisão recorrida. Em termos que não consentem qualquer dúvida, o recorrente impugnou apenas “a decisão proferida nos autos à margem referenciados que indeferiu a sua reclamação de 08 de outubro de 2012”.
Nessa medida, a chamada à colação do conteúdo decisório de outra pronúncia judicial, qualquer que seja, para o efeito de reunir os pressupostos do recurso de constitucionalidade, mostra-se imprópria, porque alheada do objeto do recurso, tal como delimitado no requerimento de interposição (artigo 75.º-A, n.º 1 da LTC).
9. Paralelamente, a circunstância da questão normativa colocada ter sido previamente suscitada também não encontra propriedade, tendo em vista contrariar os fundamentos do despacho reclamado, pela simples razão que este, e a conclusão pela inadmissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, não se fundou na ausência de legitimidade.
Sem embargo, importa referir que o disposto no artigo 72.º, n.º 2 da LTC faz depender a legitimidade do recorrente da suscitação da questão da inconstitucionalidade (ou da ilegalidade qualificada) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Ora, tomando a reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal, verifica-se que o reclamante não suscitou a apreciação de qualquer inconstitucionalidade de norma contida no artigo 113.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, no âmbito da discussão sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça. É certo que se refere a esse preceito a propósito do objeto do recurso interposto, e das razões que o suportam, com transcrição da motivação apresentada, mas, no que tange à questão a decidir na reclamação - subsistência da decisão reclamada, de não admissão de recurso – diz, tão somente, o seguinte:
“- O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é legalmente admissível pelo facto do Tribunal da Relação ter conhecido “ex novo” de uma questão não colocada pelo recorrente no seu recurso e como tal suscetível de recurso por este mais alto Tribunal tudo conforme já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça, de entre outros no Ac. 26.6.2002 in CJ Acs. Do STJ X, 2, 227.
- Com efeito a não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça configurará, na prática, a supressão de um grau de jurisdição – cfr. comentário do Código de Processo Penal de Paulo Pinto de Albuquerque - 4ª Edição atualizada, pág. 1044.”
10. Assim, a apreciação da reclamação ateve-se a esses dois argumentos – inovação da questão colocada no recurso e supressão de um grau de jurisdição - sem tomar conhecimento de qualquer outra questão, mormente daquela contida no objeto do recurso - e não no objeto da reclamação – relativa à aplicação do artigo 113.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Esse sentido ressalta, com nitidez, do segmento onde se escreve:
“3. Verifica-se da reclamação de fls. 2 e segs, na parte em que se discute o acórdão da Relação que a mesma apresenta um caráter genérico e lateral ao objeto definido pelos termos e conteúdo do despacho reclamado, apresentando-se processualmente como uma motivação de recurso, e não da admissibilidade do recurso, tendo em conta o disposto no art. 405.º do CPP”.
11. Temos, então, e com nitidez, que, diferentemente do que sustenta o reclamante, a decisão recorrida – despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação do despacho de não admissão de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – não aplicou, mormente como sua ratio decidendi, qualquer sentido normativo extraído do disposto no artigo 113.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
12. Como vem sendo repetidamente afirmado por este Tribunal, em obediência à salvaguarda do caráter instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC exige, como pressuposto geral de admissibilidade, a efetiva aplicação, expressa ou implícita, na decisão recorrida, da norma (ou dimensão normativa) cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada. O que, e como bem se afirma na decisão reclamada, manifestamente não aconteceu no caso em apreço, falecendo, então, esse pressuposto de admissibilidade do recurso interposto.
13. Cumpre, assim, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, confirmar a decisão de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional e indeferir a reclamação apresentada pelo arguido A..
III. Decisão
14. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2013.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.