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Processo n.º 131/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 131/13, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, 15 de novembro (LTC), do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 29 de novembro de 2012, em que se julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão proferida pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães.
2. Pela decisão sumária n.º 100/213, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso, por o seu objeto não incidir sobre questão de inconstitucionalidade normativa.
Exarou-se nessa decisão:
“I. Relatório
1. Na presente ação declarativa, com processo comum na forma ordinária, intentada por B. contra C., D., A. e E., por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 29 de novembro de 2012, foi julgada improcedente a apelação e confirmada a decisão proferida pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães que indeferiu a nulidade arguida pela ré A. e, consequentemente, considerou atendível a perícia realizada e o seu relatório.
2. Inconformada, ré A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, o qual foi subsequentemente admitido.
Na sequência de convite que lhe foi dirigido, nos termos do n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, no sentido de indicar, de modo claro, preciso e sucinto, a concreta interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada por este Tribunal, veio dizer o seguinte:
«1 – No presente processo, o Autor impugna a maternidade e a paternidade que constam do seu registo de nascimento, sustentando que outros são os seus progenitores.
2 – No momento processual adequado foi inserido na base instrutória, o seguinte quesito: “1 - O R. D. engravidou a Ré E., sendo o A. fruto dessa gravidez?”, na sequência do que foi determinada “a realização de uma perícia consubstanciada em testes de ADN aos A. e aos RR. D. e E., a qual terá como objeto o ponto 1 da base instrutória” e “deverá ser efetuada pela Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal LP.”.
3 – Falecido o Réu D., veio o Procurador-Adjunto do Tribunal Judicial de Guimarães – que não intervém no processo – a determinar, a requerimento do Autor, que se procedesse à recolha no cadáver de vestígios biológicos para realização de exames de ADN, findos os quais ordenou a entrega do corpo aos familiares, tudo sem qualquer intervenção direta ou indireta do juiz do processo, e sem notificação às partes processuais.
4 – Para assim proceder, louvou-se o referido Procurador-Adjunto no que consta do seguinte despacho por si manuscrito e enviado por fax a partir do Tribunal Judicial de Leiria: “Foi-me dado conhecimento pelas 19 horas, via telemóvel, de que D. terá falecido.
Ora,
Foi-me ainda dado a conhecer que contra o falecido ação de investigação de paternidade, proc. 421/08.0TCGMR 2ª Vara Mista, sem que ali tenha sido possível fazer a recolha das necessárias amostras biológicas para comparação de ADN por o requerido D. ter falecido”.
No mesmo despacho e em consequência foi determinada a condução do corpo ao gabinete médico-legal e “seja informado o Proc. 421/08. 0TCGMR, 2ª Vara Mista do ora determinado”.
5 – Efetuado o exame médico-legal, nas referidas condições, a ora recorrente veio impugnar os respetivos resultados, porque, por um lado, tudo havia sido tramitado sem ser cumprido em relação a si o princípio do contraditório e, por outro lado, porque o exame fora determinado por entidade que não tinha competência legal para o fazer.
6 – Foi, depois, produzido despacho, no qual, reconhecendo-se que o exame hematológico foi determinado por entidade sem competência para o efeito, bem como à revelia das partes pelo que não observou as disposições processuais vigentes, mas tudo não passava de simples irregularidades, pelo que a perícia realmente efetuada, bem como o relatório apresentado, não deverão deixar de ser aproveitados.
7 – Dessa decisão a ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação, por, na parte que interessa aqui considerar, entender que o despacho assim produzido é ferido de nulidade absoluta, não podendo produzir quaisquer efeitos jurídicos, constituindo interpretação implícita do artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, no sentido de considerar o papel do juiz suscetível de ser substituído pelo Ministério Público, ou seja, substituível por quem não é juiz, quando a lei impõe a este o dever de observar e fazer observar ao longo do processo o princípio do contraditório e a responsabilidade única pela decisão de todas as questões de direito e de facto discutidas no processo, violando essa interpretação diretamente os artigos 202º, 203º, 205º, 209º, n.º 3 da Constituição, e o princípio da separação e interdependência de poderes, previstos no artigo 2º da Constituição.
8 – Pelo seu acórdão ora sob recurso, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou, embora dispensando-se de qualquer fundamentação, que não se mostram, deste modo, violadas as normas legais e constitucionais que a apelante recita, mas sim rigorosamente respeitadas, sendo por isso de confirmar a bem fundada e sensata decisão recorrida, pois não vê no ocorrido uma usurpação de poder judicial nem a produção de uma decisão juridicamente inexistente por incompetência, o que, a seu ver, é um exagero.
9 – Em conclusão, a admissão da intrusão do Ministério Público em processo em que não tem qualquer intervenção, sequer como parte, ordenando, para mais sem contraditório, a produção de meios de prova e determinando simplesmente a sua comunicação ao juiz de processo, que acatou essa anómala conduta, constitui interpretação dos artigos 2º e 3º do Código de Processo Civil (garantia de acesso aos Tribunais, e garantia de observância do princípio do contraditório) violadora das normas constitucionais constantes dos artigos 202º (a administração da justiça compete aos tribunais), 203º (os tribunais são independentes e estão sujeitos à lei), 205º (as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista pela lei), 209º, n.º 3 (a lei determina como os tribunais se constituem).»
II. Fundamentação
3. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
4. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Nas palavras do Acórdão nº 138/2006 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.”
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), para além da efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir “ratio decidendi” ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto, e o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
5. No caso vertente, como resulta desde logo do enquadramento que se procedeu no requerimento de resposta ao convite que lhe foi dirigido, a requerente insurge-se contra a decisão recorrida, enquanto ato de julgamento, e não quanto a qualquer critério normativo extraído de preceito ou princípio legal, aplicado pelo Tribunal a quo como determinante judicativa. Assim decorre da indicação de que se visa “a admissão de intrusão do Ministério Público” e o acatamento dessa “anómala conduta”, o que constitui crítica dirigida ao que considera errada interpretação do direito infraconstitucional, e não a qualquer critério normativo comportado nas normas indicadas – artigos 2.º e 3.º do Código de Processo Civil – efetivamente aplicado pelo Tribunal a quo e que não chega a enunciar em termos gerais e não dependentes das especificidades do caso em presença.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correção ou a bondade das decisões proferidas pelos tribunais, no exercício estrito da função judicial que lhes está cometida, mas sim verificar a conformidade de normas com a Constituição (ou lei de valor reforçado).
O recurso, atento o seu objeto, não pode, pois, prosseguir para apreciação de mérito (artigo 280.º da Constituição).
6. Dito isto, importa referir que a ratio decidendi do Acórdão recorrido não envolveu qualquer interpretação, expressa ou implícita, do artigo 2.º e 3.º do Código de Processo Penal como permitindo ao Ministério Público “substituir-se” ao juiz na determinação de prova pericial. Entendeu-se, sim, que a perícia fora ordenada nos autos por despacho judicial e que a atuação do Ministério Público após o falecimento do visado na perícia se traduzira apenas em ato de concretização ou materialização dessa decisão judicial, embora através de ordenação sem incumbência judicial. Ordenação essa consubstanciadora de mera irregularidade processual – e não nulidade – sem qualquer influência no exame ou na decisão da causa.
Assim, mesmo que se lograsse divisar na formulação da recorrente impugnação dirigida a interpretação normativa, reportada ao conteúdo precetivo dos artigos 2.º e 3.º do Código de Processo Civil, sempre a apreciação de tal questão seria incapaz de reverter o decidido pelo Tribunal a quo, na medida em que não aplicara efetivamente tal “norma”.
Nessa medida, face ao que dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, também por tal fundamento, não permite a conformação dada ao recurso de constitucionalidade o seu conhecimento.
III. Decisão
7. Pelo exposto, ao abrigo do nº 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se:
a) Não conhecer do recurso interposto para este Tribunal Constitucional pela recorrente A.; e
b) Condenar a recorrente nas custas, que se fixam, atendendo à dimensão e complexidade do objeto do recurso, em 7 (sete) Ucs.”
3. Inconformada, a recorrente reclama da decisão sumária para a conferência, pugnando pela substituição da decisão sumária por outra que determine o prosseguimento do recurso e o seu conhecimento.
4. Não foi apresentada resposta.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. Confrontada com decisão sumária de não conhecimento do recurso, fundada na ausência de colocação de questão normativa de constitucionalidade - antes na procura da sindicância do ato de julgamento, na vertente aplicativa do direito infraconstitucional -, vem a recorrente reclamar para a Conferência, o que fez através de requerimento despido de qualquer argumento ou razão.
6. Assim sendo, não aduzindo a reclamante quaisquer motivos para a sua discordância, cumpre apenas confirmar o acerto da decisão sumária, na medida em que, como entendido, a recorrente não aponta o recurso à apreciação de norma, ou interpretação normativa, enunciada com vocação de generalidade e abstração, autonomizável da pura atividade subsuntiva e dissociável das particularidades do caso em apreço. Antes procura outra instância decisória sobre o acerto aplicativo da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, cognição que, porque alheia à fiscalização concreta da constitucionalidade compreendida na al. b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição, não constitui tarefa cometida ao Tribunal Constitucional.
Merece, pois, confirmação a decisão sumária que, com fundamento na sua inidoneidade, não conheceu do objeto do recurso.
III. Decisão
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada.
8. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Notifique.
Lisboa, 10 de maio de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.