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Processo n.º 920/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 920/12, A., Lda, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, 15 de novembro (LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 18 de setembro, que julgou improcedente o recurso de revista e manteve a decisão de improcedência dos embargos de terceiro apresentados pela referida sociedade.
2. Pela decisão sumária n.º 100/213, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso, por o seu objeto não incidir sobre questão de inconstitucionalidade normativa.
3. Inconformada, a recorrente A., Lda reclama da decisão sumária para a conferência, nos seguintes termos:
“1. Diz-se na douta decisão sumária que foi o próprio discurso da recorrente, na resposta ao pedido de esclarecimentos que lhe fora endereçado, a deixar claro “(…) que o recurso interposto não incide sobre o critério ou padrão normativo da decisão, mas sobre a decisão recorrida em si mesma considerada (…)” - ut pp. 6 da douta decisão sumária).
Além disso, no requerimento apresentado, “(...) a ilegitimidade constitucional não se encontra numa dimensão normativa do preceituado nos artigos 1038º, alínea f), do Código Civil e 64º, nº 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano, mas sim na sua aplicação pelo Tribunal a quo” - idem, idem.
Ocorre então questionar: qual foi a decisão, melhor, em que é que consistiu a decisão proferida pelo Supremo?
A decisão foi deste teor:
“Portanto e concluindo, não podendo considerar-se que a cessão da posição contratual aqui em causa, se baseou num contrato de trespasse válido e oponível à senhoria, a confessada cessão exigiria sempre a prévia autorização da embargada, a qual, como se viu, não ficou provada.”
“Como se disse, o ónus da prova dos fundamentos do direito invocado (no caso, a cedência da posição contratual de arrendatário por parte do B., para a embargante, com a prévia autorização de embargada) pertencia à embargante, de modo que, não tendo feito tal prova, terá que julgar-se contra ela, como determina o Artº 516º do C.P.C.” (vd. pp. 16 do Ac. do STJ).
Deste modo, o Supremo negou a revista, confirmou a decisão recorrida e manteve a improcedência dos embargos.
Pergunta-se agora: foi sobre tal decisão que se baseou ou embasou a questão de inconstitucionalidade invocada pela recorrente?!
A recorrente, porventura, pôs em dúvida o problema do ónus da prova sobre a autorização do senhorio para a tal confessada cessão?! A recorrente, porventura, opôs-se a que tal ónus lhe pertencesse?! Ou opôs-se outro tanto a que não tivesse havido qualquer trepasse válido?!
Terá sido pelo facto de o Supremo assim ter decido e julgado improcedente o recurso e procedente a decisão proferida pela 1ª instância que a recorrente formulou a questão de inconstitucionalidade?!
Seguramente que não!
Sobre a DECISÃO (em si mesma ou propriamente dita/considerada) a recorrente nada contrapôs, nada impugnou, nada contestou, nada invocou e muito menos a sua (dela decisão) inconstitucionalidade.
É porque a DECISÃO proferida pelo Supremo foi a de julgar os embargos improcedentes, pelo facto de não ter existido um trespasse válido e pelo facto ainda de a embargante não ter provado ser arrendatária do local. FOI ESSA A DECISÃO, FOI ESSE O CERNE DA DEC1SÃO proferida pela instância originária e depois MANTIDA pelo SUPREMO.
Fácil é, pois, concluir-se que a questão de inconstitucionalidade não tem como objeto a DECISÃO.
Depois, o que muitas vezes acontece é que para poder resolver a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional tem de sindicar a aplicação do direito ordinário ou infraconstitucional.
Pois como diz GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed., Almedina, pp. 1001) “(...) nem sempre é fácil estabelecer a separação entre um problema de inconstitucionalidade da norma e inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do ato de julgamento” (cfr., Acs. TC 106/92, 151/94, 507/94, 612/94, 243/95, 342/95, 828/96, 2055/99, 383/200).
O Tribunal Constitucional é competente para julgar a constitucionalidade de interpretações normativas, ou de normas (interpretativamente obtidas, apesar da dificuldade prática que por vezes poderá ocorrer no estabelecimento de fronteiras ou balizas entre norma e decisão judicial.
O Tribunal Constitucional não pode sindicar o ato de julgamento envolvendo a ponderação da singularidade do caso concreto, mas pode e deve aferir a constitucionalidade do CRITÉRIO NORMATIVO utilizado na decisão.
O Tribunal Constitucional pode inclusivamente revogar total ou parcialmente a decisão recorrida, ordenando que o Tribunal a quo proceda à reforma da sentença proferida, a fim de se conformar com a decisão do TC quanto à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade (J. J. GOMES CANOTILHO, ob. e loc. cits.).
2. Pois bem, as normas objeto do recurso de constitucionalidade estão previstas no artigo 64º, nº 1, alínea f) do RAU, e no artigo 1038º, alínea f) do Código Civil.
A disposição primeiramente citada prescreve que o senhorio goza do direito potestativo de resolução do contrato de arrendamento, no caso de ocorrer a infração nela regulada, ou seja e para o que agora importa, a cedência da posição contratual a favor de outrem sem o consentimento do senhorio. Na disposição indicada em segundo lugar, a norma contida nesse inciso é a de que o arrendatário tem a obrigação de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita, exceto se a lei o permitir ou o locar o autorizar.
O arrendatário apenas poderá ceder a sua posição contratual, se para tanto lhe for ou tiver sido concedida autorização por parte do senhorio.
Quer dizer, em vista de poder ceder a posição contratual que detém, o inquilino tem previamente de obter o consentimento do locador (PEREIRA COELHO, Arrendamento, Lições, Coimbra, 1998, pp. 212).
Também PAIS DE SOUSA é de opinião de que a cessão só é ilícita, quando não for autorizada pelo senhorio, sendo que esse facto (a autorização do senhorio) traduz um pressuposto essencial do direito potestativo de resolução do contrato de arrendamento (Extinção do Arrendamento Urbano, 2ª ed., pp. 258-259).
Por isso a embargante, para obter ganho de causa nos presentes embargos, teria que provar que B. obtivera a necessária autorização do senhorio (o falecido C.), para lhe ceder ou lhe ter cedido o arrendamento.
Ora, onde é que se encaixa a questão de inconstitucionalidade das normas (NÃO DA DECISÃO!), interpretadas e aplicadas pelo Supremo?!
É o que se faz mister analisar.
3. A controvérsia que está por detrás do caso, ou que vem servindo de pano de fundo do procedimento vertente (os embargos) PERDURA HÁ QUINZE ANOS!
A ação foi intentada no dia 23 de setembro de 1997!
E desde então, não se falou, ou tratou, ou debateu outra questão, qual verdadeiro hipograma, que não fosse a da prova do facto ou elemento constitutivo da pretensão apresentada pelo autor, ou do fundamento do direito potestativo do senhorio, ou da necessidade de prova do quesito da autorização do senhorio para a cessão, ou a prova, primo, de que a cedência foi ilícita, porque não autorizada, secundo, de que a cedência foi lícita, porque autorizada.
O cerne, o clou da controvérsia, do litígio, sempre girou ou gravitou à volta desse PARTICULAR QUESITO, desse PRESSUPOSTO DE FACTO importantíssimo, desse ELEMENTO CONSTITUTIVO DO DIREITO de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio.
E isso é ou foi assim, porquanto, como é sabido, a lei permite a CESSÃO LÍCITA DA POSIÇÃO CONTRATUAL Mas para ser LÍCITA, a cessão TERÁ QUE SER AUTORIZADA PELO SENHORIO.
Daí a importância dir-se-ia vital da prova dessa licitude, que terá que ser feita, no caso dos embargos, pela embargante.
Não podemos esquecer (e como a nossa mente é porosa ao e esquecimento!) que a ação principal foi julgada procedente “por a senhoria não ter autorizado o seu inquilino B., a ceder o arrendamento à embargante A., Lda.”, como de resto, se fez constar na alínea C dos factos provados.
Não fora a admissão desse relevantíssimo facto por falta de impugnação do então réu B., e o Supremo teria julgado a ação improcedente. Só isso!
Mas aí, o Supremo não cometeu qualquer inconstitucionalidade, não fez qualquer interpretação ou aplicação da norma que fosse inconstitucional e que não se louvasse na doutrina e jurisprudência dominantes.
In casu, o que aconteceu foi que a cedência foi considerada ilícita, APESAR DA INEXISTÊNCIA DE UM SÓ FACTO, OU QUESITO, OU PONTO DE FACTO (deixou de ter utilização o vocábulo “quesito”) RELATIVO À AUTORIZAÇÃO DO SENHORIO, DE MODO A QUE A EMBARGANTE PUDESSE FAZER A PROVA QUE LHE INCUMBIA.
Por outro lado, é menos verdade que da restante matéria constante da base instrutória, constasse o essencial da factualidade alegada pela embargante, toda ela com o referido sentido de que a cessão tivesse sido autorizada (sic).
Não havia, como não há, nos factos incluídos na base instrutória, como se disse, a menor alusão à autorização do senhorio para a cessão da posição contratual efetuada por B..
A questão da autorização para a CESSÃO/CEDÊNCIA não consta da base instrutória, o que fez com que a 1ª instância acabasse por não analisar a questão. Não há como fugir a isto!
Dizer que não interessava a presença desse facto concreto para julgar a cedência ilícita, é uma interpretação forçada, ilegal, arbitrária, baseada em raciocínios non sequitur e logo, inconstitucional, que não contempla nem respeita, nem traduz a fattispecie das normas apontadas, como não respeita os princípios de estalão constitucional anteriormente invocados.
A interpretação dos artigos 1038º, f) do Código Civil e 64º, 1), f) do RAU, foi imprevista, foi inesperada e inusitada, pois a embargante, tendo a certeza de que o facto não existia na base instrutória, estava completamente convencida de que a decisão a proferir pelo Supremo teria sempre que passar pela ampliação da base instrutória no sentido de a mesma passar a conter ou abarcar e abranger um ponto de facto concreto sobre a questão.
Se a base instrutória continha um facto alusivo à autorização para a constituição da sociedade embargante, então, por maioria de razão, a fortiori, não poderia deixar de conter um facto específico sobre a autorização do senhorio para a cessão da sua posição contratual à sociedade constituída por B. e pelo Filho, D..
Só se poderá afirmar que a embargante não conseguira provar a autorização..., no caso de o FACTO CORRESPONDENTE ter sido considerado como NÃO-PROVADO.
MAS ONDE ESTÁ O FACTO, ESSE FACTO???!!!
Cadê ou cadesse facto?!
É preciso que se note que a Constituição não reconhece qualquer amplitude criativa ao julgador.
Daí a necessidade de apurar o sentido último da decisão recorrida e interpretação que nela se contém dos preceitos que foram aplicados como ratio decidendi ou com pertinência na causa.
Mas como ensina o Autor citado, trata-se sempre de uma norma interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, se tiver relevância e for útil para o julgamento da questão principal (CANOTILHO, ob. cit., pp. 989 e 997).
4. Afirma-se na douta decisão sumária que a apreciação crítica da recorrente não afasta a ratio decidendi, tal como foi afirmada, e que se impõe a este Tribunal Constitucional, no plano infraconstitucional, como um dado (ut pp. 7, in fine).
Salvo o devido respeito, não se pode concordar com o incipit.
Porquê? Porque o Tribunal Constitucional não pode acriticamente, fortuitamente, aceitar uma qualquer argumentação jurídica, como UM DADO, UM DADO!
Sempre haveria que verificar se a referida argumentação hermenêutica se enquadraria ou não no perfil normativo das normas aplicadas.
A interpretação feita pelo Supremo sobre o segmento das normas em questão - A AUTORIZAÇÃO DO SENHORIO PARA A CESSÃO OU CEDÊNCIA - não pode ser acolhida por este Alto Tribunal como um DADO ADQUIRIDO, ou como mero parti pris.
Será ou ficará adquirida depois de debatida, depois de perscrutada e analisada, nos planos de estalão constitucional e infraconstitucional, e se para tanto existirem razões suficientes e plausíveis.
ALEATORIAMENTE é que nunca poderia ser...
Como sugestivamente referiu UMBERTO ECO, a suspeita de que tudo seja verdadeiro é acompanhada constantemente da suspeita de que tudo seja falso...
Não basta o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, como assegura o artigo 20º da CRP.
É igualmente necessário que todos tenham direito a um PROCESSO LEGAL, JUSTO E ADEQUADO.
E que além disso, seja a todos assegurado e garantido o DIREITO CONSTITUCIONAL à JUSTIÇA CONSTITUCIONAL (F. Alves Correia).
As sentenças judiciais estão sob a reserva da interpretação e controle do Tribunal Constitucional.
Nestes termos e nos mais de direito, a reclamação deve ser, pois, atendida e, em consequência, admitido o recurso, como é de JUSTIÇA.
4. Não foi apresentada resposta.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. Confrontado com a decisão sumária de não conhecimento do recurso, fundada na ausência de colocação de questão normativa de constitucionalidade - antes na procura da sindicância do ato de julgamento, na vertente aplicativa do direito infraconstitucional -, vem o recorrente reclamar para a conferência, manifestando discordância com o entendimento sufragado, na medida em que, sustenta, questionou critério normativo e não a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em si mesma.
Sem razão.
6. Com efeito, quer no requerimento de interposição de recurso, quer no requerimento apresentado na sequência do convite que lhe foi dirigido pelo relator, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, o recorrente não questiona a solvência constitucional das soluções normativas acolhidas pelo julgador. Considerou, sim, que o Tribunal recorrido aplicou critério decisório que a lei não prevê nem admite.
Assim decorre, com nitidez, na imputação à decisão do vício de ilegalidade, inscrita em argumentação centrada na discussão da suficiência dos específicos fundamentos de facto apurados para a decisão de improcedência dos embargos, sem apontar a ilegitimidade constitucional a qualquer norma, ou interpretação normativa, enunciada com vocação de generalidade e abstração, autonomizável da pura atividade subsuntiva e dissociável das particularidades do caso em apreço.
7. A argumentação em que se sustenta a reclamação em apreço apenas confirma essa conformação do recurso e o juízo constante da decisão sumária reclamada. O recorrente indica expressamente o propósito de “sindicar a aplicação do direito ordinário ou infraconstitucional”, imputa a inconstitucionalidade a interpretação que reputa de “forçada, ilegal e arbitrária” e apela a que “sempre haver[á] que verificar se a referida argumentação hermenêutica se enquadraria ou não no perfil normativo das normas aplicadas”.
Ou seja, reitera o propósito de sindicar a dimensão definidora do direito infraconstitucional aplicável e a correção da atividade subsuntiva exercida pelo Supremo Tribunal de Justiça face ao que considera ter ficado por demonstrar, e não o de ver apreciada qualquer questão de constitucionalidade normativa radicada no critério de julgamento, nos termos permitidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição. Na verdade, em ponto algum do requerimento de interposição de recurso, como da reclamação em apreço, aponta o recorrente ilegitimidade constitucional a qualquer normação ou interpretação normativa. Pretende, isso sim, que a decisão recorrida padece de erro quanto a “pressuposto de facto”, em virtude de considerar (ao invés da decisão recorrida, como se aponta na decisão sumária) que a matéria apurada não permite afastar a verificação de autorização da senhoria para a cessão da posição contratual.
Ora, não incumbe ao Tribunal Constitucional definir qual o melhor Direito, no plano infraconstitucional, mas sim apreciar se aquele efetivamente aplicado como critério normativo determinante do julgado (sem discutir a sua bondade e, nessa medida, aceitando-o como um dado), ofende parâmetro ou princípio constitucional, tendo em atenção a delimitação da questão que ao recorrente incumbe fazer no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade.
No caso em apreço, nenhuma questão com essa natureza foi colocada pelo recorrente.
Cumpre, assim, confirmar a decisão sumária que, com fundamento na sua inidoneidade, não conheceu do objeto do recurso.
III. Decisão
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada.
9. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Notifique.
Lisboa, 10 de abril de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.