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Proc. nº 723/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. R..., A ... e Associados instaurou, junto do Tribunal de Círculo de Leiria, contra E... e M..., acção de honorários, pedindo a condenação dos réus no pagamento do valor de 2.020.000$00 (acrescido de juros e IVA).
O Tribunal de Círculo de Leiria, por decisão de 3 de Fevereiro de
2000, considerou dever ponderar, na fixação do valor devido pelos réus à autora, a situação económica destes, o resultado obtido, o estilo da comarca e os demais elementos atendíveis, nos termos do artigo 65º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados. Nessa medida, julgou a acção parcialmente procedente, condenando os réus no pagamento de 800.000$00.
2. R..., A ... e Associados interpôs recurso de apelação da decisão de 3 de Fevereiro de 2000 para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Nas respectivas alegações, a recorrente sustentou que a norma que consagra como critério de determinação do montante dos honorários do advogado a situação económica dos clientes e o estilo da comarca é inconstitucional, por violação do artigo 13º da Constituição.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 3 de Outubro de
2000, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
3. R..., A ... e Associados interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 3 de Outubro de 2000, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas do artigo 65º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, e do artigo 114º, nº 3, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
A Relatora proferiu despacho, fixando prazo para alegações, suscitando, concomitantemente, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, a questão prévia consistente na impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso no que respeita à norma do artigo 114º, nº 3, da Lei nº
3/99, de 13 de Janeiro, uma vez que tal questão não foi suscitada durante o processo.
A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: Conclusões:
1ª) O artigo 13° da CRP estabelece um princípio matricial de um qualquer estado de direito democrático; exactamente o princípio da igualdade.
2ª) E se tal princípio da igualdade não é tendencia1mente absoluto já que, como entende a melhor dogmática, convida a que situações desiguais tenham um tratamento legislativo desigual, o que é certo é que tal fenomenologia só poderá emergir desde que o elemento de diferenciação seja ponderada e objectivamente motivado.
3ª) O artigo 65° do DL 84/84 de 16 de Março que estatui que a fixação de honorários pelo Advogado há-de levar em linha de conta 'as posses do interessado' estatui um regime sem qualquer paralelo no que tange ao cumprimento das obrigações;
4ª) e fá-lo sem que enuncie um qualquer elemento objectivo que legitime a assunção da solução diferenciada.
5ª) Assim, no referido conspecto, é manifesto que a peculiaridade restritiva da norma em apreço contende flagrantemente com o invocado princípio da igualdade pelo que deve ser declarada inconstitucional.
6ª) Por outro lado, a Ordem dos Advogados é uma instituição que, mediatamente, exerce o ius imperii naquilo que tange directamente à observância das regras deontológicas e estatutárias dos seus membros e de forma reservada.
7ª) Tal é o corolário precípuo do exame combinado do art. 208° da CRP e do art.
114° da Lei 3/99 de 13 de Janeiro, que mais não é do que a refracção e densificação legais do aludido ditame constitucional.
8ª) Por isso a derrogação pelas instâncias de um laudo de honorários já transitado proferido pelo órgão competente da Ordem, designadamente deitando mão do estatuído no art. 65° do DL 84/84, desrespeita o preceituado enunciado na conclusão anterior .
9ª) Tornando assim inconstitucional a aplicação, por omissão intelectiva, das sobreditas normas. Termos em que, na procedência da argumentação aduzida, devem ser declaradas as inconstitucionalidades referidas em sede conclusiva, com a consequente remessa dos autos às instâncias para que as decisões tomadas sejam extirpadas dos vícios detectados.
Cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia
4. A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional proceda à apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 114º da Lei nº
3/99, de 13 de Janeiro.
Suscitada a aludida questão prévia no despacho de fls. 410, a recorrente respondeu, afirmando que nas conclusões B10, B11, B12, B13, B14, B15 e B19 da petição de apelação sustentou que o referido artigo 114º 'não constitui mais do que uma refracção legal da normatividade expressa no artigo 208º da CRP'. Na perspectiva da recorrente, 'ao ter-se desrespeitado o teor semântico e legal da aludida norma desrespeitou-se, reflexamente, a norma constitucional'.
As conclusões indicadas têm a seguinte redacção: B10: a nobre profissão livre de advogado tem agora, de forma juridicamente vinculante, os seus principais vectores definitórios, nos artigos 208° da Constituição da República, por um lado e 6º e 114°, estes ambos da Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro, por outro. Ora, B11: nos termos que para agora, em especial, interessam, releva o disposto na a1ínea b) do n° 3 do último dos citados normativos B12: pelo que a M.ma Juíza, ante a posição assumida pela Ordem dos Advogados, só dela se poderia ter apartado se tivesse entendido que os honorários reclamados pela recorrente estavam fixados à revelia de uma qualquer regra de direito comum
- no caso, necessariamente e apenas do direito civil, por se tratar da remuneração de um contrato de mandato. Como assim, B13: da interpretação e aplicação que, no caso concreto, a M.ma Juíza terá feito dos normativos que adiante se referirão - a admitir que os mesmos não tenham sido, pura e simplesmente, desconsiderados em absoluto, como, salvo o devido respeito, se afigura claro ter sucedido - resultou violado o artigo 6° da Lei Orgânica dos Tribunais, pois, não tendo sido referida qualquer norma legal violada, a Senhora Juíza apenas discrepou por ter procedido a uma errónea interpretação da acima falada norma do E.O.A. B14: ou seja, ao cabo e ao resto, usurpando poderes, acabou por considerar que a recorrente violou as regras deontológicas próprias da profissão B15: bem como a referida alínea b) do n° 3 do artigo 114° da Lei Orgânica dos Tribunais. Tudo isto, B19: os quais, para o que agora interessa, decorrem do disposto da alínea s) do n° 1 do artigo 165° da Constituição da República. Como assim,
5. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada, em princípio, durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
6. Das transcrições realizadas e da própria resposta à questão prévia constante das alegações do recurso de constitucionalidade resulta claramente que a recorrente não suscitou antes da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional qualquer questão de constitucionalidade normativa relativa ao artigo 114º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro. Com efeito, a recorrente nunca confrontou uma qualquer dimensão normativa desse preceito que haja sido acolhida nas instâncias com um princípio ou norma constitucional, tendo apenas sustentado a violação do artigo 6º da Lei Orgânica dos Tribunais bem como a violação, por parte do tribunal a quo, do próprio artigo 114º e da alínea s) do nº 1 do artigo 165º da Constituição.
De resto, na resposta à questão prévia suscitada pela Relatora, a recorrente somente afirma que foi desrespeitada a norma do artigo 114º e a
'norma constitucional que o informa'. Não define, portanto, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Nessa medida, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do recurso relativamente à norma do artigo 114º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
B Apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 65º do Estatuto da Ordem dos Advogados
7. O artigo 65º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, tem a seguinte redacção: Artigo 65º Honorários: limites e forma de pagamento
1. Na fixação dos honorários deve o advogado proceder com moderação, atendendo ao tempo gasto, à dificuldade do assunto, à importância do serviço prestado, às posses dos interessados, aos resultados obtidos e à praxe do foro e estilo da comarca.
(...)
A recorrente, referindo-se 'à importância atribuída ao ponto «posses dos interessados»', considera que 'a existência de tal tipo de consideração na norma em apreço é susceptível de se erigir como manifestamente inconstitucional, na medida em que estabelece um regime de pagamento aos advogados em tudo diferente do que em geral é pensável para o cumprimento das obrigações em direito civil', violando por essa via o princípio da igualdade.
A recorrente realça, para fundamentar a inconstitucionalidade arguida, que 'o factor «posses do devedor» em lado legal algum emerge com a específica categoria de elemento morigerador da grandeza da quantia a fixar'.
8. A actividade do advogado traduz-se numa função social relevante num Estado de direito democrático. Num sistema de patrocínio judicial, em princípio obrigatório, no qual compete aos tribunais dirimir os conflitos sociais, a garantia dos direitos individuais e colectivos implica necessariamente o recurso a um advogado que assumirá a defesa dos interesses do seu constituinte.
A esta solução subjaz a densidade científica e técnica própria das questões forenses, densidade essa que reclama (se é que na verdade não exige) uma preparação profissional específica de quem representa perante os tribunais as pessoas que reclamam a intervenção do sistema judicial. Por outro lado, encontrando-se o patrocínio judiciário confiado a profissionais adequadamente formados e devidamente credenciados, é também o eficaz funcionamento do sistema que sai assegurado, uma vez que dele são erradicadas as estratégias e actuações inúteis, resultantes da ignorância ou falta de instrução dos seus agentes.
É, pois, este o quadro geral, decorrente do princípio do Estado de direito democrático e da inerente defesa dos direitos e liberdades fundamentais, no qual se insere a actividade da advocacia. Este quadro é ainda caracterizado, entre nós, como na generalidade dos países, pela inexistência de um corpo público de advogados que vise assegurar o patrocínio à generalidade dos cidadãos, à semelhança do que acontece, por exemplo, com o Sistema Nacional de Saúde (o que não exclui um sistema de apoio judiciário, o qual apenas visa os cidadãos economicamente carentes, o que não é o que está em causa agora). Realce-se que este aspecto, se por um lado acentua a função social do advogado, por outro repercute-se na actividade forense, uma vez que não desvia qualquer parcela de clientes para o (inexistente) sector público (os que recorrem ao apoio judiciário não têm meios para pagar os serviços de advogado, pelo que a constelação de casos por eles formada não tem relevância neste contexto).
Quando o licenciado em Direito ingressa na profissão de advogado tem, portanto, consciência (que, de resto, deve ser apurada no período de estágio) da verdadeira função social que a profissão que decidiu abraçar desempenha.
Por outra via, o exercício da advocacia defronta ainda uma outra ordem de questões. Na verdade, a quantificação do valor da actividade de advogado depende de variadíssimos factores, nos quais se pondera, nomeadamente, a dificuldade da questão, o tempo gasto pelo causídico (tantas vezes imprevisível, porque condicionado por diversas contingências da acção) ou mesmo da experiência do causídico.
Neste cenário, o Estatuto da Ordem dos Advogados fornece índices de determinação do montante a cobrar que não são mais do que critérios de conteúdo relativamente indeterminado, que visam alcançar um efectivo equilíbrio em função do caso concreto.
A recorrente insurge-se contra um desses critérios: as 'posses dos interessados'. Afirma que a circunstância de não existir outro caso onde as posses dos interessados sejam factor de fixação do montante do crédito faz com que a norma em apreciação viole o princípio da igualdade.
Tal afirmação não pondera, contudo, a função social do advogado a que se fez referência. Não pondera, por outro lado, que a natureza flutuante da actividade do advogado não se compagina com a fixação rígida e objectiva de uma tabela de preços. Não pondera, ainda, que os índices constantes do artigo 65º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, são meramente indicativos e que a sua concretização é informada por um princípio geral de moderação e proporcionalidade, decorrente de um princípio de justiça, presente (ou tendencialmente presente) em todas as relações jurídicas. Não pondera, por
último, que os índices em causa tanto podem funcionar em sentido restritivo do montante a cobrar como em sentido extensivo desse valor, permitindo, desse modo, uma determinação equitativa dos honorários, salvaguardada sempre a remuneração digna do serviço prestado (questão que nos presentes autos, de resto, não se coloca).
Sublinhe-se que, in casu, não se nega, como é natural, o direito do advogado de 'cobrar o trabalho efectivamente despendido', como parece sustentar a recorrente. Também não se exige um qualquer 'raciocínio premonitório' acerca das posses do cliente. Apenas decorre da norma impugnada que o valor a cobrar deve adequar-se às especificidades do caso concreto, ponderando, entre outros factores, as posses dos interessados, como expressão da aplicação de um princípio de moderação que se explica pela função social e pública da advocacia.
Verifica-se, portanto, que o critério indicativo 'posses dos interessados' não é constitucionalmente ilegítimo, assentando antes numa função específica do advogado, que, tornando singular tal actividade, inviabiliza uma generalizada equiparação às demais relações de crédito com vista à fundamentação de uma alegada violação do princípio da igualdade. Não se verifica, pois, qualquer arbítrio legislativo, ao contrário do que sustenta a recorrente. É verdade que podia ser outra a solução. Porém, tal circunstância não torna a solução consagrada inconstitucional.
Improcede, pois, o presente recurso.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relativamente à norma do artigo
114º da lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro; b) Não julgar inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 65º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, no segmento que se refere às 'posses dos interessados', negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 3 de Outubro de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa