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Processo n.º 714/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 5 de julho de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 537/2012, depois de se afastar a possibilidade de configuração do recurso no âmbito da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, foi o mesmo apreciado à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decidindo-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma legal, não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Tal decisão, no que agora releva, apresenta a seguinte fundamentação:
“6. O presente recurso suscita questões relativamente a dois requisitos de admissibilidade. A saber:
Ausência de objeto normativo, em relação à questão referida em b) do ponto anterior;
Não aplicação da norma arguida como inconstitucional pelo Tribunal recorrido, em relação à questão referida em a) do ponto anterior.
7. Começa-se por analisar se o recurso tem um objeto normativo.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o “recurso de amparo” ou “queixa constitucional”.
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto “interpretações” ou “critérios normativos” identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos – uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
Ora tal não ocorre em relação à questão de inconstitucionalidade suscitada pela Recorrente relativa à violação da Constituição por parte da decisão recorrida. Quando a Recorrente refere que «em violação dos artigos 2° e 13° da CRP o Supremo Tribunal, assim como a Relação do Porto, entenderam que não estava provado que o autor conhecesse os factos que determinam a investigação desde os sete anos» (cfr. alegações de recurso, fls. 944 dos autos), ou quando alega a inconstitucionalidade da «decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça acerca da repetição do julgamento» relacionada com a decisão de «não [impor] a realização de exames ADN sem advertir para as consequências da negação da exumação e ao considerar-se nestas circunstâncias a imprescritibilidade da ação» (cfr. alegações de recurso, fls. 945-946 dos autos) esta nunca formula a enunciação da norma ou da interpretação que considera inconstitucional, limitando-se a arguir diretamente a inconstitucionalidade da decisão judicial em causa. Desta forma, revela pretender que se sindique o próprio ato de julgamento, individual e relativo ao caso concreto, e não uma eventual norma ou interpretação normativa.
A pretensão assim formulada não identifica nenhuma interpretação normativa, pelo que não apresenta no seu objeto as características de normatividade indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
Analisa-se, de seguida, a aplicação da alegada norma pelo Tribunal recorrido.
O objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. J. M. M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e atualizada, 2007, pp. 31 e ss.).
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Ora, no caso dos autos, a Recorrente alegou que o Supremo Tribunal de Justiça teria acompanhado a interpretação do Tribunal da Relação quando este «defendeu que (ao contrário da primeira decisão da relação que considerava caduca a ação caso não tivesse julgado inconstitucional a norma) para além do prazo do n°1 do artigo 1817° do Código Civil, o autor dispunha do prazo da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817° do Código Civil» (cfr. alegações de recurso, fls. 940 dos autos), pelo que «o autor podia beneficiar dos dois prazos, o que na prática corresponde a reconhecer o direito à investigação a todo o tempo, mesmo quando não se exerceu o direito no prazo do n°1 e apesar de conhecer factos que poderiam determinar a investigação» (cfr. alegações de recurso, fls. 941 dos autos). Ou seja, a interpretação normativa em causa, alegadamente aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, seria a de que, mesmo que conheça factos determinantes para a investigação durante o prazo do n.º 1 do artigo 1817.° do Código Civil e deixe esgotar o referido prazo, pode o interessado na investigação beneficiar do prazo previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 1817.° do Código Civil.
Acontece, porém, que esta interpretação nunca existiu. Como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: «O autor tinha 57 anos na altura em que instaurou a presente ação. Logo, a considera-se apenas o disposto no n.º 1 do citado artigo 1817.º, o direito de ele instaurar esta ação de investigação da paternidade já se encontraria caduco. Mas em face do n.º 3 do mesmo artigo, o autor ainda poderia estar em tempo de se verificar algum dos factos aí enunciados, de que respigamos o referido na alínea b), dado que os restantes manifestamente não se enquadram no caso concreto em apreço. (…) Mas não existem quaisquer factos dos quais se possa concluir que o autor tinha tido conhecimento de “factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação” antes de três anos da data em que a presente ação foi instaurada. (…) Ora, perante os factos que se provaram, não se pode concluir que o autor teve conhecimento de factos ou circunstâncias que justificassem a investigação antes de julho de 2003 – três anos antes da instauração da presente ação. Sendo que o ónus de alegação e prova competia à ré» (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de maio de 2012, p. 6, fls. 852 dos autos).
Assim, importa notar que, conforme resulta do acórdão recorrido supra transcrito, o Tribunal recorrido não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pela Recorrente. Em passo algum defende o Supremo Tribunal de Justiça que «o autor podia beneficiar dos dois prazos» - antes considerando que não existiam provas de que o autor tinha tido conhecimento de factos relevantes para a investigação «antes de três anos da data em que a presente ação foi instaurada», pelo que não se verificaria a caducidade da ação.
A interpretação invocada pela Recorrente não teve, pois, lugar. Quanto a este aspeto, recorde-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a conformidade constitucional das decisões concretas proferidas por outros tribunais ou juízos formulados por estes com base nos factos arguidos mas apenas “interpretações” ou “critérios normativos” identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto.
Não se cumpre, portanto, este requisito legal para a admissão do recurso.
9. Conclui-se, assim, que a Recorrente não enunciou a norma ou interpretação que reputa de inconstitucional, limitando-se a questionar a conformidade constitucional do resultado decisório alcançado, sendo que a “interpretação” em causa não foi aplicada na decisão.
Termos em que, na falta do preenchimento dos requisitos processuais em causa, não é possível conhecer do recurso”.
3. Daquela decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Como fundamento da reclamação invoca que não foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC acrescentando ainda que:
“Acresce que,
-Sem prejuízo da correção do requerimento de interposição do recurso, deve considerar-se que no mesmo , ainda que merecedor de esclarecimentos ou correções , estão invocados princípios Constitucionais violados.
Desde logo está invocada a violação dos princípios previstos no artigo 26° da Constituição e também no artigo 2° e 13° da CRP.
E esses principios estão violados das seguintes formas:
-Se a identidade biológica é um objetivo principal a alcançar neste tipo de processos, então vontade alguma deve sobrepor-se ao único meio capaz de oferecer certeza e segurança jurídica.
-Ao não impor-se , no Código Civil , seja no artigo 1817° seja na parte dedicada às provas, que este tipo de ações dependem da realização daquele meio de prova , está aquela norma a violar a CRP porque omite tal exigência mesmo sabendo que não há outra forma segura de estabelecer a paternidade
A titulo de exemplo refira-se que os artigo 393° e 394° do Codigo Civil prevêm limitações à prova testemunhal e chegam a determinar que o acordo simulatório não pode provar-se por testemunhas quando arguido entre os simuladores.
-Se assim é para o acordo simulatório por maioria de razão deverá ser para a investigação da paternidade. Acontece, porém , que não há norma que o diga.
-A ausência dessa norma viola , pois, o principio Constitucional invocado , já que à luz da interpretação do artigo 26° da Lei Fundamental, o que se pretende é alcançar a verdade biológica.
-E se esse é o objetivo o ordenamento jurídico tem que conceder os meios em vez de deixar os cidadão ( independentemente das motivações que têm e da sua posição processual) entre incertezas, contradições e juízos falíveis , que em vez de assegurar a verdade biológica , negam-na.
E essas incertezas e inseguranças ,face à Doutrina e Jurisprudência que estão associadas ao artigo 1817° do Código Civil , originam também violações aos artigos 2° e 13° da Constituição da Republica Portuguesa.
De facto o artigo 1817° do Código Civil assim aplicado não gera igualdade dos cidadãos perante a lei ,o que viola o artigo 13° da CRP . e viola o PRINCIPIO DA CONFIANÇA protegido pelo artigo 2° da CRP.
Nestes termos e nos melhores de direito , deve a presente reclamação ser recebida e deferida , devendo considerar-se que o requerimento de interposição do recurso cumpria todas os requisitos processuais fazendo-se prosseguir os autos os seus termos ulteriores.”
4. Notificado o recorrido, pronunciou-se pela improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A Recorrente alicerçou o recurso em dois segmentos de arguição:
(i) «aplicação desconforme com a constituição dos artigos 1817° e 356° a 358° do Código Civil», no que respeita ao prazo para interpor ação de investigação de paternidade, ao entender-se que «para além do prazo do n°1 do artigo 1817° do Código Civil, o autor dispunha do prazo da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817° do Código Civil» o que redundaria na «imprescritibilidade da ação»;
(ii) violação de «princípios constitucionais como o da Confiança e Igualdade (...) da Identidade», ao não impor «a realização de exames ADN sem advertir para as consequências da negação da exumação».
6. Pela decisão sumária sob reclamação foi decidido não tomar conhecimento do objeto do recurso por falta dos respetivos pressupostos de admissibilidade, designadamente: não aplicação na decisão recorrida do critério normativo enunciado, no que respeita ao primeiro segmento do pedido formulado e falta de objeto normativo, no respeitante ao segundo.
7. Pretende, em primeiro lugar, a Reclamante que deveria ter sido proferido despacho a convidar ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso, nos termos previstos no artigo 75.º-A da LTC, entendendo que a omissão do referido convite constitui nulidade que importa suprir. Todavia, a omissão de pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b) da LTC não pode ser suprida por aperfeiçoamento posterior. A oportunidade de aperfeiçoamento prevista no artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC, só tem sentido útil em caso de deficiência do próprio requerimento de recurso, designadamente por omissão de meros requisitos formais aludidos nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito. Não serve para suprir os pressupostos de admissibilidade do recurso determinantes do conhecimento de mérito, como tem sido entendimento deste Tribunal (cfr., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 33/09 e 116/09 disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt). Pelo que improcede, nesta parte, a Reclamação apresentada, nenhuma nulidade tendo sido cometida.
8. No que respeita ao mérito do decidido, a Reclamante refuta a falta de objeto normativo do recurso, referindo que indicou ser inconstitucional o artigo 1817.º do Código Civil (CC), por violação dos artigos 26.º, 2.º e 13.º da CRP. No entender da Reclamante, do requerimento de recurso resulta a sustentação da inconstitucionalidade do artigo 1817.º do CC «se conceder dois prazos ao investigante» como, em seu entender, aconteceu nos autos, sendo aquela norma ainda inconstitucional por admitir que a paternidade se estabeleça sem a realização de exames de ADN por violação do princípio da confiança. Finalmente afirma que a referência à omissão da realização de exames de ADN não é uma referência ao caso concreto dos autos, antes uma referência genérica, referida no requerimento de recurso, através do qual invoca a inconstitucionalidade da norma.
Não tem razão.
Em vão se procurará em todo o requerimento de recurso a formulação de uma norma ou critério normativo como objeto de apreciação de conformidade constitucional. Toda a invocação incide sobre o decidido pelas instâncias judiciais, revelando a discordância da ora reclamante relativamente à interpretação e aplicação das normas ali adotadas, designadamente por não ter sido imposta a realização de exames de ADN no investigado (por exumação do seu cadáver, a que - note-se - a ora Reclamante se opôs) e por ter sido considerado que não existiam provas de que o autor tivesse tido conhecimento de factos relevantes para a investigação mais de três anos antes relativamente à data em que a ação foi interposta.
No requerimento de recurso confunde-se o caráter de generalidade exigido na enunciação de uma regra tendencialmente abstrata e necessariamente vocacionada para aplicação para além deste caso concreto com as particularidades do mesmo, confusão que volta a evidenciar-se na reclamação apresentada ao pretender agora identificar-se a norma a apreciar como sendo o artigo 1817.º do CC «se conceder dois prazos ao investigante» como «aconteceu nestes autos» ou ao admitir que «a paternidade se estabeleça sem a realização de exames de ADN» (p. 990).
Acresce que, no respeitante à questão do prazo para a propositura da ação por referência ao disposto no artigo 1817.º do CC, a Reclamante insiste na apresentação de uma interpretação da decisão recorrida que não coincide com a ali efetivamente adotada. Na verdade, e tal como se consignou na decisão reclamada, o Supremo Tribunal de Justiça não sustentou que «o autor podia beneficiar dos dois prazos». O que aquele tribunal referiu foi que não existiam provas de que o autor tinha tido conhecimento de factos relevantes para a investigação «antes de três anos da data em que a presente ação foi instaurada», razão pela qual concluiu que «não se verificaria a caducidade da ação».
Concluindo-se, que a reclamação apresentada em nada contraria os fundamentos da decisão sumária, é a mesma de indeferir.
III - Decisão
9. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de janeiro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.