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Processo n.º 612/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 53/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foram interpostos recursos, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 02 de maio de 2012 (fls. 2292 a 2347).
2. O recurso interposto por A., em 22 de maio de 2012 (fls. 2384 a 2393), visa questionar o juízo que os tribunais recorridos formularam sobre os factos dados como provados, considerando o recorrente que:
«O douto Tribunal Coletivo – e bem assim o Tribunal da Relação de Guimarães – fizeram interpretação/valoração claramente inconstitucional do referido comando (o do artº 127º do CPP) porquanto não dispunham – em nossa opinião – dos elementos de facto provados na audiência e aptos a tirar a conclusão de que o Recorrente sabia do destino a dar ao Eter por si fornecido ao C., bem como que teve intervenção na elaboração do plano tendente à concretização da atividade delituosa, o tráfico de estupefacientes.» (fls. 2390)
Sendo que:
«O artº 127º do CPP ao não estabelecer um limite para a “livre convicção” e ao socorrer-se de um conceito tão vago e impreciso como seja o das “regras de experiência” viola as garantias de defesa do arguido sobretudo, principalmente quando as invocadas regras de experiência e livre apreciação da prova, não encontram sustentação na prova validamente produzida em audiência, tal como a título exemplificativo supra se transpõe.» (fls. 2390)
3. Por sua vez, o recurso de B. só foi interposto em 18 de setembro de 2012 (fls. 2430 e 2431), na medida em que o recorrente havia interposto recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, para o Supremo Tribunal de Justiça, em 17 de maio de 2012 (fls. 2353 a 2367), cuja admissão viria a ser negada, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, por despacho proferido pelo Juiz-Relator em 03 de julho de 2012 (fls. 2415).
Por intermédio deste, pretende o recorrente B. que o Tribunal Constitucional aprecie a decisão recorrida “[por] considerar inconstitucional, por violação do n.º 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e dos princípios constitucionais da presunção da inocência e do in dubio pro reo, a interpretação feita em tal aresto da regra do artigo 127º do Código Penal” (fls. 2430 e 2431).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Mesmo tendo os recursos sido admitidos por despachos do tribunal “a quo”, respetivamente, proferidos a 03 de julho de 2012 (cfr. fls. 2415) e a 26 de novembro de 2012 (fls. 2476), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essas decisões não vinculam o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
5. No caso do recurso interposto por A., é evidente e inegável a manifesta ausência de dimensão normativa da questão colocada. Em boa verdade, o recorrente elabora o seu requerimento de interposição de recurso como se de um recurso sobre a matéria de facto se tratasse, aparentando pretender que o Tribunal Constitucional afira das concretas decisões tomadas pelos tribunais recorridos, ao abrigo dos poderes que a lei processual penal lhe concede, sobre matéria exclusivamente de facto. Vejam-se, a mero título de exemplo, passagens como:
«Os Tribunais recorridos, julgaram erradamente a matéria de facto dada como provada sob os nº 13, 22, 27, 27, 29» (fls. 2384);
«E estão erradamente julgados porquanto a prova produzida não é de molde a sustentar tais factos» (fls. 2385)
«Também das declarações do arguido não poderia o Tribunal concluir da forma que o fez, designadamente relativamente à específica interceção a que alude a fundamentação da matéria de facto do douto acórdão» (fls. 2398);
«A questão central é precisamente a forma como o Tribunal, ao arrepio de todas as regras, consegue converter esta total ausência de prova, numa convicção de culpabilidade que origina a condenação do recorrente, lançando mão de critérios manifestamente vagos e impossíveis de serem controlados» (fls. 2389)
Ora, o Tribunal Constitucional só tem competência para sindicar a constitucionalidade de “normas jurídicas” (ou de “interpretações normativas”), conforme decorre do artigo 277º, n.º 1, da CRP, e do artigo 79º-C da LTC, o que pressupõe que o objeto de um recurso de constitucionalidade inclua um comando normativo dotado de “generalidade” e de “abstração”. O objeto do recurso – tal como definido pelo recorrente – esgota-se na específica decisão proferida sobre a matéria de facto, não assumindo assim uma verdadeira dimensão normativa, pelo que se torna legalmente vedado dele conhecer.
6. Quanto ao recurso interposto pelo recorrente B., é flagrante que o recorrente não identifica qual a concreta interpretação normativa que pretende ver apreciada, pois apenas se refere à “interpretação feita em tal aresto da regra do artigo 127º do Código Penal” (fls. 2431). Ora, o artigo 75º-A, n.º 1, da LTC exige que os requerimentos de interposição de recurso identifiquem expressamente qual a dimensão concreta da interpretação normativa que constitui objeto do recurso, sob pena de não ser possível verificar da sua identidade face à interpretação normativa efetivamente aplicada pela decisão recorrida (artigo 79º-C da LTC).
Além disso, verifica-se que o recorrente nunca suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado, como lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, falta essa que o recorrente nunca poderia suprir perante o tribunal recorrido.
Com efeito, na sua motivação de recurso e respetivas conclusões, perante o Tribunal da Relação de Guimarães, o recorrente apenas alegou o seguinte:
«3º
A forma como o tribunal “a quo” apreciou as provas disponíveis revela uma clara violação do artigo 127º do Código de Processo Penal. Extraiu conclusões que plasmou na matéria de facto provada que não têm assento razoável, nem lógico na prova efetivamente produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
4º
Outrossim, o Acórdão recorrido violou, assim, o princípio constitucional “in dúbio pró reo”.
5º
A fundamentação do Acórdão recorrido não justifica, seja de que forma for, a decisão por si proferida, sendo esta a todos os títulos incoerente e ininteligível à luz do direito processual penal e dos seus princípios mais elementares, como sendo o princípio constitucional “in dúbio pró reo” e o princípio da estrutura acusatória do processo penal, pelo que se encontra, também, ferido de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa» (fls. 2119 e 2120)
Além disso, o modo como o recorrente B. estruturou o seu recurso ordinário perante o tribunal recorrido demonstra que nunca imputou verdadeiramente qualquer inconstitucionalidade normativa ao artigo 127º do CPP. Pelo contrário, até afirmou que a decisão de primeira instância (depois confirmada) tinha violado aquele preceito legal. Ora, da afirmação da alegada violação do preceito pode inferir-se a aceitação a sua conformidade constitucional.
Acrescente-se ainda que o recorrente imputa a inconstitucionalidade à própria decisão jurisdicional, enquanto ato jurídico-público, e não a uma precisa norma jurídica, extraída de um específico preceito legal. Como os tribunais portugueses apenas podem conhecer da constitucionalidade de “normas jurídicas” ou de “interpretações normativas” (cfr. artigo 277º, n.º 1, da CRP), torna-se evidente que o recorrente também não confrontou o tribunal recorrido com uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa.
Por último, o recorrente ataca em bloco, de modo generalizador, o acórdão condenatório proferido, não individualizando uma específica interpretação normativa extraída do artigo 127º do CPP ou de qualquer outro preceito legal.
Em síntese, por todas estas razões é legalmente impossível conhecer do objeto do presente recurso interposto por B..
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto de ambos os recursos.
Custas devidas por cada um dos recorrentes, em contas autónomas, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Notificado da decisão, o recorrente A. apresentou reclamação, nos seguintes termos:
«a) A douta decisão sumária prolatada considera a manifesta improcedência do presente recurso atenta a sua manifesta ausência de dimensão normativa da questão colocada;
b) Para sustentar a posição adotada é realizada a transcrição de pequenos excertos das alegações formuladas pelo Recorrente;
c) Nas quais se destaca a discordância do Recorrente quanto matéria de facto fixada pelo Tribunal de julgamento, bem como a forma com este a fixou;
d) Esta sempre foi, desde a data da prolação do primeiro acórdão em primeira instância, um dos principais pontos em que assentou a discordância do arguido quanto à decisão condenatória, bem como a todas as que se lhe seguiram;
e) Contudo, a razão o presente recurso, bem como a fundamentação em que assenta, vai para além da simples discordância quanto à fixação da matéria de facto —facto que obviamente extravasa âmbito das competências desse Tribunal Constitucional.
f) Mas sim, e foi essa a razão invocada no presente recurso, e que nos parece, com o devido respeito, ter todo o cabimento em sede de recurso para esse Colendo Tribunal, a questão da conformidade da utilização do artigo 127 do CPP, dos seus limites e da conformidade da concreta aplicação que lhe foi dada pelos Tribunais recorridos, dentro dos limites impostos pelo artº 32º nº2 da CRP.
g) Ou seja, é a interpretação e a amplitude com que o Tribunal Recorrido, bem como o Tribunal da primeira instância fazem a aplicação do artigo 127º do CPP, que em nosso entendimento viola as garantias de defesa do arguido consagradas no artº 32º da Lei Fundamental;
h) o comando do artº 127º do CPP encontra-se, assim, ferido no vício de inconstitucionalidade material na concreta aplicação que lhe foi dada nos acórdãos postos em crise pelo presente recurso;
i) O douto Tribunal Coletivo - e bem assim o Tribunal da Relação de Guimarães - fizeram, interpretação/valoração claramente inconstitucional do referido comando (o do artº 127º do CPP) porquanto não dispunham - em nossa opinião - dos elementos de facto provados na audiência e aptos a tirar a conclusão de que o Recorrente sabia do destino a dar ao Eter por si fornecido ao C., bem como que teve intervenção na elaboração do plano tendente à concretização da atividade delituosa, o tráfico de produtos estupefacientes.
j) O douto Tribunal valorou ainda, de um modo ilegal e inconstitucional (desrespeita do art2 322 da Lei Fundamental) a prova em causa - no tocante à caracterização do recorrente como traficante, fazendo uma interpretação inconstitucional e ‘contra legem’ do citado normativo legal - o artº 127º do CPP.
k) O artº 127º do CPP nos termos em que foi aplicado viola, claramente, o estatuído no artº 6º nº 1 da CONVENÇÂO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM, na parte em que esta impõe que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada de um modo equitativo.
l) Sendo que as normas desta CONVENÇÂO EUROPEIA devem ser aplicadas no direito interno português (artº 16º nº 1 da Constituição da República).
m) O artº 127º do CPP ao não estabelecer um limite para a ‘livre convicção’ e ao socorrer-se de um conceito tão vago e impreciso como seja o das ‘regras de experiência’ viola as garantias de defesa do arguido sobretudo, principalmente quando as invocadas regras da experiência e livre apreciação da prova, não encontram qualquer sustentação na prova validamente produzida em audiência, tal como a título exemplificativo supra se transpõe.» (fls. 2507 a 2509)
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou a seguinte resposta à reclamação:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 53/2013, não se conheceu do objeto dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional por A. e B..
2º
Notificados da Decisão Sumária, apenas A. reclamou para a conferência.
3º
Na douta Decisão Sumária, ora reclamada, entendeu-se que o objeto do recurso, tal como o recorrente o definira no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal – o momento próprio –, não assumia uma verdadeira dimensão normativa.
4º
Na decisão demonstra-se, designadamente através da transcrição de passagens do requerimento, porque se chegou a uma tal conclusão, quanto a nós evidente.
5.º
Na reclamação, o recorrente nada diz que possa abalar os fundamentos daquela decisão.
6.º
Aliás, o afirmado até vai no sentido de os confirmar.
Diz-se, por exemplo, na reclamação:
“(…)
i) O douto Tribunal Coletivo – e bem assim o Tribunal da Relação de Guimarães – fizeram, interpretação/valoração claramente inconstitucional do referido comando (o do art.º 127.º do CPP) porquanto não dispunham – em nossa opinião – dos elementos de facto provados na audiência e aptos a tirar a conclusão de que o Recorrente sabia do destino a dar ao Eter por si fornecido ao C., bem como que teve intervenção na elaboração do plano tendente à concretização da atividade delituosa, o tráfico de produtos estupefacientes”.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. O reclamante não logrou apresentar qualquer fundamento adicional que impusesse a reforma da decisão reclamada, limitando-se a afirmar, de modo vago e genérico, que pretendeu apresentar a este Tribunal uma questão de inconstitucionalidade normativa. Porém, logo de seguida [vide a alínea i) da reclamação] vem reiterar o que já havia requerido no momento da interposição de recurso, ou seja, que este Tribunal se pronunciasse sobre a concreta existência de provas de que aquele dispunha tinha ou não consciência acerca do destino a dar à substância fornecida ao seu coarguido.
Evidentemente, o objeto do presente recurso não assume uma verdadeira dimensão normativa, pelo que vai a presente reclamação indeferida.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.