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Processo n.º 839/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, A., recorreu para o Tribunal Constitucional, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), do despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação por si apresentada relativamente à não admissão no Tribunal da Relação do Porto, “face à irrecorribilidade da decisão de que se pretende recorrer, visto o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP” (cfr. o despacho de fls. 55), do recurso interposto para aquele Supremo Tribunal do acórdão confirmativo da sentença condenatória proferida na primeira instância.
A fls. 88 e ss. foi proferida a Decisão Sumária n.º 64/2013 de não conhecimento do recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos:
« 2. Notificada nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), para indicar “em termos claros e precisos”, as normas ou dimensões normativas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, quais os parâmetros constitucionais a considerar e quais as peças processuais em que suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas ou dimensões normativas indicadas, veio a recorrente esclarecer o seguinte (cfr. a resposta de fls. 86):
“ [O] preceito constitucional que no seu [da recorrente] entender se mostra violado no douto acórdão em crise, é a norma constante do artigo 32.º da C.R.P.
Acresce que ao não aplicar o CPP anterior ao caso em apreço, por ser mais favorável para o arguido, em obediência ao disposto no art. 2.º, n.º 4, do CP, também se cometeu uma inconstitucionalidade.
Finalmente, suscitou esta questão, nas suas Motivações de Recurso para o Tribunal da Relação do Porto, bem como, na Reclamação que apresentou do Despacho que indeferiu o Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
[…]
4. A recorrente identifica, no seu requerimento, dois problemas de constitucionalidade: o primeiro, relativo à não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando violação dos artigos 29.º e 32.º da Constituição; e o segundo, referente à determinação da medida da pena, face aos princípios da proporcionalidade e adequação das penas criminais.
Nenhum destes problemas, no entanto, surge construído e delimitado como problema de aplicação de normas (ou interpretações normativas) desconformes aos parâmetros constitucionais. Nas duas situações, com efeito, a recorrente imputa a inconstitucionalidade ao ato judicial em si mesmo considerado – isto é, respetivamente, à decisão de não admissão do recurso, por um lado, e à decisão concreta de determinação da medida da pena. A resposta ao despacho convite não pode ser, a este respeito, mais elucidativa: “ao não aplicar o CPP anterior ao caso em apreço, por ser mais favorável para o arguido, em obediência ao disposto no art. 2.º, n.º 4, doCP, também se cometeu uma inconstitucionalidade” (itálicos aditados).
Para além de – e antes mesmo da consideração de que - o citado preceito do Código Penal não ter sido o critério normativo em que se funda a decisão ora recorrida, a verdade é que o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, cinge a sua atividade ao controlo normativo, não lhe cabendo, de qualquer outro modo, fiscalizar o mérito das decisões dos outros tribunais.
Mais não resta, assim, do que concluir pela inidoneidade do objeto do presente recurso de constitucionalidade.»
2. Inconformada com tal Decisão, vem a recorrentes reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, com os fundamentos seguintes (cfr. fls. 96 e seguinte):
« O Tribunal a quo entende que “O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois se reporta à decisão que indeferiu a reclamação e não a qualquer norma em que a mesma decisão se tenha baseado.
Todavia, nesta parte, a arguido alude aos art.s 29º e 32º da CRP, por entender que a não admissão do recurso em causa configura uma violação de tais artigos.
Por outro lado, é claro que a arguida/recorrente não poderia arguir em momento anterior tal inconstitucionalidade – pela simples razão de não poder prever que a mesma se registaria em fase de Recurso!
É a interpretação que o Digno Supremo Tribunal de Justiça fez dos preceitos invocados (artigo art. 2º, nº 4 do Código Penal) que gera o vício da inconstitucionalidade que se invocou.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão a arguida/recorrente não podia pressupor, intuir, que o Digno Supremo Tribunal de Justiça, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, a recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no aludido art. 2º, pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso em causa constitui uma violação dos artigos 29º e 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal da Relação do Porto, para o Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, um vício que se regista somente na Decisão, que se pretende seja analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem a recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.»
3. Notificado da apresentação da reclamação, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, uma vez que nesta última a “recorrente nada diz que possa abalar os fundamentos da decisão reclamada”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Resulta claro do teor da reclamação que não é posto em causa o que na Decisão ora reclamada se diz em relação à não suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Aliás, a reclamante reafirma que, em seu entender, “a não admissão do recurso em causa [- o recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido com base no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal -] configura uma violação” dos artigos 29.º e 32.º da Constituição (itálicos aditados). E é sempre esta a questão de inconstitucionalidade a que se reporta a reclamante – agora na presente reclamação, como já anteriormente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e na própria reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputadas a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal n.º 138/2006 (disponível, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “a distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto”.
Deste modo, “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos” (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 269/94). Acresce que “a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é, pois [...], uma 'mera questão de forma secundária'. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão” (assim, v. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 560/94).
De todo em todo, não foi isso que a ora reclamante intencionou nem foi isso que ela fez na reclamação que dirigiu ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; diversamente, e como já referido, nessa reclamação a ora reclamante imputou a violação dos artigos 29.º e 32.º da Constituição direta e exclusivamente à decisão concreta de não admissão do recurso para o Supremo. Tal procedimento não configura a suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa sobre a qual o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tivesse de se pronunciar. Consequentemente, a sua decisão – a decisão da reclamação apresentada com base no artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e que é aquela que constitui o objeto (processual) do presente recurso de constitucionalidade – não aplicou qualquer norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada perante si.
E, assim sendo, a mesma decisão também não é recorrível para este Tribunal, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.os 1, alínea b), e 4, e 70.º, n.º 1, alínea b), respetivamente da Constituição e da LTC.
Comprova-se, por isso, o acerto da decisão de não admitir o presente recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar a reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de março de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.