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Processo nº 609/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - J... e mulher, T..., intentaram contra L..., no Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo, uma acção de despejo em que pedem a condenação desta última a entregar-lhes devoluto, no fim do prazo do contrato de arrendamento que, para fins habitacionais, o autor celebrou com Eduardo Fernandes Pinto, entretanto falecido, de quem a demandada é viúva, atribuindo-se a esta a indemnização prevista no artigo 72º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, uma vez que os autores, residentes nos Estados Unidos da América, pretendem regressar definitivamente a Portugal e instalarem-se naquele espaço.
O pedido foi oportunamente contestado pela ré, que defendeu a improcedência da acção, designadamente por ter 72 anos de idade, manter-se no local arrendado há mais de 30 anos e não ser verdade que os autores pretendam aí regressar.
A acção foi julgada procedente, por provada, por sentença de 12 de Julho de 1999, sendo a ré, consequentemente, condenada a despejar o locado e a entregá-lo aos autores, livre de pessoas e bens, no fim do contrato de arrendamento, contra o recebimento da indemnização legal.
2. - Inconformada, apelou esta para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de 16 de Maio de 2000, negou provimento ao recurso e, assim, confirmou a decisão recorrida.
A demandada, mantendo o seu inconformismo, recorreu desse aresto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 108º do RAU, “por violação dos princípios constitucionais da igualdade e do direito à habitação previstos, respectivamente, nos artigos 13º e 65º, nº 1, da Constituição da República”, questão que, segundo alega, já suscitara no artigo 19º da sua contestação e, posteriormente, nas alegações para a Relação.
O recurso foi recebido, tendo alegado apenas a recorrente, formulando as seguintes conclusões:
“1º- Face à exigência constitucional da igualdade perante a lei de todos os cidadãos portugueses, verifica-se que a norma do artigo 108º do RAU, do modo como foi interpretada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, consagra arbitrariamente uma desigualdade material sem fundamento ético ou legal;
2º- Viola pois tal norma, ao contrário do que decidiu aquele douto Acórdão, os princípios constitucionais da igualdade e do direito à habitação, previstos nos artigos 13º e 65º, nº 1, da nossa lei fundamental, pelo que sofre de inconstitucionalidade material, cujo decretamento este Tribunal deve efectuar.”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - A norma do artigo 108º do RAU – que reproduz quase integralmente o conteúdo do artigo 3º da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro – introduz uma excepção às limitações ao direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º do mesmo diploma, nos termos das quais esse direito não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: a) ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta ou, não beneficiando da pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho; b) manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade (entretanto o preceito foi alterado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 329-B/2000, de 22 de Dezembro, alargando os elencos de circunstâncias previstos nas duas alíneas em termos que, no entanto, ora desinteressa considerar).
De acordo com o mencionado artigo 108º, essas limitações não subsistem “quando o senhorio, sendo já proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio ou parte do prédio à data do seu arrendamento, pretenda regressar ou tenha regressado há menos de um ano ao País, depois de ter estado emigrado durante, pelo menos, 10 anos”.
Houve, assim, como reconhecem os comentadores, o manifesto propósito de beneficiar, em determinados termos, os emigrantes
“regressados” ou que o pretendam fazer, o que, no entanto, não os dispensa de alegar e provar os requisitos previstos quer na alínea a) do nº 1 do artigo 69º do RAU, quer nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 71º do mesmo texto, quer, finalmente, demonstrar o circunstancialismo previsto no artigo 108º (cfr. sobre este específico ponto, entre outros autores, J.A.Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 5ª ed., Coimbra 2000, pág. 551; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, pág. 778; M. Januário Gomes, Arrendamentos para Habitação, 1994, pág. 286; na jurisprudência constitucional e nomeadamente no que toca ao ónus de provar a necessidade do espaço habitacional por parte do senhorio, cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 174/92 e 4/96, publicados o Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 30 de Abril de 1996, respectivamente).
2. - Assim, não obstante a natureza vinculística que, em princípio, hoje assiste ao contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais, prevê-se a possibilidade de a mesma ceder perante interesses relevantes que façam prevalecer o direito do senhorio sobre o do inquilino.
O acórdão recorrido debruçou-se sobre este peculiar fundamento de denúncia e analisou-o, a partir do seu enquadramento casuístico, numa perspectiva jurídico-constitucional.
Nele se escreve, a certo passo, que, no caso concreto e face à prova que os autores lograram fazer, a decisão “teria necessariamente de ser” a que foi.
Poder-se-ia dizer, perante semelhante juízo conclusivo, que se estaria, no fundo, face a um recurso de “amparo”, direccionado a um reexame do anteriormente decidido, ditado pela necessidade de proteger especificamente algum ou alguns dos direitos fundamentais, como tal catalogados.
No entanto, e pese embora a aporia experimentada em situações de limite, torna-se evidente que o acórdão, ao “trazer à liça a questão da inconstitucionalidade” (da norma do artigo 108º) o faz em termos de aferição de constitucionalidade normativa, distanciando-se, nessa medida, da singularidade do caso concreto e da sua subjacente ponderação, concretizadora de uma decisão judicial, enquanto tal, como resultado estreme do enquadramento de facto e da sua subsunção ao enquadramento normativo correspondente.
Sendo assim, ponderou-se no aresto em causa:
“O princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei [e, neste ponto, obviamente está-se a responder à impetrada violação do artigo 13º da Lei Fundamental], na parte em que vincula o legislador ordinário, reclama, como é jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, não que todos sejam tratados de forma idêntica, mas que recebam tratamento semelhante os que se achem em situação semelhante. Ora, a semelhança das situações da vida nunca pode ser total, por haver sempre elementos diferenciadores a merecerem tratamento diferenciado.”
E, após sublinhar que a diferenciação não pode é assentar em “critérios ou factores que envolvam uma discriminação arbitrária”, destituída de fundamento material bastante, o acórdão considera não ser esse o caso da norma impugnada, onde o legislador, “balanceando as situações específicas do senhorio emigrante no seu desejo legítimo de regressar ao país e as do inquilino idoso e enfraquecido do ponto de vista económico, ou com expectativas atendíveis de ter o seu problema habitacional resolvido, por via dos largos anos de permanência no prédio”, entendeu atribuir prevalência ao direito à habitação daquele, solução que, em termos de opção da política legislativa, o acórdão discute quanto ao seu acerto mas que, no entanto, considera não assumir feição arbitrária e injustificada que a penalize jurídico-constitucionalmente.
Não surpreendendo o aresto vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, na normação em causa, na sua genérica e abstracta formulação, conclui de igual modo conclui relativamente a um pretenso desrespeito do direito à habitação, visto que, segundo observa, “este [direito], como direito social que é, não confere ao inquilino ou ao cidadão em geral legitimidade alguma para o seu exercício, por não ser directamente aplicável, nem exequível por si mesmo, tendo apenas como destinatários e no âmbito das suas competências específicas, o Estado, as Regiões Autónomas e os Municípios”.
3.1. - No tocante à hipotética violação do princípio da igualdade, a decisão recorrida orientou-se por critérios e obedeceu a coordenadas que se mostram coincidentes com os seguidos pela jurisprudência do Tribunal Constitucional – para a qual, aliás, remete – em diversíssimas ocasiões.
Com efeito, tem-se entendido que o princípio constitucional da igualdade não pode ser medido absolutamente, de modo a impedir o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que se pretendam regular.
Como se escreveu, por exemplo, no acórdão nº 39/88
(publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Março de 1988), o princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções, mas sim o arbítrio:
“proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º”.
O princípio da igualdade não impede, assim, a diferenciação de tratamento mas, apenas, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante: prossegue-se, como se observou noutro aresto deste Tribunal (o nº 1007/96, publicado no Diário citado, II Série, de 12 de Dezembro de 1996), uma igualdade material que não meramente formal, o que implica verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada.
Ou, se se preferir, uma vez que ajuizar da igualdade entre duas situações é, essencialmente, um trabalho de ponderação dos valores que estão subjacentes à disciplina legal de cada uma delas e da sua harmonização, a igualdade que o texto constitucional deseja preservar e consagra
é uma igualdade proporcional e não uma igualdade matemática, como se fez notar no acórdão nº 367/99 (publicado no Diário citado, II Série, de 9 de Março de
2000), estribado, de resto, em acórdãos anteriores.
A vinculação do legislador a este princípio não vai, assim, ao ponto de eliminar a liberdade de conformação legislativa, em que se move no âmbito dos limites constitucionais, de modo a poder definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que, se materialmente fundadas, hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. As medidas de diferenciação terão de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, o que significa, em última instância – e como houve oportunidade de se sublinhar no acórdão nº 549/97, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Dezembro de 1997 – que tudo dependerá da verificação ou da ausência de fundamento material suficiente (sempre aqui entroncará a questão constitucional da igualdade), sendo inconstitucional a medida legislativa quando lhe falte razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.
O que não é constitucionalmente aceitável é que, como se escreveu no acórdão nº 4/96 já citado, “o senhorio tenha um direito de denúncia ad nutum e em todos os casos do arrendamento vinculístico por si celebrado”: torna-se necessária a existência de um critério objectivo e não arbitrário para determinar qual dos arrendamentos, em igualdade de circunstâncias, deve cessar.
3.2. - A norma sindicanda pressupõe, na verdade, que, perante uma postulação dialéctica em que, por um lado, se perfila o direito do senhorio à habitação, fundado em direito real próprio, e, por outro lado, se posiciona o direito do inquilino à habitação, justificado no contrato de arrendamento cujo objecto é, justamente, o imóvel que ao senhorio pertence, o legislador ordinário recorra a uma opção.
Numa dada perspectiva, que destaque particularmente a necessidade primária de habitação, o direito de habitação configurar-se-á mais forte do que o direito de propriedade e a disciplina típica da autonomia privada.
Numa leitura menos “exigente” quanto às naturais decorrências da função social da propriedade, poderá defender-se que o “melhor direito” é o do senhorio, na medida em que o exerce para ter habitação própria e condigna sem esquecer que a titularidade do direito real subjacente lhe pertence.
De qualquer modo, o direito à habitação do senhorio e do inquilino, pretendendo concretizar-se no mesmo imóvel, acabam por excluir-se um ao outro, consoante se observou no acórdão deste Tribunal nº 151/92, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992: cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro..
Ao legislador ordinário caberá, pois, coordenar os valores em conflito e tentar assumir-se o mais coerentemente possível com os princípios do sistema, nessa medida devendo estruturar esses valores em presença.
Assim, no domínio infra-constitucional a solução a conceder surgirá como ponderação desse equilíbrio, subentendendo a opção levada a efeito a razoabilidade e a justificação objectiva da medida, estruturada a relação entre os valores em presença (como discorre Pinto Furtado, ao citar Mario Trimarchi: “Valor e Eficiência do Direito à Habitação à Luz da Análise Económica do Direito”, in O Direito, Ano 124, vol. IV, 1992, pág. 529).
Já na área da matriz constitucional, a solução depende do confronto dos fundamentos materiais, de modo a optar-se pela confirmação legislativa havida por mais justa e socialmente adequada, como se propõe no acórdão nº 425/87, publicado no Diário citado, II Série, de 5 de Janeiro de
1988.
A esta luz, o legislador ordinário, na esteira de legislação anterior, como é a constante da Lei nº 55/74, de 15 de Setembro (cfr. nos seus artigos 3º e 4º), valorizou a situação do senhorio-emigrante, que alegue e prove a sua necessidade da habitação arrendada e os demais requisitos gerais, além dos específicos que enunciou, no uso de um critério que, como observa o acórdão recorrido, podendo não ser o melhor, não assume, no entanto,
“carácter arbitrário e injustificado”.
Não pode, assim, afirmar-se existir violação do princípio constitucional da igualdade: a não oposição das limitações ao direito de denúncia relativamente ao emigrante-senhorio releva de um determinado plano de política legislativa, questionável sem dúvida mas, de qualquer modo, objectivo e justificável.
4. - Coloca-se, ainda, o problema da conformação constitucional da norma do artigo 108º do RAU face ao disposto no nº 1 do artigo
65º da Constituição, nos termos do qual todos têm direito, para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
A convocação do preceito constitucional poderá ser compreendida se o intérprete tiver em conta as condicionantes económicas e sociais, tradicionalmente ligadas aos problemas decorrentes das carências do parque habitacional, e que, em última instância, subtraiam o regime jurídico da locação para fins habitacionais, em significativa amplitude, à regra da liberdade contratual, submetendo-o a uma disciplina de renovação obrigatória e automática.
No recente acórdão deste Tribunal, nº 420/00 – publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 2000 – dá-se notícia da natureza desse direito à habitação, essencialmente assumido como “tarefa do Estado” (cfr. o nº 2 do artigo 65º), de realização gradual, sob a “reserva do possível”, sem prejuízo de um “mínimo incomprimível” em que o legislador, no intuito de assegurar o direito à habitação, nas coordenadas do respeito pela dignidade humana, acolhido no artigo 1º da Lei Fundamental, impõe restrições ao proprietário privado, chamado a ser solidário com o seu semelhante, “em nome, desde logo, da função social da propriedade, sobre a qual recai uma verdadeira hipoteca social, a qual, numa certa visão das coisas, se funda no destino universal dos bens”.
Considera-se, no entanto, que os problemas decorrentes da denúncia do contrato que se controvertem no caso sub judice, são alheios ao preceito constitucional do artigo 65º, onde se alberga uma directriz programática, traduzível, nas palavras de Inocêncio Galvão Telles, “no dever político imposto ao Estado no sentido de este adoptar as providências adequadas
à realização – tão desejável – do nobre ideal que é o de todos poderem realmente ter, para si e sua família, uma habitação condigna, com os requisitos enunciados no citado preceito constitucional [o artigo 65º]” (cfr. “Denúncia do Arrendamento para Habitação Própria”, parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VIII – 1983 – tomo 5, pág. 9).
É assim que nos números seguintes do artigo 65º (escreve este autor) se enunciam “as grandes linhas do que o Estado deve fazer para atingir o assinalado objectivo: programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento do território e em planos de urbanização, incentivar apoiar as iniciativas tendentes a resolver os problemas habitacionais, estimular a construção privada, adoptar uma política de rendas compatíveis com o rendimento familiar e de acesso à habitação próprias, exercer o controlo do parque imobiliário e definir e executar uma adequada política dos solos.
Como se vê, trata-se de matéria que nada tem vem com a denúncia do arrendamento para habitação do senhorio. Não se suscita nessa denúncia qualquer conflito de direitos à habitação, na acepção abstracta e imprópria em que a Constituição emprega esta fórmula, porque tais «direitos» não se movem no círculo das relações entre particulares, antes têm como alvo o Estado, no sentido de que a este cabe a responsabilidade política de planear, adoptar e executar providência tendentes a criar as condições necessárias para todos poderem ter habitação condigna. É tarefa de que têm de se ocupar os órgãos legislativos, governativos, administrativos, não os órgãos jurisdicionais”.
As considerações expostas merecem acolhimento no caso sub judice, para elas se remetendo, na sua essencialidade, significando, desse modo, que, também em relação a este parâmetro, não se surpreende vício de inconstitucionalidade.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2001 Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida