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Processo nº 449/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - H..., identificado nos autos, impugnou judicialmente, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, a liquidação da taxa que a Câmara Municipal de Fafe lhe lançou – no montante de 7.853.342$00 – referente ao
'licenciamento do corpo sobre a via pública do edifício que construiu na Avenida do Brasil, a que respeita o processo nº 388/84'.
Alegou, em síntese:
a) que requerera o licenciamento da obra em causa, cujo projecto foi aprovado pela Câmara, a qual emitiu, em 12 de Julho de 1994, o respectivo alvará;
b) pagou, então, tudo o que lhe foi exigido;
c) os 'avançados' ou corpos salientes do imóvel, a que respeita a liquidação que agora impugna, já constavam do projecto inicial;
d) estão estes corpos afastados das ruas ou vias públicas, sobre os passeios, construídos estes pelo impugnante em terreno dos lotes por si adquiridos à Câmara, pelo que não se encontram sobre as vias públicas.
No entendimento que professa, a liquidação da nova taxa, agora impugnada, é ilegal, por violação do princípio da certeza e segurança jurídicas – nos termos do artigo 4º do Código de Procedimento Administrativo
(CPA) e do artigo 266º da Constituição da República (CR) – e, ainda, 'quanto mais não seja', por força do disposto no nº 4 do Regulamento das Taxas de Obras Particulares, Loteamentos e Urbanização, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Outubro de 1996, 'que só permite a liquidação adicional de taxas desde que não tenha decorrido mais de um ano sobre o seu pagamento'.
2. - A sentença proferida, em 22 de Maio de 2000, julgou procedente a impugnação, no tocante à liquidação adicional da taxa, que anulou.
Para atingir este desiderato, afastou a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma contida na alínea b) do nº 8 do artigo 10º do Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Fafe, entrado em vigor a 2 de Janeiro de 1994, ao abrigo do qual foi liquidada a taxa sob impugnação.
Com efeito, não obstante a dessintonia verificada entre as partes quanto ao texto regulamentar aplicado nos autos, o Departamento Administrativo Municipal da Câmara Municipal de Fafe veio clarificar, em termos que a decisão recorrida acolheria, que a liquidação adicional impugnada 'teve como causa a aplicação das taxas em vigor à data da emissão do alvará-licença, emitido pela Câmara Municipal em 12 de Julho de 1994, com o nº 732/94 – artigo
10º, nº 8, alínea b), da Tabela de Taxas e Licenças em vigor em 1994', referente ao Regulamento de Taxas e Licenças vigente nesse ano, e que seria posteriormente revogado pelo 'Regulamento Municipal de Taxas de Obras Particulares, Loteamentos e Urbanizações', junto a fls. 36 e segs. dos autos (cfr. o ofício daquele Departamento, junto a fls. 83/84).
Após considerar o montante da taxa aplicada pela licença de construção de todo o edifício – 690.008$00 – e o confrontar com o da liquidação adicional – 7.853.342$00 –, a decisão pondera que a
'desproporcionalidade, aliás gritante', entre os dois valores, manifesta o propósito desencorajador de construir com corpos avançados, como ocorreu no caso vertente, mas recusa a aplicação da norma citada por outra ordem de considerações: a mesma é 'ofensiva da norma do artigo 66º, nº 1, da Lei Fundamental, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado. E sê-lo-á porque radica em considerações deste tipo: se alguém quer construir com avançados, agredindo desse modo a paisagem e, consequentemente, a qualidade de vida das pessoas, terá de pagar caro por isso; será o mesmo que deixar alguém fazer mal, desde que o pague.
'Isto é moralmente incorrecto [mais se acrescenta], lesivo do interesse público na preservação de um ambiente ecologicamente equilibrado, e permissivo de actuações menos claras, tudo valores, pela positiva ou negativa, próprios de um Estado de direito.
Aquilo que é correcto, na nossa óptica, é, claramente, proibir os avançados, não aprovando os projectos que os prevejam'.
3. - O magistrado do Ministério Público competente interpôs oportunamente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dada a recusa de aplicação da identificada norma regulamentar, por violação do nº 1 do artigo 66º da CR.
Admitido o recurso, alegaram o Ministério Público, como recorrente, e o impugnante, como recorrido.
O primeiro, nas suas alegações, chega à conclusão da clara improcedência da questão de constitucionalidade material equacionada, não resultando dos autos circunstâncias minimamente convincentes que permitam concluir pela violação do direito ao ambiente.
Coloca, no entanto, outro tipo de vício de inconstitucionalidade sob a alegação de que o Tribunal Constitucional não está limitado, nos seus poderes de cognição, às normas constitucionais supostamente violadas pela decisão recorrida, sendo certo que outros fundamentos de inconstitucionalidade podem existir, se bem que por diferentes motivos, de natureza orgânica ou formal.
Ora, no caso subjacente, o Regulamento em que se fundou a liquidação não contém indicação alguma da respectiva lei habilitante, nem no seu articulado, nem no texto introdutório.
Está perfeitamente sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, observa-se, que o princípio constitucional da primariedade ou da precedência da lei sobre o regulamento implica que todos os actos normativos de natureza regulamentar devam necessariamente conter expressa indicação da lei em que se fundam: a lei que directamente executam (no caso dos regulamentos de execução) ou a lei que atribui competência objectiva e subjectiva para a respectiva emissão (no caso dos regulamentos independentes). E tal indicação expressa, fundada no (actualmente) preceituado no artigo 112º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa, há-de necessariamente constar do articulado ou do 'preâmbulo' do regulamento, desde que lhe tenha sido conferida idêntica publicidade, facultando aos interessados o conhecimento e a apreensão de tal elemento essencial para valorar a base jurídica – e a própria validade – do acto regulamentar. No caso dos autos – e tendo em conta os documentos juntos a fls. 163 e segs – é patente que:
· não consta, nem do articulado da tabela de taxas, nem das disposições introdutórias, constantes do dito regulamento qualquer referência à lei habilitante;
· a única referência a tal suporte legal é o que consta da 'introdução'
à aprovação do plano de actividades e orçamento de 1994, nomeadamente no segmento em que é solicitada pelo Presidente da Câmara à Assembleia Municipal a aprovação da tabela de taxas e licenças ao abrigo das competências que estão consignadas 'no artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, alterado pela Lei nº 18/91'
(cfr., fls. 174);
· tal instrumento foi objecto de publicação no Boletim Municipal (fls.
223). Ora, perante tal circunstancialismo, não parece que possa considerar-se cumprida, em termos constitucionalmente bastantes, a exigência de menção da lei habilitante – particularmente se se tiverem em conta as exigências formuladas pela jurisprudência deste Tribunal. E, nesta perspectiva, cita-se o acórdão nº 509/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Março de 2000) em que se julgou formalmente inconstitucional regulamento editado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, com base na insuficiência da menção da respectiva lei habilitante, apesar de tal indicação transparecer da 'acta da deliberação camarária' de que resultou a aprovação do regulamento questionado, já que a mesma não é objecto da publicidade dada ao regulamento.
Conclui-se assim:
'1 – Não constando, nem do texto, nem de qualquer preâmbulo introdutório, do Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças, aprovados pela Câmara Municipal de Fafe para vigorarem no ano de 1994, menção da respectiva lei habilitante, padece o mesmo de inconstitucionalidade formal, por preterição do princípio constitucional afirmado pelo (actual) artigo 112º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa.
2 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, embora com base noutros e diferentes fundamentos, convolando-se da inconstitucionalidade material, ali declarada, para o vício de inonstitucionalidade formal da norma desaplicada.'
O recorrido, por seu turno, defende igualmente a confirmação da decisão impugnada, , seja por violação do direito ao ambiente – tal como concebido está no nº 1 do artigo 66º da CR, não podendo aceitar-se a desproporcionalidade das taxas, ao funcionar como desincentivo às obras com avançados – seja pela ofensa ao princípio da proporcionalidade consagrado no nº
2 do artigo 266º da CR, seja, finalmente, pela motivação formal consubstanciada no nº 8 do artigo 112º da mesma lei fundamental.
II
1. - A exigência de indicação da lei habilitante, tal como se encontrava formulada no nº 7 do artigo 115º da Constituição, na redacção em vigor ao tempo em que o Regulamento foi aprovado – e que corresponde hoje ao texto do nº 8 do actual artigo 112º - pretendeu, por um lado, disciplinar o uso do poder regulamentar, levando o Governo e a Administração a verificarem a conformidade casuística do exercício desse poder, visando, por outro lado, garantir correspondentes segurança e transparência jurídicas, dando-se a conhecer aos respectivos destinatários o fundamento do poder regulamentar.
Assim, escreveu-se em recente acórdão deste Tribunal, o nº 410/00, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de
2000:
'A norma constitucional exprime [...] o princípio da precedência ou da primariedade da lei, que Gomes Canotilho considera um dos instrumentos utilizados pela Constituição 'para restringir o amplo grau de liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um Estado de direito democrático' (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1ª edição, Coimbra, 1998, pág. 734). A exigência de indicação da lei habilitante visa não só disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, mas também, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a garantir 'a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático' (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 516). Este dever de citação deve ser observado por todos os regulamentos, sejam eles emanados do Governo, dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas ou – como é o caso – dos órgãos próprios das autarquias locais, pois de um ou de outro modo todos estão ligados à lei que necessariamente precede cada um deles, uma vez que inexiste poder regulamentar sem fundamento em lei anterior (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 184/89 e 110/95, publicados, respectivamente, no Diário da República, I Série, de 9 de Março de 1989, e II Série, de 21 de Abril de 1995). O papel da lei precedente é que não é sempre o mesmo, como se observou, por seu lado, no acórdão nº 76/88, publicado na II Série daquele jornal oficial, de 21 de Abril de 1988: umas vezes a lei a referir
é aquela que o diploma visa regulamentar – é o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares -, outras vezes a lei a indicar
é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (como é o caso dos chamados regulamentos independentes, onde o poder regulamentar se reveste de mais dilatada margem de conformação). Colhe-se do exposto que a violação do dever de citação da lei habilitante gera o vício de inconstitucionalidade formal. A menção do suporte habilitante, convocando a lei definidora da competência subjectiva e objectiva do regulamento, há-de ocorrer, para que não se frustre o seu próprio objectivo, no próprio texto do diploma ou, pelo menos, no entendimento de certa jurisprudência, no edital destinado a dar publicidade ao regulamento, como se ponderou no acórdão nº 1140/96, publicado no citado Diário, II Série, de 10 de Fevereiro de 1997.'
2. - Não se vislumbrando motivo válido para alterar semelhante entendimento jurisprudencial, o certo é que, no caso vertente, não consta qualquer referência a lei habilitante, seja no articulado do diploma, seja nas considerações introdutórias.
Com efeito, tão só se menciona o artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na exposição do Presidente da Câmara à Assembleia Municipal, quando solicita a este órgão autárquico a aprovação da tabela de taxas e licenças – o que seria publicado em Suplemento ao Boletim Municipal da Câmara Municipal de Fafe, ano XII, nº 34, de Fevereiro/Abril de
1994 (cfr. fls. 223 dos autos).
De resto, a referência é feita nos termos mais abrangentes: propõe-se a aprovação de vários pedidos endereçados à Assembleia Municipal, entre os quais figura um, relativo à 'tutela de taxas e licenças que se anexa', o que se faz (menciona-se), 'ao abrigo das competências que nos estão consignadas no artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, alterado pela Lei nº 18/91'.
É, por conseguinte, manifesta a insuficiência da menção, nomeadamente à luz da principiologia do Estado de direito democrático convocada no parcialmente transcrito acórdão nº 410/00.
Se é certo que, como se entendeu no já citado acórdão nº
509/99, não pode considerar-se suficiente a referência à Lei das Finanças Locais, não acompanhada, aliás, da indicação da lei que atribui à Câmara e à Assembleia Municipais as competências em exercício, na proposta de deliberação, que não é objecto da publicidade dada ao Regulamento, por inegável paralelismo não é de aceitar como formalmente válida, a menção genérica do artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, pertinente a um elenco variado de propostas de deliberação e isoladamente invocado.
3. - Cumpre assim concluir que, pelo facto de não ter respeitado minimamente os valores de segurança e transparência que uma norma como a do nº 7 do artigo 115º da Constituição pretendia acautelar (hoje, com expressão no nº 8 do artigo 112º), enferma de inconstitucionalidade formal o Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças aprovado pela Câmara Municipal de Fafe para vigorar para o ano de 1994, mais concretamente, a norma da alínea b) do nº
8 do artigo 10º do referido Regulamento.
Torna-se, assim, desnecessário conhecer das demais questões de inconstitucionalidade equacionadas.
III
Em face do exposto, se bem que por fundamentação diferente da constante da decisão recorrida, e com base na inconstitucionalidade da norma desaplicada por violação do disposto no nº 7 do artigo 115º da Constituição da República, na versão aprovada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 26 de Setembro de 2001- Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida