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Processo n.º 713/12
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal de 18 de outubro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 574/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, que a questão a decidir era simples por a mesma já ter sido objeto de decisões anteriores do Tribunal, com a seguinte fundamentação:
«A norma que constitui objeto do presente recurso é a do «n.º 2 do artigo 291.º do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 100-A/2007, de 9 de novembro, na parte em que dispõe que do despacho do juiz de instrução criminal que indefere o requerimento de produção de prova pelo arguido na instrução e por ele oportunamente apresentado não cabe recurso mas, apenas, reclamação». O recorrente entende que viola «a equidade do processo penal (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa de l976 – CRP), as garantias de defesa do arguido em processo penal, incluindo o direito ao recurso (artigo 32.º, n.º l, da CRP), a presunção de inocência do arguido em processo penal (artigo 32.º, n.º 2, da CRP) e o direito de contraditório em processo penal (artigo 32.º, n.º 5, da CRP)».
A questão de constitucionalidade a decidir é simples, uma vez que a mesma já foi objeto de decisões anteriores do Tribunal Constitucional. De forma reiterada, o Tribunal não tem julgado inconstitucional a norma que determina a irrecorribilidade do despacho que indefere o requerimento de realização de atos de instrução. Tem-se entendido que a Constituição da República Portuguesa não exige o duplo grau de jurisdição relativamente a todas as decisões proferidas em processo penal, impondo-se a consagração do direito de recorrer apenas quanto a decisões condenatórias e a decisões penais respeitantes à situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 265/94, 387/99 e 430/2010 e, especificamente, Acórdãos n.ºs 371/2000, 375/2000, 459/2000, 78/2001, 611/2005 e 684/2005, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Reiterando o entendimento constante destas decisões, para cuja fundamentação se remete, há que não julgar inconstitucional a norma objeto do presente recurso, justificando-se, por isso, a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, nos termos e com os fundamentos seguintes:
«l.º
Foi negado provimento ao recurso porque a questão de constitucionalidade a julgar foi declarada “simples, uma vez que a mesma já foi objeto de decisões anteriores do Tribunal Constitucional”.
2.º
Este conceito de simplicidade não é sufragado pelo Recorrente nem se vislumbra como é que um problema a resolver pode ser considerado simples apenas em razão da frequência com que este tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre a matéria que o compõe.
3.º
Aceitar-se-ia a simplicidade da questão se a tomada de decisão não implicasse um processamento de informação complexo, designadamente através do relacionamento de conceitos altamente abstratos, com recurso e aplicação dos diversos modelos de raciocínio sistemático, com vista a eleger a solução, ainda desconhecida, do problema que importa resolver.
4.º
Remeter para um conjunto de decisões anteriores para sustentar a omissão de prolacção de uma decisão apoiada num raciocínio crítico e analítico constitui uma decisão simples para atingir o resultado pretendido através de uma economia de recursos cognitivos mas, salvo o devido respeito, não diz da simplicidade ou da complexidade da questão a resolver.
5.º
Pelo contrário, a questão a resolver será simples se as premissas e a conclusão se afirmarem de um modo quase automático, sem muito esforço cognitivo.
6.º
A consideração sumária de que a frequência é sinónimo de simplicidade não colhe: este tribunal pode ser chamado a pronunciar-se frequentemente sobre questões difíceis, que nem por isso passam a ser simples.
7.º
Por outro lado, o reenvio da fundamentação da decisão ora reclamada para jurisprudência anterior e, por consequência, a omissão de uma decisão especificada no caso concreto, equivale a definir a questão de constitucionalidade suscitada como pacífica, definitiva e imutavelmente resolvida.
8.º
Se assim for, nega-se a própria natureza humana e abre-se o caminho para perpetuar uma má decisão.
9.º
As ideias evoluem, amadurecem com o devir histórico; os homens mudam de ideias, enriquecem-nas com o labor dos conceitos e experimentam o deslumbramento do advento de uma solução nova com a simples consideração de um aspeto nunca antes pensado ou valorizado num contexto diferente.
10.º
A jurisprudência citada na decisão reclamada é, no seu grosso, confirmatória, essa tendência natural do funcionamento cognitivo humano que diverte o homem de outras visões do mundo.
1l.º
Amiudadamente, saltam à evidência as dúvidas não resolvidas que colidem com o direito subjetivo constitucional ameaçado pela norma legal arguida de inconstitucionalidade.
12.º
Assim, a título de exemplo: “a garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais (...) respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição (...) de quaisquer outros direitos fundamentais” (Ac. 265/94); nestes autos, alegou-se a violação de direitos fundamentais;
13.º
Este recurso nasce da obstrução à produção de prova pelo Recorrente: cfr. Ac. 375/2000 onde “Não se nega que os atos de instrução, requeridos pelo arguido, constituam uma garantia de defesa do mesmo, (...)”.
14.º
Do pouco citado fica a saliência da contradição entre a premissa, o direito fundamental violado, e a conclusão, a decisão de não julgar a norma legal inconstitucional.
15.º
Em contrapartida, nas diversas declarações de voto, constantes de alguns dos mesmos acórdãos, residem observações certeiras no âmago da questão de constitucionalidade aqui suscitada.
16.º
Por exemplo, “a descoberta da verdade” (Ac. 387/99) corroborada pelo voto de vencida lúcido da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, verdadeiramente consentâneo com a aplicação do Direito em busca da justiça no caso concreto: “Acentua-se, pois, a lesão do princípio da presunção de inocência e o direito, dele decorrente, a não ser submetido a julgamento sem se apurar a suficiência de indícios. (...) está afastada a reação contra uma errada decisão judicial, (...) ao menos pela via do recurso de despachos de indeferimento de diligências probatórias requeridas” (Ac. 371/2000. Notável a essencialidade da prova como última instância, mesmo a preceder o recurso da pronúncia.
17.º
Também, o voto de vencida da Conselheira Maria Fernanda Palma, “(...) a natureza facultativa da instrução não há de compatibilizar-se com um domínio sobre o processo pelo Tribunal de tipo inquisitório, (...)” (Ac. 459/2000).
18.º
Os exemplos citados e que foram sugeridos por este tribunal revelam que a questão de constitucionalidade de que tratam estes autos não é simples; bem pelo contrário.
19.º
Salvo o devido respeito, é precisamente nas citadas declarações de voto que se aproxima o direito constitucional da realidade judiciária onde uma pessoa humana se coloca na posição de responder pela sua culpabilidade perante um tribunal.
20.º
Além disso, o percurso cognoscente adotado na citada jurisprudência consiste em escolher uma das soluções plausíveis de direito e confirmá-la quando, diferentemente, essas diversas soluções deveriam ser confrontadas e na perspetiva da sua aplicação a um caso concreto: por isso é que os autos versam de uma fiscalização concreta e não abstrata da constitucionalidade.
21.º
Pugna-se, assim, pelo prosseguimento do recurso no sentido de ser conhecido efetivamente o seu objeto sob pena de a decisão reclamada vedar também ao Recorrente o exercício do seu direito ao recurso, o qual passa necessariamente pelo conhecimento do fundo da questão que foi submetida a este tribunal».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1º
O recorrente pretendia ver apreciada a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“Da norma que consta do n.º 2 do artigo 291.º do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 100-A/2007, de 9 de novembro, na parte em que dispõe que do despacho do juiz de instrução criminal que indefere o requerimento de produção de prova pelo arguido na instrução e por ele oportunamente apresentado não cabe recurso mas, apenas, reclamação», porque viola «a equidade do processo penal (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa de 1976 – CRP), as garantias de defesa do arguido em processo penal, incluindo o direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), a presunção de inocência do arguido em processo penal (artigo 32.º, n.º 2, da CRP) e o direito de contraditório em processo penal (artigo 32.º, n.º 5, da CRP)”.
2º
Uma vez que sobre a questão de constitucionalidade que constituiu objeto do recurso, já o Tribunal Constitucional se pronunciara, tendo, uniformemente, sido proferidos juízos de não inconstitucionalidade, a Decisão Sumária n.º 574/2012, reiterando o entendimento constante dos diversos arestos que identifica e remetendo para a sua fundamentação, negou provimento ao recurso.
3º
Quer na reclamação da decisão que não lhe admitiu o recurso, quer na reclamação agora apresentada da douta Decisão Sumária n.º 574/2012, não vêm invocados quaisquer novos argumentos, ou seja, argumentos que não tivessem sido levados em consideração nos diversos acórdãos referidos.
4º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão sumária por se ter qualificado a questão a decidir como simples, segundo o critério constante do artigo 78.º-A, nº 1, da LTC: se entender que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal, o relator profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal.
O reclamante começa por argumentar que não sufraga este conceito de simplicidade. Sucede, porém, que é a própria lei que associa à simplicidade da questão a decidir a circunstância de a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal (artigo 78.º, n.º 1, da LTC). E tal não é propriamente contrariado pelo reclamante.
Por outro lado, sustenta que o reenvio da fundamentação da decisão para jurisprudência anterior e, por consequência, a omissão de uma decisão especificada no caso concreto, equivale a definir a questão de constitucionalidade suscitada como pacífica, definitiva e imutavelmente resolvida. Sem razão.
Se, por um lado, a mera existência de decisão anterior do Tribunal não determina a adesão à mesma, cabendo ao relator avaliar se há razões para dissentir do anterior juízo, por outro, os recorrentes não ficam impedidos de questionar a simplicidade da questão, reclamando para a conferência. Atentando na jurisprudência constitucional, é de concluir que há casos em que, após prolação de decisão sumária pela qual se qualificou como simples determinada questão, o Tribunal veio a determinar o prosseguimento dos autos, afastando tal qualificação (a título meramente exemplificativo, cf. Acórdãos n.ºs 487/98, 175/2001, e 500/2002, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O que é significativo de que a possibilidade estabelecida pela lei processual constitucional não cria qualquer risco de a questão de constitucionalidade suscitada se tornar pacífica, definitiva e imutavelmente resolvida.
Relativamente ao juízo de não inconstitucionalidade da norma do «n.º 2 do artigo 291.º do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 100-A/2007, de 9 de novembro, na parte em que dispõe que do despacho do juiz de instrução criminal que indefere o requerimento de produção de prova pelo arguido na instrução e por ele oportunamente apresentado não cabe recurso mas, apenas, reclamação», o reclamante contrapõe que há aqui a violação de um direito fundamental, uma vez que os atos de instrução requeridos pelo arguido constituem uma garantia de defesa do mesmo. Este argumento já foi, porém, considerado na decisão reclamada, quando nela é invocado o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 375/2000, onde se lê o seguinte:
«Dispõe-se no artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal o seguinte:
'1. Os atos de instrução efetuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere, por despacho irrecorrível, os atos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de reclamação'
Vem a norma inserida no regime da fase de instrução do processo, em contexto que é necessário ter presente para efeito de apuramento do respetivo alcance.
A instrução não constitui uma fase de obrigatória verificação, antes é colocada na disponibilidade do arguido ou do assistente, com vista à 'comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento', conforme se prescreve no nº 1 do artigo 286º. É essa a sua vocação e, como se refere em intervenções da juíza de instrução nos autos e depois na decisão recorrida, não constitui julgamento prévio da causa.
Ao requerer a instrução, poderá o arguido indicar os atos que pretende sejam levados a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que através de uns e outros se espera provar, como resulta do nº 2 do artigo 287º, que mais acrescenta não poderem ser indicadas mais de 20 testemunhas. O momento culminante desta fase, ao qual se pré-ordenam as diligências a fazer, é o debate instrutório - cuja realização foi determinada no caso concreto - pois que com ele se visa 'permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento' (artigo 299º,nº 1). Com certeza que o arguido poderá em resultado desse debate obter satisfação da sua possível pretensão de não ser submetido a julgamento, mas do debate, quando dele não resulta a dispensa de julgamento, não pode derivar decisão condenatória nem o despacho de pronúncia tem efeito condenatório.
4. - Não se nega que os atos de instrução, requeridos pelo arguido, constituam uma garantia de defesa do mesmo, pois poderão condicionar a própria realização do julgamento.
Acusado o agente do crime, a instrução surge como meio colocado ao seu dispor para infirmar a acusação que sobre ele impende, e assim, para, pelo menos em alguma medida que lhe venha a ser favorável, contribuir de forma imediata para o sentido do despacho de pronúncia ou, mais relevantemente para ele, de não pronúncia, que a final haverá de ser proferido pelo juiz.
Mas mesmo neste plano, «a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência das razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32ºé que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.' (cfr. Acórdão nº 474/94, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pag. 402, transcrevendo o Acórdão nº31/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol.)
As coisas são assim considerada a posição do arguido. Vistas as coisas na perspetiva da ordenação funcional do processo, se não for requerida a instrução - uma vez que esta é facultativa (nº 2 do artigo 286º) - o processo é submetido ao juiz para o exclusivo efeito do artigo 311º do Código de Processo Penal. A instrução não elimina a necessidade de uma decisão do juiz, antes a difere no tempo para entretanto permitir inserir na marcha da tramitação elementos de contraditório sobre se se justifica a submissão do arguido a julgamento (cfr. artigo 298º).
Nesta perspetiva, a instrução não perde a natureza de fase preparatória de um ato decisivo na estrutura do processo que aprecia os indícios de facto e os elementos de direito até então reunidos do ponto de vista da sua suficiência para neles se fundar um julgamento. É essa a sua destinação principal e é por isso que, embora seja facultativa, por depender da iniciativa das partes, uma vez decidida a sua abertura, também nela o próprio juiz poderá praticar ou ordenar oficiosamente atos que considerar úteis (nº 1 do artigo 291º, já transcrito, bem como artigo 299º).
5. - O intérprete inserido no espírito do sistema terá de concluir que a finalidade principal não deverá ser prejudicada por meios postos ao dispor do arguido que este, legitimamente, operará com vista a defender-se da acusação. A opção legislativa não merecerá porém censura se às garantias de defesa de que o arguido pode lançar mão, relacionadas com a contradita e demonstração da insubsistência da prova ou da inaplicabilidade das disposições incriminatórias, estiver assegurada efetivação no desenvolvimento do processo. Nomeadamente, é legítimo ao legislador reservar para a efetivação de certas garantias a instância ou fase processual que julgar adequada e entender que essa é a fase de julgamento. A razão é simples: só verdadeiramente nesta fase terminal é que o arguido se vê confrontado diretamente com a eventualidade de contra ele ser decidida uma condenação.
Assim sendo, os atos de instrução inserem-se em uma cadeia de momentos todos eles encaminhados para a decisão final, que, uma vez obtida, apaga a autonomia relativa de cada um dos atos e momentos antecedentes. Cada fase desempenha uma determinada função que aproveita, complementa, aperfeiçoa e corrige, quando necessário, o que anteriormente foi sendo carreado para o processo, e a decisão final acaba por consumir, no seu sentido último, que é a absolvição ou a condenação, todos os elementos que para ela relevaram. Precisamente porque assim é, a fase do julgamento é aquela em que a defesa do arguido requer o mais elevado grau de garantias, para além do respetivo núcleo essencial e, nomeadamente, nos termos da jurisprudência do Tribunal, o 'direito de recorrer da sentença condenatória e dos atos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afetem outros direitos fundamentais seus' (cfr. Acórdão nº 474/94, citado, ibidem, pág. 400).
No caso, a norma em apreciação não incorre em vício por violação do artigo 32º da Constituição, nem nela se encontra uma restrição do conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido, situadas, atendendo ao perfil do caso concreto e ao que vem alegado, no asseguramento do princípio do contraditório (nº 5 do artigo 32º). Essas garantias de conteúdo imediatamente processual, impõe-se que sejam perspetivadas na unidade funcional do processo, e não necessariamente em cada fase separada daquela ou daquelas que se lhe poderão seguir. Na procura de uma solução em que à partida surge afastada a conversão da instrução em antecipação de julgamento, o legislador ponderou em termos adequados a utilização de meios de defesa pelo arguido, não procedendo sequer a uma sua restrição em sentido próprio, antes, limitando-os no quid plus que os mesmos constituem, se se tiver presente qual a vocação própria da instrução.
Tomando o exemplo do caso: o indeferimento da inquirição de testemunhas não foi, como também não é no plano da lei adjetiva, óbice à determinação da marcação de debate instrutório, que não se pode entender que se torna inútil apenas por ter sido rejeitada a audição de testemunhas. Não sendo antecipação do julgamento, será incongruente transpor para ele, na íntegra, o regime aplicável à produção da prova na fase final. E não será legítimo desvalorizar o debate, por definição de estrutura contraditória, como meio de defesa por si só, realizado como é sob a direção (artigo 301º do Código) e na presença do juiz, com a presença e participação das partes, as quais, no seu decurso, poderão inclusivamente requerer 'a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas' (nº 2 do artigo 202º). Aí se dá tradução à exigência contida no nº 5 do artigo 32º da Constituição.
Acresce que o legislador condiciona a aplicação da norma constante do artigo 291º, nº 1, do Código, sempre exigindo ao juiz a verificação de que os atos requeridos não interessam à instrução ou servem apenas para protelar o andamento do processo. Por outro lado, admite a reconsideração da decisão tomada, por via de reclamação a apresentar pelo requerente.
Na opção legislativa a ponderação realizada pelo legislador entre a posição do arguido e a exigência de consideração do processo como unidade funcional por si só pode justificar a solução encontrada. Nesta perspetiva, esta solução situa-se na mesma linha da irrecorribilidade do despacho de pronúncia que acolhe os termos da acusação do Ministério Público. Por outro lado, é aqui relevante o princípio constitucional da celeridade do processo (artigo 20º, nº4, da Constituição), o qual exige que se evite que o andamento do processo seja protelado «por constantes envios do processo à segunda instância para apreciação de decisões interlocutórias» (Ac. cit., ibidem, pag. 401).
A Constituição, relativamente à instrução, institui uma garantia em sentido próprio, visando dar ao arguido, em conformidade com a estrutura acusatória do processo, a possibilidade de infirmar a prova com base na qual poderá ser acusado, em concreto, estabelecendo que os atos instrutórios que a lei determinar estarão subordinados ao princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5). Tal comando constitucional não chegou a ser posto em crise pelo direito aplicado na decisão sob recurso.
Das considerações que antecedem, centradas nos aspetos nucleares da problemática suscitada, resultam elementos que permitem concluir, sem necessidade de aprofundamentos significativos, pela improcedência da arguição de vícios por violação de outras normas da Constituição.
Com efeito, não ocorre violação dos artigos 20º, nº 1, 209º, nº 1, alínea a), e 210º, nº 1, da Constituição. Em termos gerais, o direito de acesso aos tribunais está, no caso, garantido pelo direito ao recurso da decisão final na qual se poderão projetar insuficiências de elementos de prova, que constituirão fundamentos de recurso dessa decisão.
Da Constituição não se retira a plena recorribilidade de todos os atos praticados pelo juiz ao longo do processo penal ainda que sejam suscetíveis de afetar o arguido. A jurisprudência do Tribunal apenas reconhece a aplicabilidade do princípio de recorribilidade às decisões condenatórias e àquelas que impliquem privação ou restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido.
Por isso, o Tribunal não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar determinados despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (v. Acórdão nº 353/91, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., entre outros) e, como refere o Ministério Público, também não julgou inconstitucional a norma do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal, que considera insuscetível de recurso a decisão instrutória que haja pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação pública (v. Acórdão nº 266/98, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de julho de 1998).
Assim, não consentindo a lei que o despacho, que em sede de instrução indefere a realização de diligências requeridas, seja arbitrário ou discricionário, devendo antes ser fundamentado num juízo que tenta obviar à utilização de expedientes dilatórios através da prática de ato sem interesse para a instrução e para a descoberta da verdade material, não é inconstitucional a norma que prevê a irrecorribilidade de tal despacho, pois as garantias de defesa do arguido não impõem, como se referiu, a recorribilidade de todas as decisões do juiz mas tão somente das decisões condenatórias e das respeitantes à privação da liberdade e outros direitos fundamentais».
Em aplicação do entendimento que se extrai da jurisprudência deste Tribunal, há que indeferir, pois, a presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Lisboa, 16 de janeiro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.