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Processo n.º 73/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. foi condenado pela Vara de Competência Mista de Guimarães, como coautor de três crimes de roubo qualificado, previstos e punidos pelos artigos 210.º, n.os 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal, na pena única de 6 anos de prisão.
2. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 11 de julho de 2012, negou provimento ao recurso. Arguida a nulidade daquele acórdão e indeferida esta por acórdão de 5 de novembro de 2012, suscitou o recorrente ainda a aclaração deste último. O Tribunal da Relação, por acórdão de 18 de dezembro de 2012, indeferiu também a aclaração requerida.
3. Veio de seguida interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), entendendo que «foi aplicada in casu a norma materialmente inconstitucional do artigo 127.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de ser legítimo à entidade competente (tribunal) fazer uso das regras de experiência para dar um facto como provado ou não provado mesmo não existindo nos autos qualquer prova (direta ou indireta) para apreciar (quanto a esse facto), por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa».
4. Pela Decisão sumária n.º 85/2013 decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
«6. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional invocando a alínea b) do artigo 70.º, n.º 1 da LTC.
Nos termos desta disposição legal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Indispensável é, assim, que a norma, ou o critério normativo cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida.
7. O recorrente pretende ver apreciada a norma do “artigo 127.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de ser legítimo à entidade competente (tribunal) fazer uso das regras de experiência para dar um facto como provado ou não provado mesmo não existindo nos autos qualquer prova (direta ou indireta) para apreciar (quanto a esse facto)”.
8. A decisão recorrida não aplicou, todavia, a interpretação da norma do Código de Processo Penal invocada pelo recorrente.
Diferentemente do pretendido pelo recorrente, o que resulta do acórdão recorrido (…) é a consideração expressa de que “todos os raciocínios formulados pelo tribunal a quo, ao fundamentar a decisão de facto no tocante ao ponto 27, obedecem aos pressupostos acabados de expor relativos à validade e legitimidade do uso de presunções, nomeadamente ao ponderar na atuação global dos arguidos, no número de objetos e no número de pessoas que estavam no local para concluir que seria de prever que tivessem proprietários distintos e dar como provada a factologia atinente ao dolo eventual dos arguidos no respeitante à prática dos crimes de roubo”.
Anteriormente, em sede de enunciação dos “pressupostos relativos à validade e legitimidade do uso de presunções”, pode ler-se no acórdão recorrido:
“A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.
No valor da credibilidade do “id quod”, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Prof. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência, da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.”
9. Numa decisão cuja bondade não cabe aqui avaliar por não competir ao Tribunal Constitucional sindicar o mérito das decisões proferidas pelos outros tribunais, o Tribunal da Relação entendeu que “na ausência de prova direta da matéria em causa, o Tribunal socorreu-se das regras da experiência e ponderando quer na atuação dos arguidos, quer no número de objetos (quatro telemóveis e um computador) e no número de pessoas que estavam no local (quatro ofendidos…) concluiu que seria de prever que tivessem proprietários distintos para dar como provada a factologia atinente ao dolo eventual dos arguidos no respeitante à prática dos crimes de roubo.” (fls. 640).
A razão pela qual o Tribunal assim decidiu não residiu, portanto, na consideração do pressuposto invocado pelo recorrente (ausência de qualquer prova para apreciar quanto ao facto controvertido), antes e concretamente, na consideração de que os demais factos provados (atuação global dos arguidos, número de objetos e número de pessoas que se encontravam no local) permitiam concluir pela verificação do facto descrito no ponto 27 da decisão recorrida.
10. De resto, no que respeita à questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 127.º do CPP, arguida pelo recorrente, o Tribunal recorrido deixa bem clara a sua posição de divergência relativamente ao invocado pelo recorrente, ao sublinhar que:
“A resposta a esta questão já se encontra dada na apreciação que efetuámos relativamente à questão anterior, quer no tocante à noção do que seja a prova por presunção, quer relativamente aos factos em que a mesma se estribou e que o recorrente ignora ostensivamente ao colocar a presente questão, a qual não tem, por isso mesmo, qualquer estribo válido em que se alicerce.”
Desta forma, é a uma interpretação e aplicação do artigo 127.º do CPP com a qual não se conforma, que o recorrente imputa a desconformidade constitucional, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que toma por violado como, de resto, reconhece no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade para este tribunal, ao concluir que o tribunal recorrido desrespeitou o disposto no artigo 127.º do CPP.
Impõe-se, assim, concluir que a ratio decidendi não encontra base de sustentação na interpretação das normas invocada pelo recorrente como violadora da Constituição.»
5. Vem agora o recorrente reclamar daquela decisão com os seguintes fundamentos:
“1.º
Fixou-se na, aliás, douta decisão sumária n.º 85/2013 do Tribunal Constitucional datada de 7 de fevereiro de 2013: “Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do artigo 78.° - A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objeto do recurso.” (…)
3.º
Ora, com a devida e justa vénia, na decisão sumária de que ora se reclama não se consagrou uma fundamentação minimamente clara sobre com que legitimidade se avançou para a decisão sumária, limitando-se a fazer referência genérica à norma legal que a prevê.
4.º
Teria, necessariamente, salvo respeito por opinião melhor habilitada, que constar da referida decisão, tendo por referência o artigo habilitante (78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), o fundamento expresso e concreto que dava legitimidade para se proferir decisão sumária.
5.°
Aliás, mui humildemente, não se alcança o que se quis dizer quando se refere: “Desta forma, é a uma interpretação e aplicação do artigo 127.° do CPP com a qual não se conforma, que o recorrente imputa a desconformidade constitucional, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que toma por violado como, de resto, reconhece no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade para este tribunal, ao concluir que o tribunal recorrido desrespeitou o disposto no artigo 127.º do CPP”
7.°
Na verdade, é entendimento do ora reclamante que estão preenchidos todos os requisitos legais para que se admita o recurso e se ordene o prosseguimento dos autos, notificando-se o recorrente para apresentar as legalmente devidas e justas alegações.
8.°
Isto é, ao contrário do referido na decisão sumária ora em crise, encontram-se preenchidos todos os pressupostos indispensáveis ao conhecimento do recurso.
9.°
Não se pode avançar para uma análise do mérito do recurso sem previamente o recorrente apresentar as suas alegações.
10.°
Ora, in casu, com o devido respeito, apreciou-se, no fundo, o mérito do recurso sem que se tenha dado a oportunidade ao recorrente de apresentar as suas alegações.
11.º
É que o recorrente no requerimento de interposição do recurso limitou-se a avançar aquilo que a lei impõe, deixando para as alegações a demonstração cabal da sua razão.
11.º
Aliás pergunta-se: in casu qual o pressuposto indispensável ao conhecimento do recurso não foi preenchido e qual a base legal de tal pressuposto?
12.°
Não existe, destarte, base legal que habilite a que se proferira decisão sumária, maxime deste teor, nos autos em apreço.
13.°
Acresce: a decisão ora em crise é ilícita por contrariar o regime imperativo de disciplina a admissão ou rejeição do recurso no e para o Tribunal Constitucional.
14.°
O recurso apresentado pelo recorrente é manifestamente fundado e legitimo não sendo admissível decisão sumária, sobretudo nos termos em que foi proferida.
15.°
Entender-se de outra forma seria coartar de forma intolerável o direito de defesa do arguido, maxime o seu direito de recurso.
16.°
Refere-se na referida decisão sumária ora sindicada: “Impõe-se, assim, concluir que a ratio decidendi não encontra base de sustentação na interpretação da norma invocada pelo recorrente como violadora da constituição.”
17.°
Ora, não é legitimo fazer tal afirmação antes do recorrente apresentar as suas alegações, sob pena de se violar de uma forma inaceitável o princípio do contraditório e se traduzir numa decisão de mérito antecipada logo indevida e ilícita.
18.°
Não se pode antecipar uma decisão de mérito que, aparentemente, já visualiza aquando da simples análise dos pressupostos formais para admissão do recurso.”
6. Notificado, o Ministério Público apresentou resposta, manifestando a sua concordância com a decisão reclamada, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Nos presentes autos foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, por falta de efetiva aplicação da norma invocada como inconstitucional pelo tribunal recorrido.
A presente reclamação apresenta a seguinte motivação:
a) A decisão não teria consagrado «uma fundamentação minimamente clara» (cfr. 3.º e 5.º da reclamação, fls. 742, verso, e 743 dos autos);
b) Da decisão não constaria «o fundamento expresso e concreto que dava legitimidade para proferir decisão sumária» nem «o pressuposto indispensável ao conhecimento do recurso [que] não foi preenchido e (…) a base legal» (cfr. 4.º e 11.º-13.º da reclamação, fls. 742, verso, e, 745, dos autos);
c) Discorda da decisão pois «encontram-se preenchidos todos os pressupostos indispensáveis ao conhecimento do recurso» (cfr. 8.º e 13.º-15.º da reclamação, fls. 743, verso, e 745 dos autos);
d) A decisão teria apreciado do «mérito do recurso sem previamente o recorrente apresentar as suas alegações» (cfr. 9.º e 16.º-18.º da reclamação, fls. 742, verso, a 745, verso, dos autos);
É o que se irá apreciar.
8. Em primeiro lugar, alega o reclamante que a decisão não teria consagrado «uma fundamentação minimamente clara (…), limitando-se a fazer referência genérica à norma legal que a prevê» (cfr. 3.º da reclamação, fls. 742, verso, dos autos). No entanto, o reclamante não identifica os trechos da decisão que considera pouco claros a este propósito, nem fundamenta tal alegação. Alega também que «não se alcança o que se quis dizer» com um trecho da decisão reclamada (cfr. 5.º da reclamação, fls. 742, verso, e 743, dos autos), sem fundamentar o motivo dessa incompreensão ou, sequer, identificar a incompreensão.
Na medida em que não é identificada a razão da alegação de falta de clareza da decisão ou fundamentada tal alegação, não é possível apreciar a reclamação quando a estas questões.
9. Em segundo lugar, ao contrário do alegado pelo reclamante (cfr. 11.º e 12.º da reclamação, fls. 745), resulta claramente da decisão reclamada que o requisito de admissibilidade do recurso que não se encontra preenchido é a necessidade de efetiva aplicação da norma invocada como inconstitucional pelo tribunal recorrido (cfr. n.º 8 da fundamentação da decisão: «A decisão recorrida não aplicou, todavia, a interpretação da norma do Código de Processo Penal invocada pelo recorrente»).
Este requisito de admissibilidade resulta claramente da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. De facto, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto nos preceitos referidos, apenas pode incidir sobre uma questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido. Este facto encontra-se claramente referido no n.º 6 da decisão reclamada:
“6. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional invocando a alínea b) do artigo 70.º, n.º 1 da LTC.
Nos termos desta disposição legal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Indispensável é, assim, que a norma, ou o critério normativo cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida.”
A decisão reclamada é, pois, de meridiana clareza. Não procede, assim, este argumento.
10. Por outro lado, quanto ao preenchimento dos requisitos de admissibilidade do recurso, o recorrente limita-se a reproduzir e reiterar o invocado no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e que a decisão ora reclamada expressamente afastou, sem aditar argumentação adicional relevante (cfr. 6.º da reclamação, fls. 743-744, verso, dos autos).
Não se veem motivos para alterar, desde logo por isso, a decisão proferida. De facto, a norma cuja inconstitucionalidade o reclamante vem questionar não foi objeto de aplicação pelo tribunal recorrido.
Note-se:
O reclamante pretende ver apreciada a norma do «artigo 127.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de ser legítimo à entidade competente (tribunal) fazer uso das regras de experiência para dar um facto como provado ou não provado mesmo não existindo nos autos qualquer prova (direta ou indireta) para apreciar (quanto a esse facto)» (cfr. requerimento de recurso, fls. 724, verso, dos autos).
Ora, em lado algum do acórdão recorrido se encontra a aplicação de tal “norma”. Em nenhum momento o tribunal recorrido afirma ser legítimo «dar um facto como provado ou não provado» apenas com base nas «regras de experiência», dispensando a existência nos autos de «qualquer prova (direta ou indireta) para apreciar (quanto a esse facto)». Pelo contrário o tribunal afirma que «o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis», sendo, «num segundo nível», possível o recurso às regras da experiência (cfr. fls. 641 dos autos) – mas nunca dispensando a existência de meios de prova. Ou seja «a presunção permite, deste modo, que perante factos (…) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (…) certos factos são a consequência de outros» devendo existir «um percurso intelectual e lógico (…) entre facto conhecido e facto adquirido» sem que existam «espaços vazios» (cfr. fls. 642-643 dos autos). De acordo com o tribunal recorrido a presunção, deste modo, é ainda valoração da prova produzida, dela dependente. É, deste modo, evidente que a “norma” cuja inconstitucionalidade se alega – que seria «legítimo à entidade competente (tribunal) fazer uso das regras de experiência para dar um facto como provado ou não provado mesmo não existindo nos autos qualquer prova (direta ou indireta) para apreciar» (realce nosso) - nunca foi aplicada pelo tribunal recorrido.
Nessa medida, não pode ser admitido o recurso.
11. O que consta da decisão reclamada, portanto, é a análise da verificação de um requisito de admissibilidade do recurso – e não a apreciação do seu mérito, como é alegado – não dependendo, por isso, da apresentação de alegações por parte do reclamante (cfr. 9.º-11.º da reclamação, fls. 744, verso, dos autos).
12. Pode-se concluir, assim, que a presente reclamação não apresenta motivos para contrariar os fundamentos da decisão sumária. É de indeferir, pois, a reclamação e de confirmar a decisão de não conhecimento do objeto do recurso.
III – Decisão
13. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de abril de 2013. - Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.