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Processo n.º 746/00
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional: I - Relatório Em treze de Abril de 2000, E..., M... e J... foram julgados e condenados pelo Tribunal do Círculo Judicial de Faro pela prática, respectivamente, dos crimes de dano e ofensa à integridade física, e de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, tendo-lhes sido aplicadas penas de prisão de 16 meses em relação ao primeiro e dois anos e dois meses em relação aos segundos, tendo a execução desta última sido suspensa. Inconformados com a decisão, os três arguidos interpuseram recurso da mesma para o Supremo Tribunal de Justiça, o primeiro em separado e os restantes dois em conjunto. Em resposta, o Ministério Público propugnou pela manutenção do acórdão recorrido. Por acórdão de 9 de Novembro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça acordou em rejeitar os recursos interpostos dado que estes não cumpriram os pressupostos previstos no artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
'(...) 2. Os presentes recursos versam unicamente matéria de direito, que, quanto aos arguidos M... e J..., se prende com a medida concreta da pena e com a suspensão da sua execução e, quanto ao arguido E..., respeita à escolha e à medida concreta da pena e ainda à suspensão e execução desta. Ora, versando matéria de direito, as conclusões têm de indicar, sob pena de rejeição do recurso, os elementos referidos no n.º 2 do art. 412º do C.P.P. E trata-se de rejeição imediata, ou seja, sem qualquer convite ao recorrente para dar cumprimento ao disposto no referido normativo, como o próprio Tribunal Constitucional já se reconheceu no seu acórdão n.º 43/99, de 19-1-1999, in D.R., II Série, de 26-3-1999 (v. pág. 4496- 2ª coluna ao alto) e tem sido abundante e uniformemente julgado por este Supremo Tribunal desde que entrou em vigor o actual Código de Processo Penal, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (isto é tão evidente que face à imensa jurisprudência no mesmo sentido, nos dispensamos de citá-la). No entanto, apesar desta uniforme jurisprudência, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta vem agora entender que, detectada a deficiência, deve dar-se ao recorrente a possibilidade de vir supri-la, em vez de haver lugar à rejeição liminar do recurso, sob pena de se verificar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 412º, n.º 2 e 420º, n.º 1 do C.P.P., por violação do art. 32º da C.R.P. quando interpretadas no sentido da referida rejeição, o que constituiria uma ‘limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido decorrente da restrição do seu direito ao recurso e, por via deste, do direito de acesso à justiça’. Daí que aquela Exm.ª Magistrada tenha promovido a notificação dos recorrentes para, ‘nos termos do n.º 4 do art. 690º do CPC, com referência ao n.º 2 (aplicável por força do artigo 4º do C.P.P.), virem dar integral cumprimento à referenciada norma do art. 412º do C.P.P., designadamente ao seu n.º 2, alíneas b) e c). Porém, contrariamente ao que a Exmª Magistrada do Ministério Público vem dizer e decorre do apelo ao n.º 4 do art. 690º do C.P.C., com referência ao n.º 2 deste mesmo art., aplicável ‘ex vi’ do art. 4º do C.P.P., não ocorre, ‘in casu’, qualquer lacuna legal a respeito das consequências do não cumprimento pelo recorrente do disposto no n.º 2 do art. 412º do C.P.P. Assim, a simples leitura deste normativo permite-nos concluir, com toda a clareza, sobre as consequências do referido incumprimento. Efectivamente, dispõe tal normativo:
‘Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição: a. As normas jurídicas violadas; b. O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c. Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada’. Verifica-se, pois, que este dispositivo não admite dúvidas, tão claro é o seu sentido a respeito das consequências do não cumprimento pelo recorrente das três alíneas acabadas de transcrever. De facto, a expressão ‘sob pena de rejeição’ mostra à evidência que se trata de rejeição imediata do recurso, não havendo, pois, lugar à notificação do recorrente para suprir as deficiências detectadas nas conclusões da sua motivação. (...) De tudo isto se conclui, sem margem para dúvidas, que a consequência legal do não cumprimento pelo recorrente do disposto no n.º 2 do art. 412º do C.P.P. está expressamente regulada neste normativo, pelo que não há qualquer lacuna a tal respeito, tal como é definida no art. 10º, n.º 1 do Cód. Civil (o caso está previsto e regulado no citado dispositivo do C.P.P.). (...) E com isto não há que dizer que se põem em causa as garantias de defesa do arguido através da restrição do seu direito ao recurso e, por via deste, do direito de acesso à justiça, como diz a Exmª Magistrada do Ministério Público – direitos que decorrem dos artºs 20º, n.º 1 e 32º, n.º 1 da CRP – já que estes direitos têm de ser exercidos nos termos da lei, ou seja, ‘in casu’, o Código de Processo Penal, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-10-1993, prº. N.º 44407, citado por Simas Santos e Leal Henriques, in obra referida, 805. De resto, estando o arguido representado por advogado, é inadmissível que este não conheça a lei e que não cumpra as indicações claramente referidas no n.º 2 do art.º 412º do C.P.P.. De facto, sendo obrigatória tal representação, só por intolerável excesso de garantismo se pode impor o convite ao recorrente para cumprir o que obviamente devia ter cumprido logo quando apresentou a motivação do seu recurso. Seria um evidente benefício ao sujeito processual infractor. A exigência de tal convite contraria frontalmente o disposto no n.º 2 do art.
412º do C.P.P. (pois, como se demonstrou, a cominação aí estabelecida – ‘sob pena de rejeição’ – elimina absolutamente aquele convite), pelo que, com essa interpretação daquele normativo, passa a haver uma norma nova, e se tal interpretação for imposta pelo Tribunal Constitucional – apesar de que este Tribunal, como se disse acima, já se pronunciou, ‘a latere’, no sentido de não haver lugar ao dito convite – essa norma criada pelo referido Tribunal, é inconstitucional, pois provém de um órgão que não tem competência legislativa, o que é mais que suficiente para que a mesma infrinja o disposto na Constituição, como preceitua o art.º 277º desta. Como é evidente, tal competência é apenas exercida pela Assembleia da República e pelo Governo – v. os artºs 161º e 198º da C.R.P. – e não também pelos tribunais, nomeadamente, o Tribunal Constitucional – v. os art.ºs 202º da C.R.P. e 6º e segs. da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. Logo, a haver uma norma nova criada, a este respeito, pelo Tribunal Constitucional, a mesma, porque é inconstitucional, não pode ser aplicada pelos tribunais, como impõe o art.º 204º da Constituição.' Em 22 de Novembro de 2000 o Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, 'na parte em que rejeitou o recurso com o fundamento de os recorrentes M..., J... e E... não terem dado cumprimento ao disposto na norma ao art.º 412º do Código de Processo Penal, por tal importar violação do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa', nos seguintes termos:
'É que, como o Ministério Público teve oportunidade de referir no seu requerimento de fls. 338 a 340, a norma do art.º 412º n.º 2 do Código de Processo Penal resulta materialmente inconstitucional, por violação do n.º 1 do art.º 32º da C.R.P. quando, à semelhança do sucedido no douto acórdão recorrido, se interpreta no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito, determina a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir as deficiências que porventura as afectem.' O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional concluiu as suas alegações da seguinte forma:
'1º É inconstitucional por violação do princípio das garantias de defesa consagrados no art. 32º n.º 1, e do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consignado no art. 20º da CRP, a interpretação normativa do art. 412º do CPP que se traduza em facultar ao tribunal ‘ad quem’ a liminar rejeição do recurso, quando considere que o recorrente não especificou adequadamente, nas conclusões da motivação origináriamente apresentada, os elementos ali previstos, sem lhe facultar previamente o suprimento de tais deficiências formais.
2º Padece ainda de inconstitucionalidade a interpretação de tal exigência legal que assente em critérios de índole desproporcionadamente formalista, desligando a avaliação do cumprimento adequado de tal ónus pelo recorrente de um critério de natureza funcional, ligado decisivamente, não aos termos literais utilizados nas conclusões, mas à enunciação, inteligivel e concludente, de uma verdadeira
'questão de direito', ligada ao momento aplicativo de certa norma ou preceito legal, e susceptível de integrar os poderes cognitivos e decisórios de um tribunal de revista.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O presente recurso – visando a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 412º n.º 2 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito, tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade processual de suprir o vício detectado – foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que o seu conhecimento requer, designadamente, que a inconstitucionalidade da norma impugnada tenha sido suscitada durante o processo, que esta tenha sido aplicada na decisão recorrida, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários. Não há dúvida de que se verificam estes dois últimos requisitos, tendo também o Ministério Público salientado, no requerimento em que promoveu a notificação dos recorrentes para 'virem dar integral cumprimento à referenciada norma do art.
412º do C.P.P., designadamente ao seu n.º 2, alíneas b) e c)', que, interpretada por forma a determinar a imediata rejeição liminar do recurso, sem tal convite, a norma em questão seria materialmente inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República. Podem, pois, dar-se por verificados todos os requisitos para o conhecimento do recurso, sem necessidade de verificar se estaríamos, no caso, perante uma daquelas situações excepcionais susceptíveis de determinar a dispensa de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo – cfr., ainda assim, o Acórdão n.º 56/01 (ainda não publicado) deste Tribunal, onde, a propósito da mesma norma, se salientou que, uma vez que 'o dito artigo 412º, n.º 2, na interpretação apontada, já foi julgado inconstitucional por este Tribunal (cf. acórdão n.º 288/2000, de 17 de Maio de 2000, ainda não publicado, tirado em recurso vindo do Supremo Tribunal de Justiça, era razoável que o recorrente esperasse ser convidado a suprir as deficiências que as conclusões da motivação, acaso, apresentassem. E, sendo isso razoável, não lhe era exigível que, na motivação, antecipasse qualquer acusação de inconstitucionalidade do normativo em causa, se ele viesse a ser interpretado como realmente foi', havendo que
'dispensar o recorrente do ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo.' Tem o presente recurso como objecto, conforme se disse, a apreciação da constitucionalidade da seguinte norma: artigo 412º n.º 2 do Código de Processo Penal interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito, tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade processual de suprir o vício detectado. O recorrente impugna a conformidade desta norma com o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, e o presente recurso, que é o meio que o nosso sistema conhece para fiscalização concentrada, em via de recurso, da conformidade constitucional das normas aplicadas pelos tribunais, é restrito à questão de constitucionalidade. Significa isto que não cumpre nesta sede decidir, com independência da questão de constitucionalidade, sobre a interpretação mais adequada – mais próxima da letra da lei, mais conveniente, ou mais favorecida por outros elementos interpretativos – do artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Nem sequer a determinação da norma impugnada como o artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação acima enunciada – efectuada pelo recorrente – implica necessariamente a afirmação de que a letra de tal preceito permite ou recomenda, segundo os cânones interpretativos normais, outras interpretações – designadamente, uma interpretação da 'rejeição do recurso' como não imediata, mas apenas na sequência de resposta a um convite ao recorrente. Tal como, evidentemente, uma correspondente decisão de inconstitucionalidade não implica a criação, pelo órgão de controlo concentrado de constitucionalidade, de qualquer norma nova. Trata-se – e trata-se tão-só – de apreciar, e, se for o caso, censurar sub specie constitutionis, a norma na interpretação explicitada, segundo a qual a falta das indicações nela exigidas tem como sanção a imediata rejeição liminar do recurso, sem convite ao recorrente para suprir tal falta. Apenas na medida em que o princípio da constitucionalidade – o qual, mais do que apenas a interpretação, condiciona a própria validade da norma legal – o imponha terá, pois, o juízo a efectuar de influenciar decisivamente a interpretação da lei. Dito isto, importa frisar que a solução normativa em causa no presente recurso
(que não era a que estava em causa, nem no Acórdão n.º 38/97, nem no Acórdão n.º
43/99, publicados respectivamente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], vol. 39º, págs.209 e segs., e no Diário da República [DR], II série, de 26 de Março de 1999) foi já objecto de várias decisões do Tribunal Constitucional, quer para o processo penal, quer (para os preceitos correspondentes) no âmbito do processo contra-ordenacional, tendo sempre sido julgada materialmente inconstitucional (e, aliás, sem votos de vencido, quanto a tal julgamento), por violação do artigo 32º, n.º 1 (e n.º 10, para o processo contra-ordenacional) da Constituição da República. No âmbito do processo penal, em causa no presente recurso, o referido Acórdão n.º 288/00 – num caso em que o tribunal recorrido considerara que a recorrente não havia cumprido o ónus de indicar a norma jurídica violada, bem como o sentido em que, no seu entendimento, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada – julgou 'inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que atribui ao deficiente cumprimento dos
ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado'. Recorde-se o essencial da fundamentação deste julgamento de inconstitucionalidade:
«É inconstitucional a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado ?
8 – O Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais – por violação do disposto no artigo 32º n.º 1 da Constituição – os artigos 412º n.º 1 e 420º n.º
1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr., nesse sentido, os Acórdãos n.ºs 193/97 – inédito –, 43/99, DR, II série, de 26 de Março de 1999; e 417/99 – inédito). Ponderou, então, o Tribunal Constitucional, logo no primeiro daqueles Acórdãos:
'A plenitude das garantias de defesa, emergente do artigo 32º n.º 1 do texto constitucional, significa o assegurar em toda a extensão racionalmente justificada de 'mecanismos' possibilitadores de efectivo exercício desse direito de defesa em processo criminal incluindo o direito ao recurso (o duplo grau de jurisdição) no caso de sentenças condenatórias (v. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 40/84, 55/85 e 17/86, respectivamente nos ATC, Vol. 3, p.241 e Vol 5, p.
461 e DR-II de 24/4/86). Recentemente, no Acórdão n.º 575/96, ainda inédito, teve este Tribunal oportunidade de se pronunciar a este respeito, a propósito do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, entendendo-o inconstitucional – por ofensa dos artigos 18º n.º 2 e 32º n.º 1 da Constituição – 'na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso de sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido-recorrente'.Com interesse para a presente situação aí se escreveu:'... ao ditar irremediavelmente a imediata deserção do recurso, pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa
(...) em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento, a norma em apreço (trata-se, como se referiu, do artigo 192º do CCJ) procede a uma intolerável limitação do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal.' (sublinhado do texto). O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil (onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento – artigo 690 n.º 3 do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível e, mais que isso, é exigida pelo artigo 18º n.º 2 da Constituição, sendo certo que no caso contrário se estará a promover desproporcionadamente o valor celeridade à custa das garantias de defesa do arguido. Os artigos 412º n.º 1 e 420º n.º 2 contêm suficiente espaço de interpretação para possibilitar um entendimento que, face a conclusões de recurso tidas por não concisas (onde não se resuma as razões do pedido), não deixe de permitir-se uma possibilidade de aperfeiçoamento das mesmas, configurando uma interpretação constitucionalmente conforme. As normas em causa, na concreta interpretação que delas fez a decisão recorrida mostram-se, assim, violadoras do artigo 32º n.º 1 da Lei Fundamental'. Por sua vez, nos acórdãos n.º 43/99 e 417/99, pode ler-se, no mesmo sentido:
'Ora, uma interpretação normativa dos preceitos que regulam a motivação do recurso penal e as respectivas conclusões (artigos 412º e 420º do CPP) de forma que faça derivar da prolixidade ou de falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, que não permita um prévio convite ao aperfeiçoamento da deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça'. Por outro lado, agora no âmbito do processo contra-ordenacional, considerou já o Tribunal Constitucional ser incompatível com a Constituição uma interpretação normativa dos artigos 59º, n º3 e 63º, n º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de
27 de Outubro, que conduzisse à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quando se verifique 'falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação' (cfr. Acórdão n.º 303/99, DR, II Série, de 16 de Julho de 1999) ou quando tal recurso seja apresentado 'sem conclusões' (cfr. acórdão n.º 319/99, DR, II Série, de 22 de Outubro de 1999). No acórdão n.º 303/99, ponderou o Tribunal:
'Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou 'em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contraordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada', a lógica da
'concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa' impõe, na óptica do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690º, 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário 'chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido', na linguagem do acórdão n.º 193/97'. Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição'. Por sua vez, no acórdão n.º 319/99, pode ler-se:
'Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo 32º, n.º1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos). Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta ‘sanção’ à falta das conclusões consiste num alargamento do
âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso – as alegações ou a motivação – já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva. Tem, por isso de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contraordenação – em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa – a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de
27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional.
9. Pois bem, o que antecede permite desde já concluir que, também na situação que é agora é objecto dos autos o Supremo Tribunal de Justiça terá utilizado uma interpretação normativa do artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição. Vale aqui, evidentemente, um argumento de maioria de razão relativamente ao anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente no já citado acórdão n.º 319/99. Como, bem, nota o Ministério Público na sua alegação, 'se a
(pura e simples) não apresentação de conclusões em processo contra-ordenacional deve determinar – sob pena de inconstitucionalidade – o convite ao suprimento de tal vício, é manifesto que o vício formal menos grave (mera insuficiência, e não inexistência de conclusões) em processo (penal) – em que vigoram maiores e mais amplas garantias de defesa – não pode deixar de levar a idêntico juízo de inconstitucionalidade. Assim, é efectivamente inconstitucional, designadamente por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado.» As considerações acabadas de transcrever mantêm plena validade, e podem mesmo dizer-se reforçadas, em face da jurisprudência posterior do Tribunal Constitucional. Assim, pelo Acórdão n.º 337/00 (publicado no DR, I série-A, de 21 de Julho de
2000), declarou-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação dos artigos 412º, n.º1, e 420º, n.º1, do Código de Processo Penal segundo a qual a falta de concisão das conclusões da motivação leva à rejeição do recurso interposto. No já citado Acórdão n.º 56/01, referiu-se que, tendo o artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, em interpretação idêntica à ora em causa, já sido julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, em decisão tomada em recurso vindo do Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente podia razoavelmente esperar ser convidado a suprir as deficiências que as conclusões da motivação, acaso, apresentassem, dispensando-se, por isso, do ónus da suscitação da correspondente questão de inconstitucionalidade durante o processo. Noutras decisões – por exemplo, a decisão sumária n.º 117/01 –, foi renovado o julgamento de inconstitucionalidade dos artigos 59º, n.º 3 e 63º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, interpretados no sentido de que o recurso apresentado em processo de contra-ordenação sem conclusões ou com falta de indicação das razões do pedido nas conclusões deve ser imediatamente rejeitado sem que o recorrente seja previamente convidado a suprir a falta, vindo, na sequência desse julgamento em três casos concretos, a inconstitucionalidade de tal norma a ser declarada, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º 265/01 (DR, I série-A, de 16 de Julho de 2001). O que apenas pode reforçar, com base na solução desta questão de constitucionalidade – aliás, considerada já 'questão simples' para o efeito do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional –, o argumento de maioria de razão para a norma em questão no presente recurso, a que se refere o Acórdão n.º 288/00. E também noutros arestos se tem acentuado que o Tribunal Constitucional não pode
'sufragar uma interpretação normativa assente numa rigidez formal que posterga, desrazoavelmente, as garantias constitucionais consagradas para o processo criminal' (Acórdão 66/01, ainda não publicado; cfr. o Acórdão 284/00, DR, II série, de 8 de Novembro de 2000, no qual se censura a 'interpretação normativa que, não tendo uma unívoca decorrência do texto legal, conduz a acentuado formalismo que, por essa via, vai postergar uma garantia constitucional consagrada para o processo criminal'). Ora, é justamente isto o que está em causa no presente recurso. Preceitua o artigo 32º, n.º 1 da Constituição que o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso. E, como se sabe, a concretização legal de tais garantias constitucionais está submetida ao regime previsto, para os direitos, liberdades e garantias, no artigo 18º da Constituição, incluindo, designadamente, o respeito pela proporcionalidade da suas limitações. Ora, tal como a interpretação do no n.º 2 do artigo 412º e do artigo 420º, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo arguido, ou a interpretação dos artigos 63º, n.º 1 e 59º, n.º 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação ou a falta das próprias conclusões levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação, também a solução normativa ora em questão – equivalente à última referida, aplicada ao processo penal – introduz um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sem permitir prévio convite para aperfeiçoamento da deficiência formal detectada. Esta consequência imediata não pode deixar de ser considerada como limitação desproporcionada das garantias de defesa, e em particular do direito ao recurso, do arguido em processo penal, consagradas no artigo 32º, n.º 1 da Constituição. Tal imediato efeito preclusivo não se afigura, nem necessariamente imposto pelo preceito legal aplicável (que apenas se refere a um efeito preclusivo, sem excluir a concessão de oportunidade para suprir a falta detectada pelo órgão judicial), nem – o que é decisivo – justificado por qualquer outro interesse constitucionalmente atendível. Designadamente, não cabe, perante tal afectação das garantias de defesa previstas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, argumentar com a celeridade processual. Para além de tal objectivo não ser incompatível com a concessão ao recorrente de oportunidade para suprir a deficiência detectada, não é admissível que a sua invocação – ou de outros topoi genéricos – baste para fundar soluções normativas que, como a presente, afectam desproporcionadamente as garantias de defesa do recorrente, na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo
32º, n.º 1 da Constituição. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, o artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito, tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências; b. Em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 26 de Setembro de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa