Imprimir acórdão
Processo nº 160/2007
2ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Pereira
Acordam na 2ª Secção no Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O presente recurso foi interposto por A. de acórdão prolatado pelo
Tribunal da Relação do Porto, em 4 de Dezembro de 2006. Tal acórdão aplicou o
disposto no artigo 189º, nº 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores,
determinando a dedução de uma parte da pensão social do ora recorrente (no
montante de 50 euros, sendo o valor da pensão de 351,68 euros), para satisfazer
a obrigação alimentar relativa a uma filha. A recorrida, B., é representada pelo
Ministério Público.
O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto
no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei
do Tribunal Constitucional.
A norma cuja inconstitucionalidade o recorrente arguiu é o artigo
189º, nº 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores, por violar os
princípios consagrados nos artigos 1º, 26º, nºs 1 e 3, e 63º, nº 3, da
Constituição. O recorrente suscitou tempestivamente a questão, no âmbito das
alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto.
2. Nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional, o
recorrente sustentou que está impossibilitado materialmente de cumprir a pensão
de alimentos por a sua “pensão social (ser) inferior ao rendimento social de
reinserção”. Frisou que a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, permite accionar um
Fundo de Garantia de Alimentos, pelo que o Estado assegura as prestações que o
progenitor obrigado a alimentos não pode cumprir. Reiterou o entendimento de que
a interpretação impugnada seria contrária ao princípio da essencial dignidade da
pessoa humana e violaria os artigos 1º, 26º, nºs 1 e 3, e 63º, nº 3, da
Constituição.
Por seu turno, nas suas contra alegações, o Ministério Público
invocou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 306/05 para salientar que, no
caso dos autos, após o desconto da pensão de alimentos, o montante remanescente
da pensão de invalidez do recorrente é superior ao valor do rendimento social de
inserção. Concluiu, assim, o Ministério Público que a interpretação normativa em
crise não viola o princípio da essencial dignidade da pessoa humana, por ser
adequada a satisfazer os direitos fundamentais em confronto, de que são
titulares o recorrente e a sua filha menor.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II
Fundamentação
3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que a
Constituição impõe a impenhorabilidade de pensões sociais de reduzido montante,
que não exceda o salário mínimo nacional (cfr. Acórdão nº 177/02,
www.tribunalconstitucional.pt), ou o rendimento mínimo garantido (cfr. Acórdão
nº 66/02, www.tribunalconstitucional.pt).
Esta orientação foi estendida aos rendimentos do trabalho,
inviabilizando a penhora que conduzir à privação da disponibilidade do
rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional, quando o devedor
não for titular de outros bens ou rendimentos susceptíveis de penhora (cfr.
Acórdão nº 96/04, www.tribunalconstitucional.pt).
4. Todavia, mesmo abstraindo da jurisprudência anteriormente referida
– que não colheu a unanimidade -, é certo que, quando estão em causa obrigações
alimentares, existe um conflito entre os direitos daquele que está obrigado a
prestar alimentos e os direitos de quem beneficia da prestação. Nesse contexto,
tal como se sublinhou no Acórdão nº 306/05 (cfr. www.tribunalconstitucional.pt),
o princípio da essencial dignidade da pessoa humana tem de ser salvaguardado
relativamente a todas as pessoas envolvidas, procurando-se a concordância
prática dos respectivos direitos.
Por esta razão, no citado aresto do Tribunal Constitucional
concluiu-se que a parcela do rendimento que não pode ser afectada ao pagamento
da prestação de alimentos devidos a um filho não é de montante equivalente ao
salário mínimo nacional. É que esse montante é calculado tendo em conta as
necessidades da família do executado, família cujas necessidades compreendem a
própria prestação de alimentos no caso em análise.
5. Consequentemente, a parcela do rendimento que não pode ser
afectada ao pagamento da prestação de alimentos devidos a um filho é sempre
aferida através da aplicação do rendimento social de inserção, previsto e
regulado na Lei nº 13/03, de 21 de Maio. Esta prestação, na sua dimensão
positiva, procura dar resposta às condições mínimas de existência de cada pessoa
(cfr. Acórdão nº 509/02, www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, tal rendimento é calculado por referência à pensão social (de
velhice ou invalidez), não podendo ser inferior a 50% do valor da remuneração
mínima mensal garantida à generalidade dos trabalhadores, deduzida da cotização
correspondente à taxa contributiva normal do regime dos trabalhadores por conta
de outrem, por força da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro. Nos termos do artigo
1º do Decreto-Lei nº 2/2007, de 3 de Janeiro, esta remuneração mínima mensal
ascende, presentemente, a 403 euros.
6. No caso sub judicio o valor da pensão de invalidez auferida pelo
progenitor obrigado a alimentos, após subtrair a prestação de alimentos, ascende
a 301,68 euros. Tal montante é superior ao valor do rendimento social de
inserção, ao contrário do que alegou o recorrente, pelo que não ilustra uma
interpretação inconstitucional do artigo 189º, nº 1, alínea c), da Organização
Tutelar de Menores, por violação dos princípios consagrados nos artigos 1º, 26º,
nºs 1 e 3, e 63º, nº 3, da Constituição.
Por estas razões, é de indeferir o presente recurso.
III
Decisão
6. Ante o exposto, decide-se negar provimento ao presente recurso de
constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 16 de Maio de 2007
Rui Pereira
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano (com declaração
de voto que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Apesar de concordar com a decisão de improcedência de recurso, discordo da
fundamentação do mesmo por não estabelecer uma distinção de tratamento entre a
dedução forçada de prestações vincendas e vencidas.
Relativamente às primeiras, não pode esquecer-se que a decisão que fixou o
montante dos alimentos a prestar foi obrigada a ponderar a capacidade económica
de quem os presta e as necessidades de quem os recebe (artº 2004º, do C.C.),
sendo nesse juízo que deve ser acautelada a sobrevivência digna de ambos, de
modo a cumprir-se o princípio constitucional de respeito pela dignidade humana.
A decisão que posteriormente apenas determina como modo de pagamento das
prestações vincendas, face ao incumprimento de prestações anteriores, a sua
dedução forçada a rendimentos pagos ao devedor por terceiros, nos termos do artº
189º, nº 2, da O.T.M., não tem implícita, nem deve ter, qualquer juízo sobre a
capacidade do devedor de efectuar essas prestações, nomeadamente se as mesmas
colocam em risco a sua sobrevivência digna. Esse juízo, efectuado na decisão que
fixou a prestação de elementos, só pode ser revisto em incidente de alteração ou
cessação dessa prestação.
Daí que não se considere que viole qualquer princípio constitucional,
nomeadamente o do respeito pela dignidade da pessoa humana, a aplicação do artº
189º, nº 2, da O.T.M., independentemente do valor da pensão auferida pelo
devedor de alimentos, donde serão deduzidas forçadamente as prestações de
alimentos vincendas.
Já quanto às prestações vencidas, apesar do respectivo direito de crédito ter
precisamente a mesma origem que os das prestações vincendas, a sua existência
não pôde ser ponderada pela decisão que fixou os alimentos, que não pressupôs o
seu próprio incumprimento, com a consequente acumulação de prestações em dívida.
Assim, para a cobrança deste valor acumulado, através da dedução forçada de
rendimentos pagos por terceiro, nos termos do artº 189º, nº 1, c), da O.T.M., já
é legítimo que se ajuíze se essa cobrança poderá colocar em risco a
sobrevivência do devedor, concordando-se que esse juízo seja efectuado nos
termos sustentados pelo Acórdão nº 306/05, deste Tribunal.
Lisboa, 16 de Maio de 2007
João Cura Mariano