Imprimir acórdão
Processo n.º 74/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi julgado em processo comum, por tribunal coletivo, no 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Olhão e por acórdão de 26 de novembro de 2010 foi absolvido do crime de associação criminosa com vista ao tráfico de estupefacientes, bem como de dois crimes de tráfico de estupefacientes agravados, tendo sido condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão. Pela prática de outro crime previsto na mesma disposição legal foi condenado na pena de 7 anos e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas referidas, o arguido foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
Desta decisão recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, tendo, além do mais, invocado a nulidade da gravação da prova, por existirem partes impercetíveis.
Por acórdão de 10 de abril de 2012 foi concedido provimento parcial ao recurso, tendo sido decidido alterar os itens 3.°, 31.º, 65.º,, 88.° e 89.° da matéria de facto provada, nos termos explicitados nesse acórdão, aditar à matéria de facto provada o item 113.º com a redação que ali se indicou, e julgar não provada a matéria constante dos itens 30.° e 74.° dos factos provados, que passou a integrar os factos não provados. Quanto ao mais, foi mantido o acórdão recorrido, tendo-se considerado sanada, caso existisse, a nulidade arguida.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que não conheceu do recurso na parte relativa à referida arguição de nulidade.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, requerendo a fiscalização de constitucionalidade dos artigos 105.º, 120.º, n.º 1, 121.º e 363.º, todos do Código de Processo Penal, conjugados com o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 329/95, de 15 de fevereiro, na interpretação segundo a qual, a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova se mostra sanada, o que obsta ao seu conhecimento, se não for arguida no prazo de 10 dias após a publicação da sentença ou do acórdão, descontando-se porém, o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido, e não em todo o prazo do recurso para impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso.
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do mérito do recurso, com a seguinte fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído a ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Neste recurso o arguido pede que seja fiscalizada a constitucionalidade dos dos artigos 105.º, 120.º, n.º 1, 121.º e 363.º, todos do Código de Processo Penal, conjugados com o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 329/95, de 15 de fevereiro, na interpretação segundo a qual, a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova se mostra sanada, o que obsta ao seu conhecimento, se não for arguida no prazo de 10 dias após a publicação da sentença ou do acórdão, descontando-se porém, o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido, e não em todo o prazo do recurso para impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso.
Se é certo que a decisão recorrida utilizou esse critério normativo para considerar que a alegada nulidade da gravação da prova, por existirem partes impercetíveis, a existir, se encontrava sanada, também se constata que a mesma decisão se serviu de um segundo fundamento para indeferir a respetiva arguição.
Nos termos do Acórdão recorrido, tal nulidade deveria ter sido invocada perante o tribunal de 1.ª instância que havia procedido à gravação da prova e só da decisão desse tribunal sobre tal arguição é que poderia ser deduzido recurso para o Tribunal da Relação, pelo que este não podia apreciar em primeira mão essa questão.
Existindo, pois, um duplo fundamento para a decisão de não conhecimento da arguição de nulidade efetuada pelo arguido e só tendo sido invocada perante o Tribunal Constitucional o critério normativo em que se apoiou um desses fundamentos, a apreciação deste recurso revela-se inútil, uma vez que, mesmo que se concluísse pela inconstitucionalidade da norma impugnada sempre subsistiria o segundo fundamento para manter a decisão recorrida.
Assim sendo, não deve ser conhecido o mérito do recurso interposto, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
O Recorrente reclamou desta decisão nos seguintes termos:
“1.- O Recorrente, ora Reclamante, requereu a fiscalização de constitucionalidade dos Art.ºs 105º, 120º, n.º 1, 121º e 363º, todos do Código de Processo Penal, conjugados com o artigo 9º do Decreto-Lei n.º 329/95, de 15 de fevereiro, na interpretação segundo a qual a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova se mostra sanada, o que obsta ao seu conhecimento, se não for arguida no prazo de 10 dias após a publicação da sentença ou do acórdão, descontando-se porém, o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processualmente interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido, e não em todo o prazo de recurso para impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso.
2.- O recurso interposto pelo ora Reclamante para o Tribunal Constitucional não foi conhecido com o fundamento de que “Existindo, pois, um duplo fundamento para a decisão de não conhecimento da arguição de nulidade efetuada pelo arguido e só tendo sido invocada perante o Tribunal Constitucional o critério normativo em que se apoiou um desses fundamentos, a apreciação deste recurso revela-se inútil, uma vez que, mesmo que se concluísse pela inconstitucionalidade da norma impugnada sempre subsistiria o segundo fundamento para manter a decisão recorrida”.
3.- Entende, contudo, o Recorrente, ora Reclamante, que o segundo fundamento - arguição da nulidade perante o tribunal de 1ª instância - está contido na interpretação sindicada quando se afirma “..., e não em todo o prazo de recurso para a impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso” (sublinhado nosso)
4.- Na verdade, se a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova não poder ser arguida no âmbito do próprio recurso, terá necessariamente de ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, que dela conhecerá.
5.- Assim, se a interpretação das referidas normas, nos termos em que foi feita, for declarada inconstitucional, o segundo fundamento referido também teria de sucumbir, uma vez que, permitindo-se arguir tal nulidade no prazo e no âmbito do próprio recurso, tal implicará necessariamente que a mesma seja invocada e conhecida pelo Tribunal de 2.ª instância, e não perante o Tribunal de 1.ª instância.
6.- Caso seja julgada inconstitucional a interpretação das referidas normas no sentido de que a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova se mostra sanada, o que obsta ao seu conhecimento, se não for arguida no prazo de 10 dias após a publicação da sentença ou do acórdão, descontando-se porém, o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processualmente interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido, e não em todo o prazo de recurso para impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso, tal decisão terá implicação direta quanto ao Tribunal competente para conhecer em primeira mão da questão da nulidade arguida.
7.- Só será competente o Tribunal de 1.ª instância para apreciar, em primeira mão, da questão da nulidade da gravação da prova, se for considerada constitucional a interpretação normativa utilizada pelo Acórdão recorrido.
8.- Ao invés, se for declarado inconstitucional o critério normativo utilizado pelo Acórdão recorrido, sempre será esse Tribunal, ou seja, o Tribunal de 2.ª instância ou de recurso, o competente para declarar tal nulidade.
9.- Parece, pois, ao Recorrente, ora Reclamante, que a apreciação da constitucionalidade suscitada não é inútil, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade da interpretação normativa sindicada terá forçosamente de repercutir-se, de forma efetiva, na decisão proferida pelo Tribunal Recorrido acerca do caso concreto.
10.- Pelo exposto, não se podendo considerar inútil a apreciação do recurso e encontrando-se preenchidos os pressupostos definidos pelo Art.º 70, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, deve ser conhecido do mérito do recurso interposto para esse Venerando Tribunal Constitucional.
Termos em que, com os mais que resultarão do douto suprimento de Vossas Excelências, deve a Decisão Sumária reclamada ser revogada e, em consequência, substituída por outra que conheça do mérito do recurso interposto pelo ora Reclamante, com o que será feita Justiça.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
Na decisão sumária reclamada entendeu-se não conhecer do recurso porque o acórdão recorrido utilizava como seu fundamento dois critérios normativos distintos e o Recorrente apenas impugnava a constitucionalidade de um deles, pelo que o recurso carecia de utilidade, uma vez que, mesmo que se concluísse pela inconstitucionalidade do critério impugnado, sempre subsistiria o segundo critério como fundamento da decisão recorrida.
O Recorrente reclama, alegando que o segundo fundamento também seria atingido pelo peticionado julgamento de inconstitucionalidade do critério normativo por si indicado, pelo que o julgamento do recurso pode conduzir a uma alteração da decisão recorrida.
O Recorrente requereu a fiscalização de constitucionalidade dos artigos 105.º, 120.º, n.º 1, 121.º e 363.º, todos do Código de Processo Penal, conjugados com o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 329/95, de 15 de fevereiro, na interpretação segundo a qual, a nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova se mostra sanada, o que obsta ao seu conhecimento, se não for arguida no prazo de 10 dias após a publicação da sentença ou do acórdão, descontando-se, porém, o tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido, e não em todo o prazo do recurso para impugnação da matéria de facto e no âmbito do próprio recurso.
O critério normativo que a decisão sumária reclamada considerou que não tinha sido impugnado foi o de que a nulidade deveria ter sido invocada perante o tribunal de 1.ª instância que havia procedido à gravação da prova e só da decisão desse tribunal sobre tal arguição é que poderia ser deduzido recurso para o Tribunal da Relação, pelo que este não podia apreciar em primeira mão essa questão.
Como facilmente se verifica, a norma interpretativa de que o Tribunal da Relação não era o competente para apreciar a arguição de nulidade não consta do critério cuja fiscalização de constitucionalidade foi peticionada e o facto deste conter a referência de que a arguição de nulidade não pode ser efetuada no âmbito do recurso para o Tribunal da Relação não é suficiente para se concluir que uma eventual declaração de inconstitucionalidade determinaria também a não aplicação do critério normativo que determina a incompetência daquele Tribunal para apreciar em primeira mão a arguição da nulidade.
Na verdade, a possibilidade da nulidade poder ser arguida no âmbito do recurso não impõe que necessariamente seja o Tribunal da Relação a apreciar em primeira mão a arguição de tal nulidade, nada obstando a que continue aplicável o critério de que essa competência cabe, numa primeira intervenção, ao tribunal da 1.ª Instância.
Assim sendo, o facto de não ter sido impugnada a constitucionalidade deste segundo critério normativo determina a inutilidade do recurso, uma vez que a decisão recorrida sempre subsistirá nele apoiada, mesmo que o critério impugnado viesse a ser declarado inconstitucional.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada.
*
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de março de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.