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Proc. nº 302/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – I... intentou, em 15.12.1994, acção declarativa de despejo para habitação própria contra F... e mulher, M..., no Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
Os réus contestaram a acção e, em 3.07.1997, vieram juntar aos autos articulado superveniente referindo que o R. marido completara 65 anos de idade na pendência da acção.
Por ter sido apresentado fora do prazo estabelecido no artigo 506º nº 3 do CPC – o R marido completara 65 anos de idade , em 11/6/97 - o referido articulado superveniente não foi admitido por despacho de 13.11.1997, decisão de que os RR. agravaram para o Tribunal da Relação de Évora.
Por sentença de 25.05.1999, o Tribunal Judicial da Comarca de Faro julgou procedente a acção, declarou o contrato de arrendamento denunciado desde
18.11.1995 e, em consequência, decretou o despejo do arrendado condicionado ao pagamento pela A aos RR de uma indemnização correspondente a 2 anos e meio de renda, no montante total de 258 000$00.
Inconformados os RR apelaram para o Tribunal da Relação de Évora, tendo apresentado alegações que concluíram do seguinte modo, no que interessa ao juízo de constitucionalidade:
“(...) L. As partes estão, à partida, em pé de igualdade, cabe ao Estado ordenar a administração da Justiça para que os processos sejam decididos em prazo razoável, e cabe ao juiz tomar as providências necessárias para, com respeito pelos direitos das partes, evitar e sancionar processualmente as manobras dilatórias. M. A referência dos efeitos da denúncia a momento diferente e anterior ao do trânsito em julgado da sentença é susceptível de conduzir a situações em que dois arrendatários, colocados em situações materialmente idênticas à data em que lhes é exigível o despejo, podem ter tratamento diferentes quanto à cessação do arrendamento, apenas porque num deles ocorreu uma causa de impedimento do exercício da denúncia antes de decorridos seis meses sobre a citação e, no outro, a mesma causa de impedimento só ocorreu após o decurso desse prazo. N. Em tais circunstâncias, e interpretando o momento de produção dos efeitos da denúncia como a partir da data da citação, o art. 107 RAU é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13 CRP. O O Governo, ao aumentar de 20 para 30 anos o prazo de vigência do contrato de arrendamento, para efeitos de impedir o exercício do direito à denúncia para habitação do senhorio não preservou normas nucleares que tutelam socialmente a posição do arrendatário e legislou em contradição com a autorização legislativa, pelo que o art. 107 RAU é organicamente inconstitucional, por violação do art.
168.1.h) e 2. CRP (hoje art. 165). P. A sentença ora sob recurso interpretou e aplicou o art. 107 RAU por forma que viola manifestamente, nos termos e pelas razões acima expostas, o disposto nos
13 da Constituição da República, e fez incorrecta aplicação dos arts. 69.1.a),
107.1, a) e 109 do Regime do Arrendamento Urbano. Q. Por outro lado, deveria ter a sentença considerado que o momento da produção dos efeitos da denúncia é o termo da renovação do contrato que se seguir ao trânsito em julgado da sentença que decreta a cessação do arrendamento e, fazendo-o, não aplicar o disposto no art. 107.1.a) RAU, mas, julgando-os organicamente inconstitucionais, aplicar, por repristinação, o artº. 2.1.b) da Lei nº. 55/79 de 15 de Setembro, na redacção da Lei nº. 46/85 de 20 de Setembro, e julgada procedente a causa correspondente de impedimento do exercício do direito de denúncia pelo senhorio, por completamento do período de vigência contratual de 20 anos antes do momento em que a denúncia deve produzir efeitos.”
Por acórdão de 28.06.2000, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao agravo porquanto “o momento da apresentação do articulado superveniente está indexado tanto à ocorrência dos factos novos, como ao conhecimento. E se quanto
à ocorrência poderia admitir-se hipotético motivo de discussão, advindo a tese dos recorrentes, e a partir da natureza do acontecimento emergente, já assim não pode ser no que diz respeito ao conhecimento, esse naturalmente instantâneo” e
“quanto à permanência por 20 anos dos inquilinos no arrendado, concordamos com a solução dada no despacho recorrido que, como se verá, teve reflexo na sentença final, de não haver necessidade de ser trazida a articulado superveniente, por ser facto já alegado”.
Também no que respeita à apelação, o recurso não teve provimento.
Vieram então os RR. requerer a reforma do acórdão, quer quanto ao agravo, quer quanto à apelação, por requerimento de 20.09.2000, pedidos que não obtiveram provimento, destacando-se quanto à apelação o seguinte:
“(...) o direito constitucional à habitação representa apenas uma directiva ao executivo, com vista a ser concretizada nas condições históricas, incluindo aquelas que resultam do sufrágio eleitoral, em que se estabelece a concreta formação política conjuntural. Nestes termos, o juízo interpretativo acerca dos citados arts. do RAU a que se procedeu no acórdão, só pode relevar no interior deste círculo; por conseguinte, os parâmetros de conformidade à Constituição, têm de ser buscados na intenção do legislador comum. Foi, em boa verdade, nesta direcção que foi usado o argumento sentencial, pondo em evidencia afinal que no sopesar dos interesses legítimos de senhorios e inquilinos, na lei ordinária foi escolhido não o momento do despejo, mas o momento do termo do contrato (para que se requer a denúncia), com a finalidade de ser termo de referência da proibição fundada no tempo de permanência no locado, o que vale também para o tempo em que o despejando perfaz 65 anos ou mais de idade. Também aqui falece razão à pretendida reforma da sentença”.
Por requerimento de 20.01.2001 vieram os RR. interpor recurso para o Tribunal Constitucional para:
“a) declaração da inconstitucionalidade material das normas contidas nos arts.
69.1 e 107.1 do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº.
321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação de que o momento da produção de efeitos da denúncia do contrato de arrendamento urbano para habitação é outro que não seja o da cessação do contrato ou da prorrogação que ocorrer após o trânsito em julgado da sentença constitutiva que autoriza a denúncia pelo senhorio, por violação dos art.ºs 2º. (República Portuguesa como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais), 13º (princípio da igualdade), 20.1
(garantia da tutela jurisdicional efectiva, conjugado com o art. 8 da Declaração Universal dos Direitos do Homem), 65 (direito a habitação) e 72 (protecção da terceira idade), todos da Constituição da República Portuguesa; b) declaração da inconstitucionalidade material da norma contida no art. 506.3 do Código de Processo Civil, na versão do Decreto-Lei nº. 44 129, de 28 de Dezembro de 1961, quando aplicada à sobreveniência de factos pessoais de natureza permanente, quando estejam em causa situações jurídicas constitucionalmente protegidas como o direito à habitação ou a protecção da terceira idade, como seja o completamente da idade de sessenta e cinco anos no decurso de uma acção de denúncia de arrendamento para habitação, no sentido de que o direito de invocar o facto superveniente preclude passados dez dias a contar do início ou do conhecimento do facto, por violação do art. 2º (República Portuguesa como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais), 13º (princípio da igualdade), 20.1 (garantia da tutela jurisdicional efectiva, com protecção por via judicial dos direitos constitucionalmente protegidos e de todas as situações jurídicas legitimamente protegidas e direito a um processo justo e equitativo, com proibição de prazos de caducidade exíguos, proibição da indefensão, nomeadamente sob a forma de restrição desproporcionada à invocação em juízo de meios de defesa legais), 65.1 (direito a habitação) e 72 (protecção da terceira idade) todos da Constituição da República Portuguesa.”
Notificados da admissão do recurso, vieram os recorrentes apresentar alegações que concluíram assim:
“A - A interpretação dos artºs. 69.1 e 107.1 RAU, quanto ao momento em que a sentença que decreta a cessação do contrato por denúncia deve produzir efeitos referida ao termo do contrato ou da prorrogação do mesmo posterior à propositura da acção ou à citação dos RR não corresponde ao imperativo constitucional de interpretar a lei ordinária, dentro das técnicas comuns de interpretação das normas, de acordo com os princípios constitucionais. B. Tal interpretação conflitua com os princípios de protecção do direito à habitação consagrado no art. 65.1, da protecção aos cidadãos portadores de deficiência, definido no art. 71.1 e 2., e o princípio da protecção à terceira idade do art. 72 da Constituição, os quais constituem não apenas normas programáticas mas critérios e limites da actividade legislativa ordinária e critério de interpretação da lei. C. O respeito pelos critérios e limites das normas constitucionais citadas impõe que o momento a considerar quanto à produção de efeitos da sentença que decreta a cessação do arrendamento por denúncia seja aquele em que cessam efectivamente os direitos e deveres contratuais entre senhorio e inquilino e em que é exigível o despejo, ou seja, o prazo de três meses após o trânsito em julgado da sentença. D. A interpretação que atenda a esse momento é a única compatível com os princípios constitucionais. E. O art. 506.3 do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei nº.
44129 de 28 de Dezembro de 1961 que limita a quinze dias o prazo de invocação em juízo de factos novos não pode ser aplicado no sentido de tal prazo fazer precludir o direito de invocar em juízo que a parte completou sessenta e cinco ou mais anos de idade quando tal facto implique a impossibilidade de a parte se opôr à denúncia do contrato de arrendamento para habitação. F. A interpretação desse preceito legal no sentido de fazer precludir o direito a manter válido o contrato de arrendamento para habitação, limitando a quinze dias após o completamento dos sessenta e cinco anos o direito a impedir o despejo é uma limitação processual desproporcionada à importância do direito que se quer fazer valer e representa verdadeira denegação de justiça. G. Nem o princípio da celeridade processual nem nenhum outro podem postergar o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o seu corolário de que as normas processuais não podem constituir obstáculos desproporcionais ao exercício efectivo de direitos. H. A norma assim interpretada é manifestamente inconstitucional por violação do art. 20.1 da Constituição da República”.
A recorrida, notificada das alegações dos recorrentes, nada veio dizer.
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Importa delimitar o objecto do presente recurso.
São duas as questões de constitucionalidade suscitadas pelos recorrentes.
A primeira delas reporta-se ao momento de produção dos efeitos da denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio, entendendo os recorrentes que as normas conjugadas dos artigos 69º, nº. 1, alínea a) e 107º, nº. 1 do RAU, interpretadas no sentido de que aquele momento é outro que não o da cessação do contrato ou da prorrogação ocorridas após o trânsito em julgado da sentença constitutiva que autoriza a denúncia pelo senhorio, violam os princípios constitucionais de protecção do direito à habitação (artigo 65º nº 1 da CRP) aos cidadãos portadores de deficiência (artigo 71º nºs 1 e 2 da CRP) e à terceira idade (artigo 72º da CRP).
Quanto à segunda questão, entendem os recorrentes que a norma do artigo 506º, nº. 3 do Código de Processo Civil, interpretada no sentido da não admissão de articulado superveniente, entregue fora do prazo de 10 dias posteriores à data em que os factos ocorreram, quando estejam em causa factos pessoais de natureza permanente – como seja ter o arrendatário completado 65 anos de idade no decurso da acção de denúncia para habitação do senhorio – viola o artigo 20º nº 1 da CRP.
Sendo certo que ambas as questões suscitadas correspondem a interpretações feitas no acórdão recorrido, sempre ficará prejudicado o conhecimento da segunda se se concluir que pela improcedência da primeira.
Na verdade, situando a sentença de 1ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, o momento da produção de efeitos da denúncia do arrendamento em
18/11/95, torna-se irrelevante a questão referente à apresentação do articulado superveniente, uma vez que o que nele se pretendeu fazer valer foi o facto de o R. marido ter completado 65 anos de idade em 11/6/97 .
Isto mesmo, aliás, se depreende da referida sentença quando nela se diz que “se se admitisse e valorasse tal documento, não lograria proceder tal excepção, na medida em que o R, completou 65 anos de idade muito após o prazo para o qual foi pedida a denúncia do contrato de arrendamento, i.e., a data em que a acção, caso proceda, produz os seus efeitos.”
Os recorrentes revelam, aliás, ter plena consciência da inutilidade do conhecimento desta questão se não for sufragada a tese por eles defendida sobre a constitucionalidade das normas dos artigos 69º nº 1 alínea a) e 107º nº 1 d RAU (cfr. último § de fls. 8 das suas alegações, a fls. 460 dos autos).
Apreciemos, então, a primeira questão.
3 – Dispõem as normas em apreço:
“Artigo 69º
(Casos de denúncia pelo senhorio)
1 - O senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação, nos casos seguintes: a) Quando necessitar do prédio para sua habitação (...)
Artigo 107º Limitações
1 – O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº. 1 do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontra na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho;”
No ordenamento jurídico português, a regra da renovação automática e obrigatória do contrato de arrendamento para habitação foi introduzida pelo Decreto nº. 5
411, de 17 de Abril de 1919, regra que veio conferir estabilidade à posição do locatário, permitindo-lhe, findo o prazo contratual ou o supletivo legal, impor ao senhorio a renovação do contrato, unilateral e discricionariamente (no Código Civil esta regra estava contida no artigo 1095º e, hoje, nos artigos 68º e 69º do RAU, apesar do disposto nos artigos 98º a 100º).
Não pode, assim, o senhorio denunciar o contrato de arrendamento ad nutum.
No entanto, a denúncia é possível nos casos de o senhorio necessitar “do prédio para sua habitação(...) ou para nela construir a sua residência” (cfr.69º nº 1, alínea a) do RAU)
A denúncia, com fundamento na necessidade da casa para habitação do senhorio, na falta de acordo, tem de ser feita em acção judicial (acção especial de despejo prevista no artigo 964º do Código de Processo Civil que foi revogado pelo artigo
3º, nº.1, alínea b) do Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15 de Outubro, accção que hoje se prevê no artigo 70º do RAU), com a antecedência mínima de seis meses em relação ao fim do prazo do contrato ou da sua renovação, e não obriga ao despejo enquanto não decorrerem três meses sobre a decisão definitiva (artigo 70º do RAU).
Provados pelo senhorio os requisitos exigíveis para a denúncia pode ainda o locatário impedir o exercício do direito de denúncia, obstando ao despejo, se provar que: a) ele, arrendatário, tem 65 ou mais anos de idade ou, independentemente da idade, se encontra na situação de reforma por invalidez absoluta ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofre de incapacidade total para o trabalho; b) se mantém como arrendatário no local arrendado há mais de 30 anos ; c) a necessidade de habitação invocada pelo senhorio ou os requisitos previstos no artigo 71º do RAU foram intencionalmente criados por ele.
Feita esta breve exposição sobre o regime jurídico da denúncia do contrato de arrendamento, onde se seguiu de perto o que se escreveu nos Acórdãos nºs 151/92 e 174/92 in Diário da República, II Série de 28/7/92 e 18/9/92, respectivamente, vejamos, agora se se verifica a alegada inconstitucionalidade das normas dos artigos 69º nº 1 alínea a) e 107º nº 1 alínea a) do RAU.
No caso dos autos, o tribunal recorrido interpretou as normas dos artigos 69º, nº. 1, alínea a) e 107º, nº. 1, alínea a) do RAU no sentido de que o momento da produção de efeitos da denúncia do arrendamento para habitação do senhorio é o do prazo seguinte da renovação do contrato.
De facto, disse-se na sentença de 1ª instância:
“Contudo, o Tribunal considerará, oficiosamente, em situações como a ora em análise, em que a denúncia não se faça com a antecedência legalmente estabelecida, o prazo seguinte da renovação – 18 de Novembro de 1995 -, em cumprimento do nº. 1 do art. 69º do RAU (vide neste sentido Acs. RC, de
17.04.90; RP, de 10.10.89; de 11.02.93, de 27.10.97; RL, de 09.02.92; RE, de
18.02.81; STJ, de 15.10.80; CJ, t. II, 66; CJ, t. IV, 213; BMJ, 424, 733; BMJ,
470, 678; CJ, t. I, 175; CJ, t. I, 117; BMJ, 3000, 376), pelo que a excepção peremptória invocada também não poderá, ainda assim, ser atendida, uma vez que o R. marido completou os 65 anos de idade no ano de 1997”.
O acórdão da Relação de Évora, que confirmou esta sentença, pronunciou-se igualmente sobre a questão nos seguintes termos:
”Ora, sendo inquestionável que a denúncia é judicial, e por isso só opera por sentença, segundo o princípio do pedido, corresponda este aos ita legais, nada obsta, antes se exige, que seja decretada para a data constante na petição. É que o despejo, muito embora consequência da decisão, pode não coincidir com o tempo da cessação dos efeitos do arrendamento, regulando até a lei, mas no caso de resolução do contrato, as consequências de uma permanência intercalar dos inquilinos no arrendado, obrigando a que continuem a satisfazer a renda, não obstante se ter aquela como operada, de antes. Esta consequência é directamente transponível para o caso da denúncia do arrendamento, que vale também apenas a partir de determinada data. Se assim é, não procedem as objecções dos recorrentes.”
Não é a constitucionalidade da norma que permite a denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio que vem questionada pelos recorrentes, nem igualmente a limitação desse direito prevista no artigo 107º, nº. 1 alínea a) do RAU..
O que vem questionado é a referida interpretação - fixação do momento de produção dos efeitos da denúncia do arrendamento na data da renovação do contrato, imediatamente a seguir à propositura da acção e após a citação dos réus - defendendo os recorrentes que todas as interpretações que não fixem esse momento na data da renovação ocorrida após o trânsito em julgado da sentença constitutiva da denúncia do contrato são inconstitucionais.
O Tribunal Constitucional foi já, por diversas vezes, chamado a pronunciar-se sobre a denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio. Na sua jurisprudência, tem vindo a ser realçada a “função social” do direito de propriedade, de particular relevância em sede de arrendamento, nomeadamente nas situações em que se verifica um “conflito” entre o interesse do inquilino na manutenção do arrendamento e o do senhorio em denunciar esse arrendamento para sua habitação no imóvel arrendado.
Como se disse no acórdão deste Tribunal nº. 309/2001, transcrevendo o acórdão nº. 311/93:
“...O direito à habitação – ou seja, o direito a ter uma morada condigna – é, assim, um direito a prestações.
Pois bem: quer esse direito deva conceber-se como um verdadeiro direito subjectivo, quer, antes como um direito a uma “prestação não vinculada” que, ao cabo e ao resto, se deva reconduzir a uma mera pretensão jurídica –
(neste último sentido, cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1985, ps. 205 2 209; diferentemente, cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, p. 106, e J.J. GOMES CANOTILHO, Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor A Ferrer Correia, III, Coimbra, 1991, p. 461 e sg) -, uma coisa é certa. E é esta: o seu grau de realização depende das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor.
O direito em causa é, assim, um direito “sob reserva do possível” – um direito que corresponde a um fim político de realização gradual (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, loc. cit. p. 201).
A concretização do direito à habitação – o facultar a cada pessoa uma morada condigna – é, pois, uma tarefa cuja realização – gradual, como se disse – a Constituição comete ao Estado.
Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana
(ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir....”
Se com esta jurisprudência se fundamenta a não inconstitucionalidade das normas que condicionam o direito de denúncia do contrato de arrendamento por parte do proprietário, igualmente tem o Tribunal Constitucional julgado não desconformes à Constituição as normas que conferem aquele direito quando se verificam os requisitos legalmente exigíveis, com particular relevância para a prova da necessidade do imóvel arrendado para habitação própria – foi o que se decidiu no citado Acórdão nº 151/92, onde se escreveu:
“Se, porém, o senhorio tivesse necessidade de reaver o imóvel arrendado para nele estabelecer a sua habitação ou construir a sua residência, designadamente porque ia casar e pretendia, por isso mesmo, abandonar a casa dos pais onde habitara até então, a lei permitia-lhe, como se viu, que denunciasse o contrato de arrendamento.
A sua carência de habitação em determinada localidade, a sua necessidade (real, efectiva) em matéria habitacional, sobrepunha-se, então, à necessidade paralela ou concorrente do inquilino (fala-se em necessidade concorrente, porque o direito de denúncia pode, em tal hipótese ser feito valer, não apenas contra o arrendamento para habitação, mas também contra o arrendamento para comércio ou indústria ou para o exercício de profissões liberais). (Cf., neste sentido, ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º, p. 90).
Repete-se, então, a pergunta já antes formulada: as normas que, neste caso, permitiam a denúncia do contrato de arrendamento seriam constitucionalmente legítimas?
Desde já se responde afirmativamente.
Esta excepção à proibição de requerer a cessação do contrato de arrendamento para o termo do respectivo do prazo (ou da sua renovação) foi reintroduzida no nosso direito pela Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 (cf. artigo 69º), assim se ressuscitando um velho preceito das Ordenações (cf. ANTUNES VARELA, Revista cit., p. 91) Daí transitou para o Código Civil (cf. artigos 1083º e sg.).
Em 1975, porém, pelo Decreto-Lei nº
155/75, de 25 de Março, suspenderam-se todas as acções e execuções de despejo tendo por base as denúncias contratuais requeridas ao abrigo do artigo 1096º a
1098º do Código Civil.
No entanto, em 1977, o Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, revogou aquele Decreto-Lei nº 155/75, depois de o Decreto-Lei nº 583/76, de 22 de Junho, ter, entretanto vindo permitir a denúncia do contrato a favor de retornados, emigrantes e aposentados.
Significa isto que - salvo no pequeno interregno, que vai do Decreto-Lei nº 155/75, de 25 de Março, até ao Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, em que a necessidade de habitação do proprietário ou usufrutuário do imóvel foi sacrificada à necessidade de habitação do locatário - sempre a lei deu primazia ao direito de habitação do senhorio sobre o direito de habitação (ou similar) do inquilino.
É isto coisa que bem se compreende, pois é inteiramente razoável que o legislador - colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, fundado num direito real próprio (um direito de propriedade, de compropriedade ou de usufruto); e, por outro lado, o direito à habitação do inquilino (ou um seu direito similar), fundado num contrato de arrendamento, cujo objecto é, justamente, o imóvel que pertence ao senhorio -; e não podendo dar satisfação a ambos os direitos, inteiramente razoável é - dizia-se - que sacrifique o direito do inquilino ao direito à habitação do senhorio.
É inteiramente razoável, porque o senhorio até pretende exercer o seu direito à habitação num imóvel de que ele próprio é proprietário, comproprietário ou usufrutuário. Tem, assim, 'melhor direito' do que o inquilino, que pretende continuar a satisfazer as suas necessidades de habitação nesse mesmo imóvel do senhorio.
12. O sacrifício que o legislador impõe ao direito do locatário deixa, é certo, inteiramente por satisfazer as necessidades deste em matéria de habitação. Tal sacrifício é, no entanto, em absoluto, necessário para que o direito do senhorio a ter uma habitação própria encontre satisfação.
Com efeito, o direito à habitação do senhorio e o do inquilino, pretendendo concretizar-se no mesmo imóvel, acabam por excluir-se um ao outro: cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro.
A solução legal tem, assim, suficiente credencial constitucional, pelo que as normas aqui sub iudicio não violam o artigo 65º da Constituição, apesar de o direito de denúncia poder ser exercido sem que o Estado ou as autarquias ponham à disposição do inquilino despejado uma casa equivalente.”
Não obstante a legitimidade constitucional desta relativa prevalência do direito do senhorio, de acordo com a citada jurisprudência, que aqui se reitera, certo é que, na concorrência dos direitos de habitação de senhorio e arrendatário, ponderou, ainda, o legislador a verificação de circunstâncias susceptíveis de impedir a denúncia mesmo quando preenchidos os requisitos para o efeito. Fê-lo, tendo em conta, na situação do inquilino, a idade, a reforma por invalidez absoluta e a incapacidade total para o trabalho sem benefício da pensão de invalidez.
Todos estes factores robustecem ou reforçam o direito de habitação do inquilino em termos tais que o fazem prevalecer face a idêntico direito do senhorio e, segundo a tese que fez vencimento no Acórdão nº 420/2000 in Diário da República, II Série, de 22/11/2000, quando o factor impeditivo é a idade (65 anos ou mais), mesmo que o senhorio tenha idade igual ou superior.
Trata-se de uma opção legislativa com um fundamento material ou racional, podendo discutir-se se, para além de traduzir a composição razoável de um conflito de direitos, ela é ditada – ou até determinada - pela tutela constitucional de outros direitos, como seja o direito das pessoas idosas a condições de habitação condignas (artigo 72º nº 1 da CRP) ou por obrigações constitucionalmente impostas ao Estado, como é o caso da protecção aos cidadãos portadores de deficiência (artigo 71º nº 2 da CRP).
A verdade é que, mesmo a admitir-se a norma do artigo 107º nº 1 alínea a) do RAU como decorrência de imposição constitucional, sempre o legislador teria gozado de uma ampla margem de liberdade de conformação dos termos concretos em que aquela deveria operar e, desde logo, na determinação do que fossem “pessoas idosas”.
Por outras palavras, em termos de constitucionalidade, sempre seria irrelevante que a idade do inquilino, como facto impeditivo do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio, tivesse sido fixada em 63,
64, 65, 66 ou 67 anos.
Mas, se assim é, não se pode afirmar, no mesmo plano de constitucionalidade – independentemente, pois, do acerto interpretativo das normas em causa – qualquer vinculação a uma interpretação normativa que fixe, como momento a que se devam reportar os efeitos da denúncia, o da cessação do contrato ou da prorrogação que ocorrer após o trânsito em julgado da sentença, como os recorrentes pretendem, sendo igualmente legítima a interpretação feita no acórdão recorrido, que, aliás se traduz num modo adequado e proporcionado de resolução do conflito entre o direito do inquilino em manter o arrendamento e o do senhorio em denunciar o contrato para sua habitação.
De resto, a interpretação em causa tem ainda a seu favor o facto de obstar a que situações idênticas sejam tratadas de modo diferente, como aconteceria se o momento determinante se fixasse posteriormente à sentença, dependendo a solução da maior ou menor celeridade da marcha do processo e, assim, de dilações eventualmente provocadas pelos arrendatários, réus na acção.
Em suma, pois, não se vê, pelas razões apontadas, que as normas em causa, com a interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido, incorram na alegada inconstitucionalidade.
Com esta solução e como acima se deixou dito torna-se inútil a apreciação da segunda questão de constitucionalidade.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa,5 de Dezembro de 2001 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa