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Proc. nº 333/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que figura como recorrente S... e como recorrido o Ministério Público, o Tribunal da Relação de
Évora proferiu a seguinte decisão: Quanto à matéria de direito o recurso é de rejeitar por não indicação das normas jurídicas violadas, nem do sentido em que, no entender da recorrente, o tribunal recorrido interpretou ou aplicou cada norma e do sentido em que ela devia ter sido interpretada ou aplicada, conforme se determina no art. 412° nº 2 a) e b) do CPP.
(...) Determinamos a rejeição imediata do recurso por entendemos não competir ao Tribunal formular qualquer convite à correcção. de quaisquer peças processuais
(in casu, motivação de recurso) formal ou substancialmente deficientes. Em primeiro lugar não pode o Tribunal substituir-se à actividade dos mandatários das partes como não tem que ser permissivo ou que suprir eventuais insuficiências dos profissionais do foro. A falta de rigor nas motivações e nas fundamentações deve sempre determinar a rejeição dos recursos e, só assim, em cumprimento da filosofia e dos normativos legais, os Tribunais Superiores desempenharão as suas funções legislativamente definidas. Aos juízes compete julgar em prazo razoável e com qualidade. Aos mandatários das partes compete preparar as respectivas peças processuais também com a necessária qualidade técnica não se podendo uns substituir aos outros, só assim tendo sentido o princípio do patrocínio obrigatório. O instituto da rejeição consagrado no CPP de 1987, inexistente no CPP de 1929, e consagrado na lei adjectiva do Tribunal Constitucional, pretendeu não só afastar dos Tribunais Superiores recursos meramente dilatórios, como criar uma exigência de acrescida qualidade a todos quantos pleiteiam junto daqueles Tribunais. Definiu a lei, exaustivamente, os casos de rejeição e exigiu que a mesma fosse decidida por unanimidade de forma a poderem ser evitados abusos na aplicação do instituto, postergando-se, por esta via o preceito constitucional assegurador de todas as garantias .de defesa, incluindo o recurso [art. 32° nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. Não criou a lei processual penal, mesmo após a revisão de 1998, qualquer preceito que permita ao juiz determinar a correcção das deficiências ou insuficiências das partes e seus mandatários à semelhança do disposto na lei processual civil revista em 1995, cujo art. 690º do Código do Processo Civil
(CPC) prevê a possibilidade de serem os recorrentes convidados a corrigir as conclusões nos casos determinados no nº 4 do citado artigo. Se o legislador ao rever o CPP em 1998 não introduziu norma similar à existente no CPC desde 1995, terá aquele entendido que tal dispositivo não teria de ser aplicado ao processo penal, pelo que não há que suprir tal omissão recorrendo-se ao art. 4° do CPP. Aliás, enquanto no processo civil a deficiência das conclusões podem implicar o não conhecimento do recurso na parte afectada, o que será decidido em conferência, por maioria, no processo penal as deficiências das conclusões implicam a rejeição do recurso a decidir em conferência, por unanimidade. Nem se diga que o não convite às partes recorrentes para correcção das insuficiências ou deficiências das conclusões da motivação viola o princípio constitucional que assegura, em processo penal, todas as garantias de defesa, incluindo o recurso - art. 32° nº 1 da CRP - . Na verdade as garantias de defesa, no que ao caso vertente toca, plasmam-se, em primeiro lugar, na possibilidade de interposição de recurso de acordo com a forma prescrita pela lei, ou seja, pelo princípio garantista de carácter geral de jurisdicionalidade em segundo grau, e, em segundo lugar, na certeza que tal recurso será apreciado por um Tribunal independente e imparcial em prazo razoável, segundo o art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), direito interno português por força do disposto no art. 8° da CRP.
Às partes deve ser garantido o direito à interposição de recurso, cabendo-lhes, para a concretização de tal direito, determinarem-se de acordo com os trâmites formais processualmente exigidos. Às partes compete apresentar ao Tribunal, pela forma legalmente estabelecida, o objecto do recurso. Ao Tribunal compete julgar, dirimir os conflitos de interesses e não substituir-se a estas e aos seus mandatários (ainda que por intermédio de convite à correcção de peças processuais), por forma a que possam vir a ter (ainda que eventualmente) êxito na solução das suas pretensões. Se a primeira exigência constitucional é que a todos sejam asseguradas todas as garantias de defesa, a segunda não menos importante, é que todas as violações de direitos sejam justiciáveis, o mesmo é dizer accionáveis em juízo, perante um Tribunal imparcial e independente. Não está aqui em causa a independência do Tribunal (tendo por certo que os conceitos de independência, imparcialidade e isenção não são sinónimos) a qual mais não é que uma garantia de imparcialidade do juiz (como esta é uma garantia da sua isenção), e que se traduz na sua exterioridade em relação ao sistema político e, em geral, a todo e qualquer sistema de poderes. O que está em questão é a sua imparcialidade a qual consiste na alienidade do juiz em relação aos interesses das partes de uma causa. A imparcialidade (a que se refere o art. 6° da CEDH) pressupõe a configuração do processo como uma relação triádica na qual o juiz se encontra super partes, não a elas sujeito. A separação do juiz da parte acusadora, agora tida como primeira garantia orgânica, supõe a configuração do processo como uma relação triangular entre três sujeitos, dois dos quais estão como partes na causa e o terceiro super partes (como dizem os ingleses o que não tem par, que não tem igual, que está fora das partes sem partido formado): o acusador, o defensor e o juiz. Esta estrutura constitui o primeiro sinal de identidade do processo acusatório. E é indispensável para que se garanta a alienidade do juiz face aos interesses contrapostos: 'as partes que estão em controvérsia acerca de um direito' escreveu Hobbes, 'devem submeter-se ao arbítrio de uma terceira pessoa'. Esta imparcialidade do juiz em face dos fins prosseguidos pelas partes, deve ser tanto pessoal como institucional. É necessário, em primeiro lugar, que o juiz não tenha nenhum interesse privado ou pessoal no resultado da causa. O juiz, não deve gozar do consenso da maioria mas, deve contar com a confiança dos sujeitos concretos que julga por forma a que estes não o tenham, nem sequer pensem em tê-lo, como inimigo ou de qualquer modo como parcial. Em segundo lugar , para garantir a imparcialidade do juiz, é preciso que este não tenha na causa nem sequer um interesse público ou institucional. As partes no processo devem pleitear em posição de igualdade para que a imparcialidade do juiz não se veja, nem sequer psicologicamente, comprometida por desequilíbrios de poder e não se criem ambíguas solidariedades, interferências ou confusões de funções (neste sentido Luigi Ferrajoli in Diritto e ragione, Teoria del garantismo penale). O convite dirigido às partes, pelo juiz, para correcção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa. Tal convite viola o princípio da imparcialidade do Tribunal e como tal é, em nosso entender , inconstitucional. E viola não só o princípio da imparcialidade em si, como a própria aparência de imparcialidade: tendo em conta que o Tribunal não deve apenas ser imparcial mas parecer imparcial, conforme tem sido jurisprudência prevalente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A interposição de recursos obedece a regras técnicas, determinadas na lei processual, que as partes, pelos seus mandatários, devem respeitar, se o não fazem sibi imputet, contendo a lei formas de responsabilização respectivas. O que não é exigível é que o Tribunal criando ambíguas solidariedades funcionais, interfira no trabalho forense de terceiros, violando o princípio da imparcialidade. Por tudo o exposto entendemos não ser legal ou constitucionalmente exigível o convite à correcção de quaisquer peças processuais nelas se incluindo as motivações de recurso.
S... interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo
70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, enquanto 'atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado'.
A recorrente indicou, entre outros, o Acórdão nº 288/00, de 17 de Maio.
A Relatora proferiu Decisão Sumária no sentido da inconstitucionalidade da norma em apreciação, com os fundamentos do Acórdão nº
288/2000, de 17 de Maio.
2. O Ministério Público vem agora reclamar para a Conferência sustentando o seguinte:
1 – A admissibilidade do tipo de recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82 pressupõe uma perfeita identidade normativa entre o precedente jurisprudencial invocado e a situação dos autos em que tal recurso é interposto – sendo essencial que a dimensão normativa aplicada corresponda inteiramente à que já foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
2 – Afigurando-se que – no caso dos autos – essa plena identidade normativa não se verifica.
3 – Na verdade, no acórdão-fundamento – o invocado acórdão nº 288/00 – estava em causa a aplicação da norma constante do artigo 412º, nº 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal a um processo de natureza criminal, em que tal norma era directamente aplicável.
4 – Pelo contrário, na hipótese dos autos, tal aplicação normativa insere-se no
âmbito de um processo de natureza contraordenacional, decorrendo a aplicação de tais preceitos legais do fenómeno da respectiva aplicabilidade subsidiária ao processo que sanciona o ilícito de mera ordenação social.
5 – E sendo evidente que tal circunstância pode configurar-se relevante, do ponto de vista jurídico-constitucional, dada a diferente amplitude do princípio das garantias de defesa que vigora manifestamente num e noutro daqueles tipos de processos.
6 – Neste circunstancialismo, cumpria ao recorrente ter suscitado a inovatória questão de constitucionalidade que coloca no seu recurso no âmbito de um recurso de fiscalização concreta fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, questionando a constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 412º que não consente a prolação de despacho de aperfeiçoamento dos vícios formais das conclusões do recorrente, enquanto aplicável no domínio do processo contraordenacional.
7 – Pelo que – tendo optado por o basear na alínea g) apesar da diferenciação das dimensões normativas aplicadas no acórdão-fundamento e no acórdão recorrido
– falta um pressuposto de admissibilidade de tal tipo de recurso de fiscalização concreta.
S... pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
3. No Acórdão nº 288/2000, de 17 de Maio, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal. Estava então em causa a aplicação de tal preceito num processo criminal. No entanto, o Tribunal invocou expressamente a fundamentação de outros arestos do Tribunal Constitucional onde foi decidido julgar inconstitucional a norma do regime geral das contra-ordenações (a norma dos artigos 59º, nº 3, e 63º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro) numa dimensão de conteúdo idêntico ao da norma do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal. De resto, isso mesmo é explicitado na Decisão Sumária reclamada.
Verifica-se, pois, que no contexto argumentativo do Acórdão nº
288/2000 (e, desde logo, em face da jurisprudência do Tribunal Constitucional) a circunstância de o processo fundamento ter natureza criminal ou contraordenacional não assume qualquer relevância na formulação do juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, na dimensão que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado. A diferença invocada pelo reclamante é, portanto, absolutamente irrelevante para o efeito, o que aliás é implicitamente assumido no Acórdão 288/2000.
Nessa medida, a dimensão normativa do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, julgada inconstitucional no Acórdão nº 288/2000 coincide inequivocamente com a dimensão normativa do mesmo preceito em apreciação nos presentes autos. Existe, na verdade, não só plena identidade de preceitos, como também, no caso concreto, o Acórdão invocado não delimitou ao processo penal o juízo de inconstitucionalidade sobre tal norma, sendo certo que a referida norma
é aplicável no direito de mera ordenação social e também que o Acórdão assumiu
(ao referir-se a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional) que normas com projecção normativa idêntica (isto é, que implicariam a rejeição do recurso sem possibilidade de aperfeiçoamento), no direito de mera ordenação social, seriam inconstitucionais. Sustentar o contrário não poderá encontrar fundamento numa leitura do referido aresto que se ativesse ao conteúdo formalmente idêntico das normas, porque a norma é exactamente a mesma, mas apenas numa espécie de delimitação do juízo de inconstitucionalidade pelo caso, que o Acórdão não fez nem fornece elementos para que tal seja feito.
Verifica-se, assim, o pressuposto processual do recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, pelo que a presente reclamação será indeferida.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão sumária reclamada. Lisboa, 26 de Setembro de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa