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Processo 348/13
3ªSecção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu “decisão sumária” de não conhecimento do objeto do recurso interposto por A. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de novembro de 2012, por incumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade, nos termos exigidos pela al. b) do n.º 1 do art.º 70.º e do n.º 2 d art.º 72.º da LTC.
2. A recorrente reclama para a conferência mediante requerimento do seguinte teor:
1.º
O presente recurso é interposto sob o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que rejeitou o recurso interposto pela recorrente do Tribunal da Relação de Coimbra, fundamentado na dupla conforme, ainda que parcial “in mellius”, nos termos da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º do C.P.P..
2.º
Em sede de reclamação de Despacho, pelo qual, a Recorrente arguiu a nulidade da decisão prolatada, aquela invocou a inconstitucionalidade do Acórdão do STJ, por violar o Princípio da tutela jurisdicional efetiva, o Princípio do direito fundamental à defesa e, bem assim, o Princípio da igualdade, com expressão nos artigos 20.º (nomeadamente no n.º 1), artigo 32.º, n.º 1 e artigo 13.º, respetivamente, todos, do C.R.P..
3º
Tal questão sobre a nulidade arguida foi apreciada pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
4º
Por conseguinte, é certo que o poder jurisdicional daquele Tribunal ainda não se havia esgotado.
5º
Logo, dispondo a alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, que “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”,
6.º
Entende-se que a dita inconstitucionalidade foi arguida atempadamente, isto é durante o decurso do processo.
7º
Como consta de jurisprudência constitucional firme e reiterada, a suscitação da questão de constitucionalidade deve ocorrer durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal ‘a quo’.
8º
Assim, o objeto do recurso de inconstitucionalidade apenas poderá incidir sobre a apreciação, à luz das regra jurídico-constitucionais, de um juízo normativo efetuado pelo tribunal recorrido - cfr. artigo 72.º, n.º 2, da referida Lei,
9º
Como efetivamente veio a suceder in casu.
10º
Tendo a Recorrente esgotado todos os meios disponíveis para fazer valer a sua posição,
11º
Isto é, não era admissível recurso ordinário sobre a decisão ora impugnada,
12º
Como exige o n.º 2, do artigo 70.º, da LTC.
13º
As reclamações sobre indeferimento dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional destinam-se a verificar uma eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade,
14º
Pelo que importa apreciar, para as decidir, não tanto a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, como o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor.
15º
Os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/8, para serem recebidos, devem respeitar os seguintes requisitos de admissibilidade:
- A existência de uma decisão de um tribunal;
- A aplicação, nessa decisão, de uma norma de direito infraconstitucional;
- A suscitação, pelo recorrente, da inconstitucionalidade da norma aplicada e, finalmente,
- Que essa suscitação tenha sido efetuada, em princípio, antes de proferida a decisão de que se recorre, e em termos e em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem de decidir a colocada questão de inconstitucionalidade (cfr. sobre o ponto, o Acórdão deste Tribunal n.º 36/911).
16º
Não podem os requisitos do acesso ao recurso deste Tribunal Constitucional tornarem-se obscuros ao ponto de não haver certeza jurídica se é possível ou não o recurso e haver questões que são apreciadas e outras não, por mero acaso de escolha do Tribunal e não pela certeza no preenchimento dos requisitos.
17º
Inclusivamente já foi observado no Acórdão n.º 88/86 que à indicação de normas constantes do requerimento de interposição de recurso pode, sem esforço de maior, ser atribuído caráter meramente exemplificativo, o que permite a conciliação do que se diz nessa peça processual com o que se afirma nas alegações, onde, ao cabo e ao resto, se faz como que uma interpretação ‘autêntica’ daquele requerimento.
18º
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
19º
Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão (de constitucionalidade) que é o objeto do mesmo recurso.
20º
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a fls. .... proferido a 27/02/2013, neste processo, decidiu não apreciar a inconstitucionalidade suscitada pela Recorrente.
21º
Na verdade, tal como também ficou consignado no mencionado Acórdão n.º 176/88, este Tribunal Constitucional «não pode ficar dependente de uma eventualmente indevida ‘omissão de pronúncia’ sobre a questão de constitucionalidade, por parte dos restantes tribunais».
22º
Nestas condições tem de se concluir que está verificado o requisito de admissibilidade na medida em que se há de considerar que houve na decisão recorrida aplicação implícita da norma cuja conformidade constitucional se questiona.
23º
Desta feita, pugna-se pela admissibilidade do recurso, nos termos invocados, por estarem reunidos os pressupostos exigidos para o efeito.
3. O Ministério Público responde que a reclamação improcede, nos termos seguintes:
1º
No recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, os recorrentes só estão dispensados do ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade que identificam no requerimento de interposição do recurso, se a interpretação acolhida na decisão recorrida tiver natureza anómala ou imprevista e não tiver existido oportunidade processual para a suscitação.
2°
Não é manifestamente o que se verifica, pois a recorrente teve oportunidade de suscitar a questão nas oportunidades que vêm referidas na douta Decisão Sumária e a interpretação acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça corresponde à jurisprudência uniforme e constante que esse Tribunal tem sobre a matéria em causa, sendo certo que a recorrente não questiona esta realidade processual.
3º
Quer no requerimento de interposição do recurso, quer na presente reclamação, a recorrente apenas afirma e insiste que suscitou a questão quando reclamou do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de novembro de 2012, ou seja, o acórdão recorrido.
4º
Ora, pelas razões que atrás indicámos, esse já não era o momento processual adequado para tal.
5º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
4. Resulta dos autos o seguinte:
a) A recorrente foi condenada em 1ª instância na pena única de 10 anos de prisão;
b) Em provimento parcial de recurso, o Tribunal da relação de Coimbra, por acórdão de 16 de junho de 2010, condenou a arguida na pena única de 8 anos de prisão;
c) A arguida interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
d) O Ministério Público respondeu a este recurso «defendendo a rejeição dos recursos, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, invocando o acórdão de 29/05/2008, processo nº 1313/08-5ª, e atendendo à data da primeira decisão e data de interposição dos recursos, à medida da pena aplicada não superior a oito anos e verificação de dupla conforme in mellius, no que toca à arguida».
e) Notificada para os efeitos do n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo Penal, a arguida apresentou resposta que não foi admitida, por não ter sido paga a multa devida nos termos dos art.ºs 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil e 107.º do Código de Processo Penal;
f) Por acórdão de 15 de novembro de 2012, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso interposto pela arguida com fundamentos que resumiu na seguinte passagem conclusiva:
Concluindo.
A lógica interna e global do sistema e o bom senso, porque cumprida a exigência do duplo grau de jurisdição e a concessão real e efetiva de uma melhoria de tratamento do condenado, demandam, em nome da coerência, a adoção de uma solução, que não passe por fazer da identidade de pena aplicada o vetor incontornável da conformação da confirmação, conferindo a possibilidade de um outro grau de recurso, exatamente nos casos em que o arguido foi já beneficiado, o que é inapelavelmente negado quando não lhe cabe em sorte um tratamento privilegiado.
Dir-se-ia que adquirida uma mais valia, poderia ainda o beneficiado candidatar-se a uma outra nova oportunidade de obtenção de eventual sucesso...
A alteração de matéria de facto só por si não impede a configuração de dupla conforme, como acontece no caso presente, em que a modificação operada não tem qualquer reflexo na configuração da culpabilidade, na qualificação jurídica, nem no doseamento das penas (cfr. sobre este ponto os acima referidos acórdãos do STJ de 23- 09-2009 e de 08-03-2012 e o acórdão do TC n.º 385/11).
Conclui-se, assim, pela inadmissibilidade dos recursos em causa, por se estar perante dupla conforme, total no caso do recorrente, e parcial (in mellius), no que respeita à recorrente, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f, do Código de Processo Penal, na redação vigente introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
Assente que a decisão em crise é insuscetível de recurso, impõe-se a rejeição dos recursos.
A tanto não obsta a circunstância dos recursos terem sido admitidos (no caso, “cautelarmente”, como vimos), por tal posição não vincular o Tribunal Superior – artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea f), 432.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 3 e 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal.
g) A recorrente reclamou desta decisão, argumentando, com interesse para o que importa decidir, o seguinte:
Por outro lado, sempre se dirá que estatuindo o artigo 400.º, n.º 1 alínea f) do C.P.P., que “não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem a decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, sem restringir ou ampliar o sentido da dita confirmação, não pode o intérprete fazê-lo. Pois, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (Cf. artigo 9.º do C.C,).
Ora, visando artigo 400.º do C.P.P. libertar os Tribunais Superiores de atos inúteis, desentorpecendo o sistema judicial, tal princípio não pode colidir com o Direito fundamental à defesa do Arguido (artigo 32.º CRP) e com o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º CRP) os quais numa escala axiológica estão num patamar superior.
Por conseguinte, a confirmação, a que alude o disposto no artigo 400.º, alínea f) do C.P.P., deve ser entendida corno a identidade na sua essencialidade fáctica e de direito entre as decisões de 1ª Instância e Relação.
Pelo que, perante a inexistência de tal identidade, como se verifica nos autos em apreço pela retificação da matéria de facto que contribuiu para a redução do quantum sancionatório, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça terá que ser admitido, em prol dos direitos e garantias de defesa da arguida.
Aliás, está patente que o Digníssimo Sr. Vice Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Dr. António Silva Gaspar, não corroborou a tese defendida pelo Acórdão ora posto em crise, declarando a admissibilidade de recurso, pelo que, nesta esteira, se reitera a posição deste, pugnando-se pela admissão do recurso e, consequentemente, pela concretização da Justiça e tutela efetiva dos direitos de Defesa da Arguida.
Nesta senda se reafirma que o entendimento sufragado no Acórdão ora reclamado fere, contundentemente, os direitos fundamentais de defesa da Recorrente e o Princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, plasmados nos artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, ambos da C.R.P., pelo que, é inconstitucional, o que expressamente se invoca.
Posto isto, se conclui e se pugna pela admissibilidade do recurso interposto, em cumprimento da legislação vigente.
5. As razões invocadas pela recorrente não logram abalar os fundamentos da decisão reclamada.
O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC, sobre o interessado impendendo o ónus de suscitação, em termos processualmente adequados, da questão de constitucionalidade da norma que pretende erigir como objeto do recurso para o Tribunal Constitucional (n.º 2 do art.º 72.º da LTC). O que a recorrente manifestamente não cumpriu, apesar de ter disposto de indiscutível oportunidade processual para tanto. Com efeito, a recorrente foi confrontada com a pretensão de aplicação da al. f) do n.º 1 do art.º 400.º do Código de Processo Penal com o sentido interpretativo cuja constitucionalidade contesta e com a consequente rejeição do recurso quando foi notificada para responder nos termos do n.º 2 do art.º 417.º do mesmo Código. A resposta que apresentou não foi admitida por falta de pagamento da multa por apresentação tardia, aspeto que não está agora em discussão.
Assim, tendo a recorrente disposto de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade anteriormente a ser proferia da decisão recorrida, em termos de o tribunal que a proferiu ficar constituído no dever de apreciar essa questão se optasse, como optou, pelo sentido alegadamente inconstitucional, é irrelevante que o possa ter feito em incidentes pós-decisórios. Tais incidentes não são, em princípio, momento processual adequado para suscitar questões de constitucionalidade de normas aplicadas na decisão sobre que versam. E nunca o são se tiver havido oportunidade processual para discutir a questão de constitucionalidade antes de ter sido feita aplicação da norma.
Como diz Carlos Lopes do Rego, “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 77, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença ou acórdão e a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material ou lapso notório, não é causa de nulidade da decisão e não torna esta obscura ou ambígua – tem de entender-.se que os incidentes pós-decisórios (pedido de aclaração, de reforma ou arguição de nulidade da decisão), previstos na lei de processo, não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar, pela primeira vez, uma questão de constitucionalidade de normas aplicadas pelo julgador na decisão do pleito ou causa principal: é que, como é óbvio, se tais pretensões da parte forem indeferidas, por inverificação dos pressupostos do “incidente” requerido, as únicas normas aplicadas serão as normas processuais reguladoras da admissibilidade e âmbito dos pedidos, de reforma ou nulidade – cfr., v.g., Acórdãos n.ºs 450/87, 46/88, 479/89, 61/92, 164/92, 152/93, 169/93, 261/94, 164/95, 122/98, 418/98, 496/99, 674/99, 374/00, 155/00, 142/01, 213/01, 300/02, 381/02, 443/02, 394/05, 533/07 e 55/08.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se
a) Indeferir a reclamação;
b) Condenar a recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lx. 19-06-13. – Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.