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Processo nº 461/01
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos de recurso penal, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, proferiu o Relator a DECISÃO SUMÁRIA de fls. 2504 a 2506, a negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente P..., com os sinais identificadores dos autos, porque a norma questionada – 'a norma constante do art. 127° do CPP, na interpretação acolhida pela instância e corroborada pela Relação emitida no sentido que um qualquer non liquet em matéria de prova possa ser valorado desfavoravelmente à posição do arguido, pelo mero exercício de suprimento de lacunas probatórias através de inominadas ‘regras de experiência comum’' – tem sido repetidamente julgada não inconstitucional em vários acórdãos do Tribunal Constitucional (segue-se a referência à identificação desses arestos).
2. Dessa DECISÃO veio o recorrente 'reclamar para a conferência', ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e 'na redacção da Lei
13-A/98 de 26 de Fevereiro'. Sem questionar a jurisprudência do Tribunal Constitucional, indicada a propósito daquela norma do artigo 127º, o recorrente veio dizer o que se segue:
'A questão que se levanta no presente recurso está directamente conexa com o princípio probatório ‘in dubio pro reo ‘, que como defende a melhor dogmática, decorrerá da estatuição plasmada no art. 32/2 da CRP - consubstanciador da presunção de inocência do arguido até trânsito em julgado da decisão condenatória. Mais especificamente, debate-se se tal princípio matricial é, ou não, posto em causa com a valoração de um non liquet em matéria probatória desfavorecendo inelutavelmente a posição processual do arguido e utilizando como único e exclusivo fundamento de tal solução as regras da experiência de vida mais a mais inominadas.
É crença inabalável do recorrente que a problemática abordada tem imanente uma concepção inelutável do Estado de Direito. Com efeito o estruturante princípio do in dubio pro reo – com inequívoca dignidade constitucional advinda da formulação semântica da presunção de inocência plasmada no art. 32°/2 da C.R.P. - que manda valorar qualquer non liquet em matéria probatória sempre em beneficio da posição processual dos arguidos - como é, de resto, imposição do corolário precípuo da obrigatória superioridade ética do estado de direito na perseguição de actividades delituosas - impedirá o juízo da conformidade constitucional da solução defendida no aresto em recurso. Na verdade, sob pena de se esvaziar axiologicamente, o Estado, nem para lutar contra o crime, pode prescindir desse postulado verdadeiramente ôntico, de respeitar e dar densidade prática aos direitos de defesa dos arguidos. E, está-se em crer , tal princípio verdadeiramente fundante só será respeitado se o núcleo duro dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos constitucionalmente consagrados forem respeitados. Nestes termos, provida a presente reclamação, deve ordenar-se o prosseguimento da ulterior tramitação legal, notificando-se o recorrente para apresentar as alegações a que alude o art. 79° da LOTC.'
3. Na sua resposta, o 'representante do Ministério Público junto deste Tribunal' veio sustentar que a 'presente reclamação é manifestamente improcedente', adiantando o seguinte discurso:
'2 – Na verdade – e desde logo – como nota a decisão reclamada, não padece obviamente do vício de inconstitucionalidade a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, enquanto prescreve o princípio da livre apreciação da prova em processo criminal, comportando naturalmente o mesmo a possibilidade de o tribunal se socorrer de máximas ou regras de experiência na valoração e integração das várias provas produzidas ao longo da audiência.
3 – Não constituindo manifestamente objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de 'normas' a indagação sobre o modo como, no caso concreto, o tribunal recorrido tratou de concretizar, densificar e aplicar ao circunstancialismo típico da situação 'sub juditio' tal princípio.
4 – Acresce que – no caso dos autos – não foi sequer realizada a interpretação normativa do referido preceito legal que o recorrente qualifica de violadora das garantias de defesa.
5 – Na verdade, e como se afirma explicitamente a fls. 2318/2319, o tribunal não se limitou a invocar as 'presunções de experiência' como suporte do juízo que formulou sobre a matéria de facto, baseando-se identicamente, na formação da sua convicção, nos depoimentos aí especificados.
6 – Não existindo, deste modo, qualquer 'non liquet' em matéria de prova, pretensamente suprido através do apelo – em exclusivo – a regras de experiência comum.
7 – Circunstância que –desde logo – determinaria o não conhecimento do recurso, por a norma questionada não ter sido interpretada e aplicada com o sentido, alegadamente inconstitucional, especificado pelo recorrente'
4. Cumpre decidir. No acórdão do Tribunal Constitucional nº 464/97, nos Acórdãos, 32º vol., págs.
377 e seguintes, em que não se julgou inconstitucional o questionado artigo
127º, porque não é contrário ao artigo 37º da Constituição, e se cita o acórdão nº 1165/96 'com apoio num longo excurso sobre a doutrina', pode ler-se o seguinte:
'Este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário
às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta. A valoração da prova segundo a livre convicção do juiz não significa uma valoração contra a prova ou uma valoração que já se desprendeu dos quadros da legalidade processual [a legalidade dos meios de prova, as regras gerais de produção da prova]. Esta livre convicção é ‘objectivável e motivável’
(Figueiredo Dias): existe conjugada com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência. Radicando na lógica da investigação que estrutura o processo penal, que é uma investigação virada à descoberta da verdade objectiva do caso, a prova livre centra-se ‘no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo
(pelas alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc.)’
(Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-68, pp. 47-48)'.
É esta jurisprudência do Tribunal Constitucional que o recorrente não questiona na reclamação, antes fazendo apelo e só ao 'núcleo duro dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos constitucionalmente consagrados', o que já obteve resposta nos citados arestos deste Tribunal.
Tanto basta para concluir ser infundada a presente reclamação, não saindo beliscada por ela a DECISÃO reclamada (e isto pondo mesmo entre parêntesis a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a de 'a norma questionada não ter sido interpretada e aplicada com o sentido, alegadamente inconstitucional, especificado pelo recorrente').
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em
15 unidades de conta. Lisboa, 26 de Setembro de 2001 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa