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Processo n.º 175/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, o objeto respetivo é delimitado, nos seguintes termos:
“O Recorrente pretende ver submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade das normas do artº 4º do CPP e do artº 684º-A do CPC, com a interpretação que foi seguida e sufragada na decisão recorrida, ou seja, que a norma do artº 684º-A do CPC não é aplicável, nos termos do artº 4º do CPP, sendo, por isso inadmissível em processo penal ser ampliado pelo arguido que foi absolvido de todos os crimes por [que] vinha acusado o objeto do recurso interposto pelo Ministério Público da decisão absolutória, visando a apreciação em segunda instância quer de decisões que lhe foram desfavoráveis, quer quanto à validade de provas e meios de prova produzidos e considerados na decisão de 1ª instância, quer quanto a concretos pontos da decisão da matéria de facto.”
3. Por decisão de 19 de outubro de 2011, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, tal recurso não foi admitido, com fundamento na circunstância de o recorrente não ter dado cumprimento ao ónus de suscitar a questão de constitucionalidade previamente ao recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, sendo certo que a decisão recorrida não pode ser considerada uma decisão surpresa, quanto ao entendimento preconizado relativamente ao artigo 684.º-A do Código de Processo Civil e à questão da sua aplicabilidade no âmbito penal, uma vez que se encontra em harmonia com o que tem sido decidido, no mesmo âmbito, a propósito dos recursos subordinados.
É desta decisão, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, que o recorrente presentemente reclama.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, o recorrente começa por reafirmar a sua tese sobre a aplicabilidade, no âmbito penal, da faculdade de ampliação do objeto do recurso, a requerimento do recorrido, prevista no artigo 684.º-A, do Código de Processo Civil, transcrevendo um excerto do Acórdão n.º 284/2006 do Tribunal Constitucional, em que perspetiva a sustentação de tal tese.
Acrescenta que o entendimento seguido pelo Tribunal da Relação - cuja constitucionalidade pretende ver sindicada – não tinha sido ainda defendido no processo nem era previsível que viesse a ser adotado, não conhecendo o reclamante decisões do Tribunal Constitucional ou de outros tribunais, sobre essa matéria, que adiram a tal critério interpretativo.
Conclui, deste modo, que não lhe era exigível antecipar o sentido da decisão do Tribunal da Relação, razão por que deve a reclamação deduzida ser considerada procedente e, em consequência, ser admitido o recurso de constitucionalidade interposto.
5. O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, respondeu à reclamação, pugnando pela sua improcedência.
Fundamenta a sua posição aderindo à argumentação da decisão reclamada, acrescentando que foi o ora reclamante que suscitou expressamente o problema da ampliação do objeto do recurso, fazendo apelo ao artigo 684.-A do Código de Processo Civil, na resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público, pelo que teve a possibilidade de acautelar uma eventual posição desfavorável do Tribunal da Relação sobre tal matéria e, nessa peça processual, suscitar a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada.
Pelo exposto, não tendo o reclamante cumprido o ónus de suscitação prévia que sobre si impendia, improcedendo a sua alegação quanto ao caráter surpreendente do entendimento defendido pelo tribunal a quo, não deve a reclamação obter provimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. A procedência da reclamação encontra-se condicionada à verificação cumulativa dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.
De acordo com a jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, são os seguintes os requisitos da admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC: a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
7. Comecemos por analisar o pressuposto, cuja alegada não verificação constitui o fundamento da decisão reclamada.
O cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade pressupõe que tal questão seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, na presente situação, o reclamante assume que não suscitou, previamente, perante o tribunal a quo, a questão de constitucionalidade cuja apreciação pretende.
Justifica, porém, tal omissão, referindo que não era previsível que a decisão recorrida viesse a adotar o critério normativo, cuja constitucionalidade invoca, constituindo, assim, o acórdão do Tribunal da Relação, nessa parte, uma decisão surpresa.
A tese do reclamante, porém, não colhe, como melhor explicitaremos.
Na verdade, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de forma criteriosa e necessariamente restritiva, a exceção ao princípio de que a suscitação da questão de constitucionalidade deve preceder a prolação da decisão recorrida, reservando-a para aquelas situações, absolutamente atípicas, em que o recorrente não podia razoavelmente antecipar a possibilidade de uma dada dimensão normativa – objetivamente surpreendente - ser acolhida na decisão recorrida.
A irrazoabilidade do dever de antecipação em análise deve, porém, ser perspetivada à luz de um modelo de litigância diligente e prudente, assente no pressuposto que recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas na decisão, cumprindo-lhes, em observância de um dever de litigância tecnicamente prudente, a formulação de um juízo de prognose que antecipe as várias hipóteses, razoavelmente previsíveis, de enquadramento normativo do litígio, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que poderão viciar as normas ou interpretações normativas convocadas.
Ora, no caso concreto, o reclamante não poderá considerar-se desonerado de tal dever de antecipação, sendo, aliás, de salientar que resulta da sua resposta à motivação do recurso do Ministério Público que o reclamante expressamente aceitou a existência de tese contrária – que foi adotada na decisão recorrida - não tendo, porém, problematizado a questão de constitucionalidade que, ulteriormente, veio a erigir como objeto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
De facto, foi o próprio reclamante que suscitou a questão da aplicabilidade do artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, no âmbito do recurso em matéria penal, manifestando, a esse propósito, a sua convicção positiva, sem deixar de expressar “o devido respeito por opinião contrária”.
Nestes termos, não configurando o critério normativo utilizado pela decisão recorrida um critério objetivamente surpreendente ou insólito - não sendo sequer subjetivamente, em rigor, inesperado, em relação ao reclamante, que expressamente admitiu a existência de “opinião contrária” – improcede a pretensão de reconhecimento de qualquer dispensa do ónus, impendente sobre o reclamante, de antecipar a problematização da desconformidade constitucional.
Na sequência das considerações expendidas, concluímos que, não tendo o reclamante suscitado, oportunamente, uma qualquer questão de constitucionalidade normativa - atinente à inaplicabilidade da faculdade de ampliação do âmbito do recurso, a requerimento do recorrido, em sede penal - perante o tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida, ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de vir interpor ulterior recurso de constitucionalidade, com tal objeto.
Em conformidade, conclui-se pela inadmissibilidade do presente recurso.
III – Decisão
8. Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de maio de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.