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Processo n.º 654/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Oeiras, A., S.A., B. e C. vieram interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, os recorrentes delimitam o respetivo objeto, nos seguintes termos:
“(…) entendimento (…) expresso do artigo 105º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, segundo o qual é punível a falta de entrega à Administração Tributária do Imposto sobre o Valor Acrescentado, apurado e declarado em determinado período, independentemente do IVA liquidado no mesmo período ter sido recebido, sentido este em que a referida norma é inconstitucional”
3. Por decisão de 9 de maio de 2013, tal recurso não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
“(…) Nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b) da LTC, “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.”
Os arguidos teriam legitimidade para recorrer da decisão que lhes é desfavorável (cf. artigo 72.º, n.º 1, al. b) da LTC, com remissão para o disposto no artigo 401.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal (CPP)).
Os arguidos recorreram no 10.º dia subsequente à sua notificação da decisão posta em crise, pelo que o fizeram atempadamente (cf. artigo 75.º, n.º 1 da LTC).
Contudo, salvo melhor entendimento, a decisão judicial em apreço não é recorrível, porquanto não aplicou norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo pelos arguidos ora recorrentes.
Aliás, os arguidos, ora recorrentes, não suscitaram qualquer inconstitucionalidade de uma norma específica cuja aplicação o caso teria suscitado ou iria suscitar.
Com efeito, a única questão de constitucionalidade suscitada pelos arguidos encontra expressão nos pontos 13.º e 14.º da reclamação do despacho de indeferimento de atos instrutórios.
Como se alcança do teor de folhas 340-verso, nessa sede os arguidos invocam o seguinte:
“(...)
13. Um dos pressupostos essenciais para ser aplicada a pena prevista no artigo 105.º, n.º 2 do RGIT, pois a falta de pagamento de IVA é insuscetível de preencher o tipo de crime previsto no n.º 1, é o efetivo recebimento do IVA faturado no período. Tanto assim que,
14.. A norma que impusesse uma pena por falta de pagamento de IVA, ainda que não tivesse sido recebido, seria manifestamente inconstitucional, por importar a restrição do direito fundamental à liberdade além do necessário, em violação do disposto nos artigos 2.º, 8.º, 16.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 30.6 e 62.º da Constituição e, bem assim, do artigo 1.º do Protocolo n. º 1, anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. (...)”.
Mais nenhuma referência a questões de constitucionalidade, ou falta dela, é feita pelos arguidos nos presentes autos, no exercício das suas garantias de defesa.
Lido o teor da reclamação supracitada, impõe-se concluir que, no aludido ponto 14., os arguidos limitam-se a proclamar uma conclusão de direito cujo teor ou conteúdo é puramente especulativo e não se confunde com a invocação de inconstitucionalidade de uma norma, certa e determinada, aplicada ou a aplicar nos presentes autos.
Com efeito, os arguidos não invocam a inconstitucionalidade da norma “A, B, C, … “, seja do RGIT, seja do Código Penal ou do Código de Processo Penal.
Utilizando o tempo verbal condicional limitam-se a dizer que determinada norma, fosse ela qual fosse desde que prescrevesse determinado entendimento e consequente sanção, seria inconstitucional por violação de determinadas normas de Leis Fundamentais, sem que tal raciocínio especulativo seja sindicável e, portanto, impusesse a este tribunal um dever de pronúncia sobre uma questão de inconstitucionalidade, já que se desconhece qual a norma e o seu teor que os arguidos teriam em mente ao conjeturar desse modo.
Não tendo suscitado a inconstitucionalidade de certa e determinada norma aplicada no despacho de indeferimento de atos instrutórios e/ou a aplicar na manutenção de tal despacho, por meio de decisão de improcedência da reclamação daquele apresentada:
• decidindo a reclamação, não tinha o juiz de instrução criminal qualquer dever não oficioso de pronúncia sobre questão de constitucionalidade,
• decidindo a reclamação, o juiz de instrução criminal não aplicou norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos arguidos durante o processo (maxime, na reclamação do indeferimento de atos instrutórios).
Ora, nos termos do disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, “Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Assim não aconteceu nos presentes autos, porquanto os arguidos não suscitaram questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado em termos de o juiz de instrução criminal estar obrigado a conhecê-la e, portanto, emitir uma decisão desconforme que seja objeto de recurso.
Pelo exposto, por falta de legitimidade e irrecorribilidade da decisão, julgo inadmissível o recurso interposto a folhas 356 dos autos para o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76.º da LTC).”
É desta decisão que os recorrentes presentemente reclamam.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, manifestam os recorrentes a sua discordância relativamente à decisão reclamada, referindo que, no despacho recorrido, considerou-se ser irrelevante, para a decisão dos autos, o efetivo recebimento do imposto, sem que, porém, tenha sido indicada a “norma aplicável”. Face a tal circunstância, impunha-se “configurar como possível que esta conclusão resultasse do entendimento de que os factos imputados aos arguidos preenchem tipo de crime diferente do p. e p. no artigo 105º, n.º 2 do RGIT.” Justificam assim os reclamantes a forma como suscitaram a questão de constitucionalidade que pretendiam ver apreciada, junto do tribunal a quo,
Argumentam que identificaram o artigo 105.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, “interpretado no sentido de não ser exigido o recebimento do imposto, como a norma desconforme com a Constituição mas, porque a decisão reclamada a não identificou, reputou-se igualmente de inconstitucional qualquer outra norma da qual resultasse ser punível a conduta de quem, não o tendo recebido, não tivesse entregue ao Estado o IVA liquidado”.
Defendem, pelo exposto, que a questão de constitucionalidade foi devidamente suscitada, em termos que obrigavam ao seu conhecimento, pelo que o recurso de constitucionalidade deve ser admitido.
5. O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, refere, em síntese, concordar com o despacho reclamado, nada mais tendo a acrescentar, exceto que “perante a fundamentação clara do despacho que negou a inquirição das testemunhas arroladas, os recorrentes tinham todas as condições para, de uma forma adequada, suscitar a questão da inconstitucionalidade.”
Conclui, pelo exposto, pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. Refere a decisão reclamada que os recorrentes não cumpriram o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, não apresentando, perante o tribunal a quo, em momento prévio à decisão, a problemática de “qualquer inconstitucionalidade de uma norma específica cuja aplicação o caso teria suscitado ou iria suscitar”.
Relativamente a este pressuposto de admissibilidade do recurso, salienta-se que a sua importância é realçada pela circunstância de condicionar a legitimidade para recorrer, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como bem refere a decisão reclamada.
De facto, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do mesmo diploma, os recursos em análise “só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade (…) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”
Ora, o cumprimento do presente pressuposto de admissibilidade do recurso implica que a questão de constitucionalidade normativa seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, exigindo-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e enunciação da questão e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se pronuncie especificamente sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que a norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar, tem necessariamente de assentar num preceito ou conjunto de disposições legais, que deverão ser individualizados e especificados.
A este propósito, refere o Acórdão n.º 175/06 deste Tribunal Constitucional (disponível no mesmo sítio da internet):
“A indicação do concreto preceito legal sob cuja veste a norma aparece no nosso sistema jurídico é elemento essencial para o conhecimento da questão de constitucionalidade, não podendo ter-se por adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade sem uma tal identificação, em virtude de, no nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas, poderem constituir objeto do recurso normas jurídicas que estejam recortadas em disposições ou preceitos que resultem do exercício de um poder normativo (conceito funcional de norma).
(…)
A identificação da base legal à qual se imputa a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é, pois, um momento insuprível do controlo de constitucionalidade, na medida em que importa saber se essa base legal elegida para a fiscalização de constitucionalidade se apresenta como idónea a suportar esse sentido (…)”
À luz destas considerações, vejamos se, no caso concreto, se encontra preenchido o pressuposto de admissibilidade que vimos de analisar.
Compulsada a reclamação, deduzida nos termos do n.º 2 do artigo 291.º do Código de Processo Penal, – peça processual em que os recorrentes deveriam ter suscitado ou renovado a suscitação da questão que pretendessem erigir como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade – constata-se que a violação da Lei Fundamental é problematizada, na seguinte passagem:
“(…) A norma que impusesse uma pena por falta de pagamento do IVA, ainda que não tivesse sido recebido, seria manifestamente inconstitucional, por importar restrição do direito fundamental à liberdade além do necessário, em violação do disposto nos artigos 2º, 8º, 16º, n.º 2, 18º, n.º 2, 27º, 29º e 30º e 62º da Constituição (…)”
Do excerto transcrito resulta que, de facto, os recorrentes não suscitaram uma questão de constitucionalidade de uma interpretação extraível de um específico preceito, limitando-se a afirmar que a hipotética existência de uma norma que criminalizasse a falta de pagamento do IVA, ainda que o respetivo valor não tivesse sido recebido, seria inconstitucional. Tal afirmação surge como corolário da tese defendida pelos recorrentes no sentido de considerarem que “a falta de entrega do IVA apenas pode (…) preencher o facto descrito no n.º 2 do artigo 105º do RGIT, uma vez que o IVA nunca corresponde a uma prestação deduzida”, sendo que “o n.º 2 do artigo 105º do RGIT exige que a prestação tributária tenha sido recebida: se o não foi há dívida, mas não há crime.” De acordo com tal tese, o não pagamento do IVA “é insuscetível de preencher o tipo de crime previsto no n.º 1” do artigo 105.º do RGIT e apenas pode preencher o n.º 2 do mesmo artigo se houver “efetivo recebimento do IVA faturado no período”.
A alusão à inconstitucionalidade surge, na lógica argumentativa dos recorrentes, como uma forma de enfatizar a correção da tese interpretativa defendida relativamente ao âmbito de aplicação dos n.os 1 e 2 do artigo 105.º do RGIT, não consubstanciando a suscitação adequada de uma questão de constitucionalidade normativa, nos termos analisados supra.
Na verdade, impunha-se que os recorrentes selecionassem um concreto preceito – v.g. o n.º 1 ou o n.º 2 do artigo105.º do RGIT – e enunciassem o critério normativo que, sendo do mesmo abstratamente extraível, pudesse vir a ser aplicado pela decisão recorrida, em contrariedade com normas da Constituição da República Portuguesa.
Tal ónus de suscitação prévia apenas se encontraria afastado se a interpretação convocada pela decisão recorrida fosse insólita ou de todo imprevisível, não sendo exigível que os recorrentes antevissem a sua utilização, por não corresponder a uma das várias hipóteses, razoavelmente previsíveis – de acordo com um dever de litigância tecnicamente prudente - de enquadramento normativo do litígio.
No caso presente, não se verifica tal hipótese, tanto mais que – como bem salienta o Ministério Público – a fundamentação da decisão, que indeferiu a diligência instrutória requerida e que foi posta em crise pela reclamação deduzida, não poderia deixar de levar os recorrentes a pressuporem, como possível, a adoção de um critério normativo desfavorável à tese que defendem.
Era exigível que os recorrentes – querendo assegurar a admissibilidade de eventual recurso de constitucionalidade – reportassem o critério interpretativo inconstitucional a determinado preceito, independentemente da circunstância de a decisão, de que foram notificados e da qual reclamaram, referir ou não expressamente tal preceito.
Nestes termos, não tendo os recorrentes suscitado, perante o tribunal a quo, de forma adequada – expressa, direta e clara - uma questão de constitucionalidade de uma interpretação extraível de um específico e identificado preceito do ordenamento jurídico, conclui-se que ficou prejudicada a admissibilidade do recurso.
Como já referimos, citando o Acórdão n.º 175/06, “a indicação do concreto preceito legal sob cuja veste a norma aparece no nosso sistema jurídico é elemento essencial para o conhecimento da questão de constitucionalidade, não podendo ter-se por adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade sem uma tal identificação”.
Pelo exposto, mantém-se a decisão reclamada, indeferindo-se a reclamação
III – Decisão
7. Nestes termos, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de novembro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral