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Proc. nº 508/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – F... e M..., identificados nos autos, foram condenados, conjuntamente com outros arguidos, no Tribunal Judicial da comarca de Vila Franca de Xira como autores materiais, ele, de um crime p. e p. pelos artigos
21º, nº. 1 e 24º, alínea c) do Decreto-Lei nº. 15/93 e de um crime p. e p. pelos artigos 23º, nº. 1, alínea a) e 24º, alínea c) do mesmo diploma legal, na pena
única de 12 anos e 8 meses de prisão efectiva e, ela, de um crime p. e p. pelo artigo 21º, nº. 1 do Decreto-Lei nº. 15/93 e de um crime p. e p. pelo artigo
23º, nº. 1, alínea a), também do mesmo diploma legal na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão efectiva.
Inconformados recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual por acórdão de 15 de Março de 2000, concedeu provimento parcial ao recurso, mantendo a condenação do F... como autor material de um crime p. e p. pelos artigos 21º, nº. 1 e 24, alínea c) do Decreto-Lei nº. 15/93, na pena de 10 anos e 6 meses de prisão e em relação à M... condenou-a como autora material de um crime p. e p. pelo artigo 21º, nº. 1 daquele mesmo decreto-lei na pena de 6 anos de prisão.
Deste acórdão recorreram os arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por acórdão proferido em 11.01.2001, o STJ concedeu provimento parcial ao recurso.
Por requerimento de 30.01.2001, os ora recorrentes pediram o
'esclarecimento' e arguiram a nulidade do citado acórdão do STJ; este Tribunal negou provimento à arguição de nulidade suscitada, por acórdão de 29.03.2001.
De novo inconformados com o acórdão do STJ, os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional por requerimento datado de 17.04.2001.
Nessa peça processual condensaram do seguinte modo o pedido:
'(...), devem decretar-se inconstitucionais as normas do artigo 412º nº 3 e nº 4 do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido em que a falta de cumprimento por um arguido recorrente do dever de referência aos suportes técnicos, dá lugar à não apreciação do seu recurso sobre matéria de facto, com base na transcrição da prova por si efectuada e apresentada, sem que o mesmo seja previamente convidado a aperfeiçoar essa omissão, por violação do 32º/nº1 da Constituição da República Portuguesa. Em consequência devem os autos baixar ao S.T.J. para a reforma da decisão recorrida, repondo-se a constitucionalidade no sistema jurídico'.
Admitido o recurso, vieram os recorrentes apresentar as suas alegações, tendo o recorrente F... concluído do seguinte modo:
'1. Com fundamento no artigo 412º nº. 3 e nº. 4 do CPP o tribunal a quo sancionou a falta de cumprimento do dever de referência aos suportes técnicos nos quais se encontra registada toda a prova transcrita pelo recorrente, com a não apreciação do seu recurso sobre matéria de facto, à luz dessa transcrição.
2. Não decorrendo desse normativo – o artigo 412º nº. 3 e nº. 4 do CPP -, nem tão-pouco do artigo 690º-A do CPC (aplicável supletivamente, para efeito de preenchimento de lacunas), tal gravosa consequência, a sua aplicação constitui uma grave afronta às garantias de defesa do arguido, concretamente ao seu direito de interposição de recurso, em processo criminal.
3. A decisão sub judice revela assim uma interpretação do normativo no qual se fundamenta, profundamente ameaçadora e violadora da garantia de interposição de recurso pelos arguidos em processo criminal, ou seja, do artigo 32º nº. 1 da Lei Fundamental.
4. Impedir a apreciação da peça de recurso de um arguido com fundamento na prova por si transcrita, por falta de cumprimento do dever de referência aos suportes técnicos – sendo manifesto que nos casos de interposição de recurso sobre matéria de facto, a transcrição da prova é o elemento fundamental para colocar em crise a decisão recorrida (sendo a apresentação dessa transcrição, essa sim, um verdadeiro requisito para a interposição de recurso) -, constitui uma clara e intolerável afronta ao seu pleno direito de interposição de recurso.
5. Pelo exposto, o artigo 412º - nºs. 3 e 4 - do CPP, quando interpretado no sentido em que a falta de cumprimento por um arguido recorrente do dever de referência aos suportes técnicos, dá lugar à não apreciação do seu recurso sobre matéria de facto, com base na transcrição da prova por si efectuada e apresentada, deve ser declarado inconstitucional, porque violador do artigo 32º nº. 1 da Constituição Portuguesa.
6. No limite, tal como foi sugerido no voto expresso contrariamente à decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em 11 de Janeiro de 2001 e à semelhança do que se vem decidindo quanto ao incumprimento de requisitos formais da motivação de recurso que não são sancionados com a respectiva rejeição – cfr., exemplificativamente, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 43/99, de
19 de Janeiro, proc. nº. 46/98, DR, II Série, de 26 de março do mesmo ano, que julgou inconstitucional a norma constante dos artigos 412º nº. 1 e 420º nº. 1 do CPP, quando interpretada no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição imediata do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar a deficiência por violação do artigo 32º nº. 1 da Constituição -, o recorrente deveria ser convidado pelo Tribunal da Relação de Lisboa a suprir a falha que lhe é apontada pelo STJ, no caso daquele tribunal o entender necessário e conveniente. Nestes termos e com estes fundamentos, devem declarar-se inconstitucionais as normas do artigo 412º nº. 3 e nº. 4 do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido em que a falta de cumprimento por um arguido recorrente do dever de referência aos suportes técnicos, dá lugar à não apreciação do seu recurso sobre matéria de facto, com base na transcrição da prova por si efectuada e apresentada, sem que o mesmo seja previamente convidado a aperfeiçoar essa omissão, por violação do artigo 32º/nº. 1 da Constituição da República Portuguesa. Em consequência devem os autos baixar ao STJ para a reforma da decisão ora recorrida, repondo-se a constitucionalidade no sistema jurídico.'
A recorrente M... apresentou idênticas conclusões nas suas alegações:
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal apresentou contra-alegações que concluiu nos seguintes termos:
'1 – Não tendo o recorrente suscitado – no âmbito do recurso que interpôs perante o Supremo Tribunal de Justiça – a questão de constitucionalidade atinente ao eventual efeito irremediavelmente preclusivo do incumprimento do
ónus cominado ao recorrente pelo nº. 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, num caso em que a Relação já havia apontado expressamente, como razão adicional motivadora da rejeição do recurso perante ela interposto, o deficiente cumprimento dos 'requisitos formais' expressamente definidos nos nºs. 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal – não se verificam os pressupostos do recurso de fiscalização concreta fundado na alínea b) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82.
2 – Na verdade, neste circunstancialismo processual, cumpria ao recorrente ter confrontado o Supremo com a questão da constitucionalidade de uma tal interpretação normativa daquele preceito legal, sendo intempestiva a respectiva suscitação apenas em requerimento de arguição de nulidades do acórdão proferido pelo Supremo – uma vez que o recorrente dispôs de plena oportunidade processual para suscitar tal questão 'durante o processo' e não se viu confrontado com qualquer interpretação objectivamente insólita ou imprevisível de tal norma.
3 – Pelo que não deverá conhecer-se do recurso interposto.
4 – Subsidiariamente – e para o caso de assim se não entender – deverá julgar-se inconstitucional, por desproporcionadamente violadora do princípio das garantias de defesa, a interpretação normativa do nº. 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal que considera irremediavelmente preclusiva do recurso interposto com vista à impugnação da prova gravada ou registada a deficiente referenciação aos originários 'suportes técnicos' dos fundamentos da impugnação deduzida, num caso em que o recorrente delimitou e especificou adequadamente o âmbito e objecto da impugnação e procedeu às transcrições da prova gravada ou registada relevante.'
Notificados para se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, vieram os recorrentes sustentar, em síntese, que:
- O Tribunal da Relação de Lisboa não decidiu rejeitar as impugnações da decisão proferida pela 1ª instância em matéria de facto com base no disposto no artigo
412º nºs 3 e 4 do CPP;
- Nem sequer se pode inferir que aquele mesmo Tribunal tenha proferido uma decisão subsidiária com fundamento na norma em causa;
- A arguição de inconstitucionalidade foi feita tempestivamente, no pedido de esclarecimento do acórdão proferido pelo STJ, pois só então houve decisão fundada nos citados preceitos legais.
Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão prévia, cuja eventual procedência conduz ao não conhecimento do objecto do recurso.
2 – Saber se os recorrentes cumpriram o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade da norma resultante do disposto no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, conforme o impõe o artigo 72º nº 2 da LTC, é, como se deixou relatado, a questão a resolver.
É indiscutível que, no recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa, os recorrentes não suscitaram a questão de constitucionalidade que agora sujeitam à apreciação e decisão do Tribunal Constitucional.
Impunha-se que o tivessem feito ?
O acórdão da Relação de Lisboa que, na parte que interessa, rejeitou o recurso interposto pelos ora recorrentes, discorre aprofundadamente sobre o sentido das alterações introduzidas no CPP pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto quanto à reapreciação, em sede de recurso, da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo, com base na transcrição da documentação da audiência de julgamento.
Conclui, então, que só as normas contidas no artigo 431º do CPP 'são verdadeiramente inovadoras'; a interpretação que faz do regime de impugnação em matéria de facto fica condensada no seguinte trecho que se transcreve:
'(...) o artigo 431º do C.P. Penal tem de ser interpretado no sentido de que aos condicionalismos alternativamente indicados nas suas alíneas a), b) e c), acresce o do nº 2 do artº 410º do mesmo diploma legal, estreitamente ligado à matéria de facto. (cfr. no mesmo sentido Maia Gonçalves in Código Penal Anotado,
11ª ed. 1999, pag. 775).'
Assente nesta interpretação e dada a concreta impugnação deduzida pelos recorrentes, o referido aresto entendeu que 'os invocados vícios conexionados com a matéria de facto serão averiguados em função do que dispõe o artº 410º nº
2 do C.P.Penal, considerando-se desprovidas de relevância as conclusões que remetem para o conteúdo da gravação efectuada ao abrigo do disposto no artº 363º do C.P.Penal'.
E, assim sendo, limita-se o acórdão da Relação de Lisboa a apreciar à luz do disposto no artigo 410º nº do CPP, os vícios invocados relativos á matéria de facto, ou seja, recusando a reapreciação da mesma matéria com base na transcrição da documentação da audiência de julgamento, como os recorrentes pretendiam.
Com sublinhado e em jeito formal de decisão, escreveu-se:
'Assim, rejeitamos as impugnações da decisão proferida sobre matéria de facto, acrescentando que, se porventura, tais impugnações fossem admissíveis em recurso de acórdão de Tribunal Colectivo, sempre as mesmas seriam de rejeitar no caso em apreço, uma vez que os recorrentes não respeitaram os requisitos formais expressamente definidos no artº 412º, nºs 3 e 4º do C.P.Penal.'
É, pois, aqui que o acórdão da Relação de Lisboa alude às normas cuja constitucionalidade os recorrentes pretendem ver apreciada por este Tribunal, deixando claro, embora sem expressa concretização do ponto em que os recorrentes tinham claudicado, que estes não tinham dado cumprimento ao que o artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP exigia, razão que sempre conduziria à rejeição das impugnações, mesmo que estas fossem admissíveis.
Sem embargo de se reconhecer a parcimónia deste tipo decisório, não subsistem dúvidas de que se trata de uma fundamentação subsidiária da rejeição dos recursos, primariamente baseada – repete-se – na inviabilidade de reapreciação da matéria de facto, em sede de recurso de decisão do Tribunal Colectivo, assente na transcrição da documentação da audiência de julgamento, segundo a interpretação feita do artigo 431º do C.P.Penal
E se pecava por falta de clareza aquela fundamentação, deveriam os recorrentes ter lançado mão do pedido de esclarecimento do aresto, o que não fizeram.
A verdade, porém, é que se várias são as especificações exigidas pelo nº 3 do artigo 412º do CPP, a alusão conjugada ao nº 4 do mesmo preceito legal, não deixava margem para equívocos, no sentido de que os recorrentes não tinham feito as especificações, 'por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição'.
Assim, aliás, o compreendeu o STJ, quando, no acórdão ora em recurso, deixa escrito:
'Tal como de fls. 7536 dos autos se patenteia, o acórdão ora recorrido, pese embora tenha conhecido dos vícios conexionados com a matéria de facto em função do disposto no artº 410º nº 2, daquele Diploma, veio a rejeitar 'as impugnações da decisão proferida sobre a matéria de facto', pretendidas por aqueles dois recorrentes, invocando para fundamento do decidido, duas linhas argumentativas diferentes, Uma primeira conexa com a interpretação que formulou dos referidos normativos, e consubstanciada no conjunto de razões que abaixo procuraremos sintetizar, e uma Segunda, que, para utilizar a sua própria e condensada expressão literal, veio a afirmar que 'se porventura, tais impugnações fossem admissíveis em recurso de acórdão de Tribunal Colectivo, sempre as mesmas seriam de rejeitar no caso em apreço, uma vez que os recorrentes não respeitaram os requisitos formais expressamente definidos no art. 412º, nºs 3 e 4, do C.P.Penal'
E é assim que, depois de expressar entendimento diverso do que fora acolhido pela Relação de Lisboa sobre a interpretação das alterações introduzidas ao CPP pela Lei nº 59/98 em sede de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, o acórdão recorrido aprecia o que considera ser a segunda linha argumentativa ou o segundo fundamento, decidindo que os recorrentes não tinham feito as especificações da matéria de facto questionada com referência aos suportes técnicos, não sendo bastante as remissões para as concretas folhas da transcrição; e daí que a reapreciação da matéria de facto, recusada pela Relação de Lisboa, devesse ser feita (pela procedência do primeiro fundamento) mas com exclusão das provas que haviam sido gravadas em audiência.
Só depois de notificados deste acórdão, vieram os recorrentes levantar a questão da inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP, nos termos em que a sujeitam à apreciação do Tribunal Constitucional no presente recurso.
Fazem-no em pedido de esclarecimento e arguição de nulidades, o que, conforme jurisprudência pacífica deste Tribunal, não é já momento adequado de suscitação da questão de constitucionalidade; estava já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido para conhecer dessa questão, sendo certo que ela se não reportava ao âmbito dos poderes de cognição do STJ em termos de legitimar a invocação de nulidade do aresto. Tratar-se-ia, eventualmente, de um erro de julgamento para cuja impugnação não são adequados aqueles meios processuais.
Em suma, pois, e pelas razões expostas, os recorrentes não deram cumprimento ao disposto no artigo 72º nº 2 da LTC, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
3 - Decisão:
Em conclusão, decide-se julgar procedente a questão prévia suscitada nas contra-alegações do Ministério Público e, consequentemente, não conhecer do objecto do recurso.
Custas por cada um dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 26 de Setembro de 2001- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa