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Processo n.º 589/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso, com os seguintes fundamentos:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Não obstante o recorrente ter centrado a questão de constitucionalidade numa única disposição legal: a alínea c) do artigo 9.º da Lei n.º 27/96, de 1 de agosto, na última peça processual que apresentou – e que teve a virtualidade de identificar e deixar claro que era apenas uma a questão que se pretendia ver apreciada, de entre outras difusamente abordadas no requerimento de interposição de recurso – a verdade é que, anteriormente, se reportara à interpretação normativa a sindicar como extraível da “conjugação entre o n.º 3 do artigo 8.º e a alínea c) do artigo 9.º” ambos da referida Lei n.º 27/96.
De facto, no requerimento de interposição de recurso, o recorrente sintetiza o entendimento extraível do arco de preceitos identificado da seguinte forma:
“(…) constitui causa de perda de mandato a violação culposa de instrumentos de ordenamento do território ou de planeamento urbanístico aplicáveis válidos e eficazes”, analisando-se, na ação judicial conducente a esse efeito, “a culpa, mas, ao mesmo tempo, (…) a violação das normas aplicáveis”, o que envolve a pronúncia “sobre a ilegalidade dos atos”.
Nestes termos, conclui-se que a questão, alicerçada no arco normativo identificado e enunciada nos termos expostos, detém conteúdo normativo, encontrando-se suficientemente delimitada.
(…) Identificada a questão que constitui o objeto do recurso, cumpre verificar se o recorrente cumpriu o ónus de suscitar a mesma, previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo.
Relativamente a este pressuposto de admissibilidade do recurso, salienta-se que a sua importância é realçada pela circunstância de condicionar a legitimidade para recorrer, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
De facto, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do mesmo diploma, os recursos em análise “só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade (…) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”
Ora, o cumprimento do presente pressuposto de admissibilidade do recurso implica que a questão de constitucionalidade normativa seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, exigindo-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e enunciação da questão e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se pronuncie especificamente sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que a norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar, tem necessariamente de assentar num preceito ou conjunto de disposições legais, que deverão ser individualizados e especificados.
A este propósito, refere o Acórdão n.º 175/06 deste Tribunal Constitucional (disponível no mesmo sítio da internet):
“A indicação do concreto preceito legal sob cuja veste a norma aparece no nosso sistema jurídico é elemento essencial para o conhecimento da questão de constitucionalidade, não podendo ter-se por adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade sem uma tal identificação, em virtude de, no nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas, poderem constituir objeto do recurso normas jurídicas que estejam recortadas em disposições ou preceitos que resultem do exercício de um poder normativo (conceito funcional de norma).
(…)
A identificação da base legal à qual se imputa a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é, pois, um momento insuprível do controlo de constitucionalidade, na medida em que importa saber se essa base legal elegida para a fiscalização de constitucionalidade se apresenta como idónea a suportar esse sentido (…)”
À luz destas considerações, vejamos se, no caso concreto, se encontra preenchido o pressuposto de admissibilidade que vimos de analisar.
Compulsadas as alegações do recurso de revista, apresentadas pelo aqui recorrente – peça processual em que o mesmo deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão que pretendesse erigir como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade – constata-se que a violação da Lei Fundamental é problematizada, nas seguintes passagens:
“(…) Seria flagrante a ilegalidade e manifesta a inconstitucionalidade, caso se permitisse que uma ação urgente – com a limitação de prova e de contraditório decorrente do regime processual previsto no art. 15º da Lei n.º 27/96 – fosse admitida a substituir-se à ação administrativa especial prevista no art.º 46° do CPTA,
(…) Ou caso se admitisse, sem implicar qualquer pronúncia acerca da legalidade dos atos em causa – cujo objeto, como é sabido, estará reservado a uma ação administrativa própria – como apta a aplicar a um eleito local a sanção legal perda de mandato.
(…) Não só estaria a violar a lei processual, como a violar o normativo constitucional consagrado no art.º 242, n.º 3 da CRP,
(…) Pois, estar-se-ia a aplicar aquela sanção sem a verificação da existência, pelo meio próprio, de qualquer ação ilegal.”
E, mais adiante, acrescenta:
“ (…) Com o acórdão recorrido exemplarmente refere:
O núcleo da AAE impugnatória normal do CPTA é, quando esteja em causa o art.º 68º do RJUE, aferir da violação (culposa ou não) de instrumentos de ordenamento do território (num aspeto objetivo), ao passo que o núcleo do processo especial e urgente da Lei n.º 27/96 é, quando esteja em causa o art. 68° do RJUE, aferir da culpabilidade do autor concreto daquela violação de instrumentos de ordenamento do território (num aspeto subjetivo), resultando em causas de pedir parcialmente diferentes, em pedidos diferentes e, assim em objetos processuais e réus distintos”.
(…)
Por isso, nenhum reparo merece a conclusão de que:
“Não pode, portanto, haver este tipo de processo referido nos artigos 11° e 15° da Lei n.º 27/96, sem antes haver a invalidação do ato decisório em causa numa AAE onde o Tribunal declare que certo facto da autoria do réu foi ilegal, com trânsito em julgado, o que deve ser invocado neste processo especial urgente.
Trata-se de um requisito de admissibilidade da instância, ou seja de um pressuposto processual específico deste processo urgente, cuja não ocorrência constitui exceção dilatória nominada, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do pedido e implica a absolvição da instância.
(…)
Assim, como decorre do art.º 495° do CPC, aplicável ex vi art. 1° do CPC, trata-se de evidentemente de uma exceção dilatória inominada,
(…)
Pelo que, independentemente de a questão desta exceção ter ou não sido carreada para a discussão dos autos por via do recurso subordinado interposto,
(…)
Sempre se impunha o seu conhecimento pelo Tribunal recorrido, precisamente por ser do conhecimento oficioso do Tribunal.
(…)
Qualquer entendimento que pretenda por em causa estas premissas e conclusões do acórdão recorrido além de ilegal, padecerá ainda de manifesta inconstitucionalidade, por afronta ao limite constitucional previsto no atrás citado artigo 242º, n.º 3 da CRP.”
Dos excertos transcritos resulta que, perante o Tribunal a quo, o recorrente se limitou a problematizar o regime da ação tendente à declaração de perda de mandato, defendendo a tese da necessidade de interposição prévia de ação administrativa própria para a aferição das ilegalidades, nomeadamente referentes à violação dos instrumentos de ordenamento do território ou de planeamento urbanístico. Nesse contexto, a convocação de argumentos de constitucionalidade surge, genericamente reportada ao regime legal, como forma de enfatizar a correção e justeza da tese sufragada pelo recorrente, em detrimento da defendida pela contraparte.
Em nenhum momento, porém, o recorrente enunciou perante o tribunal a quo, de forma adequada - expressa, direta e clara - a questão de constitucionalidade que erigiu como objeto do presente recurso, selecionando as concretas disposições legais, em cuja conjugação a mesma questão assenta.
Ora, como já referimos, citando o Acórdão n.º 175/06, “a indicação do concreto preceito legal sob cuja veste a norma aparece no nosso sistema jurídico é elemento essencial para o conhecimento da questão de constitucionalidade, não podendo ter-se por adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade sem uma tal identificação”.
Nestes termos, face à circunstância de o recorrente não ter cumprido, de forma adequada, o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, perante o tribunal a quo, ficou definitivamente prejudicada a admissibilidade do presente recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. O reclamante refere discordar do fundamento da decisão de não conhecimento do recurso, especificando que a jurisprudência do Tribunal Constitucional em que a mesma assenta - baseada no entendimento de que a identificação do preceito, de que é extraível o critério normativo a sindicar, é indispensável à admissibilidade do recurso - é, “de um ponto de vista técnico, profundamente questionável”.
Aprofundando tal asserção, em primeiro lugar, refere o reclamante que o objeto de fiscalização de constitucionalidade corresponde a uma norma e não a um enunciado de norma, pelo que, sobre a parte que interpõe um recurso de constitucionalidade, deve recair o ónus de identificação apenas da norma e não do enunciado da mesma.
Acresce que existem normas, cujos elementos estruturais se encontram dispersos em diferentes preceitos, existindo outras que não podem reconduzir-se a um texto específico ou a um específico preceito.
Em segundo lugar, a doutrina defendida, quanto à indispensabilidade de identificação do preceito, determina a irrecorribilidade de normas que não assentam em preceitos, como os princípios obtidos por generalização ou as normas consuetudinárias.
Conclui o reclamante que a correlação automática e estritamente formal entre a suscitação da questão e a identificação de um preceito é suscetível de gerar situações manifestamente injustas de denegação de justiça constitucional.
Não obstante tais considerações, afirma o reclamante que o pressuposto de suscitação prévia da questão, nomeadamente com identificação prévia do preceito respetivo, encontra-se preenchido, nos autos.
Especifica que, na contestação apresentada na 1.ª Instância, “fez menção à alínea c) do artigo 9.º da Lei n.º 27/96, de 1 de agosto, referindo a existência de problemas de constitucionalidade na interpretação extensiva da mesma quando conjugada com o artigo 8.º, n.º 3, dessa Lei”.
Alega o reclamante que, na 2.ª Instância, o processo se começou a circunscrever à questão de constitucionalidade, que pretende ver apreciada, tendo, nessa instância, suscitado a questão nos exatos termos que plasmou, posteriormente, no presente recurso, fazendo menção expressa ao preceito envolvido.
Mais refere o reclamante que, nas contra-alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, o artigo 9.º, alínea c), é mencionado por diversas vezes, assumindo a questão da relação entre o objeto da ação e a sua natureza urgente – que constitui a perspetiva mais relevante do problema de constitucionalidade - um papel central.
Conclui o reclamante, desta forma, que, quando o processo chega ao Supremo Tribunal Administrativo, a questão material já está definida, perdendo a sua identificação formal relevância. Acresce que, nas contra-alegações, se faz várias referências à “ação de perda de mandato prevista na Lei n.º 27/96, de 1 de agosto”, o que, “num processo relativo à perda de mandato por eventual prática culposa de ilegalidades urbanísticas, é uma forma clara e explícita de referenciar o enunciado normativo que o artigo 9.º, alínea c), dessa Lei consubstancia”.
Não obstante, acrescenta ainda o reclamante que o assunto volta a ser retomado na reclamação relativa ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, peça processual em que o reclamante identificou o “preceito”, aduzindo a razão que justifica o seu juízo de inconstitucionalidade e referindo as normas do texto constitucional que considera violadas. Na perspetiva do reclamante, sendo tal peça apresentada com fundamento em omissão de pronúncia quanto à questão de constitucionalidade, a referência a tal questão terá de ser considerada para afeito de aferição do cumprimento do ónus de suscitação prévia.
Nestes termos, conclui o reclamante que a não admissão do recurso com base na circunstância de, nas contra-alegações na 3.ª Instância, não ter havido menção à alínea c) do artigo 9.º da Lei n.º 27/96, de 1 de agosto, particularmente após o reclamante ter sido “convidado a esclarecer pressupostos processuais distintos daquele que acaba por justificar o indeferimento na Decisão Sumária n.º 480/2012, parece ser, de facto, um equívoco. E, mais ainda, num cenário em que, para além do preenchimento de todos esses pressupostos, é evidente e notório que há um problema efetivo de conformidade com a Constituição e que a correta decisão do processo de base está totalmente dependente do juízo sobre esse problema.”
Em consequência, reafirmando que cumpriu o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, peticiona o reclamante o deferimento da presente reclamação.
4. O Ministério Público, na sua resposta, manifesta a sua inteira concordância com a decisão sumária proferida, concluindo que a reclamação apresentada não merece provimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do sentido decisório da decisão sumária proferida, quanto ao não conhecimento do objeto do recurso, como melhor explicitaremos de seguida.
Na verdade, não obstante as considerações teóricas sobre a dificuldade/impossibilidade de concretizar as específicas disposições legais de suporte de determinados critérios normativos, o próprio reclamante reconhece, implicitamente, que, no caso concreto, não existia qualquer óbice a uma enunciação clara e precisa do critério normativo, cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, com referência expressa ao arco de disposições legais de que o mesmo é extraível.
Como se refere no Acórdão n.º 175/06 – já citado na decisão reclamada – “a identificação da base legal à qual se imputa a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é (…) um momento insuprível do controlo de constitucionalidade, na medida em que importa saber se essa base legal elegida para a fiscalização de constitucionalidade se apresenta como idónea a suportar esse sentido (…)”.
Se é certo que o Tribunal Constitucional, em situações justificadas, deve admitir uma certa fluidez na precisa determinação dos concretos preceitos em que o recorrente faz assentar o critério normativo, cuja constitucionalidade problematiza, não é menos certo que tal fluidez não pode nunca confundir-se com um total e injustificado esvaziamento do ónus de delimitação do objeto do recurso, na sua componente de referência ao núcleo essencial de disposições em que o critério normativo a sindicar encontra um mínimo de correspondência verbal.
Conclui-se, deste modo, que impendia sobre o recorrente o ónus de identificar, com um mínimo de precisão, a concreta composição de disposições legais, de que era extraível a interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretendia problematizar, de modo a que o tribunal a quo ficasse alertado para a necessidade de, convocando tais disposições legais com o sentido interpretativo que a parte enunciou, conhecer previamente da questão de constitucionalidade colocada.
Tal suscitação, de acordo com o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, deveria ter ocorrido perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – sendo irrelevante eventual suscitação perante tribunal diverso - ou seja, no caso, perante o Supremo Tribunal Administrativo, em momento processualmente adequado, de forma a criar para o mesmo um dever de pronúncia sobre a matéria.
Assim, como se refere na decisão reclamada, seria nas alegações do recurso de revista, apresentadas pelo aqui recorrente, que o mesmo deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão que pretendesse erigir como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade, sob pena de, incumprindo tal ónus, ficar definitivamente prejudicada a admissibilidade de tal ulterior recurso, por ser já intempestiva eventual suscitação posterior.
Ora, compulsada a referida peça processual, constata-se que, em nenhuma passagem, porém, o recorrente enunciou de forma adequada - expressa, direta e clara - a questão de constitucionalidade que erigiu como objeto do presente recurso, selecionando as concretas disposições legais, em cuja conjugação a mesma questão assenta.
Por tudo quanto fica exposto, reiterando a fundamentação da decisão sumária proferida, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
6. Nestes termos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 18 de outubro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 10 de janeiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral