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Processo n.º 948/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenada, pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, pela prática de um crime de insolvência dolosa, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos.
Tendo o Ministério Público interposto recurso da sentença condenatória, foi tal decisão revogada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de 30 de abril de 2008, condenou a arguida, pela prática do referido crime, em pena de prisão de dois anos e três meses, suspensa na sua execução por igual período.
Notificada deste acórdão, a arguida apresentou requerimento, no qual solicitou as “transcrições de todos os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento — através da reprodução de cópias simples a extrair dos autos.”, o que foi indeferido por despacho do Desembargador Relator.
A arguida interpôs recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional em 27 de Maio de 2008.
Entretanto, por requerimento entrado em 28 de janeiro de 2009 a arguida solicitou ao Tribunal da Relação de Coimbra cópia das cassetes de gravação da audiência de julgamento, para proceder à sua transcrição, para instruir o recurso para o Tribunal Constitucional, o que foi deferido.
Por requerimento entrado em 3 de março de 2009, a arguida solicitou ao Tribunal da Relação de Coimbra a verificação da conformidade da transcrição do conteúdo das referidas cassetes por si efetuada, o que foi indeferido por despacho do Desembargador Relator proferido em 4 de março de 2009.
A arguida reclamou desta decisão, tendo a reclamação sido indeferida por despacho proferido em 6 de maio de 2009 pelo Desembargador Relator.
Entretanto, o Tribunal Constitucional por decisão sumária proferida em 21 de abril de 2009 não tomou conhecimento do recurso.
A arguida reclamou desta decisão para a conferência que, por acórdão proferido em 19 de outubro de 2009, indeferiu a reclamação.
Entretanto, a arguida havia também reclamado da decisão proferida pelo Desembargador Relator em 6 de maio de 2009 para a conferência do Tribunal da Relação, tendo a reclamação sido indeferida por acórdão proferido em 24 de junho de 2009.
A arguida pediu a aclaração desta decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 14 de outubro de 2009.
A arguida recorreu então novamente para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
“Com o fundamento em que tal questão não fora suscitada 'durante o processo', o Tribunal Constitucional, pela Decisão Sumária de 21 de abril de 2009, agora confirmada pelo Acórdão da Conferência de 14 (ou 17) de outubro da sua 1ª Secção, decidiu não admitir um anterior recurso da recorrente - decisão essa que em nada prejudica a presente porquanto as decisões sob recurso são diferentes.
Pois bem: sendo pertinente a razão então invocada para não admitir o recurso - e não havendo meio de impugnar o decidido, tem tal razão de se ter por estabelecida definitivamente - deve agora, por igual critério, ser conhecida a questão de constitucionalidade, que se resume a isto:
– como refere o despacho recorrido, 'Antes das alterações ao art. 412º do C.P.P., introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, essa transcrição cabia ao tribunal e não ao arguido' (e o mesmo, noutras formulações, decidiu a Conferência: a realização da transcrição do registo da prova 'como se menciona no acórdão reclamado, não competia na anterior versão do C.P.P., nem na atual, ao arguido.');
– depois dessas alterações, a tese defendida pelo despacho (e subsequentemente endossada pela conferência do Tribunal da Relação de Coimbra, nas duas circunstâncias em que se pronunciou sobre a questão) é a de que não tem o tribunal, sequer, que certificar as transcrições a que a recorrente procedeu para pôr à disposição dos tribunais superiores - e não tem esse ónus nem mesmo naqueles casos em que à altura da preparação da sua defesa a recorrente contava - como tinha o direito de contar, pois a Lei n.º 48/2007 foi superveniente - que tal registo de prova fosse disponibilizado ao Tribunal da Relação de Coimbra.
E deveria conhecer desta questão de constitucionalidade - e de inesperado encurtamento das garantias de defesa constitucionalmente salvaguardadas - porque não só a questão de constitucionalidade foi claramente suscitada antes da decisão final do Ex.mo Desembargador-Relator de que agora se recorre (e, por maioria de razão, das subsequentes decisões da Conferência do Tribunal da Relação de Coimbra) como sobre tal questão de constitucionalidade houve expressa pronúncia nessa decisão (ainda que para a negar, sendo que é ao Tribunal Constitucional que caberá a última palavra sobre essa matéria).
Assim:
– o presente recurso esteia-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC;
– as normas sob escrutínio são as dos artigos 411 e 412, ns. 3 e 4 do CPP, no entendimento, expressamente professado no despacho recorrido e nas subsequentes decisões da conferência, de que, mesmo para julgamentos ocorridos antes da alteração de 2007, os tribunais estão isentos de qualquer obrigação de certificar as transcrições do registo de prova (com isso, naturalmente, muito as desvalorizando como instrumentos de aferição da aplicação do Direito aos factos);
– as normas e princípios constitucionais violados são o da tutela da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito, e a do artigo 32º, n.º 1, da CRP (garantias do processo criminal);
– estas questões de constitucionalidade (que no pedido de aclaração dirigido à Conferência do Tribunal da Relação de Coimbra se tentou lograr que fossem precisadas com exatidão:
é porque a recorrente não tinha esse direito quando foi sujeita a julgamento? Ou é porque tendo-o nessa altura, o podia perder - por daí não resultar nenhum 'agravamento sensível e evitável da sua situação processual'? Ou é por, tendo embora tido esse direito, e da sua perda resultar um 'agravamento sensível e evitável da sua situação processual”, não se considera, ainda assim, que dessa perda e desse agravamento possa resultar uma lesão às normas e aos princípios constitucionais aplicáveis?
Qualquer dos três entendimentos é, à luz do laconismo decisório da Conferência, igualmente plausível - mas o seu sentido é, do ponto de vista da suscitação da inconstitucionalidade (que se tornou a única expectativa de reparação daquilo que a recorrente não pode deixar de considerar um erro judiciário), muito diverso.
Por isso, muito respeitosamente, se pede à Conferência que opte por uma destas três possíveis interpretações - em vez de se escudar numa repetição do que a recorrente bem sabe: é claro que não há norma que expressamente preveja a obrigação de certificar uma transcrição que a recorrente só fez para reparar uma omissão (para ela muito gravosa) do Tribunal (decerto, do de 1ª instância). Nem podia haver: na pureza dos princípios o problema de que a recorrente arrosta as consequências nunca devia ter existido.
Estando ele aí a opção que se punha à recorrente era continuar a pugnar pelo cumprimento do dever do Tribunal, tal como resultava da lei aplicável à altura do seu julgamento, ou fazer por ela o mais que ao Tribunal competia, pedindo-lhe apenas um mínimo. Custa-lhe especialmente que seja porque ela fez o que podia, que se lhe recuse um pouco do muito que lhe era devido: é como se alguém que lhe devesse dez mil e a quem decidiu pedir apenas 100 o recusasse com o fundamento de que não há, nem nunca houve, nenhuma dívida de 100...)
foram suscitadas no requerimento de 17 de março de 2009, e, desde então, foram sempre retomadas pela recorrente, tendo sido apreciadas e decididas negativamente no conjunto das decisões ora recorridas;
– estão esgotados os recursos que eram admissíveis no caso, pois a decisão do Ex.mo Desembargador-Relator foi recorrida para a Conferência, no intuito, expresso e - como resulta da transcrição supra - anunciado, de obter uma definição da norma que, sustentando essa superveniente diminuição de garantias, em resultado da alteração da lei aplicável, permitisse suscitar sem ambiguidades, perante a jurisdição constitucional, a correspondente questão de inconstitucionalidade;
– a insistência das subsequentes decisões em omitir uma norma de cobertura (negando a existência de um problema que é um problema de constitucionalidade, e que é um problema normativo de constitucionalidade) impedem a recorrente de fazer mais (e melhor) do que o Tribunal Constitucional exige: indicar a questão jurídico-processual que suscita a questão de inconstitucionalidade, sendo o seu enquadramento normativo aquele que os Tribunais lhe entenderem dar (ver, por exemplo, acórdãos ns. 255/98 e 39/04);
– como o demonstra, até, a autonomia dos autos em que se discute a certificação das transcrições da prova produzida em audiência (que permanecem no Tribunal da Relação de Coimbra) e dos autos onde se discute, sobretudo, a decisão condenatória (que se encontram no Tribunal Constitucional), trata-se de um mesmo problema, sim, mas em dois diferentes contextos e em duas diferentes fases processuais;
– o interesse da recorrente em poder dispor de uma versão certificada da prova produzida em audiência decorre da possibilidade de, com base nela, impugnar a conformidade constitucional do entendimento dado pelo Tribunal da Relação de Coimbra à norma que autoriza a livre apreciação da prova (o artigo 127º do CPP) - que, como resultará do confronto com o seu registo e se intentará demonstrar nas alegações, se verificará ter sido entendido de modo constitucionalmente inadmissível”.
A arguida apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“a. A norma impugnada é a dos ns. 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que não tem o tribunal, sequer, que certificar as transcrições a que a recorrente procedeu para pôr à disposição dos tribunais superiores - e não tem esse ónus nem mesmo naqueles casos em que à altura da preparação da sua defesa a recorrente contava - como tinha o direito de contar, pois a Lei n.º 48/2007 foi superveniente - que tal registo de prova fosse disponibilizado ao Tribunal de recurso.
b. O problema de constitucionalidade surge dos efeitos que daí decorrem, designadamente a diminuição de direitos de que usufruíam os arguidos no momento em que foram julgados, por um lado, e a impossibilidade de, por essa via ínvia da alteração do regime aplicável à transcrição da prova produzida em audiência, se comprovarem os desvios ao princípio da livre apreciação da prova, por outro.
c. Esse problema de diminuição de direitos processuais e de desproteção da confiança traduz-se também numa violação do princípio da igualdade (se o pedido de transcrição tivesse sido feito antes da entrada em vigor da Lei n.º 42/2007, como podia ter sido, teria de ter sido deferido; já a mera certificação da transcrição efetuada pela, e a expensas, da recorrente, após a entrada em vigor dessa lei, foi recusada).
d. Assim, o entendimento dado à norma dos ns. 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal viola os princípios constitucionais da tutela efetiva e do direito de recurso, previstos nos artigos 20º, nº 5, e 32º, nºs. 1 e 2, da CRP, e, na medida em que não ressalva a sua aplicação aos casos em que as expectativas de convocação do regime previamente vigente decorriam do decurso integral da audiência de discussão e julgamento a documentar sob o império da lei anterior, estabelece uma discriminação injustificada, violando o princípio da tutela da confiança inerente ao Estado de Direito (artigo 2º da CRP) e o princípio da igualdade (artigo 13º da CRP).
e. Perante o consenso da jurisprudência constitucional sobre a valia das transcrições da prova produzida e registada magneticamente na audiência de julgamento como expressão das garantias de defesa do arguido em processo penal, a supressão dessa garantia de defesa, não apenas para futuro, mas também para as situações que só retroactivamente a nova lei podia contemplar (como as referentes a audiências decorridas integralmente ao abrigo da lei que impunha tal transcrição ao Tribunal), implica desconformidade com os valores da nossa Constituição, designadamente a tutela da confiança e o princípio da igualdade.”
O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Foi proferido despacho no sentido das partes se pronunciarem sobre a eventual inutilidade do recurso, tendo em consideração o trânsito em julgado da decisão sumária proferida nestes autos pelo Tribunal Constitucional em 21 de abril de 2009, tendo apenas o Ministério Público emitido opinião no sentido do recurso ser julgado extinto por inutilidade.
Fundamentação
O presente recurso tem por objeto a interpretação dos artigos 411.º e 412.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal, no entendimento de que, mesmo para julgamentos ocorridos antes da alteração de 2007, os tribunais estão isentos de qualquer obrigação de certificar as transcrições do registo de prova.
Esta interpretação foi sustentada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de junho de 2009 que indeferiu a reclamação de despacho proferido pelo Desembargador Relator em 6 de maio de 2009, o qual confirmou o indeferimento do pedido de verificação da conformidade da transcrição do conteúdo do registo dos depoimentos prestados na audiência de julgamento.
Essas transcrições tinham como finalidade a instrução de recurso então interposto para o Tribunal Constitucional.
Ora, tendo esse recurso já sido objeto de decisão sumária de não conhecimento transitada em julgado, a pretendida certificação perdeu qualquer utilidade nos autos.
Tendo a pretensão que foi indeferida pela decisão recorrida perdido utilidade, também o presente recurso se revela inútil, atenta a sua natureza instrumental, o que determina a sua extinção.
Decisão
Pelo exposto, declara-se extinto o recurso interposto por A. para o Tribunal Constitucional.
Sem custas.
Lisboa, 10 de abril de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura - Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.