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Processo nº 169/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O relator proferiu “decisão sumária” de não conhecimento do recurso, interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1, do art.º 70.º da Lei 28/82 de 15 de Novembro, pelos arguidos A. e B., do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Junho de 2012, com a seguinte fundamentação:
“[ …]
2. O recurso foi admitido no tribunal a quo, mas não pode prosseguir, o que imediatamente se decide, ao abrigo do art.º 78.º-A da LTC.
Efectivamente, como resulta da Constituição (art.º 280.º da CRP) e da Lei (art.º 70.º da LTC), no nosso sistema jurídico o recurso de constitucionalidade só pode ter por objecto (em sentido material) normas jurídicas e não as concretas decisões judicias que as aplicam, em si mesmas consideradas.
Ora, os recorrentes não submeteram a apreciação de constitucionalidade um critério normativo susceptível de generalização, mas o juízo probatório concreto efectuado pelo Tribunal da Relação. Na verdade, a alegada violação de normas e princípios constitucionais resulta de, no acórdão recorrido, se ter julgado
- “contra prova produzida, tendo por base meras suposições e imputações genéricas”, sem referir “qualquer facto concreto, ignorando a prova produzida em primeira instância, sem que resultem tais conclusões supra referenciadas”
- “contra factos expressos, sem prova, com base no “talvez” e com afirmações e imputações genéricas, para retirar as conclusões que levaram a alterar a resposta ao [factos provados]” e retirando conclusões “sem que se refira qualquer facto probatório concreto, contra FP e prova produzida, pelo “cheiro” e sem que se concretizem quaisquer factos de onde resultem tais afirmações”.
Assim, sendo a violação de normas constitucionais que os recorrentes pretendem ver apreciadas indesligável da concreta valoração dos factos e dos elementos processuais a que se procedeu no acórdão recorrido, não pode conhecer-se do objecto do recurso, por não ser idóneo ao sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade”.
2. Os recorrentes reclamam para a conferência nos termos seguintes:
A) A recorrente B.
“1º- Na decisão sumária proferida o TC entendeu não conhecer do objeto do recurso por, segundo ela, as “normas serem indesligáveis da concreta valoração dos factos e dos elementos processuais a que se procedeu no acórdão recorrido”;
2º- Ora, salvo o devido respeito, a verdade é que a recorrente, porque se trata de fiscalização concreta, apontou o que se passara o Ac. TRL recorrido;
3º- E a partir dali invocou as inconstitucionalidades de interpretação que entendeu verificarem-se;
4º- Efetivamente, como se alcança de 6º, 11º, 13º e 14º do reqto de interposição do recurso, a arguida partir do caso concreto arguiu a inconstitucionalidade da interpretação das normas ali indicadas;
5º- Como resulta, em nossa modesta opinião, do referido reqto;
6º- Concretamente em 6° desse reqto arguiu a inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção da inocência e do direito de defesa (artºs 32º, nº 1 e 2 CRP e artº 6º §2 CEDH), da interpretação do artº 127º CPP, no sentido de que as regras da experiência comum, desacompanhadas da indicação dos concretos meios de prova e FP, contra factos expressos, sem prova, com base no “talvez” e com afirmações e imputações genéricas permitem a alteração da resposta à matéria de facto com base nas disposições conjugadas dos artºs 412º, nº 3 e 6, 410º, nº 2 e 431º, al. b) CPP;
7º- Já em 11º arguiu a inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção da inocência e do direito de defesa (artºs 32º, nº 1 e 2 CRP e artº 6º §2 CEDH), da interpretação do artº 431º, al. a) CPP no sentido em que ele permite a modificação dos FP contra prova testemunhal produzida e prova documental autêntica, sem que jamais a força probatória formal e material de tais documentos autênticos haja sido sequer posta em causa;
8º- E em 13º e 14º, arguiu a inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção da inocência e do direito de defesa (artº 32º, nºs 1 e 2 CRP e artº 6º §2 CEDH) da interpretação do artº 186º, nº 2 Lei 23/2007 que entende que é doloso, e por isso comete o referido crime, o comportamento de quem cria condições, fomenta, aligeira procedimentos, contorna a lei com base na mera solicitação dos angariadores nesse sentido, sem que se refira qualquer facto probatório concreto de onde resultem tais afirmações;
9º- Donde o que foi invocado foram interpretações das referidas normas, partindo do caso concreto, mas não a sindicalização do caso concreto;
10º- Que evidentemente não poderia nem poderá suceder;
11º- Pelo que se requer a revogação da decisão sumária em apreço e admissão do recurso, com a consequente notificação para prazo para alegações”.
B) O recorrente A.
“1. Em sede de decisão sumária proferida, foi entendimento do Tribunal Constitucional, não conhecer do objeto do recurso por, de acordo com a mesma, as normas serem indesligáveis da concreta valoração dos factos e dos elementos processuais a que se procedeu no acórdão recorrido.
2. Ora, salvo melhor opinião, o recorrente, e até porque se trata de fiscalização concreta, apontou o que se passara no Ac. TRL recorrido, e só a partir daí é que foram invocadas as inconstitucionalidades de interpretação que no seu entendimento se verificaram;
3. Como se pode verificar dos pontos 7 e 11 do requerimento de recurso, o arguido, a partir do caso em concreto arguiu a inconstitucionalidade das normas ali explanadas;
4. Socorrendo-nos uma vez mas do requerimento de recurso, podemos constatar que, salvo melhor opinião, no ponto 7 do dito requerimento, foi arguida a inconstitucionalidade, por violação do princípio basilar do Direito Penal, o princípio da presunção de inocência e do direito de defesa (artº 32º, nº 1 e 2 CRP e artº. 6º 2 CDEDH), da interpretação dos artigos 412º. Nº 3 e 6 410 nº 2 e 431b) todos do CPP, por quanto ter a condenação por base meras suposições, contra prova produzida e imputações genéricas
5. Por sua vez, no ponto 11 do requerimento de recurso, arguiu o ora reclamante, a inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência e do direito de defesa, vide artº. 32 nº 1 e 2 da CRP, e artº. 62 $2 CEDH, da interpretação do disposto no artigo 186º nº 2 da Lei 23/2007, no sentido de que comete tal tipo legal e age com dolo quem cria condições, fomenta, organiza, transporta pessoas, cria condições necessárias à realização de um número significativo de casamentos, colabora com angariadores conclusões que se retiram sem que se refira qualquer facto probatório concreto, ignorando a prova produzida em primeira instância, sem que haja uma concretização dos factos de onde resultem tais conclusões.
6. Ora, o que efetivamente foi invocado, foi a interpretação das normas partindo do caso concreto, pois o contrário não poderia suceder,
7. Por todo o exposto, requer-se a revogação da decisão sumária em apreço e admissão do recurso, com a consequente notificação para prazo para alegações”.
3. O MP pronuncia-se no sentido de que a reclamação é improcedente, não logrando a argumentação dos recorrentes abalar os fundamentos da decisão sumária.
Cumpre decidir.
4. Em primeiro lugar, deve notar-se que a decisão reclamada não se afastou do entendimento sedimentado do Tribunal de que a natureza normativa do objeto da fiscalização de constitucionalidade que lhe está cometida não é incompatível com a apreciação de particulares sentidos com que a norma tenha sido tomada pela decisão recorrida.
E também não é a circunstância de a determinação das normas sujeitas a fiscalização de constitucionalidade se socorrer de elementos do caso que implica, por si só, a identificação do objeto do recurso com a sindicação do caso concreto e a consequente rejeição do recurso por falta de objecto idóneo.
Necessário é, porém, que o interessado logre enunciar uma formulação do objecto do recurso que se compatibilize com duas exigências. Por um lado, que esse enunciado seja susceptível de autonomização do caso concreto, apresentando-se como um sentido normativo suscetível de generalização. E, por outro lado, que corresponda ao concreto critério normativo adotado como ratio da decisão recorrida.
5. Vejamos a aplicação dos poderes da Relação na valoração da prova que está em causa, transcrevendo as passagens mais impressivas.
“835) No casamento estiveram presentes os arguidos C., D. e E..
1348) No dia 9 de janeiro de 2009, os arguidos F.. A. e G. tinham na sua posse e inteira disponibilidade vários bens, objetos, valores, e documentos relacionados com as atividades de_ angariação de contratos de trabalho falsos, obtenção de extratos da segurança social e realização de casamentos simulados ou por conveniência.
iii. O nº 2 do artº. 186º, da Lei nº 23/2007, de 4.7. estipula: Quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.”.
O que decorre dos factos relativos aos arguidos G. e A. é, precisamente, que ao longo de muitos meses, se dedicaram, de forma organizada e reiterada, à criação das condições necessárias à realização de um número significativo de casamentos, cujo único objetivo era o de proporcionar a obtenção de uma autorização de residência no Espaço Schengen, para estrangeiros indocumentados (essencialmente, em Espanha). A sua atuação foi dolosa, porque querida.
E assim singelamente se conclui, atento o número de casamentos que pessoalmente realizaram (isto é. em que angariaram diretamente os nubentes), bem como a forma como agiram, em colaboração não apenas uns com os outros, mas também com outros angariadores, para os quais tratavam de organizar o casamento, oferecendo um “serviço” pelo qual eram pagos, que abrangia desde o local da realização dos matrimónios, passando pela obtenção de documentação necessária à celebração do ato, pelo “fornecimento” de “noivos”, até à finalização do processo de legalização, com acompanhamento personalizado dos nubentes a Espanha, para obtenção da almejada autorização de residência.
iv. Face ao que se deixa dito, mostra-se forçoso concluir que o tribunal a quo errou ao absolver os arguidos G. e A., pela prática deste ilícito, devendo os mesmos ser por este condenados, já que a sua atuação integra todos os elementos constitutivos do tipo.
No que se reporta à tipologia e dosimetria das penas a impor, debruçar-nos-emos sobre tal questão infra, em sede própria (ponto F. deste acórdão).
3-B. Arguida B..
i. O recorrente Mº Pº invoca, a propósito da decisão proferida quanto a esta arguida, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
Invoca ainda a errónea desvalorização de depoimentos de uma série de testemunhas, que deveria ter sido atendido.
Finalmente, conclui pela ocorrência de erro de direito.
Como já atrás deixámos dito, os vícios previstos no artº 410 nº 2 do C.P.Penal regem-se por um critério estrito - têm de decorrer, única e exclusivamente do texto decisório, quando conjugado com as regras de experiência comum. Significa isto que a fundamentação da sua ocorrência não se pode basear na invocação de concretos segmentos declarativos, prestados em audiência e constantes das gravações.
Na realidade, quando o recorrente quer invocar tais segmentos, pretendendo através dos mesmos arguir que a decisão quanto à matéria fáctica se mostra incorretamente alcançada, está a suscitar um outro fundamento recursivo, isto é, está a afirmar que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, pedindo então uma reapreciação probatória, por parte do tribunal ad quem, com base nesses segmentos que invoca, em contraponto aos restantes elementos probatórios produzidos. Neste caso, estamos perante o fundamento de recurso previsto no artº 412, nºs 3 e 4 do C.P.Penal.
No caso dos autos, lidas as conclusões extraídas da motivação, conclui-se que o que o recorrente efetivamente pretende na grande maioria das críticas que dirige à decisão. não é invocar apenas um dos vícios do artº 410 mas, adicionalmente, argumentar ter havido errada apreciação probatória.
E assim concluímos porque as críticas realizadas se fundam, muitas delas, na invocação pelo recorrente de segmentos concretos de declarações gravadas, prestadas por testemunhas em julgamento - que o recorrente identifica - que entende terem sido erradamente avaliadas pelo tribunal a quo ou até, pura e simplesmente ignoradas.
Assim sendo, e uma vez que se mostram cumpridos os requisitos de que a lei processual faz depender a possibilidade de reapreciação probatória, por invocação de erro de julgamento (artº 412 nºs 3, 4 e 6 do C.P.Penal), sempre que for caso disso, proceder-se-á a tal reapreciação, ao debruçarmo-nos sobre os concretos fundamentos que o recorrente invoca, sem prejuízo de, em simultâneo (por uma questão de simplificação processual), apreciarmos igualmente, quando existam, os vícios acima mencionados.
ii. Antes de iniciarmos a apreciação pedida, convirá previamente esclarecer quais são os poderes de reapreciação de matéria de facto, pela Relação, quais os seus limites e os seus condicionalismos.
iii. Em primeiro lugar convém frisar que este poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder original atribuído ao juiz do julgamento, não podendo ser arbitrariamente alterado apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face à convicção formada pelo jugador.
De facto, compete ao Tribunal (e não aos intervenientes processuais), julgar a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artº 127 do C.P.Penal, nomeadamente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (desde que se não esteja perante prova vinculada), sendo estes os parâmetros determinantes do ato de julgar. Embora este exame tenha sempre, forçosamente, um lado subjetivo (o julgador não é uma máquina), a verdade é que estas regras (complementadas ainda pelo disposto no artº 374 nº 2 do C.P.Penal), determinam que este ato de julgar não se possa fundar em arbitrariedade ou discricionariedade, pois balizam os fundamentos da decisão.
Assim sendo, a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal - até porque se assim não fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
iv. Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, há ainda que esclarecer quais são os seus limites - ou seja, que poderes de cognição tem o tribunal de apelo.
O recurso para a Relação não constitui um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova. O que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso (pois este serve, essencialmente, como remédio jurídico), é verificar, ponto por ponto, se os erros concretos de julgamento, indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, nomeadamente em sede de reapreciação da matéria de facto com base na prova gravada, prende-se com o princípio da oralidade, no sentido de o mesmo implicar uma imediação, um contacto direto entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros), entendendo a lei que só através deste interagir pessoal, presencial, direto e imediato, é possível ao julgador formar a sua livre convicção.
Este tipo de contacto só existe, de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma perceção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos atos da audiência. E em matéria de credibilidade de depoimento, esta imediação revela- se, muitas vezes, de importância fulcral, já que o desenrolar do testemunho, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou desembaraço, enfim, todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor, que são muitas vezes insuscetíveis de serem registadas, mas que ficam na memória de quem realizou o julgamento, servem como elemento inestimável de formação da convicção do julgador, mas são praticamente insuscetíveis de serem reapreciadas em sede de recurso.
Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha - ou seja, no cumprimento do disposto no artº 374 nº 2 do C.P.Penal, face documentação da audiência.
v. Mas dentro destes parâmetros de reexame, haverá ainda que atender a um outro limite - a lei refere que, ainda assim, tal reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas acima mencionadas, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
Neste último caso, havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artºs 127 e 374 nº 2 do C.P.Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais.
4-B. Apreciando.
i. A primeira questão que é proposta prende-se com o conteúdo de dois concretos pontos da matéria de facto dada como assente, designadamente os factos 1473 e 1474.
Comecemos pela análise do segundo ponto.
Aí se mostra vertido, recordemos, o seguinte:
1474) Isto, muito embora pelo menos desde fins de maio de 2008, tenha tomado como possível e com isso se conformado, que os casamentos referidos, entre homens indostânicos e mulheres portuguesas não correspondessem a uma vontade real dos noivos em encetar vida em comum, sendo antes determinados por motivos económicos quanto a elas e, para eles, por visarem a respetiva regularização como cidadãos estrangeiros, no espaço Schengen - com exceção do referido quanto ao casamento a que alude o art.º 939º, em que, ao longo da cerimónia, a arguida terá tomado a convicção, de que o mesmo era realmente simulado, visando a noiva apenas dinheiro e o noivo a sua regularização no espaço Schengen.
ii. A primeira constatação é a de que a mera redação deste ponto se mostra contraditória em si mesma.
Na verdade, na primeira parte da frase, o tribunal descreve a atuação da arguida como aceitando como possível que os casamentos que realizou fossem simulados, tendo atuado conformando-se com aqueia realização - o que corresponde, em termos de direito, à descrição de uma atuação com dolo eventual.
No obstante, na segunda parte da frase, acaba por se desdizer, ao afirmar que a arguida celebra um casamento sabendo que o mesmo era simulado - o que corresponde, em termos de direito, à enunciação de atuação com dolo direto. (vide artº 14 do C.Penal).
Afinal, em que ficamos? Atuou com dolo direto ou com dolo eventual?
Para além do mais, este casamento que refere (o vertido no ponto 939 dos factos provados), ocorreu no dia 8 de maio de 2008, sendo certo que a grande maioria dos casamentos que celebrou, entre cidadãs portuguesas e estrangeiros de origem hindu, ocorreu depois dessa data, até janeiro de 2009.
E, em sede de factos provados, não foi apenas quanto a este casamento que o tribunal a quo deu como assente que a arguida soube que se tratava de um casamento simulado (ponto 98).
Também assim expressamente concluiu no que se refere ao casamento celebrado no mesmíssimo dia 8 de maio (nubente Fátima Mesquita, ponto 959), bem como no de dia 2 de julho de 2008 (ponto 1063 a 1066), pois deixou vertido que a arguida celebrou estes casamentos, apesar de bem saber que os mesmos eram simulados, já que os nubentes não tinham a intenção de encetar vida em comum servindo o casamento tão-só para a regularização da situação do nubente masculino como imigrante.
Estranha-se, pois, que em sede do ponto 1474, o tribunal a quo tenha singularìzado apenas um desses casamentos.
iii. Face às patentes contradições, constantes na própria enunciação relativa ao dolo, vertida no mencionado ponto 1474, torna-se manifesto que o aí vertido não pode subsistir “qua tale”, já que se mostra, a um tempo, errado e contraditório, não apenas em si mesmo, como face à mera leitura da restante matéria fáctica que o tribunal “a quo” deu como assente.
O dolo, embora sendo matéria factual, parametriza-se como um facto psicológico, de cariz interno. Isto significa que a sua apreensão não acontece, por regra (e a exceção é, precisamente, o caso de confissão integral, em que o sujeito verbaliza essa sua interna vontade e intencionalidade), de forma direta, sensorial, não é algo que seja diretamente apreensível mediante observação. Ao invés, a sua averiguação decorre da avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência.
Tendo em vista tais considerandos, há então que suprir o erro e as contradições acima indicados, procedendo à avaliação da matéria de facto assente, bem como à análise dos depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas (às quais o tribunal a quo nem sequer faz referência), para podermos esclarecer qual a intenção que presidiu à atuação da arguida.
iv. Começando pela matéria fáctica provada, constata-se que o tribunal a quo deu como assente, em relação à grande maioria dos casamentos celebrados pela arguida que analisou, dois pontos fácticos de grande relevo para a matéria que apuramos, a saber:
- Que os nubentes não tiveram qualquer intervenção junto dos competentes serviços da Conservatória, designadamente na elaboração do auto de declarações, quer pessoalmente quer por intermédio de um representante legal, não tendo aí expresso qualquer manifestação de vontade na determinação da data, hora e local da realização desse ato, nem sequer então verbalizando a sua vontade em se casarem - pois todos estes atos foram realizados pelos angariadores (H., I..,J. e K., entre outros), sendo que muitas vezes, enquanto se realizava este “auto de declarações”, os nubentes estavam mesmo fora da Conservatória
- Que durante a realização do casamento foi perfeitamente visível para toda a gente o facto de entre os nubentes não existir qualquer tipo de relacionamento ou comunicação.
v. O que daqui decorre é, desde logo que, sendo a arguida gente e encontrando-se presente nos casamentos, lhe era visível a ausência de qualquer tipo de relacionamento ou comunicação entre os nubentes, como a todos os demais.
Não se vislumbra qualquer razão - nem o tribunal “a quo” a invoca ou justifica - para, face a tal visibilidade geral, se poder entender sofrer a arguida de alguma especial incapacidade para integrar o que todos os restantes percebiam.
E a verdade é que da leitura dos fatos assentes, no seu todo (designadamente, no que se reporta à forma como tais casamentos ocorreram e ao período prolongado de tempo durante os quais foram celebrados - e, note-se, o tribunal a quo até deu como provado, no ponto 1330, que a celebração deste tipo de atos apenas terminou porque ocorreu a intervenção das autoridades policiais), resulta claro que a arguida oficiou tais casamentos, sabendo perfeitamente que os mesmos eram simulados e se destinavam apenas a servir como meio para legalizar cidadãos estrangeiros.
Sejamos claros: face às regras de experiência, qualquer comum mortal se teria rapidamente apercebido de tal, sendo que a arguida nem sequer cabe nesta genérica categoria. pois a sua vida profissional era, precisamente, dedicada à prática de atos relativos ao direito de família, em que avulta a celebração de casamentos.
vi. Ora, tudo o que rodeia a celebração destes casamentos (antes, durante e depois), é de tal modo anómalo e estranho a qualquer celebração de matrimónio efetivamente destinada ao seu fim - constituição de família - que qualquer cidadão comum saberia estar-se perante um ato simulado.
Senão vejamos (vide pontos 767, 774, 779, 793, 804, 830; 896, 904, 943, 944, 945, 946, 948, 953, 954, 955, 956, 957, 959, 975, 1018, 1025, 1031, 1032, 1041, 1042, 1066, 1103, 1 109, 1110, 1111, 1112, 1124, 1129, 1130, 1163, 1164, 1165, 1181, 1182, 1183, 1184, 1205, 1206, 1207, 1208, 1216, 1217, 1218, 1219, 1244, 1245, 1246, 1253, 1254, 1255, 1256, 1257, 1311, 952, 953, 1012, 1017, 1024, 1030, 1040, 1162, 1180, 1215, 1237, 1244, 1252, 1304, 1310, 1005 e 1007, bem como os depoimentos prestados por L., M., N., O., P., Q., R., S., T., U., V., X., Y., Z., AA., BB., CC., DD., EE., FF., GG.):
Os casamentos são marcados sempre por terceiros e nunca pelos nubentes (nem sequer pelas noivas, todas de nacionalidade portuguesa, logo sem quaisquer problemas de expressão na língua materna);
As pessoas que marcam esses casamentos são sempre os mesmos, que vão aparecendo na CRC de Gondomar de forma sucessiva, reiterada e rotativa, acompanhando-se por vezes uns aos outros;
Alguns deles são estrangeiros, falando um português menos do que escorreito (basta atentar na forma como o arguido C. se expressa nas gravações das declarações por si prestadas em audiência);
Estas pessoas - que não dão qualquer explicação nem apresentam nenhuma relação de amizade ou parentesco com nenhum dos nubentes - aparecem quase diariamente, ao longo de um ano, numa CRC que se sita, relativamente à grande maioria dos nubentes, a mais de 200 kms das suas residências;
Aparecem acompanhados por grupos de 2 a 5 casais de nubentes, sempre constituídos por cidadãs portuguesas e cidadãos estrangeiros de origem hindu;
Têm sempre muita pressa na celebração do casamento, pedindo que a sua celebração ocorra no dia em que se dirigem à Conservatória (e quem invoca a celeridade não são os nubentes, mas sim os terceiros que tratam de todos os trâmites com os funcionários e a conservadora);
Quem trata de todo o formalismo prévio ao casamento nunca são os noivos - que praticamente só fornecem os seus cartões identificativos e as moradas;
Mesmo quando, ocasionalmente, é perguntado à nubente qual o regime de bens pretendido, quem acaba por responder é o terceiro e não a própria, sem que haja qualquer reação de estranheza por parte dos funcionários que tratam do processo de casamento:
Os nubentes vão sistematicamente vestidos de forma descuidada (alguns até em fato de treino);
Nunca são acompanhados por qualquer familiar ou amigo (apenas uma leva a mãe, porque necessita do seu consentimento para casar, já que é menor);
Não lhes é pedida nenhuma contribuição quanto à escolha das pessoas que hão de testemunhar o seu casamento, nem lhes é perguntado se estão disponíveis para testemunhar os dos restantes;
Os nubentes não conhecem a língua um do outro, nem têm nenhuma língua em comum, através da qual mantenham qualquer tipo de conversa, por mais incipiente que seja, durante o tempo que permanecem na Conservatória;
É manifesto para todos os presentes que os nubentes não mantêm entre si qualquer relacionamento ou comunicação;
Em alguns dos casamentos realizados, nem sequer é pedido aos nubentes que profiram a expressão solene de aceitação e de promessa;
Os nubentes não se referem nunca um ao outro, pelos seus nomes, nem lhes é pedido, em nenhum momento da cerimónia que o mencionem;
Todos os casamentos são celebrados em escassos minutos, quase todos na presença simultânea de todos os casais nubentes mistos a contraírem casamento nesse dia, com rápida alteração dos papéis que cada um desempenha (de nubente para testemunha e vice-versa);
Terminada a celebração do casamento, não há qualquer ato espontâneo demonstrativo de carinho entre os nubentes ou de alegria, nem sequer a troca de uma palavra entre ambos (casamentos houve que terminam com um aperto de mão entre os nubentes e, em muitos deles, nem sequer houve troca de alianças);
Os casamentos são realizados no próprio dia em que os nubentes se dirigem pela 1ª vez à CRC;
Celebram-se casamentos que foram recusados por outras conservatórias de Registo Civil (num caso, para além da recusa de celebração numa CRC do Porto, a própria funcionária da Loja do Cidadão desta cidade, vendo entrar três cidadãs portuguesas, que vêm pedir certidões de nascimento, estranha a circunstância de sendo as três de Lisboa, o estejam a fazer no Porto e, ao perguntar-lhes a que fim se destinam tais certidões - casamento com estrangeiros - recusa-se a emiti-las, aconselhando as nubentes a voltarem para casa e a melhor refletirem no que vão fazer…);
Em dois dos casamentos, uma das testemunhas encontra-se alcoolizada;
São emitidas apostilhas destes casamentos, para países da União Europeia, designadamente 1rança. Espanha e Bélgica (vide pontos 710, 1118, 1132, 1166, 1185, 1220, 1225, 1232. 1260, 1283 e 1305).
vii. Face à clareza do panorama que resulta acima exposto, a apreciação relativa à atuação da arguida, em termos de dolo isto é, de intenção actuativa - não pude deixar de ser a de que, pelo menos desde o momento de “clarividência” que o próprio tribunal “a quo” reporta e reconhece, ocorrido em 8 de maio de 2008, no casamento em que era nubente HH. (pontos 939 a 948), a arguida tinha perfeita consciência de estar a celebrar casamentos que não tinham outro fim que não o de regularizar a situação de cidadãos ilegais, de origem hindu, tendo agido com intenção de, não obstante, os realizar.
Na verdade, a partir do momento em que se apercebe que o casamento que celebra é simulado, seguramente que, em relação a todos os restantes que veio a oficiar, a partir de então, que decorreram em circunstâncias similares à deste, não pode ter deixado de ter a certeza de estar, igualmente, face a casamentos simulados, com um objetivo muito diverso do que a lei consagra e que é o de constituir família.
viii. Constata-se assim que o tribunal “a quo” errou, ao proceder ao apuramento, em lermos táticos, do dolo relativo a esta arguida, pois os elementos probatórios impõem conclusão diversa da alcançada, pelo que competirá a este tribunal, ao abrigo do disposto no artº 412 nº 3 e nº 6, 410 nº 2 e artº 431 al. b), todos do C.P.Penal, proceder à sua correção, o que será feito mediante a alteração da decisão da matéria de facto quanto a esse ponto.
Nestes termos, a redação do ponto 1774 dos tatos provados, passa a ser a seguinte:
A arguida B., pelo menos a partir do dia 8 de maio de 2008, celebrou os casamentos atrás mencionados, entre cidadãs portuguesas e cidadãos de origem hindu, bem sabendo que os mesmos não se destinavam ao prosseguimento de uma vida em comum ou à constituição de uma família, mas tinham como único objetivo a regularização da situação dos “nubentes” masculinos, como cidadãos estrangeiros, no Espaço Schengen.
5-B. Antes de entrarmos na apreciação do segundo ponto fáctico cujo teor o recorrente Mº Pº impugna, cabe-nos pronunciarmo-nos sobre um outro, em que se verifica o vício de erro notório na apreciação da prova.
Como já atrás se disse, esta matéria - vícios do acórdão - por se reconduzir a uma nulidade, é de conhecimento oficioso e, como tal, não está o tribunal ad quem limitado ao que se mostra invocado em sede de recurso.
i. Referimo-nos, em concreto, ao ponto 1479 da matéria de facto provada, em que se diz:
1479) No que se referia ao casamento de estrangeiros, a arguida B. exigia:
- um certificado de capacidade matrimonial, emitido pela entidade competente do país da nacionalidade do nubente que devia vir traduzido e apostilhado, nos termos da Convenção de Haia;
- caso o país de que o nubente era nacional não emitisse esse certificado, a arguida exigia documento consular a declarar que o país da nacionalidade não emitia tais certificados, declaração essa que a arguida confirmava, junto da Embaixada ou Consulado respetivo;
- certidão de nascimento, traduzida;
- autorização de residência ou passaporte;
- declaração da não existência de impedimento ao casamento, passado por Tribunal, conselho da união ou notário público interno do país em causa, contendo declarações de familiares e de testemunhas, cuja autenticidade a arguida confirmava junto da Embaixada ou consulado respetivos;
- declaração do estado civil ou certificado do estudo civil, emitidos pelas mesmas entidades, cuja autenticidade a arguida confirmava, junto da representação diplomática respetiva.
ii. Este ponto entra em flagrante e manifesta contradição com o que se mostra escrito em sede de fundamentação de tal matéria, pois aí se afirma:
Com efeito, os processos eram instruídos com - como referiu e consta do relatório de Inquérito Disciplinar, a fls. 11 532/11 534 e de acordo com o previsto no art.º 166º C. R. C:
- certidão de nascimento traduzida;
- certifìcado de nacionalidade, passado pela Embaixada respetiva:
- declaração da Embaixada respetiva, da não admissão de qualquer declaração de capacidade matrimonial (art.º 49º C.C - a capacidade matrimonial deve ser aferida, pela lei pessoal);
- certificação do estado civil dos mesmos,
- declaração de não objeção ao casamento, por parte do Pai e da Mãe dos nubentes; (…)
iii. Ora, se o tribunal “a quo” entende que a prova produzida determina que se conclua que a instrução dos processos era realizada por esta forma (indicando até quais os elementos probatórios em que funda essa sua convicção), apenas tal matéria poderá, “qua tale”, ser dada como assente o que, como se vê, não é o que sucede.
E assi, sendo, nos termos já anteriormente expostos, cabe a este tribunal a reparação de tal vício, pelo que se determina que o ponto 1479 da matéria de facto assente passa a ter a seguinte redação:
Os processos eram instruídos com:
- certidão de nascimento traduzida;
- certificado de nacionalidade, passado pela Embaixada respetiva;
-declaração da Embaixada respetiva, da não emissão de qualquer declaração de capacidade matrimonial;
- certificação do estado civil dos nubentes;
- declaração de não objeção ao casamento, por parte do Pai e da Mãe dos nubentes, nos casos em que a lei a impunha
6-B. Prossigamos agora com a apreciação do segundo ponto fáctico, a cujo teor o recorrente Mº Pº aponta igualmente as críticas já acima mencionadas.
Relembremos o seu teor:
1473) Quanto à celebração dos casamentos, a arguida B. agiu sempre convicta de que o fazia segundo as regras legais em vigor, não se tendo apercebido que, ao fazê-lo, podia estar ela própria a cometer um crime.
i. A propósito do conteúdo deste ponto, convirá realçar que o tribunal a quo não decidiu por unanimidade. Com efeito, existe um voto de vencido, em que o Mº juiz-adjunto expressa as razões que o levaram a discordar não só do teor do aí vertido, como das consequências jurídicas que do mesmo foram retiradas.
Debrucemo-nos, então, em primeiro lugar sobre a factualidade em si (pois os restantes argumentos prendem-se com a relevância de tal erro, em sede de integração jurídica, matéria que não nos cabe ainda tratar).
ii. O acórdão fundamenta a circunstância de dar tal matéria como provada, com base essencialmente, em quatro argumentos:
Ausência de motivo económico que justificasse a atuação criminosa da arguida;
A colaboração que mantinha com o SEF;
O facto de ter de dar preponderância ao direito de constituir família, previsto na CRP, não lhe cabendo obstaculizar a celebração de casamentos.
A circunstância de entender que face à lei não seria óbvio que um conservador que realizasse um casamento de conveniência estivesse a cometer um crime.
Que dizer de tudo isto?
iii. Em primeiro lugar, a questão de não se provar ter a arguida um motivo económico para realizar tais casamentos não é impeditivo de se ter de entender que conhecia a ilicitude de tal prática. Desde logo, porque a lei nem sequer determina como seu elemento constitutivo, que haja uma intenção de benefício económico subjacente a tal atividade - até pode haver razões de outra ordem, designadamente no âmbito das convicções pessoais, que levem o agente a agir (vide nº 2 do artº 186 da Lei nº 23/2007).
iv. Em segundo lugar, a colaboração prestada com o SEF mostra-se, quer na fundamentação realizada, quer em sede factual, a um tempo de contornos imprecisos e algo sobrevalorizada.
O que resulta dos elementos probatórios é que a arguida foi contactada pelo SFF - desconhecendo-se sequer em que data concretamente no sentido de fornecer a este serviço elementos relativos a casamentos através dos quais se pretendesse alcançar fim diverso do estabelecido na lei.
E, curiosamente, no âmbito desta “colaboração”, temos apenas registo - face ao que o tribunal “a quo” deixou vertido na fundamentação da sua convicção - de ter a arguida dado notícia, por sua iniciativa, da tentativa de realização de dois ou três casamentos, em que os documentos apresentados eram falsos, sendo que num deles um dos nubentes era já casado, fornecendo ainda informações (quantas e de que teor. desconhece-se), sobre alguns casamentos realizados.
v. Em terceiro lugar, o direito constitucional a constituir família reporta-se, precisamente, à proteção que a Constituição e a nossa lei conferem a quem deseja, através do casamento, atingir tal objetivo.
Mas não sendo esse manifestamente o caso, como sucede nos presentes autos, não se vê como se pode invocar tal princípio constitucional para justificar a celebração de atos que constituem, precisamente, uma farsa e uma fraude a tal princípio, de forma tão óbvia e patente.
Dizer-se que não cabe nas funções de uma Conservadora do Registo Civil tentar evitar a prática de um ato simulado (seja ele casamento de conveniência ou outro), é algo de completamente absurdo. Na verdade por alguma razão o legislador entendeu que deveria caber a esta categoria de funcionários - munidos de fé pública - a realização de casamentos civis, não deferindo tal competência ao comum dos cidadãos.
E fê-lo porque, sendo tal ato gerador de uma série de direitos e deveres, com sérias e, por vezes, graves repercussões na esfera pessoal e patrimonial dos nubentes, entendeu que deveria a responsabilidade pela sua celebração ser cometida a quem apresentasse garantias de realizar tal ato com fidedignidade e honestidade.
E a realização nesses termos implica uma efetiva vigilância e atenção, não somente quanto aos aspetos formais que antecedem, acompanham ou decorrem dessa celebração, como ainda o assegurar de que o ato em si é genuíno e corresponde, com veracidade, ao facto que o registo atesta (uma vez que a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas ações de estado e nas ações de registo – artº 3ºdoCRC).
Para além de tudo o mais, compete a qualquer funcionário (que ao tomar posse, presta juramento legal a denúncia obrigatória de crimes de que tome conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas. como determina o artº 242 nº 1 al. a) do C.P.Penal.
Ora, se a denúncia da prática de um crime era obrigatória para a arguida, facilmente se infere que lhe cabia evitar sequer a sua produção, como era o caso nos autos, já que estava inteiramente na sua disponibilidade impedir que os casamentos de conveniência se realizassem,
Nem se afirme que o célebre parecer do IRN obsta a que assim se entenda. É que o que esse parecer afirma, nada tem a ver com o que se discute nestes autos, quanto a esta arguida, já que o mesmo apenas entende que não compete aos conservadores controlar a legalidade da entrada, permanência ou residência dos cidadãos estrangeiros em Portugal, por não existir disposição legal nesse sentido e por essa ser competência exclusiva do S. E. F.
Todavia, o que aqui se debate é a celebração de casamentos simulados e não a circunstância de nos mesmos estarem envolvidos cidadãos documentados ou indocumentados.
Tivessem todos os mais de 100 casamentos celebrados pela arguida, que nestes autos se apreciam (e muitos mais foram por si realizados: a sua Conservatória fez 1140 casamentos; destes, 363 foram, com estrangeiros – cerca de 31%. Relativamente à Península Indostânica, ocorreram 349 casamentos, assim distribuídos: - 229 com Paquistaneses¸- 111 com Indianos; - 9 com Nepaleses, tudo num total de 349 casamentos com cidadãos Indostânicos) sido casamentos verdadeiros, em que os nubentes pretendiam, de facto, constituir uma família, e não estaríamos aqui a discutir qualquer responsabilidade criminal à mesma assacável.
vi. Em quarto lugar, e no seguimento do que se deixa dito, a circunstância de entender que face à lei não seria óbvio que um conservador que realizasse um casamento de conveniência estivesse a cometer um crime, é argumento que desafia as regras da lógica e do bom senso.
Na verdade, se no que se reporta aos arguidos F., D., E., H., por exemplo, não teve o tribunal a quo qualquer dúvida quanto ao facto de estes terem perfeita consciência de estarem a cometer um crime (não através da celebração, como nubentes, de um casamento de conveniência, mas na qualidade de angariadores e organizadores), sendo que os mesmos têm um nível de literacia muito básico, sendo até dois deles estrangeiros, mostra-se totalmente incompreensível e radicalmente contraditório que, em relação à arguida, licenciada em direito, cuja área de exercício profissional se reporta, precisamente, às questões da família e do casamento, se possa entender que esta estaria em erro quanto às consequências criminais que lhe poderiam advir, pelo facto de estar a celebrar casamentos em que o seu fim era o de obter a legalização de um dos nubentes, de forma manifestamente fraudulenta.
vii. E este raciocínio ainda mais inexplicável e antagónico se mostra, quando confrontado com os argumentos que o tribunal “a quo” aduz quanto à consciência da ilicitude, pela parte da mesmíssima arguida, no que se refere ao crime de detenção de arma proibida.
Também em relação a este, a arguida afirmou não ter consciência de a detenção de uma arma, nas condições acima expostas (que tinha para si mero valor estimativo) pudesse constituir crime. Todavia, nesta parte, o tribunal não deu crédito ao por si declarado (e bem, diga-se de passagem), invocando a sua condição de jurista e a circunstância de, para o comum dos mortais, tal detenção ser entendida como crime.
Ora, também o comum dos mortais (no caso, os arguidos que foram condenados por tal ilícito), têm consciência da ilicitude associada à celebração de um casamento de conveniência e a qualidade de jurista, que se saiba, não se altera entre um e outro dos crimes aqui em apreciação.
Note-se, aliás, que ambos os ilícitos (armas e casamento de conveniência) estão consignados em leis extravagantes, assim como se encontram em igual categoria as incriminações relativas à Lei da Segurança Interna, por exemplo, assim como as infrações tributárias, o tráfico de estupefacientes e muitos outros ilícitos, todos eles muito fortemente punidos (as molduras penais implicam. na maioria dos casos. a intervenção de tribunal coletivo), sendo por isso incompreensível que o tribunal a quo se lhes refira como direito penal secundário(?).
viii. Dir-se-á ainda que a tese da arguida - desconhecimento da eventual criminalização de tais comportamentos - se mostra contraditada quer pela própria versão que apresenta dos factos (não se cansa de mencionar a sua colaboração com o SEF; mas se ela existia e era assim tão profícua, seguramente que a arguida teria sido informada por esse serviço sobre as razões e as consequências que a celebração de casamentos de conveniência acarretava, a nível criminal não pode invocar cooperação e alegar desconhecimento dos objetivos dessa mesma cooperação, parece-nos mais ou menos óbvio...), quer ainda pelos elementos probatórios produzidos pelas testemunhas que são seus pares, designadamente II. (atual adjunto-conservador da CRC de Gondomar, JJ (conservadora da CRC de Espinho, KK. (conservadora da CRC de Guimarães), LL. (conservador da CRC de Matosinhos), MM. (conservadora da CRC do Porto aposentada) e NN. (conservador da CRC de Penafiel).
ix. Todos eles referem que se realizavam reuniões mensais dos conservadores do Registo Civil, às quais a arguida assistia, bem como que um dos temas recorrentes se prendia, precisamente, com a questão dos casamentos de conveniência. Mais: em 2004, aquando do Euro, foi-lhes pedido a todos, via SEF, para estarem alerta quanto à possibilidade de realização deste tipo de ato e para darem imediato conhecimento de qualquer pretensão de casamento entre estrangeiros e portugueses, que se lhes afigurasse suspeita.
x. Todos estes conservadores, de igual modo, não conseguiram explicar a enorme discrepância entre o número de casamentos mistos (portuguesas-hindus) celebrados no espaço de um ano pela arguida, em comparação com a sua própria experiência (referem ter celebrado uns quantos casamentos de estrangeiros, entre si e com nacionais portugueses, mas sendo os primeiros maioritariamente de nacionalidade brasileira; ainda assim, dos inquiridos, o número máximo de casamentos celebrados, a este título, foi de 80 casamentos com nubentes estrangeiros, sendo 60 brasileiros).
xi. II. (atual conservador da CRC de Gondomar) esclareceu ainda que, por cautela (com exceção dos cidadãos brasileiros, porque conhece bem a documentação provinda daquele país), pede sempre a legalização dos documentos estrangeiros, o que é procedimento que leva algum tempo até ser completado.
Mais afirma que ao longo da sua vida, raramente celebrou casamentos no próprio dia ou de forma sucessiva - apenas o fez excecionalmente, por pedido expresso dos noivos e por ter considerado que existiam razões ponderosas atendíveis, em dois casos. Nunca realizou um casamento em que os noivos servissem de testemunhas ao casal seguinte e vice-versa - consideraria isso algo muito estranho. Desde que está à frente da conservatória de Gondomar (janeiro de 2009), nunca realizou um casamento em que algum dos nubentes fosse de origem hindu.
xii. Por seu turno, OO., que inspecionou a arguida no seguimento do processo disciplinar que lhe foi movido com base nos factos aqui em apreciação, referiu ter falado com vários conservadores da zona Norte, que lhe referiram ter começado a ficar preocupados com o número crescente de pedidos de casamento entre hindus e portuguesas - como sucedeu numa conservatória do Porto, no início do ano de 2008, por exemplo - e que decidiram ou pedir a legalização dos documentos ou marcar os casamentos, dentro do prazo legal, mas com assinalável dilação (recusando casamentos na hora ou na semana) ou chamar os nubentes e referir-lhes que iriam comunicar ao SEF a sua pretensão de contrair matrimónio, sendo que o resultado de qualquer uma destas formas de atuação se consubstanciou numa baixa súbita e drástica de pedidos de casamentos daquele tipo.
xiii. Determina o artº 143 nº 1 do CRCivil que, sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, compete ao conservador verificar a identidade e capacidade matrimoniai dos nubentes, podendo colher informações junto de autoridades, exigir prova testemunhal e documental complementar e convocar os nubentes ou os seus representantes legais, quando se mostre necessário.
Assim, não se vê em que é que o tribunal a quo baseia a sua conclusão de que a exigência de legalização de documentos, por parte da arguida, corresponderia à prática de um ato não permitido por lei.
Na verdade, a própria arguida alega que, embora a lei o não determinasse, em relação a estes casamentos exigiu sempre a presença de, pelo menos, duas testemunhas.
Ora, se fez tal exigência, tal ficou a dever-se à circunstância de ter tido as dúvidas que tal artigo prevê.
E se assim é, teria sido muito mais seguro e fiável pedir informações junto das autoridades competentes (no caso, as embaixadas ou consulados), do que optar pela imposição de testemunhas que, dada a forma como eram selecionadas, não cumpriam minimamente o fim útil de segurança que pretendia acautelar.
De facto, se dois determinados nubentes necessitavam de testemunhas que atestassem a credibilidade dos elementos por si fornecidos, mal se compreende que, logo de seguida, essas mesmas duas pessoas (na opinião da arguida, pouco credíveis), fossem atestar, como testemunhas, a credibilidade de dois outros nubentes...
xiv. O que decorre de tudo o que se deixa dito, claramente, é que estava ao alcance da arguida - quisesse ela fazê-lo - evitar a celebração dos casamentos acima mencionados, sendo certo que a preocupação demonstrada pelos restantes conservadores (no sentido de evitar celebrar atos de cuja natureza legal suspeitavam) é bem demonstrativa de como a consciência da ilicitude do ato existia nos seus pares.
Bastava à arguida, para tanto, cumprir a lei, determinando que fosse acatado o estipulado no artº 135 nº 1 do CRC (Aqueles que pretendam contrair casamento devem declará-lo, pessoalmente ou por intermédio de procurador, numa conservatória do registo civil e requerer a instauração do processo de casamento.), o que a si lhe competia, como superiora hierárquica das funcionárias que, quinzenalmente, asseguravam o serviço dos casamentos.
E a circunstância de todas estas funcionárias aceitarem declarações prestadas por terceiros e não pelos nubentes, só pode ter uma explicação - a de que a arguida lhes deu ordens para assim atuarem, pois tão flagrante incumprimento não pode resultar da vontade unilateral de uma ou outra, nem poderia escapar ao próprio controle da conservadora que, diariamente, se encontrava nas instalações, circulando por todos os serviços.
De igual modo, deveria ela própria ter cumprido a lei, ultrapassando as suas dúvidas de forma correta e transparente e não apenas mediante um mero formalismo, que mais não é do que um subterfúgio legal, um pró-forma sem qualquer conteúdo ou sentido útil.
xv. Finalmente, e para além de todas as razões que se deixam expostas, haverá ainda que referir o seguinte:
O próprio tribunal “a quo”, na fundamentação da sua convicção, deixa consignado que a arguida, em 2007 “Foi ver a Lei dos Estrangeiros e verificou o novo crime de casamento por conveniência, p. e p. pelo art.º 186º L. n.º 23/07, de 4/7. Nunca pensou que pudesse ser acusada, pois achou que a sua previsão não podia abranger o próprio Conservador, quando ele atua tendo em conta a lei.”, bem como que ,”Mais tarde, referiu que antes de um casamento recebeu um “fax” de uma Mãe, suspeitando que a sua filha fosse efetuar um casamento por conveniência a denunciante era Funcionária de uma Conservatória do Registo Automóvel. Familiares chamaram a P.S.P. e a arguida foi atrasando a cerimónia, de modo a proporcionar a chegada da entidade policial.”
O que daqui decorre é flagrantemente contraditório para a tese da ignorância da ilicitude, que a própria arguida propugna e que o tribunal “a quo”, surpreendentemente, aceita.
Na verdade, se a arguida sabia que a prática de casamentos de conveniência constituía um crime, nos termos previstos na lei que leu e, ao receber a chamada de uma Mãe, preocupada por a filha ir realizar um casamento deste género na sua conservatória, foi atrasando a cerimónia, de modo a que a PSP pudesse chegar ao local, assim evitando que o casamento se realizasse, como é possível defender que, no seu entendimento, a previsão normativa no abrange o conservador? É manifesto que a sua atuação, neste caso, demonstra que estava perfeitamente ciente de que não deveria celebrar aquele casamento. Se assim não fosse, não teria protelado e evitado a realização do ato.
Para além do mais, dizer que o Conservador está exonerado de imputação criminal quando atua tendo em conta a lei, é uma contradição em si mesma, pois a celebração de um casamento que sabe ser simulado, para fins de regularização de situação de um dos nubentes, não entra, seguramente, na definição de atuação conforme à legislação.
xvi. Face ao que se deixa exposto, temos de concluir que a redação dada ao ponto 1473 dos factos provados se mostra errada e tem de ser alterada, pois a reapreciação dos elementos probatórios impõe flagrantemente diverso apuramento fáctico, o que ora se determina, passando a aí constar o seguinte:
A arguida, ao atuar da forma descrita, bem sabia que a sua conduta era proibida por lei.
7-B. Do direito.
Determina o artº 186 nº 2 da Lei nº 23/2007 que quem, de forma reiterada ou organizada, fomentar ou criar condições para a prática dos atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
Não restam dúvidas que a apurada atuação da arguida preenche os elementos constitutivos do tipo.
De facto esta, de forma reiterada, com regularidade praticamente semanal e ao longo de vários meses, criou condições para a celebração de casamentos de conveniência, uma vez que, ao invés de tomar medidas que evitassem a realização de casamentos que sabia serem de conveniência, para fins proibidos, fomentou-os, aligeirando procedimentos, contornando a lei e demostrando absoluta disponibilidade para executar diariamente vários casamentos, se necessário após as horas de expediente, com base na mera solicitação feita pelos arguidos angariadores, nesse sentido.
A sua atuação foi querida, logo dolosa.”
6. Presente esta fundamentação da decisão do Tribunal da Relação, não é possível retirar dela que se tenha professado um entendimento do princípio da livre apreciação da prova no sentido que decorre de qualquer dos enunciados do requerimento de interposição de recurso dos recorrentes. De modo algum se afirma no acórdão recorrido a possibilidade de modificação da decisão de facto da 1º instância contra a prova testemunhal produzida, contra a força probatória de documentos autênticos, com base no “talvez”, sem indicação racional da concreta razão da divergência. O que há é um diferente juízo quanto ao conhecimento, por parte dos arguidos recorrentes, da natureza simulada dos casamentos e relativamente à consciência da ilicitude, com base na circunstanciada exposição das razões pelas quais se não aceita a conclusão a que chegara a 1ª instância. De modo que, ainda que hipoteticamente se reconhecesse natureza normativa aos enunciados apresentados pelos requerentes no requerimento de interposição do recurso, não pode dizer-se que tenha sido feita aplicação do sentido aí indicado.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar os recorrentes nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça (individualmente),
Lx., 23/5/2013. – Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.