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Proc. nº 171/92 Plenário Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I - RELATÓRIO
1. O Procurador-Geral da República, no uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 281º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e), da Constituição, veio requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 14º do Decreto-Lei nº 72-A/91, de 8 de Fevereiro, e do artigo 13º do Decreto-Lei nº 62/92, de 21 de Abril, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade formal, por preterição, no processo legislativo que conduziu à sua elaboração, do direito de participação reconhecido às associações sindicais pelo artigo 56º, nº 2, alínea a), da Constituição.
Na motivação do pedido, o requerente alega, em síntese, o seguinte:
a) O artigo 25º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, regulou o novo sistema de fixação dos quadros de pessoal dos serviços e organismos públicos;
b) O artigo 40º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, estabeleceu que esse novo sistema de fixação de quadros de pessoal tivesse início com a execução do Orçamento do Estado para 1991;
c) Ambos estes diplomas, como resulta dos respectivos preâmbulos, foram antecedidos de negociação com as organizações sindicais da função pública;
d) Um dos objectivos do novo sistema de fixação de quadros de pessoal consistia na concretização das legítimas expectativas dos funcionários de progressão na carreira;
e) Todavia, pelo artigo 14º do mencionado Decreto-Lei nº 72-A/91
(decreto de execução orçamental para 1991), o Governo veio determinar que 'o sistema de fixação de quadros de pessoal previsto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, fica suspenso até concretização da respectiva regulamentação';
f) Tal normativo foi integralmente reproduzido no igualmente questionado artigo 13º do Decreto-Lei nº 62/92 (decreto de execução orçamental para 1992);
g) O sistema de fixação de quadros de pessoal, por ter incidência directa nas expectativas de promoção e progressão na carreira dos funcionários e agentes da Administração, deve ser qualificado como legislação do trabalho;
h) No plano da efectiva tutela e validação prática das legítimas expectativas dos funcionários abrangidos pelo novo sistema, tem de se considerar como dado fundamental a determinação do momento da sua entrada em vigor;
i) Consequentemente, as normas impugnadas não podiam ter sido emitidas sem prévia autorização das organizações sindicais representativas dos trabalhadores;
j) Como tal não sucedeu, tem de se concluir pela respectiva inconstitucionalidade formal.
2. Na sua resposta, o Primeiro-Ministro apresentou as seguintes conclusões:
1º O Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, tem a natureza de uma lei de bases gerais, dependente, na sua aplicabilidade ou exequibilidade prática, de uma regulamentação ou desenvolvimento legislativo a cargo do Governo;
2º O artigo 40º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, não alterou, nem poderia alterar, as condições de exequibilidade do artigo 25º do Decreto-Lei nº
184/89, tal como elas decorrem do seu conteúdo e do seu perfil constitucional;
3º As normas sobre as quais incide o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade não têm carácter inovador, não sofrendo, por isso, do vício de inconstitucionalidade formal que lhes é imputado;
4º A não se entender assim, deverão os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ser restringidos, por imperativas razões de equidade e de segurança jurídica, de modo a não prejudicarem as situações constituídas no passado.
Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. O Decreto-Lei nº 184/89 estabeleceu efectivamente, no seu artigo
25º, um novo sistema de fixação de quadros de pessoal dos serviços e organismos por ele abrangido. E o artigo 40º do Decreto-Lei nº 353-A/89 determinou expressamente, no seu nº 1, que esse mesmo sistema de fixação de quadros de pessoal teria início 'com a execução do Orçamento do Estado para 1991'.
Só que, como refere o requerente, o decreto de execução orçamental para 1991 – o Decreto-Lei nº 72-A/91 – veio dispor, no seu artigo 14º, o seguinte:
O sistema de fixação de quadros de pessoal previsto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, fica suspenso até concretização da respectiva regulamentação.
E idêntico normativo viria a constar do artigo 13º do decreto de execução orçamental para 1992 – o Decreto-Lei nº 62/92.
Ora, a inclusão neste último diploma de uma norma de conteúdo idêntico à que consta do transcrito artigo 14º do Decreto-Lei nº 72-A/91 significa indubitavelmente que a norma constante deste primeiro diploma já se não encontrava em vigor à data da formulação do pedido. Isto, quer porque se entenda que o seu período de vigência – por se encontrar vertida no diploma de execução orçamental - se restringia ao período de vigência do Orçamento para
1991, quer porque se entenda que foi implicitamente revogada pelo artigo 13º do Decreto-Lei nº 62/92.
Nesta conformidade, já nenhum sentido faria vir agora declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma vertida no artigo 14º do Decreto-Lei nº 72-A/91, na medida em que uma tal declaração de inconstitucionalidade careceria de qualquer interesse jurídico relevante, até porque, a ocorrer uma tal eventualidade, sempre o Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 282º, nº 4, da Constituição, por razões de segurança jurídica e de interesse público de excepcional relevo, limitaria os seus efeitos, de modo a não atingir os actos jurídicos decorrentes das fixações de quadros de pessoal efectuadas em conformidade com a legislação anterior ao Decreto-Lei nº 184/89.
Não se deve, pois, quanto à questionada norma do Decreto-Lei nº
72-A/91, tomar conhecimento do pedido, por inutilidade, como este Tribunal vem uniformemente decidindo em situações semelhantes (cfr., por exemplo; o Acórdão nº 31/99, inédito).
4. O mesmo acontece, porém, com a norma constante do artigo 13º do Decreto-Lei nº 62/92.
Com efeito, normas de idêntico teor vieram a ser vertidas em todos os diplomas de execução orçamental posteriores, até 1999 – Decreto-Lei nº 83/93, de 18 de Março (artigo 16º); Decreto-Lei nº 77/94, de 9 de Março (artigo 17º); Decreto-Lei nº 45/95, de 2 de Março (artigo 19º); Decreto-Lei nº 50/96, de 16 de Maio (artigo 31º); Decreto-Lei nº 66/97, de 1 de Abril (artigo 34º); Decreto-Lei nº 107/98, de 24 de Abril (artigo 34º); e Decreto-Lei nº 161/99, de 12 de Maio
(artigo 36º).
Ainda em 1999, pelo Despacho conjunto nº 571/99 de 1 de Julho, subscrito pelo Secretário de Estado do Orçamento e pelo Secretário de Estado da Administração Pública e da Modernização Administrativa (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1999), o Governo reconheceu que a
'aplicação genérica' do 'novo modelo de fixação dos quadros de pessoal' tinha
'deparado com dificuldades de diversa ordem' que tinham conduzido ao seu sucessivo adiamento, mas que, 'atentas as virtualidades que o projectado sistema contém, o Governo assumiu, no âmbito do acordo salarial para 1996, o compromisso de lhe dar execução'. Assim sendo, e apesar de ainda se não 'encontrarem reunidas as condições para a aplicação imediata e generalizada a todos os serviços e organismos da Administração Pública', optou-se pela sua aplicação experimental, a partir de 1 de Janeiro de 2000, em dois serviços – o Instituto Nacional de Administração (INA) e a Direcção-Geral de Protecção Social a Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE) – e estabeleceu-se o procedimento a adoptar em tal aplicação experimental.
Nos decretos de execução orçamental para 2000 e para 2001, voltaram a ser integradas normas de teor idêntico às normas impugnadas – Decreto-Lei nº
70-A/00, de 5 de Maio (artigo 44º, nº 1), e Decreto-Lei nº 77/01, de 23 de Julho
(artigo 45º, nº 1). Acrescentaram-se, porém, normas a autorizar a aplicação experimental do novo sistema, em qualquer serviço ou organismo, e a salvaguardar os efeitos legais decorrentes dos actos praticados ao abrigo do citado Despacho conjunto nº 571/99.
Quer isto dizer que também a norma constante do artigo 13º do Decreto-Lei nº 62/92 se deve considerar como tendo caducado ou como tendo sido revogada, verificando-se, quanto a ela, as razões para o não conhecimento do pedido que foram apontadas quanto à norma do artigo 14º do Decreto-Lei nº
72-A/91. Neste caso, porém, por inutilidade superveniente.
5. Por outro lado, como se afirmou no Acórdão nº 531/00 (publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Janeiro de 2001) «por força do
'princípio do pedido', expresso no artigo 51º, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, e de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, não pode operar-se a 'convolação' do objecto do processo [...] nas normas do diploma revogante que tenham um eventual conteúdo preceptivo correspondente ou semelhante ao das normas que constituem o objecto do pedido [...]».
É que, como se salientou no já mencionado Acórdão nº 31/99, «as normas constantes [dos novos diplomas] que revogaram as disposições [do diploma questionado], ainda que [...] tenham teor literal semelhante, são normas diferentes daquelas que constituem objecto do pedido de fiscalização abstracta nestes autos». Escreveu-se então:
São diferentes formalmente, pois têm um suporte legal distinto.
Podem também ser diferentes daquelas que constituem objecto do pedido, quando consideradas do ponto de vista substancial ou funcional. A conclusão sobre esse ponto dependeria porém da apreciação do conjunto do diploma em que tais normas se inserem.
Com efeito, deve sempre admitir-se que disposições legais com o mesmo teor literal possam ter um sentido material diferente, isto é, possam constituir normas diferentes. O autêntico sentido de uma norma só se alcança quando se considera o conjunto a que as normas pertencem, dada a interconexão entre os preceitos contidos num mesmo diploma. Aliás, a simples modificação de inserção sistemática de uma disposição pode implicar alteração do seu sentido normativo.
Tanto basta para concluir que a apreciação das novas normas pelo Tribunal Constitucional ultrapassaria os limites da conformação do pedido inicial.
De resto, como já se disse, o problema nem se coloca no presente caso, porque desde o ano 2000 que as normas têm conteúdo diferente.
III - DECISÃO
6. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido. Lisboa, 19 de Setembro de 2001- José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa