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Proc. nº 338/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como recorrente A ...- Associação... e como recorridos T..., SA, M..., J..., F..., G... e E..., a Relatora proferiu Decisão Sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a recorrente não ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade normativa durante o processo.
A. ... - Associação.... reclamou da Decisão Sumária ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando o seguinte: Com efeito, suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 26°, 26°-A e
27º do C.PC. na interpretação que lhes foi sendo sucessivamente dada pelos tribunais recorridos, referidos no recurso para o Tribunal Constitucional, por violação dos artigos 20°, nº 1 (Acesso ao Direito e aos Tribunais), 52°, nº 3
(Direito de Petição e Acção Popular) e 60°, nº 3 (Direitos dos Consumidores) da Constituição da República Portuguesa. As violações referidas da Constituição foram alegadas nas peças processuais que se juntaram nos termos do artigo 75°, nº 5 da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, no primeiro recurso - de agravo, interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa - que mereceu carimbo de recebimento da Secretaria do 16° Juízo Cível de Lisboa, com data de 6 de Junho de 1994, se refere abundantemente a questão da legitimidade processual, tal como ela vem suscitada no recurso para o Tribunal Constitucional, e se diz 'f) [o despacho em apreço] viola igualmente o artigo 60°, nº 3 da Constituição da República'. Está assim estabelecida a ligação entre a norma violada da Constituição e a interpretação da norma de processo que viola essa norma, ou a própria norma que a viola... E, no segundo recurso - de agravo, interposto para o Supremo Tribunal de Justiça
- que mereceu carimbo de recebimento da Secretaria do Tribunal da Relação de Lisboa, com data de 3 de Junho de 1996, volta a referir-se a questão da legitimidade processual tal como ela vem expendida no recurso para o Tribunal Constitucional, e se associa a interpretação feita à falta de protecção que acarreta para os interesses difusos, dizendo-se que 'Daí que, para além de tudo o mais que ficou dito se deva reconhecer legitimidade à Autora-recorrente, se se tiver em conta que o direito é apenas um meio para atingir a justiça', e se faz, de novo a ligação entre a questão da legitimidade com a violação do artigo 60°, nº 3 da C.R.P., A arguição da inconstitucionalidade em substância basta-se com a simples referência ao n° 3 do art. 60° da C.R.P.: Com efeito, também ele reconhece a legitimidade processual às associações de consumidores para defesa dos seus associados ou de interesses colectivos ou difusos. Não há excesso em dizer-se que a interpretação recorrida viola o princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20°, nº 4 da Constituição. Ao negar-se a legitimidade para a acção, está a vedar-se à A ... o acesso à Justiça... Também não há excesso em dizer-se que a interpretação recorrida viola o princípio do Direito de petição e de acção popular: ao negar a legitimidade, impede-se a expressão de um direito no plano colectivo.
SOBRE A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO CONTRÁRIA À CONSTITUIÇÃO Diz a Mª Senhora Conselheira Relatora que não se pode proceder à crítica constitucional de uma interpretação. Mas é precisamente essa interpretação que determina a aplicação de modo desconforme à Constituição das normas dos artigos
26°, 26°-A e 27° do Código de Processo Civil. Em si, e em abstracto, estas normas não serão violadoras da Constituição, embora sempre se possa considerar que serão restritivas de certos direitos de acção. Por outro lado, é a sua interpretação, a interpretação que delas é feita pelos Tribunais a quo que infringe os artigos 60º, nº 3, 20°, nº 4 e 52°, nº 2 da C.R.P. ao vedar o exercício de um direito que merece a tutela da Constituição .
É para isso que existe a distinção entre apreciação abstracta da Constituição - a norma desde logo viola a Constituição, e, apreciação concreta: em determinado caso, uma interpretação é violadora da Constituição, o que não significa que a norma seja sempre inconstitucional. É-o nesse caso, com a interpretação que lhe
é dada. Se essa interpretação for generalizada e a opção do Tribunal Constitucional, no seu juízo pertinente e fundado, for no sentido da inconstitucionalidade (três casos), a norma será declarada inconstitucional com força obrigatória geral. Nem por isso se está a recorrer de uma decisão: recorre-se sempre, em sede de fiscalização concreta, de uma decisão, mas não se recorre desta decisão na medida em que decida favoravelmente ou desfavoravelmente recorre-se da interpretação que é dada, recorre-se, no fundo em sede da própria norma que foi alegada inconstitucional no processo, e os artigos 26°, 26°-A e 27° do Código de Processo Civil foram-no, por violação dos artigos 60°, nº3, 20°, nº 4 e 52°, nº
2 da Constituição. O emprego da expressão 'na interpretação que foi dada' poderá ter sido infeliz, mas não contradita, com o sentido que lhe foi dado, a boa doutrina, a de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, na sua Constituição da República Portuguesa Anotada, de 1993, quando dizem que se 'a fiscalização concreta actua sempre mediante recurso para o TC de uma anterior decisão de um outro tribunal, decisão que tenha versado expressa ou implicitamente a questão da inconstitucionalidade de uma norma e que a tenha julgado ou não inconstitucional' (Comentário ao anterior artigo 280° da C.R.P., ponto VIII, pág. 1017). Também não contradita o presente recurso a doutrina expendida por Gomes Canotilho e Vital Moreira no seu Comentário referido (ponto IX, pág. 1018): 'Não se recorre do mérito da sentença, nem está em causa a eventual inconstitucionalidade das decisões judiciais; recorre-se, sim, do julgamento, pelo juiz a quo de uma ou várias normas relevantes para o caso, como inconstitucionais, com a subsequente recusa de aplicação. A qualificação da questão como uma questão de constitucionalidade vai caber em última instância ao TC, sendo que a qualificação por ele dada prevalece sobre a configuração do vício delineada pelo juiz a quo'.
É isto que o presente recurso solicita ao Tribunal Constitucional. Não mais do que a resolução de uma questão concreta de constitucionalidade, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. Em Conclusão:
- Pede a Autora recorrente que o Tribunal Constitucional tome conhecimento do recurso interposto: Com efeito, houve alegação de inconstitucionalidade das normas relevantes, as dos artigos 26°, 26°-A e 27° do C.P.C., no caso concreto, por violação dos artigos 60°, nº 3, 52°, nº 2 e 20°, nº 4 da CRP, durante o processo, como vem demonstrado nas peças processuais que se juntaram; havendo exaustão dos meios de recurso. E está-se perante um caso de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que se recorre no termo de um conjunto relevante de decisões judiciais, cujas possibilidades se esgotaram (exaustão dos recursos), tendo sido o termo
'interpretação' empregue no recurso, utilizado no sentido de se tratar de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, não devendo a Autora - recorrente ser penalizada por esse facto.
T..., SA, pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
A recorrente requereu que o Tribunal Constitucional não considerasse a resposta da recorrida, uma vez que a audição da parte contrária não resulta de qualquer disposição legal. A recorrente procurou, ainda, contestar a resposta da recorrida.
Cumpre decidir.
2. A recorrente sustenta que a audição da parte contrária, no
âmbito da presente reclamação, não resulta de qualquer preceito legal. Aos recursos para o Tribunal Constitucional aplicam-se subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil. Ora, a audição da parte contrária resulta desde logo do princípio do contraditório (artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil), e o artigo 700º, n.º 3, do mesmo diploma, prevê, no regime do recurso de apelação, tal audição. Improcede, portanto, o requerimento da recorrente. Por outro lado, não existe fundamento para a audição da recorrente acerca da resposta da recorrida à reclamação. Nessa medida, não se considerará tal pronúncia.
3. A recorrente afirma que suscitou a questão de constitucionalidade normativa relativa aos artigos 26º, 26º-A e 27º do Código de Processo Civil durante o processo. No entanto, tal como se demonstrou na Decisão Sumária impugnada, a recorrente, durante o processo, apenas imputou o vício de inconstitucionalidade a decisões judiciais e nunca a normas jurídicas. Isso, de resto, é expressamente reconhecido pela recorrente na presente reclamação. Com efeito, do que a recorrente afirma decorre que apenas invocou a inconstitucionalidade de decisões proferidas nos autos.
A recorrente procura ainda demonstrar que 'a arguição de inconstitucionalidade em substância basta-se com a simples referência ao nº 3 do artigo 60º da Constituição'.
Não lhe assiste, porém, razão. Como se referiu na Decisão Sumária sob reclamação, o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional tem apenas por objecto a apreciação da conformidade à Constituição de normas jurídicas e não de decisões judiciais (cf. jurisprudência citada na Decisão Sumária).
A recorrente afirma, por último, o seguinte: 'diz a Mª Senhora Conselheira Relatora que não se pode proceder à crítica constitucional de uma interpretação'.
Ora, como é evidente, o Tribunal Constitucional procede à apreciação da conformidade à Constituição de normas jurídicas ou de dimensões normativas, alcançadas, naturalmente, por via interpretativa. O que se disse na Decisão Sumária reclamada foi que não basta, para que se possa considerar que uma questão de constitucionalidade normativa foi suscitada de modo adequado durante o processo, que se afirme genericamente que a interpretação do tribunal recorrido é inconstitucional.
É necessário explicitar a norma ou dimensão normativa que se considera inconstitucional sem bastar a afirmação genérica de que uma interpretação que se pretende impugnar é a que justifica ou subjaz à decisão. Mas o que aconteceu nos presentes autos foi inequivocamente a invocação da inconstitucionalidade da própria decisão judicial, pois não só a recorrente o refere expressamente tanto nas alegações para o tribunal a quo [fls. 556, conclusões, alínea g)] como até na presente reclamação, como não seria identificável pelo tribunal ora recorrido nem sequer implicitamente pela leitura das alegações para o Supremo Tribunal de Justiça que a recorrente estaria a suscitar mais do que uma discordância com a subsunção nos preceitos questionados realizada pelo tribunal a quo. Assim, é claro que os argumentos que apresenta, nomeadamente nos pontos 21 a 23 das suas alegações, referem-se apenas a uma perspectiva de errónea interpretação de acordo com a ratio legis dos preceitos questionados.
Assim, a recorrente afirma agora que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição de um dado resultado interpretativo dos artigos 26º, 26º-A e 27º do Código de Processo Civil. Contudo, como se demonstrou, nunca indicou tal interpretação durante o processo antes da prolação da decisão recorrida, só o tendo feito no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e agora na presente reclamação.
Há, pois, que concluir que tal indicação é manifestamente tardia, não se verificando, portanto, o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Indeferir o requerimento da recorrida de fls 663 e ss; b) Indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 24 de Outubro de 2001- Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa