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Processo n.º 125/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenada pela prática de dois crimes de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal, em pena de multa.
A Arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 16 de maio de 2012, julgou o recurso parcialmente procedente, tendo revogado a condenação da Recorrente pela prática de um dos referidos crimes, mantendo a condenação pelo outro crime numa pena de multa.
A Arguida interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo o Desembargador Relator admitido o recurso por despacho proferido em 10 de outubro de 2012.
A Arguida reclamou desta decisão para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Vice-Presidente desse Tribunal, por despacho proferido em 6 de dezembro de 2012, indeferido a reclamação.
A arguida interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A arguida foi condenada em primeira instância pela prática de dois crimes de denúncia caluniosa, em cúmulo, na pena de 360 dias de multa á taxa de € 4,00.
Inconformada interpôs recurso para o Digníssimo Tribunal da Relação do Porto, o qual foi parcialmente procedente, pois revogou a condenação da recorrente quanto a um dos crimes, absolvendo a arguida, mantendo-se apenas a outra pena parcelar.
Dessa decisão, interpôs a arguida recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o mesmo sido indeferido nos termos dos art.ºs 400º n.º1 alín. f) do CPP e art. 432º n.º1 alín. b) e c) do mesmo diploma.
Ora, no caso em apreço estamos perante uma situação de uma confirmação pela Relação, de uma Decisão da primeira instância, cuja pena aplicada é inferior a 8 anos.
De acordo com os supra indicados artigos não é permitido o Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nesta situação.
Todavia, de acordo com o CPP anterior tal situação era possível.
Tendo em conta que o processo em apreço diz respeito a factos praticados em 2006 e que o novo Código Processo Penal entrou em vigor em setembro de 2007, estamos na presença do problema da aplicação da Lei no Tempo.
... «Num caso de sucessão de leis penais, havendo normas mais favoráveis num e noutro dos regimes, há que comparar as consequências concretas que da aplicação de uma e outra lei resultam e aplicar de maneira completa aquela cujos resultados sejam menos gravosos para o arguido.»
Assim, analisando ambos os regimes penais, facilmente concluímos que o anterior é mais favorável à arguida.
Como refere Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, I, 2001, p. 281, «para se determinar se uma Lei é mais favorável ao arguido do que outra, avaliam-se as consequências no seu conjunto e no caso concreto» (ponderação concreta).
Pertinentemente, Américo Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, 2ª ed, Coimbra Editora, 1997, p. 191, salienta que não é necessário proceder a uma avaliação concreta, quando é evidente, numa simples consideração abstrata, que uma das Leis é claramente mais favorável que a outra.
O que se verificou no caso em apreço.
Discutida na Doutrina é a questão de saber se a ponderação deve ser unitária ou diferenciada.
Ponderação unitária significa que é a Lei na sua totalidade, na globalidade das suas disposições, que deve ser aplicada; a ponderação diferenciada, considerada a complexidade de cada uma das Leis e a relativa autonomia de cada uma das disposições, defende que deve proceder-se ao confronto de cada uma das disposições de cada Lei, podendo, portanto, acabar por se aplicar ao caso sub judice, disposições de ambas as Leis (vide Taipa de Carvalho, ob. Cit., p. 192, 193).
A doutrina maioritária entende que se deverá optar pela ponderação unitária, pois, caso contrário, o Julgador estaria a criar novos regimes, e não a aplicar o mais favorável de entre os vigentes desde a prática do ilícito até à decisão, violando, desse modo, o princípio da separação de poderes.
O STJ, por Ac. de 03/11/2005, publicado no DR Série I-A, de 19/12/2005 (Ac. nº 11/2005) decidiu que «sucedendo-se no tempo Leis sobre o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, não poderão combinar-se, na escolha do regime concretamente mais favorável, os dispositivos mais favoráveis de cada uma das Leis concorrentes».
Aliás, tal Venerando Tribunal, na motivação do Assento publicado em 17/03/1989, ao defender uma ponderação global e aplicação de uma das Leis em bloco, considerou que «não é lícito construir regimes particulares pela conjugação de elementos de uma e outra Lei, com prejuízo da quebra de coerência e a obtenção de um resultado aberrante, ainda que concretamente vantajoso para o agente».
Assim, deve aplicar-se o CPP anterior ao caso em apreço, por ser mais favorável para a arguida, em obediência ao disposto no art. 2º, nº 4 do CP.
Por tal motivo ao não se admitir o recurso em causa, violou-se o art.º 29º e 32º da CRP.
Por outro lado, entendemos também, salvo melhor opinião, que a interpretação e aplicação do disposto nos arts. 70º, 71º do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, na interpretação de que «não registando a recorrente quaisquer antecedentes criminais e de condição social modesta», não se verifica suficiente para acautelar as necessidades de prevenção especial e geral da medida de pena que possa ser suspensa na sua execução, por haver na suspensão um juízo de prognose mais favorável a esta, todos por violação do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da 1ª vara do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, ao erguer a culpa – como critério principal de determinação da pena – e a prevenção como critério secundário, o Tribunal «a quo» não avalizou corretamente o art.º 71º do CP, não cumprindo com o principio constitucional da adequação e proporcionalidade das penas, revelando-se justo aplicar apenas uma pena concreta correspondente ao limite mínimo abstratamente aplicável para aquele tipo de ilícito, especialmente atenuada.
Violou assim também o douto acórdão recorrido o princípio da proporcionalidade.
Pretende assim o recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa, por ambiguidade e falta de clareza dessas mesmas normas jurídicas, por colidirem em função dessas debilidades com uma norma constitucional.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despachos proferidos em 18 de dezembro de 2012, não tomou conhecimento do recurso na parte em que o mesmo suscitava a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 70.º e 71.º, do Código Penal, e convidou a Recorrente, na parte restante, a indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver fiscalizada e a peça processual onde tinha suscitado essa inconstitucionalidade.
Após a Recorrente ter respondido, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho proferido em 15 de janeiro de 2013, não admitiu o recurso com fundamento naquela não ter indicado a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver fiscalizada.
Após ter pedido a correção de um lapso deste despacho, o que foi indeferido, por despacho proferido em 21 de janeiro de 2013, a arguida reclamou da decisão de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, alegando o seguinte:
“O Tribunal a quo entende que O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois não foram indicadas as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada e a norma ou princípio constitucional que se considera violado.
Sucede que, a arguida veio, indicar o preceito constitucional que no seu entender se mostra violado no douto acórdão em crise, como sendo a norma constante do art. 32º da C.R.P..
Mais referiu que de acordo com o Douto Acórdão n.º422/2005 do Tribunal Constitucional de 17 de agosto, para se respeitar o direito ao recurso constitucionalmente garantido no n.º 1 do art.º 32º CRP, a possibilidade de interposição, pelo arguido, de recurso de decisões penais desfavoráveis tem de ser uma possibilidade real e efetiva e não meramente fictícia.
Finalmente mais referiu que tal questão de inconstitucionalidade e violação dos art.º 29º e 32º foi já suscitada nas Motivações de Recurso apresentadas em primeira instância e posteriormente nas Motivações de Recurso da Relação para o Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão a arguida/recorrente não podia pressupor, intuir, que o Digno Supremo Tribunal de Justiça, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, a recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade;
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no aludido art. 2º, pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso em causa constitui uma violação dos artigos 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal da Relação do Porto, para o Supremo Tribunal e Justiça.
É, pois, um vício que se regista somente na Decisão, que se pretende seja analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem a recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
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Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Conforme resulta claramente do requerimento de interposição de recurso a Arguida suscita a inconstitucionalidade da própria decisão de não admissão do recurso e não de qualquer critério normativo em que ela se tenha baseado. Na verdade lê-se nesse requerimento: “ao não se admitir o recurso em causa violou-se o artigo 29.º e 32.º da CRP”. E na própria reclamação insiste nessa pretensão quando diz “a interpretação e aplicação do disposto no aludido art. 2º, pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso em causa constitui uma violação dos artigos 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa”.
Daí que, quando foi convidada a indicar a norma cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, a Arguida se tenha limitado a indicar o preceito constitucional que teria sido violado pela decisão em causa e não por qualquer critério normativo utilizado por essa decisão.
Não tendo, pois, o recurso interposto um objeto normativo, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do seu mérito, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa 20 de março de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.