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Processo nº 467/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 1010 foi proferida a seguinte decisão sumária:
1. A. foi condenado, pelo acórdão de fls. 847 da 3ª Vara Criminal de Lisboa, de
8 de Outubro de 1999, como co-autor de um crime de sequestro agravado, punido pelo artigo 160º, nºs 1 e 2, b), d) e g) e 3 do Código Penal de 1982, na pena de três anos de prisão, suspensa sob condição de, no prazo de um ano, vir ao processo provar que pagou ao ofendido determinada indemnização, acrescida de juros de mora. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, juntando as alegações ao requerimento de interposição de recurso (cfr. fls 868 e segs.). Pelo requerimento de fls. 889, A. veio reclamar contra a exigência, pela secretaria do tribunal de 1ª instância, do pagamento de uma multa, nos termos previstos no nº 5 do artigo 145º do Código de Processo Civil, por ter sido apresentado o requerimento de interposição de recurso fora do prazo previsto no artigo 651º do Código de Processo Penal de 1929. Sustentou que o regime aplicável, 'no quadro do disposto no artº 6º, nº 1 da lei 59/98 de 25/08' era o definido pelo nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal de 1998 e que, portanto, o recurso tinha sido interposto no prazo legal (15 dias). Pelo acórdão de fls. 916, de 30 de Novembro de 2000, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão da 1ª instância. A. interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (requerimento de fls. 939). Não juntou, todavia, a correspondente motivação, tendo concluído o requerimento afirmando que o recurso era interposto 'ao abrigo do disposto nos artºs 645º, 647º, 2º, 649º 655º, 658º e 661º do Código de Processo Penal de
1929'. A fls. 942 veio corrigir o que explicou tratar-se de um lapso a relevar, por ter invocado 'disposições do Código de Processo Penal de 1929 e não, como devia, as disposições correspondentes do actual Código'. O recurso foi admitido. Pelo requerimento de fls. 946, A. veio insistir na aplicação do regime previsto na versão de 1998 do Código de Processo Penal, para o efeito de lhe serem passadas as guias para o pagamento do imposto de justiça devido nos termos da nova legislação, e requerer a junção das alegações de recurso.
2. Pelo acórdão agora recorrido, de 22 de Março de 2001, o Supremo Tribunal de Justiça, considerando que o recurso se regia, efectivamente, pela referida versão de 1998 do Código de Processo Penal, cujo nº 3 do artigo 411º exige que o requerimento de interposição seja sempre motivado, sob pena de não admissão, decidiu rejeitar o recurso, 'nos termos dos arts. 411º, nº 3, 414º, nº 2 e 420º, nº 1 do C.P.P. em vigor'. A. veio então arguir a nulidade deste acórdão, consistente, para o que agora interessa, em não ter cumprido 'a obrigação de conhecer da questão da inconstitucionalidade subjacente ao citado artº 411º, nº 3 do CPP, quando interpretado no sentido de que a motivação deve acompanhar o requerimento de interposição de recurso'. O Supremo Tribunal de Justiça, porém, indeferiu a arguição, pelo acórdão de fls.
999, de 31 de Maio de 2001, nos seguintes termos: 'Quanto à questão da dita inconstitucionalidade subjacente ao artº 411º, nº 3 do C.P.P., o acórdão deste Supremo Tribunal não omitiu a sua pronúncia, precisamente por entender que podia aplicar tal normativo quando dispõe, claramente, que o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso. Efectivamente, se tal dispositivo foi aplicado ao caso por este Supremo Tribunal foi porque se considerou ser o mesmo perfeitamente constitucional. Só no caso de entender que era de recusar a aplicação do mesmo preceito, por ser inconstitucional, é que este Supremo Tribunal devia ter-se pronunciado sobre tal questão' (que, note-se, não lhe tinha sido colocada antes de proferido o acórdão recorrido, acusado de nulidade por omissão de conhecimento dessa questão não suscitada pelo recorrente).
3. Ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, A. recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2001, pretendendo que seja apreciada a
'inconstitucionalidade da norma do artº 411º, nº 3 do Código de Processo Penal, quando interpretada, como o foi no Acórdão, no sentido de que o recurso é rejeitado sempre que a motivação, mesmo que apresentada no prazo de 15 dias contados da notificação da decisão, não acompanhe o requerimento de interposição de recurso', pois que, em seu entender, tal interpretação 'viola o artº 32º, nº
1 da Constituição'. Indica ainda que suscitou a inconstitucionalidade 'no requerimento de arguição de nulidades do douto Acórdão' do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de
2001. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
4. Cabe começar por verificar se estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. O conhecimento do objecto de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe que se pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional uma norma, ou uma sua interpretação, cuja inconstitucionalidade foi 'suscitada durante o processo' (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º). Ora a verdade é não se pode considerar, no presente recurso, que a inconstitucionalidade tenha sido oportunamente invocada. Como a lei exige e o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (nº 2 do artigo 72º da mesma lei), proporcionando-lhe desta forma a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs
62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Ora o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem também repetidamente afirmado, salvo em casos excepcionais – que aqui não ocorrem –, o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é momento processualmente adequado para se suscitar a inconstitucionalidade, porque 'a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', de forma a permitir ao tribunal a quo dela conhecer, 'por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil' (Acórdão nº 62/85 cit.). Nem pode o recorrente sustentar ter sido surpreendido com a aplicação da norma impugnada, de forma a justificar a alegação de inconstitucionalidade posterior à decisão recorrida, pois que a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça corresponde ao sentido meramente literal do nº 3 do artigo 411º do Código de Processo Penal, na versão de 1998; convém, aliás, não esquecer que o mesmo recorrente, por mais de uma vez, afirmou ser aplicável no presente processo o regime definido por esta redacção do mesmo Código de Processo Penal. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Assim, nos termos previstos no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não conhecer do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.
2. Inconformado, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Sustenta, em síntese, não ter disposto de oportunidade processual para arguir a inconstitucionalidade antes de proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de que recorre para o Tribunal Constitucional, sendo irrelevante, para o efeito de saber se a inconstitucionalidade foi oportunamente invocada, a circunstância de a ter suscitado quando reclamou por nulidade daquele mesmo acórdão. Observa ainda que, contrariamente ao afirmado na decisão reclamada – de que a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça corresponde ao sentido meramente literal do preceito aplicado e que, portanto, não era impossível ao reclamante invocar a inconstitucionalidade antes da decisão –, não poderia ter previsto que o Supremo Tribunal de Justiça iria adoptar a interpretação que acusa de ser inconstitucional. Em seu entender, 'parece ser asserção que parte do pressuposto de que o reclamante deveria ter previsto o que não, quer, não pode e não deve prever, a saber, que os Senhores Juízes Conselheiros do STJ podem produzir interpretações inconstitucionais de normas, por desconhecimento do disposto nos artºs 9º e 11º do Código Civil e nos artºs 18º, nº 1 e 32º, nº1 da Lei Fundamental.' Refere ainda que o regime em questão não foi introduzido em 1998, já constando do nº 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal 'na versão anterior'; que 'se alguma coisa o reclamante podia prever era, sem dúvida, que o seu recurso perante o STJ seria admitido'; e cita, quer o entendimento manifestado pela representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, quer jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que se pode considerar oportunamente apresentada a motivação do recurso se a mesma tiver sido entregue dentro do prazo de interposição de recurso, ainda que separadamente do requerimento respectivo. Sustenta, pois, que deve ser revogada a decisão reclamada. Finalmente, requer que lhe seja concedido apoio judiciário, 'na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça', protestando juntar 'documento da Segurança Social, comprovativo de que reúne condições para lhe ser concedido o benefício de apoio judiciário'.
3. Respondendo, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever ser revogada a decisão de não conhecimento do recurso, porque 'na específica situação dos autos', não seria exigível ao reclamante ter suscitado a inconstitucionalidade 'durante o processo', pois que 'tratando-se de recuso interposto em processo de querela, reportado ao acórdão proferido pela Relação – poderia suscitar dúvidas qual o regime de tramitação dos recursos que era de aplicar à dita impugnação'. Recorda que o recorrente começou por fundar o seu recurso 'nas disposições do Código de Processo Penal de 1929', só depois rectificando esse 'enquadramento jurídico-processual'; que, assim sendo, não faria sentido suscitar a inconstitucionalidade no momento da interposição de recurso; e que, além disso, não seria exigível que, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa admitido o recurso sem a motivação, 'o Supremo Tribunal de Justiça viesse – sem prévia audição do recorrente – a optar pelo entendimento expresso no acórdão de fls. 980 e seguintes'. Quanto ao pedido de apoio judiciário, o Ministério Público considera não ter o Tribunal Constitucional competência para o apreciar, 'por ser o mesmo ulterior ao início de vigência da Lei nº 30-E/2000 (cfr. artigos 57º e 58º)'.
4. Quanto a estes argumentos apresentados pelo Ministério Público para justificar a revogação da decisão reclamada, cabe observar que não se pode entender que a actuação processual do recorrente revelasse, no momento em que recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, uma dúvida fundada quanto ao regime processual aplicável. Não é, aliás, nessa dúvida que o reclamante assenta a sua reclamação. Note-se que, para este efeito, é irrelevante que o Tribunal da Relação de Lisboa tenha admitido o recurso e que posteriormente o Supremo Tribunal de Justiça tenha decidido em sentido inverso, porque o que está em causa é saber se, quando recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente tinha ou não o ónus de invocar a inconstitucionalidade. Finalmente, e no que toca à falta de prévia audição do recorrente, apontada pelo Ministério Público, cabe igualmente recordar que não foi suscitada, e que o Tribunal Constitucional não a pode considerar relevante para o efeito em questão.
5. Cumpre apreciar a reclamação. E, quanto a este ponto, entende o Tribunal Constitucional que, existindo jurisprudência contraditória relativamente à interpretação da norma que constitui o objecto do presente recurso, se deve considerar oportunamente arguida a inconstitucionalidade quando o recorrente a suscitou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
6. No que toca ao pedido de apoio judiciário, resulta do disposto no nº 3 do artigo 57º da Lei nº 30-E/2000 que, até à entrada em vigor do diploma ali previsto, os pedidos formulados pelo arguido em processo penal 'continuam a ser apresentados, instruídos, apreciados e decididos perante a autoridade judiciária'. Continua, portanto, a ser aplicável o regime definido pelo Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro. Foi já, portanto, decidido em conformidade, não tendo o presente acórdão que o apreciar. Assim, decide-se revogar a decisão reclamada e determinar o prosseguimento do recurso. Lisboa,21 de Dezembro de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida