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Processo n.º 924/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente ação com forma de processo sumaríssimo, que A. intentou contra B., pendente no 1.º Juízo Cível do T.J. de Braga, por sentença proferida em 21 de setembro de 2012, foi a ação julgada integralmente procedente e, em consequência, condenado o réu a restituir ao autor a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
O réu B. arguiu a nulidade e requereu a aclaração da sentença, pretensões indeferidas por despacho proferido em 15 de outubro de 2012.
Inconformado, o réu B. interpôs recurso dessas duas decisões para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Admitido recurso, neste Tribunal Constitucional foi proferida a decisão sumária n.º 79/2013, nos termos da qual foi decidido não conhecer do recurso, com os seguintes fundamentos:
“(...)
4. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério ou padrão normativo da decisão, enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, a isso se reconduzindo as situações em que “embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal ‘tal como foi aplicado pela decisão recorrida’ - o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso ‘sub judicio’ (…); [designadamente] a adequação e correção do juízo de valoração das provas e fixação da matéria de facto provada na sentença […]” (cf. Lopes do Rego, “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 2010, p. 34-35).
Então, e nas palavras do Acórdão nº 138/2006 (acessível em www.tribunal constitucional.pt), a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.”
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir ratio decidendi ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto, pressuposto decorrente da instrumentalidade da fiscalização concreta; a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional) e o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
Vejamos, então, se tais pressupostos se encontram verificados no caso em apreço.
5. Embora não seja identificada no requerimento de interposição de recurso qual a decisão ou decisões recorrida(s), compreende-se, sem esforço, que o recorrente pretende impugnar a sentença proferida em 21 de setembro de 2012 e também despacho proferido em outubro de 2012 que indeferiu a arguição de nulidades e a aclaração da sentença.
Com efeito, encontram relação com a sentença proferida em 21 de setembro de 2012 as questões enunciadas nas alíneas a) a f), enquanto a questão formulada sob a alínea g) vem dirigida à “decisão sobre aclaração”.
6. Tomando o conjunto do impulso recursório formulado com questões que se encontram dirigidas verdadeiramente a colocar em crise o acerto, ou a bondade das decisões recorridas, no plano da aplicação do direito infraconstitucional, e não a legitimidade constitucional do critério normativo efetivamente aplicado pelo Tribunal a quo, a que acresce, quanto a uma das questões, a ilegitimidade do recorrente.
6.1. A primeira questão incide sobre a “interpretação do artigo 911.º do Código Civil no sentido de poder reduzir-se o preço de negócio de venda de veículo automóvel sem que se faça prova da propriedade, seja do vendedor, seja do comprador”, sentido interpretativo que o recorrente aponta infringir os artigos 2.º, 20.º, n.ºs 1 e 4, e 62.º, n.º 1, da Constituição.
A formulação escolhida não é, também aqui esclarecedora, pois alude-se a um juízo de prova com referência aos termos de uma relação jurídica, questão de direito. Admite-se, ainda assim, que não se procura propriamente questionar o juízo sobre a prova produzida nos autos, mas sim o quadro de aplicação do regime do artigo 911.º do Código Civil acolhido na decisão recorrida, desprovido de prévia determinação da titularidade do direito de propriedade do objeto do contrato de compra e venda.
Ora, assim colocada, não nos encontramos perante a questão normativa de constitucionalidade, dirigida à apreciação da conformidade constitucional de critério normativo extraído do preceituado no artigo 911.º do CC, mas perante discussão sobre a verificação dos requisitos da redução do preço da compra e venda prevista nesse preceito e, também, sobre a virtualidade da sua aplicação a todas as modalidades do contrato de compra e venda, ou seja, perante problema de subsunção jurídica, inteiramente contido no plano infraconstitucional.
Assim sendo, o recurso não pode ser conhecido nessa parte, por não comportar no seu objeto a apreciação de questão normativa de constitucionalidade.
Acresce que, mesmo que assim não fosse, e estivéssemos perante o questionamento da constitucionalidade de critério normativo, sempre haveria que considerar que o recorrente não colocou essa questão perante o Tribunal a quo, em termos de importar a respetiva vinculação ao seu conhecimento na sentença recorrida, como obriga a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e o n.º 2 do artigo 72.º, ambos da Lei do Tribunal Constitucional, com cominação de ilegitimidade para recorrer.
E não se diga que o recorrente não teve para tanto oportunidade, ou que não lhe era exigível essa suscitação prévia à prolação da sentença, pois sustentou na contestação que apresentou nos autos a “confissão” do autor de que o veículo estava registado “a montante” em nome de uma sociedade, pelo que não se encontra quadro de imprevisibilidade ou de inexigibilidade justificativo da inobservância pelo recorrente da suscitação nessa peça processual de todas as consequências jurídicas desse facto, na sua visão, incluindo na vertente da desconformidade constitucional que agora pretende colocar. Como, aliás, fez mais tarde no requerimento em que argui a nulidade da sentença, em que considerou que a questão – titularidade do direito de propriedade do veículo relevava para a “aferição da legitimidade das partes ou, pelo menos, para a procedência e mérito da ação”.
6.2. Passando às questões colocadas sob as alíneas b) a f), todas comungam do sentido de questionamento da sentença na dimensão decisória da questão-de-facto, em clara pretensão impugnatória do ato de julgamento, em si mesmo considerado, e não de qualquer critério normativo efetivamente aplicado na decisão recorrida.
Com efeito, quando o recorrente aponta na alínea b) o recurso a sentido interpretativo, de acordo com o qual o dever de fundamentação se bast[a] com a indicação dos factos provados, dos meios de prova e conceitos genéricos de isenção e sinceridade da prova testemunhal sem indicação da razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduziu a convicção do Tribunal, encontra-se, na realidade, a discutir a bondade da motivação exarada e correção do juízo sobre a prova exercido no caso concreto em apreço, ou seja, do ato de julgamento sobre os factos, em si mesmo considerado.
Esse mesmo propósito e alcance emerge reforçado no confronto com as questões indicadas sob as alíneas c), d), e) e f), em que se vem questionar a idoneidade e suficiência das provas que o Tribunal ponderou para formar a sua convicção positiva sobre a identidade dos vendedor, ou seja, procura impugnar perante este Tribunal a correção do juízo de inscrição nos factos provados de que foi o réu B., ora recorrente, quem acordou com o autor A. a venda do veículo Toyota Corolla, matrícula 78-90-ZU, mediante a entrega da quantia de €12.600,00, e também a alteração do conta quilómetros do veículo, de forma a que este apresentasse na altura do referido acordo registo de quilometragem substancialmente inferior àquela que registava em momentos anteriores.
O recorrente não enunciou interpretações normativas que o tribunal tivesse erigido em critérios abstratos de decisão e suscetíveis de generalização quanto à apreciação das provas, julgamento e fundamentação das sentenças em matéria de facto, a que depois teria subsumido o caso concreto sub judicio; pelo contrário, critica a específica atuação processual do tribunal, indissociável do caso concreto.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre o modo como a prova foi produzida ou apreciada pela decisão recorrida, nem apreciar a consistência da decisão relativamente à prova produzida. O recurso, tal como o recorrente o recorta, teria a natureza de um recurso de amparo que o nosso ordenamento jurídico-constitucional não acolheu.
Também aqui, porque alheio à apreciação de questão normativa de constitucionalidade, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recurso pode ser conhecido.
6.3. Resta a questão incidente sobre a decisão proferida sobre o pedido de aclaração e que o recorrente coloca como decorrente da interpretação do artigo 669.º, nº. 1, alínea a), do Código de Processo Civil, no sentido de que a decisão sobre aclaração fundada em obscuridades se basta com a sua declaração de inexistência sem que responda pontualmente às questões suscitadas.
Em termos claros, a decisão recorrida não acolhe critério normativo com esse sentido; afirma, sim, que a decisão não padece de obscuridade e que o recorrente se limita a manifestar discordância com a condenação.
Ora, não cabe a este Tribunal Constitucional apreciar o acerto do entendimento de que a sentença não enferma de obscuridade e as razões avançadas para essa conclusão, no confronto com os argumentos aduzidos pelo recorrente, como também não cabe apreciar se o requerimento de aclaração contém verdadeira suscitação de ininteligibilidade da sentença ou, como considerou o despacho de 15/10/2012 recorrido, pretende apenas prolongar a discussão sobre o mérito da condenação proferida.
Certo é que, novamente, não estamos perante recurso colimado à apreciação de questão normativa de constitucionalidade, antes à reapreciação da decisão de indeferimento do pedido de aclaração, face às especificidades do caso concreto.
Importa esclarecer, face à referência no requerimento de interposição de recurso à “parte final do despacho de 15/10/2012”, que o segmento da decisão recorrida onde se diz “a questão de saber se o veículo que o réu vendeu ao autor era sua propriedade quando foi celebrado o contrato de compra e venda” e que “[o] que estava em causa era apenas a questão meramente obrigacional de saber se o réu celebrou, efetivamente, um contrato de compra e venda com o autor e se o veículo que vendeu sofria de um vício que o desvalorizava e implicava uma redução do preço” encontra conexão com a arguição de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, constante do ponto 15 a que já antes se fez alusão. Não se equaciona, de modo expresso ou implícito, qualquer das “obscuridades” que o recorrente colocou nos pontos 30 a 74 do requerimento de fls. 51 a 57.
Em suma, e novamente, não se mostrando colocada qualquer questão de normatividade suscetível de sindicância pelo Tribunal Constitucional, não se poderá igualmente tomar conhecimento do objeto do recurso dirigido ao despacho de 15/10/2012 (alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC).”
2. Novamente inconformado, veio recorrente B. reclamar da decisão sumária para a Conferência, através de requerimento com o seguinte teor:
“1 - Na douta decisão em crise sustenta-se a impossibilidade de conhecimento do recurso desde logo porque entende que o Recorrente imputou inconstitucionalidades à decisão judicial em si;
2 - Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Reclamante que ao invés do atrás exposto, o seu recurso cumpre todos os pressupostos que a lei faz depender do respetivo conhecimento;
3 - As inconstitucionalidades apontadas prendem-se com uma interpretação ou várias interpretações normativas;
4 - Foi da forma exposta pelo Recorrente que o Tribunal a quo interpretou aquelas normas;
5 - Fê-la (interpretação) antes de aplicação das mesmas ao caso concreto;
6 - E tanto assim que aquele veio a admitir o recurso para este Tribunal;
7 - Se é certo que tal não vincula o mesmo – como bem se afirma na decisão em mérito – não é menos certo que constitui indício claro da interpretação feita pelo Tribunal das normas invocadas e do sentido referido;
8 - Assim na decisão recorrida, ainda que se possa entender expressa de menos clara ou perfeita, conceberam-se as interpretações ora invocadas pelo Reclamante;
9 - Interpretações de normas;
10 - Que se julgam e se reitera de inconstitucionais;
11 - Como se disse, nada se questiona da decisão judicial na solução concreta;
12 - O que se questiona é o sentido da interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo de normas legais;
13 - Claro está que aquele sentido dado pelo Tribunal a quo às mesmas implica uma certa e concreta ponderação da decisão;
14 - E que – face à ausência de expressão clara da interpretação que fez – se teve de aferir para se apreender como havia e de que modo aquele interpretado as normas em questão e que normas;
15 - E tal só assim era possível pois que as mesmas não se configuram de forma explícita mas antes implícita;
16 - De contrário permitir-se-ia que qualquer decisão – para mais irrecorrível ordinariamente – que não decidisse de forma clara que a norma que aplicou e em que sentido pudesse “escapar” ao controlo da conformidade constitucional da sua aplicação jurídica de direito.”
3. O recorrido veio pronunciar-se, no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. O recorrente B. reclama para a Conferência da decisão sumária que não conheceu do recurso que apresentou, dirigido à sentença que julgou a ação procedente, proferida em 21 de setembro de 2012, e à decisão que indeferiu a arguição de nulidade e o pedido de correção da sentença, proferido em 15 de outubro de 2012.
Para tanto, argumenta tão somente que impugnou “o sentido da interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo de normas legais” e que as mesmas “não se configuram [nas decisões recorridas] de forma explicita mas antes implícita”.
Sem razão.
5. Importa notar, antes de mais, que o recorrente, ora reclamante, avança esses argumentos sem distinguir entre a apreciação que recaiu sobre cada uma das sete questões que elencou no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Em relação a todas as questões, a decisão sumária fundou-se na ausência de colocação de questões normativa de constitucionalidade, e não na desconformidade entre interpretação normativa questionada e aquela acolhida nas decisões recorrida, como ratio decidendi. Apenas neste plano, logicamente posterior à identificação da questão normativa colocada, haveria lugar à discussão sobre o acolhimento implícito de critério normativo efetivamente aplicado na decisão recorrida, em termos de assumir conformidade com o sentido questionado no recurso. O pressuposto em falta coloca-se antes da verificação da utilidade do recurso; incide sobre a ausência de objeto idóneo ao exercício da fiscalização concreta de constitucionalidade cometida a este Tribunal.
6. Com efeito, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correção ou a bondade das decisões proferidas pelos tribunais, no exercício estrito da função judicial que lhes está cometida, mas sim verificar a conformidade de normas com a Constituição ou lei de valor reforçado (artigo 280.º da Constituição). Importa, então, não confundir, como acontece com o reclamante, em face da operação (e resultado) do esquema subsuntivo, o momento de aplicação da lei ao caso concreto, mediante prévia valoração judicial das particulares circunstâncias dos autos – subtraído ao âmbito do recurso de constitucionalidade - com os padrões ou critérios normativos, autonomizáveis e suscetíveis de aplicação generalizada, que determinaram o ato judicativo. Apenas estes podem ser objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
7. Ora, tendo em atenção os termos da reclamação, cumpre reafirmar o entendimento acolhido na decisão reclamada, por acertado, na medida em que o recorrente não colocou à apreciação do Tribunal Constitucional qualquer critério ou padrão normativo, mas sim, e apenas, o ato de julgamento, em si mesmo considerado, quer no plano da definição e aplicação do melhor direito infraconstitucional, quer quanto ao concreto e específico juízo probatório, quer, por fim, quanto à procedência do pedido de aclaração.
8. Em suma, o recurso, atento o seu objeto, não pode, pois, prosseguir para apreciação de mérito, como determinado na decisão sumária ora em reclamação.
III. Decisão
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária n.º 79/2013.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Notifique.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.