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Processo n.º 863/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira catarina sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, A. veio interpor recurso de constitucionalidade, visando a decisão proferida em 8 de outubro de 2012.
2. O objeto do recurso, delimitado no respetivo requerimento de interposição, corresponderia, segundo o recorrente, ao artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, referindo este que tal disposição legal “é manifestamente inconstitucional, permitindo a discricionariedade total do Tribunal da Relação que decide sumariamente o recurso sem apreciação do mérito [do] mesmo”.
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O recorrente não refere a alínea do artigo 70.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC), ao abrigo da qual o recurso é interposto, nem, em rigor, a concreta norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a indicar o preceito de que a mesma será extraível, parecendo, assim, esquecer que os conceitos de norma e preceito legal não são sobreponíveis.
Incumpre o recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Acresce que, não obstante alegar expressamente a inconstitucionalidade de um preceito legal, não indica a concreta norma ou princípio constitucional que considera violado.
A omissão de menção, autónoma e especificada, de tais elementos não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que o mesmo aperfeiçoasse, de forma satisfatória, o requerimento de interposição de recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, como melhor analisaremos.
Na verdade, analisado o conteúdo do requerimento de interposição do recurso em conjugação com a decisão recorrida – que corresponde à decisão sumária de rejeição do recurso, por manifesta improcedência, referida pelo recorrente como acórdão, certamente por lapso - verifica-se que a única hipótese equacionável, com sentido útil, de admissibilidade do recurso seria a da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, porquanto, por um lado, o recorrente alude ao específico vício de inconstitucionalidade de um preceito; por outro lado, não houve qualquer recusa de aplicação de norma extraível de tal preceito; por último, não menciona o recorrente qualquer decisão anterior que tenha julgado a norma, cuja sindicância pretende, inconstitucional. Tais circunstâncias afastam liminarmente a aplicabilidade de outras alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, razão por que apenas nos deteremos na análise do requerimento de interposição de recurso, à luz da aludida alínea b).
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Comecemos por analisar este último pressuposto, que se consubstancia na exigência de que o recorrente coloque a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Torna-se indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, não obstante o recorrente não enunciar, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, expressamente reporta-o ao artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Assim, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma, deduz-se que a admissibilidade do presente recurso está dependente da circunstância de o recorrente ter problematizado a constitucionalidade de um critério normativo, extraível do referido preceito, junto do tribunal a quo, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Ora, analisando a motivação do recurso interposto da sentença da 1.ª Instância – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – conclui-se que em nenhum momento o recorrente antecipa e enuncia qualquer questão de constitucionalidade normativa extraível do artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sendo certo que não apresenta qualquer peça processual, na sequência de notificação nos termos do n.º 2 do artigo 417.º do mesmo diploma.
Pelo exposto, não tendo o recorrente cumprido o aludido ónus de suscitação prévia, não colocando, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada ao preceito identificado, enunciando-a, em termos autónomos, de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia, sempre estaria definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Nestes termos, face ao caráter cumulativo dos pressupostos de admissibilidade do recurso, demonstrado que se encontra o incumprimento do ónus de suscitação prévia, torna-se ociosa a discussão sobre a verificação dos restantes, concluindo-se, desde já, pelo não conhecimento do objeto do recurso. ”
4. Notificado desta Decisão sumária, o recorrente apresentou requerimento, referindo pretender a sua reforma.
Para fundamentar tal pretensão, defende o recorrente que não lhe era possível, na motivação do recurso dirigido ao Tribunal da Relação, suscitar a inconstitucionalidade do artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, “porquanto não tinha sido rejeitado o recurso ao abrigo daquela norma”, mais acrescentando que “não poderia recorrer de uma decisão ainda não proferida, e que acreditava ter possibilidades de êxito.”
Conclui, nestes termos, que apenas após a prolação da decisão recorrida se encontrava em condições de suscitar a inconstitucionalidade da norma que determina que o Tribunal da Relação “pode rejeitar recursos sem apreciar o mérito dos mesmos”, peticionando, pelo exposto, a reforma da decisão proferida, no sentido de viabilizar o conhecimento do recurso.
5. O Ministério Público, em resposta, refere que, ao contrário do que alega o recorrente, não se encontrava dispensado do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
Salienta, aliás, que, mesmo que se entendesse que não era exigível ao recorrente suscitar a questão antes da prolação da decisão de que agora recorre, sempre poderia o mesmo ter reclamado de tal decisão para a conferência – já que se trata de uma decisão sumária proferida pelo relator – e, na reclamação, suscitar a questão de constitucionalidade, dando assim ao tribunal a quo, em conferência, a possibilidade de se pronunciar sobre tal matéria.
Porém, o recorrente optou por não utilizar tal meio processual de impugnação, – a reclamação - deixando decorrer o respetivo prazo sem a sua interposição, e recorrer para o Tribunal Constitucional diretamente da decisão sumária do relator, proferida em 8 de outubro de 2012, nos termos permitidos no n.º 4 do artigo 70.º da LTC.
Acrescenta o Ministério Público que, ainda que se decidisse conhecer do recurso, sempre seria possível a prolação de decisão sumária, uma vez que a questão colocada, se não for considerada manifestamente infundada, deverá ser assumida como simples.
Pelo exposto, conclui que “mesmo que se conhecesse do recurso, sempre seria para, por decisão sumária, lhe negar provimento”.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. A pretensão do recorrente – independentemente do nomen iuris utilizado - corresponde, substancialmente, a uma impugnação e consequente pedido de reapreciação da decisão sumária proferida.
Ora, o meio processual idóneo para arguir vícios da decisão sumária, bem como para contradizer a sua argumentação, é a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Porém, nada obsta a que o Tribunal decida a questão substancial colocada, no âmbito do meio processual idóneo, apesar de o seu acionamento não ter sido inequivocamente operado pela parte.
A interpretação defendida justifica-se, como se refere no Acórdão n.º 716/04 deste Tribunal – a propósito de uma arguição de nulidade - “(…) por um lado, porque, na estrutura do processo constitucional, a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do art.º 78º-A, da LTC, surge como um modo de reexame da decisão do relator, independentemente desta haver decidido o recurso de meritis ou com base em razões simplesmente processuais, conhecendo a conferência das questões nos mesmos termos e com o mesmo âmbito ou extensão do relator.”
7. Feito este esclarecimento prévio justificativo da tramitação do requerimento apresentado como reclamação para a conferência, cumpre apreciar da sua pertinência.
Refere o reclamante que não lhe era possível suscitar a questão de constitucionalidade relativa ao artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, previamente, perante o tribunal a quo, porque o recurso que interpôs ainda não tinha sido rejeitado ao abrigo daquela norma, sendo certo que o reclamante confiava que tal recurso teria êxito. Assim, apenas após ser confrontado com a decisão recorrida, ficou em condições de suscitar a inconstitucionalidade da norma extraível do aludido preceito.
A tese defendida pelo reclamante parece assentar no pressuposto erróneo de que a convicção subjetiva sobre o sucesso da pretensão deduzida no recurso dispensa a parte de prever a possibilidade da sua rejeição, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Tal pressuposto, porém, desvirtua, por completo, a base em que assenta o ónus de suscitação prévia que analisamos, que implica a exigência de a parte, em cumprimento de um dever de litigância tecnicamente prudente, formular um juízo de prognose, que antecipe as várias hipóteses, razoavelmente previsíveis, de enquadramento normativo da sua pretensão pelo tribunal a quo, de modo a que esteja em condições de confrontar atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que poderão viciar as normas ou interpretações normativas convocadas.
Em obediência a tal dever de litigância prudente, não pode a parte, que interpõe um recurso, deixar de prever a possibilidade de ser confrontada com a sua rejeição, fundada numa interpretação normativa plausível da alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.
Na verdade, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de forma criteriosa e necessariamente restritiva, a exceção ao princípio de que a suscitação da questão de constitucionalidade deve preceder a prolação da decisão recorrida, reservando-a para aquelas situações, absolutamente atípicas, em que o recorrente não podia razoavelmente antecipar a possibilidade de uma dada dimensão normativa – objetivamente surpreendente - ser acolhida na decisão recorrida.
Aplicando as considerações expendidas ao caso concreto, concluímos que, não correspondendo a interpretação normativa adotada pelo tribunal a quo, extraída do artigo 420.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, a um critério normativo surpreendente – sendo antes perfeitamente previsível, atento o teor literal do preceito - não se encontrava o recorrente desobrigado do cumprimento do ónus de suscitação prévia da respetiva questão de constitucionalidade.
Por outro lado, sempre se dirá – como bem acentua o Ministério Público – que o reclamante, confrontado com a decisão sumária proferida pelo relator do Tribunal da Relação, nos termos conjugados dos artigos 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, poderia ter reclamado para a conferência de tal decisão, ao abrigo do n.º 8 do artigo 417.º do mesmo diploma, problematizando a questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada, na reclamação, em vez de fazer precludir a utilização de tal meio impugnatório, pelo decurso do respetivo prazo. Estaria, nessa altura, ainda em tempo de suprir a sua inércia em suscitar a questão de constitucionalidade em momento prévio à prolação da decisão sumária, aguardando que o Tribunal da Relação, em conferência da secção, proferisse acórdão apreciando a questão colocada, para, posteriormente – caso se mantivesse a adoção de critério inconstitucional, na perspetiva do reclamante – interpor recurso deste acórdão - correspondente à última palavra das instâncias sobre a matéria - para o Tribunal Constitucional.
Nestes termos, conclui-se pela improcedência da reclamação deduzida, cujos argumentos não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
III - Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e confirmar a decisão sumária proferida no dia 15 de março de 2013.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de maio de 2013.- Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.