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Processo nº 18/2001 Plenário Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea d) do nº2 do artigo
281º da Constituição, veio requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, 'por violação das normas contidas nos artºs 13º e 59º, nº 1, a), da Constituição da República Portuguesa', das seguintes normas:
– da norma contida no 'artigo 2º do Decreto-Lei nº 347/91, de 19 de Setembro,
'na medida em que as condições de antiguidade na mesma estipuladas tenham como resultado que funcionários mais antigos na mesma categoria aufiram uma remuneração inferior à de outros, de menor antiguidade e idênticas qualificações',
– e da norma contida no nº 1 do artigo 11º 'do Decreto-Lei nº 373/93, de 4 de Novembro, na parte em que, limitando o seu âmbito a funcionários promovidos após
1 de Outubro de 1989, permite o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria.' Os preceitos legais em causa, que constam, respectivamente, do diploma que procedeu ao descongelamento dos escalões do Novo Sistema Retributivo da Função Pública para o pessoal docente do ensino superior e de investigação científica, abrangido pelo Decreto-Lei nº 408/89, de 18 de Novembro, e do que, no quadro desse Novo Sistema Retributivo, estabeleceu as regras relativas ao estatuto remuneratório e à estrutura das remunerações de base da carreira de bombeiros sapadores, bem como ao descongelamento de escalões, têm o seguinte teor: Artigo 2º (Decreto-Lei nº 347/91)
(Condicionamento da progressão)
1 – Fica descongelada, de acordo com as regras dos números subsequentes, a progressão nos escalões das categorias e carreiras do pessoal a que se refere o artigo anterior.
2 – Na primeira fase procede-se ao seguinte descongelamento:
a) Subida de um escalão, quando a antiguidade na categoria seja igual ou superior a 6 anos;
b) Subida de dois escalões, quando a antiguidade na categoria seja igual ou superior a 10 anos.
3 – Na segunda fase procede-se ao seguinte descongelamento:
a) Subida de um escalão, quando a antiguidade na categoria seja igual ou superior a 7 anos;
b) Subida de dois escalões, quando a antiguidade na categoria seja igual ou superior a 18 anos.
Artigo 11º (Decreto-Lei nº 373/93) Norma transitória
1 – Os bombeiros sapadores promovidos após 1 de Outubro de 1989 serão integrados em escalão da nova categoria a que corresponda um índice de valor não inferior a 10 pontos relativamente àquele a que teriam direito pela progressão na categoria anterior, por força do disposto nos artigos 8º a 10º do presente diploma.
2 – (...)
2. Fundamentando o pedido, o Provedor de Justiça argumenta no sentido de que 'a adopção de critérios de progressão e promoção de natureza estritamente temporal pelos regimes em apreço causou situações de injustiça relativa consubstanciadas no facto de funcionários com maior antiguidade na mesma categoria passarem a auferir uma remuneração inferior à de colegas menos antigos'. Não foi, assim, salvaguardado pelos regimes de descongelamento o 'princípio da igualdade da retribuição' – ou seja, o princípio da igualdade na sua concretização para as relações laborais –, nos termos em que é consagrado na referida alínea a) do nº 1 do artigo 59º da Constituição, pois que 'não se reconhece qualquer critério objectivo ou valor constitucionalmente relevante
(...) susceptível de legitimar a diferenciação de tratamento remuneratório' que provocam. 'Na verdade, o recurso a um critério diferenciador de índole temporal que desatende ao tipo de trabalho desenvolvido, às capacidades e às qualificações dos funcionários não se configura como justificação material bastante para tal desigualdade retributiva'. Lembra ainda o Provedor de Justiça que este Tribunal já julgou inconstitucional a norma do artigo 2º do Decreto-Lei nº 347/91, por 'violação do princípio constitucional da igualdade de retribuição', no seu Acórdão nº 584/98, proferido num processo de fiscalização concreta da constitucionalidade; e que já declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral, no seu Acórdão nº 254/00, 'as normas ínsitas nos artºs 3º, nº 1, do decreto-lei 204/91, de 7 de Junho, e 3º, nº 1, do decreto-lei 61/92, de 15 de Abril, na parte em que, limitando o seu
âmbito a funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, permitiam o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade da categoria por violação do disposto no artº 59º, nº 1, al. a) da Constituição
(...), regime este que foi transposto para a categoria dos bombeiros sapadores através do artº 11º, nº 1, do decreto-lei 373/93, ora contestado'.
3. Na sua resposta, o Primeiro Ministro limita-se a oferecer o merecimento dos autos e a solicitar que o Tribunal Constitucional, na hipótese de vir a julgar inconstitucionais as normas impugnadas, limite os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, 'restringindo os efeitos da decisão, com excepção dos processos pendentes, nos termos do nº 4 do artigo 282º da CRP já que: a) A eventual eliminação retroactiva dos efeitos produzidos pelas normas sindicadas implicaria a necessidade de se executar uma pluralidade indeterminada de complexas operações administrativas de reclassificação de funcionários, situação que seguramente congestionaria os serviços administrativos envolvidos, em manifesto prejuízo do interesse público; b) A reclassificação dos funcionários que tenham sido hipoteticamente objecto de tratamento desigualitário importaria um acréscimo não previsto das despesas públicas, devido à necessidade de satisfação retroactiva do pagamento de remunerações mais elevadas a que eventualmente os mesmos teriam direito, e do qual resultaria um desequilíbrio negativo no Orçamento do Estado que vigora no corrente ano económico'.
4. Cumpre então conhecer do pedido, uma vez que foi fixada a orientação a seguir após discussão do memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos previstos no nº 1 do artigo 63º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
5. Começa-se, por simplicidade, pela apreciação da norma constante do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 373/93, de 4 de Novembro, na parte impugnada. Ora tal norma, como observa o Provedor de Justiça, limita-se a aplicar à carreira dos bombeiros sapadores a solução legislativa de transição que, quando se procedeu ao descongelamento dos escalões do Novo Sistema Retributivo, foi perfilhada, em geral, pelo nº 1 do artigo 3º, tanto do Decreto-Lei nº 204/91, como do Decreto-Lei nº 61/92.
É, assim, transponível para a sua apreciação, quer o julgamento de inconstitucionalidade formulado pelo Acórdão nº 254/00 (Diário da República, I-A, de 25 de Maio de 2000) – proferido, aliás, no seguimento do já antes decidido nos Acórdãos nºs 180/99, 409/99 e 410/99 (publicados no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1999, o primeiro, e de 10 de Março de
2000, os dois restantes) – relativo a essas outras normas, quer a limitação de efeitos dessa inconstitucionalidade, nos termos e pelos fundamentos então indicados. Tal como ali se afirmou, na sequência da referência aos acórdãos anteriores, '5. As mui amplas transcrições acima efectuadas [dos mesmos acórdãos] servem, a um tempo, de um lado, para demonstrar, que, na realidade das coisas, foi a violação do direito previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 59º do Diploma Básico, enquanto corolário, na sua vertente laboral, do princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, que conduziu aos juízos de inconstitucionalidade efectuados; e, de outro, para ilustrar qual a via de raciocínio que levou o Tribunal a formular tais juízos. A violação do princípio da igualdade, precipitado no de que a ‘trabalho igual deve corresponder salário igual’, como é bom de ver, surpreendeu-a o Tribunal quando os conteúdos normativos em questão, os quais, ao limitarem o seu âmbito aos funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, podiam, na prática, levar a que, dentro da mesma categoria, funcionários de maior antiguidade viessem a auferir remuneração inferior reportadamente a funcionários de menor antiguidade.
Ora, foi justamente para o estabelecimento dessa diferenciação - diferenciação que não foi posta em crise na ‘resposta’ do Primeiro-Ministro - que o Tribunal não divisou (nem agora divisa, em face dos argumentos utilizados nos transcritos acórdãos e que aqui se acolhem na sua integralidade) qualquer fundamento constitucionalmente relevante que pudesse justificar tal estabelecimento.
Anota-se ainda que, na aludida ‘resposta’, a respectiva panóplia argumentativa não logra, na perspectiva seguida por este Tribunal, infirmar o raciocínio conclusivo de harmonia com o qual se lobriga a existência de um interesse constitucionalmente atendível que permita sustentar a diferenciação causada pelas normas em apreciação, designadamente um interesse esteado no estatuto da função pública, o qual, de todo em todo, não assume uma qualquer especificidade de onde decorra a postergação do princípio de ‘para trabalho igual, salário igual’.
É que, se foi escopo dessas normas a tentativa de reparação ou compensação de injustiças, não deixa de ser certo que as soluções legais delas emergentes vieram causar uma casuística dissemelhança cuja averiguação ou valoração se não vislumbra encontrar espaço num indirizzo político ainda permitido pela não disponibilidade constitucional (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1982, 64).
E, por isso, também aqui se não deixará de concluir pela enfermidade constitucional do questionado normativo.
6. Resulta do nº 1 do artigo 282º da Constituição que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos ex tunc. Todavia, o nº 4 do mesmo artigo confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de o mesmo fixar os efeitos do declarado vício de molde a que o alcance dos efeitos da declaração seja mais restrito do que o resultante do indicado nº 1, desde que isso seja justificado por razões conexionadas com a segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo.
In casu, de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral incidente sobre os normativos sub specie e a respeito da qual não houvesse limitação de efeitos, haverá de resultar o ‘reposicionamento’ dos funcionários em causa, cujo número, embora indeterminado, é, certamente, acentuado; e, além disso, se não houver limitação de efeitos, resultará ainda a percepção da diferença remuneratória correspondente a esse ‘reposicionamento’.
Só que, essa percepção, para além de, como é claro, haver de implicar a realização de inúmeras actividades de natureza administrativa e burocrática com vista a ser alcançado o processamento ‘retroactivo’ das diferenças remuneratórias, com óbvio reflexo perturbante nos serviços, acarretaria ainda acentuadas repercussões a nível orçamental. A enunciada corte de dificuldades constitui, assim, motivo para que este Tribunal, estribado em razões de segurança jurídica, faça uso da faculdade que é concedida pelo mencionado nº 4 do artigo 282º, por forma a que os efeitos da inconstitucionalidade, no aspecto por último referido, se produzam unicamente a partir da data da publicação do vertente acórdão no jornal oficial, e sem embargo de a presente ‘ressalva’ não abranger os actos administrativos entretanto praticados e que hajam sido objecto de impugnação contenciosa por eventuais interessados.'
6. Já no que toca à norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 347/91, na medida impugnada, não pode o Tribunal Constitucional concluir no sentido da inconstitucionalidade.
É facto que o Tribunal, no citado acórdão nº 584/98, julgou inconstitucional a norma nele contida 'enquanto restringe o descongelamento na progressão dos escalões das categorias do pessoal docente do ensino superior e de investigação, mas só na medida em que o limite temporal de antiguidade na categoria, ali estipulado para a primeira e segunda fase do descongelamento, implique que funcionários mais antigos na mesma categoria passem a auferir uma remuneração inferior à de outros, de menor antiguidade e idênticas qualificações'; mas este julgamento singular não pode ser generalizado e vertido numa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Com efeito, a norma em apreço – mais exactamente a que se extrai dos nºs 2 e 3 do artigo 2º em questão – é, por si só, insusceptível de alterar e inverter o posicionamento dos funcionários, nos escalões das várias categorias das carreiras a que respeita, correspondente à sua antiguidade relativa. Na verdade, se ela toma como referência, justamente, essa antiguidade relativa, na categoria, para operar o descongelamento gradual, e determina que este se processe na razão directa de tal antiguidade na categoria, claro que essa norma, enquanto tal, nunca poderá logicamente conduzir a que funcionários mais antigos da mesma categoria venham a ficar posicionados, em determinado momento, num escalão inferior (e, portanto, com menor remuneração) ao de funcionários menos antigos na categoria. A situação é, assim, diferente da que resulta das normas dos artigos 3º, nº 1, dos Decretos-Leis nºs 204/91 e 61/92, ou do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº
343/93 É que estas fazem intervir, para efeito do posicionamento dos funcionários numa certa categoria, um outro elemento – o escalão em que teriam sido colocados na categoria anterior, por força do descongelamento, se não tivessem sido promovidos após 1 de Outubro de 1989 (data da entrada em vigor do Novo Sistema Retributivo). Esta outra norma, abrangendo apenas os funcionários promovidos após essa data, já poderia conduzir – como conduziu – a que funcionários promovidos anteriormente a dada categoria vissem outros, promovidos depois da referida data, ser colocados em escalão superior. Considerada em abstracto, a norma em julgamento não pode, pois, ser julgada inconstitucional com o fundamento apontado, já que não pode logicamente, por si só, conduzir ao resultado que lhe é imputado.
7. Este julgamento não envolve nenhuma contradição com o que se decidiu no referido Acórdão nº 584/98, como se poderia supor. Com efeito, estava então em julgamento um recurso interposto de uma decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de recusa de aplicação da norma que veio a ser julgada inconstitucional, norma que essa decisão extraiu do artigo 2º do Decreto-Lei nº 347/91; o Tribunal Constitucional estava, pois, condicionado, na sua apreciação, quer pela definição da norma operada por aquele tribunal, quer pela sua inclusão naquele preceito, que determinaram os contornos do objecto do recurso de constitucionalidade. A verdade, porém, é que o resultado julgado inaceitável só pode ter sido originado no funcionamento combinado das regras de transição do pessoal docente universitário para o Novo Sistema Retributivo (artigo 5º do Decreto-Lei nº
408/89, em especial os seus nºs 2 e 3) com o princípio, estruturante deste Sistema, segundo o qual a promoção a uma categoria superior se faz sempre para um escalão a que corresponda remuneração superior à que o funcionário vinha auferindo na categoria de onde transitou (cf., em geral, o artigo 17º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, e, para a carreira docente universitária, que ali estava em causa, o artigo 3º do Decreto-Lei nº 308/89).
8. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei nº
347/91, de 19 de Setembro; b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 373/93, de 4 de Novembro, na parte em que, limitando o seu âmbito a funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, permite o recebimento de remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na categoria; b) Limitar a produção dos efeitos da inconstitucionalidade por forma a não implicar a liquidação das diferenças remuneratórias correspondentes ao
«reposicionamento», agora devido aos funcionários, relativamente ao período anterior à publicação do presente acórdão no Diário da República e sem prejuízo das situações ainda pendentes de impugnação. Lisboa, 12 de Julho de 2001- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Cosata Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Messias Bento Artur Maurício Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa