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Proc. nº 59/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
1 – Relatório
O Provedor de Justiça vem requerer ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea d) da Constituição da República Portuguesa, a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade das normas contidas no artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79 de 29 de Dezembro (de ora em diante apenas referido como Estatuto de 79) que, segundo o requerente, violam as normas contidas nos artigos 2º, 13º e 18º, nº 2, da Constituição.
Alega, como fundamentos do seu pedido, em síntese, o seguinte:
- Os arrendamentos em que são arrendatárias as instituições particulares de solidariedade social (nova designação dada pelo Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro) constituem, de acordo com o disposto no artigo 3º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, arrendamentos de fim não especificado ou arrendamentos para outros fins
- A sujeição dos arrendamentos feitos pelas IPSS para o exercício das suas actividades ao regime dos arrendamentos habitacionais, operada pelo artigo 22º do Estatuto de 79, determinou, numa primeira fase, o congelamento das rendas em questão, em virtude da suspensão, quanto aos arrendamentos habitacionais, do regime de avaliações fiscais instituído pela Lei nº 2030, de
22/6/48, relativo à actualização quinquenal da renda.
- Determinou, depois, a impossibilidade de os respectivos senhorios requererem a avaliação fiscal extraordinária e de actualizarem a renda anualmente, a partir do valor locatício apurado, nos termos dos Decretos-Lei nºs
330/81, de 4 de Dezembro, 189/92, de 17 de Maio, 392/82, de 18 de Setembro e
436/83, de 19 de Fevereiro.
- Determinou, ainda, a actualização anual das rendas segundo coeficientes sensivelmente inferiores aos vigentes relativamente aos arrendamentos para outros fins, situação que se mantém até à data do pedido.
- O melhor tratamento concedido ao arrendatário, em confronto com o senhorio revela-se, também, no domínio da fixação da própria renda, comparando o regime aplicável aos arrendamentos habitacionais com o regime aplicável aos arrendamentos para outros fins (cfr. artigo 1º do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro que qualificou como infracção criminal a estipulação de renda superior à praticada)
- Os nºs 2 e 4 do artigo 22º do Estatuto de 79 privam o senhorio de meios de cessação do contrato de arrendamento – se o legislador não tivesse consagrado a transmissão a que se reporta aquele nº 2 o senhorio poderia resolver o contrato em caso de cessação da posição contratual não consentida, sendo o cessionário IPSS ou serviço oficial de segurança social – consubstanciando limitações ao direito de resolução e ao direito de denúncia do contrato.
- Sendo certo que existem razões objectivas, alicerçadas em princípios e valores constitucionais, que justificam o tratamento de favor confere às IPSS – estas prosseguem fins de interesse público, de modo desinteressado – a verdade é que esse regime de favor foi, no caso, instituído à custa da imposição de um encargo especial aos senhorios.
- O encargo especial sobre determinado grupo de cidadãos para beneficiar especialmente um outro grupo só deve ser imposto pelo legislador quando esse for o único meio de que dispõe para poder dispensar o tratamento de favor que pretende instituir.
- O objectivo de poupar as IPSS a aumentos sensíveis das despesas de renda das suas habitações poderia ser conseguido mediante a instituição de um esquema de subsídios, tal como se fez em matéria de arrendamento para habitação quanto aos inquilinos mais pobres.
- Se nos arrendamentos outorgados após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 519-G2/79, o senhorio celebra o contrato consciente da aplicabilidade do regime previsto naquele diploma, já nos anteriores os senhorios vêem sujeitos os contratos a um estatuto diferente do previsto, com uma modificação substancial quanto ao sistema de actualização de rendas, a eles desfavorável, maxime se confrontado com aquele a que continuaram sujeitos os arrendamentos idênticos celebrados com inquilinos que não sejam IPSS.
- Atenta a sua imprevisibilidade, esta medida legislativa viola os princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no princípio do estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição).
- Passando os arrendamentos às IPSS de não habitacionais a habitacionais, são as próprias linhas mestras da evolução do seu regime legal que se alteram, os interesses e forças em conflito que passam a ser outros, desaparecendo as já de si escassas possibilidades de prever e influenciar minimamente a evolução desse regime legal.
- Mesmo que não se entenda que o artigo 22º do Estatuto de 79, na sua dimensão retroactiva, não viola o princípio da confiança, ele colocou numa situação de desfavor, assente numa categoria meramente subjectiva, certos senhorios, de entre os que haviam celebrado contratos para fins não habitacionais, de forma discriminatória, colocando-os naquela situação sem fundamento material bastante, o que constitui uma diferenciação irrazoável e arbitrária que afronta o princípio da igualdade – a lei estabelece um tratamento diferenciado injustificado, enquanto viola os princípios da proporcionalidade e da justiça.
- Estando em causa a concessão de um tratamento de favor a instituições que prosseguem as suas atribuições em benefício da comunidade e consequente imposição de um encargo especial a um determinado grupo de cidadãos, deveria este ser compensado, tal como o exige uma proporcionada repartição dos encargos públicos entre os cidadãos, postulada pelo princípio da igualdade perante esse encargos.
- Ao optar pela lesão dos direitos patrimoniais dos senhorios em vez do recurso à subsidiação das IPSS inquilinas, o legislador não respeitou os princípios da proporcionalidade e necessidade que devem reger, segundo o artigo
18º nº 2 da Constituição, as restrições de direitos, liberdades e garantias, devendo os direitos patrimoniais (artigo 62º da Constituição) beneficiar do regime do referido artigo 18º.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º nº 3 da Lei nº 28/82, o Primeiro--Ministro respondeu, sustentando, em síntese, o seguinte:
- Ao determinar a aplicação do regime dos arrendamentos para habitação aos arrendamentos em favor de IPSS, o legislador ordinário limitou-se a optar – de entre os sub-regimes básicos do arrendamento urbano, o do arrendamento para habitação e o do arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal – por um regime (o do arrendamento para habitação) que tem plena justificação na natureza, no tipo de actividades e nos fins das IPSS, não violando os princípios constitucionais da confiança, da segurança jurídica, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da necessidade das restrições de direitos, liberdades e garantias, tendo o Tribunal Constitucional já reconhecido a não inconstitucionalidade do regime em causa no Acórdão nº 50/88, de 3 de Março de 1988.
- A natureza, os objectivos e as actividades das IPSS justificam uma regulamentação e protecção, desde a atribuição da natureza de instituições de utilidade pública, adquirida automaticamente, até exigências de forma, de fundo, de gestão e de tutela nas regras respectivas e a uma cooperação intensa e apoio por parte do Estado e das entidades públicas que se traduz em importantes comparticipações financeiras nos investimentos e no funcionamento e pelo reconhecimento de relevante intervenção no domínio de direitos muito importantes dos utentes.
- A questão meramente formal da colocação sistemática do tipo de arrendamento em causa não detém virtualidades de limitar a respectiva regulamentação possível em termos de a mesma ser igual para todos, pois ali se contém uma variedade de situações que reclamam, por isso mesmo, regulamentações diversificadas.
- Não contendo o RAU mais do que regulamentação por remissão para o arrendamento “para outros fins não habitacionais”, estando ele assim sujeito às regras gerais do arrendamento, a regras por que as partes podem optar e a regras para cada situação que a lei determine, nada mais do que isto o artigo 22º do Estatuto de 79 fez quando remeteu para as regras do arrendamento para habitação.
- Privilegiando o legislador, na regulamentação do arrendamento para habitação, em alguns aspectos, a posição do inquilino, em desfavor do senhorio, também o fez, e bem, concedendo protecção semelhante, não propriamente às IPSS mas àqueles que são seus utentes e beneficiários da sua actividade.
- Através da protecção às IPSS, o que se protege são os seus beneficiários – idosos, crianças, jovens, doentes, deficientes – sendo que, muitas vezes é da habitação propriamente dita dessas pessoas que se trata.
- Também no arrendamento para habitação há um certo grau de desprotecção do senhorio em função dos interesses vitais dos arrendatários, podendo também aí o Estado assumir os custos de tal protecção, mas tanto neste caso como no do arrendamento às IPSS se o Estado assume alguma medida de protecção, também projecta, em alguma medida a protecção em sacrifício exigido ao senhorio.
- Os nºs 2 a 4 do artigo 22º em causa são medidas que têm em conta circunstâncias que dizem especificamente respeito às IPSS.
- A transmissão do arrendamento justifica-se por ser o Estado ou uma outra IPSS que assumirá no mesmo local as mesmas funções ou funções semelhantes em benefício dos mesmos utentes ou de utentes em situações semelhantes, continuando a privilegiar-se a situação destes face à situação do senhorio, sendo certo que também o trespasse de estabelecimento comercial ou industrial
(artigo 115º do RAU) ou a cessão de posição de arrendatário em caso de exercício de profissão liberal (artigo 122º do RAU) se podem fazer sem autorização do senhorio, como, em alguns casos, a transmissão de arrendamento para habitação
(artigos 84º e 85º do RAU).
- Os interesses dos utentes das IPSS afastam a possibilidade de denúncia por parte do senhorio, denúncia cuja possibilidade é, em geral, restrita (artigos 69º e segs. do RAU, em particular depois da declaração de inconstitucionalidade contida no Acórdão do TC nº 55/99), e, mais ainda, em caso de arrendamento para habitação (artigos 107º e segs. do RAU); o regime é, aliás, próximo do que se verifica quando o arrendatário é uma casa de saúde ou estabelecimento de ensino, não se exigindo até, neste caso, a natureza não lucrativa.
- Não se mostra, assim, violado o princípio constitucional da igualdade, nem o da proporcionalidade e necessidade das restrições de direitos, liberdades e garantias, já que as limitações aos direitos dos senhorios se justificam pelas circunstâncias particulares das IPSS, decorrentes da sua natureza e das suas actividades, que tornam razoável que o regime do arrendamento seja o próprio do arrendamento para habitação; a protecção, constitucionalmente garantida, dos cidadãos que beneficiam dos cuidados prestados pelas IPSS, justifica aquelas limitações.
- Face ao sentido da aplicação das leis no tempo, nos termos do artigo 12º do Código Civil, não há verdadeira retroactividade da legislação em causa.
- Com a legislação de 1979, não foi introduzido um regime totalmente imprevisível, violentador da confiança e da segurança que o cidadão deve depositar nas instituições..
- A única alteração, que então se introduziu, traduziu-se na suspensão da actualização das rendas, até aí possível nos termos da actualização quinquenal prevista nos artigos 1104 e 1105 do Código Civil, sendo que o arrendamento em causa não é idêntico ao contratado com outros inquilinos para os tais “outros fins”, já que a identidade não resulta seguramente da arrumação conjunta e há razões sobejas para, em função da natureza e das actividades das IPSS, destacar os seus arrendamentos de quaisquer outros que possam caber naquela categoria meramente formal e residual.
- É claramente contrário à realidade admitir a imprevisibilidade de aumentar a protecção de inquilinos como as IPSS, numa época em que o instituto do arrendamento conheceu sucessivas e profundas modificações, incluindo congelamento de rendas.
- Não se vê que um senhorio de uma IPSS se pudesse à época surpreender profundamente por a lei ter vindo a determinar uma protecção visando os utentes da instituição, em termos próximos, como já anteriormente acontecera com a Lei nº 2030, dos da protecção do inquilino do arrendamento para habitação, de forma a ver abaladas a sua confiança na ordem jurídica e a sua segurança.
Fixada a orientação do Tribunal, com a votação do memorando apresentado, foram os autos distribuídos para elaboração do acórdão.
Cumpre, agora, decidir.
2 – Delimitação do objecto do pedido
As normas que o requerente pretende ver julgadas materialmente inconstitucionais constam do artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, preceito mantido em vigor pelo artigo 98º alínea b) do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, que aprovou o novo Estatuto (que se passará a designar como Estatuto de 83) das Instituições Particulares de Solidariedade Social (nova designação) e revogou o primeiro (artigo 98º, alínea a)).
Dispõe aquele artigo:
Artigo 22º
1 - Os arrendamentos de imóveis, feitos pelas instituições para o exercício das suas actividades, estão sujeitos ao regime jurídico dos arrendamentos destinados a habitação, independentemente do fim dos contratos.
2 - O direito ao arrendamento transmite-se entre instituições ou entre estas e serviços oficiais de segurança social, sem dependência do consentimento do senhorio.
3 - No caso de extinção de instituições, o contrato de arrendamento não caduca quando o património da pessoa colectiva extinta se transmita para outra instituição ou para serviços oficiais de segurança social.
4 - Não é aplicável a estes arrendamentos o disposto no artº 1096º do Código Civil.
Tal como vem formulado, o pedido abrange a totalidade das normas constantes dos quatro números do artigo 22º.
Certo, porém, é que, relativamente à norma do nº 3 deste artigo, não se vislumbra no requerimento do Provedor de Justiça, qualquer fundamento específico em que se alicerce a alegação de inconstitucionalidade. Tal não obstará ao conhecimento do pedido, nesta parte, aceite que as razões de inconstitucionalidade desenvolvidas quanto às normas dos nºs 2 e 4, são, na lógica do discurso argumentativo, transponíveis para a do citado nº 3.
Assinala-se, também, que todas as normas ínsitas no artigo 22º são questionadas em toda a sua potencialidade aplicativa temporal, ou seja, na sua aplicabilidade a todos os arrendamentos feitos pelas IPSS para o exercício das suas actividades, celebrados quer depois da entrada em vigor do Estatuto de 79
(1 de Janeiro de 1980), quer anteriormente à mesma data e então subsistentes
(arrendamentos de pretérito).
3 – Fundamentação
3.1 - “Para dar cumprimento ao disposto no artigo 63º nº 3 da Constituição da República e alínea h) da subsecção 4.3 do Programa do Governo, torna-se necessária a elaboração de legislação ordinária que, à luz dos princípios fundamentais da nova ordem constitucional, defina o estatuto e regime jurídico das instituições privadas de solidariedade social e as normas de coordenação da sua acção com a do Estado, fazendo incidir, como caso particular de especial relevância, a sua atenção na definição do estatuto e regime jurídico das Misericórdias e suas relações com o Estado” – assim justificava o despacho ministerial, publicado no Diário da República, II Série, de 5/5/77, p. 3022, a constituição de uma comissão com o encargo de apresentar um relatório e sugestões legislativas para a elaboração do referido estatuto.
Tratava-se, com efeito, de dar execução ao disposto no artigo 63º nº
2 da Constituição (versão original), no ponto em que ao Estado era imposta a obrigação de regulamentar as “instituições privadas de solidariedade social não lucrativas” e de as sujeitar a fiscalização.
Essas “instituições” surgem no texto constitucional a propósito do
“direito à segurança social” como entidades cuja existência é “permitida” e não prejudicada pela “organização do sistema de segurança social”, o que parece apontar no sentido da complementaridade da acção privada no campo da segurança social. É ao Estado que incumbe, em primeira linha, satisfazer o direito dos cidadãos à segurança social, mas a acção pública pode (ou deve) conjugar-se com a actividade das instituições privadas de solidariedade social e articular-se com esta.
Se o citado artigo 63º nº 2 da CRP pode sugerir, numa primeira leitura, uma atitude de mera tolerância do Estado perante as instituições privadas de solidariedade social (as instituições “serão permitidas...”), certo
é que a relevância dessas instituições, dos valores que elas corporizam e dos fins que prosseguem não podia deixar de ser reconhecida por uma Constituição em cujo preâmbulo a Assembleia Constituinte proclama o objectivo da construção de um “país (...).mais fraterno”, no artigo 9º alínea c) se consigna como uma tarefa fundamental do Estado a defesa da “participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais”, no que concerne às crianças “particularmente os órfãos e os abandonados” (uma das áreas a que tradicionalmente se dedicavam as instituições de assistência ou beneficência) o artigo 69º nº 2 consagra que elas “têm direito a especial protecção da sociedade” e os artigos 71º e 72º estabelecem, para com os deficientes e pessoas idosas (outras das áreas privilegiadas por aquelas instituições), específicas obrigações do Estado.
E assim o compreendeu o I Governo Constitucional ao inserir no seu Programa, no capítulo respeitante à Segurança Social, como um dos objectivos, o de “promover o bem-estar social, através de formas de apoio às iniciativas regionais e locais, em favor especialmente das crianças, jovens e pessoas idosas, de fomento da vida comunitária e outras formas de solidariedade” (4.2, alínea f)) e como uma das providências “a realizar a curto prazo” a
“incentivação da acção das instituições privadas de solidariedade social não lucrativas, estabelecendo, através das normas da sua regulamentação e fiscalização, as desejáveis cooperação e articulação entre essa acção e a do Estado” (4.3 alínea h)) (in Diário da Assembleia da República, Suplemento ao nº
17, de 3 de Agosto de 1976, p. 438 (55)).
A vertente social do Estado de direito democrático caracterizado no artigo 2º da CRP é expressamente reforçada nas sucessivas versões deste preceito, onde se assinala, como um dos objectivos do Estado, “a realização da democracia (...) social”, o que justifica nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º ed. p. 66) que
“o princípio do Estado social [seja] também uma directiva constitucional, podendo resultar da sua sistemática desconsideração situações de incumprimento da Constituição”.
A actividade de assistência e beneficência, exercida por particulares, sem fins lucrativos, essencialmente dirigida a pobres, doentes e carenciados, com vista à satisfação das suas necessidades, não é, nem poderia ser, alheia àquele objectivo e, consequentemente, estranha à própria actividade do Estado na prossecução de uma “democracia social”.
Historicamente nem sempre foi assim em Portugal e é comum datar-se em 1870, com a fundação da Casa Pia, o início da actividade assistencial do Estado; até então, assentavam nas instituições particulares, dominantemente religiosas (avultando, de entre elas, as Misericórdias ou Santas Casas das Misericórdias) as actividades de assistência e beneficência.
Progressivamente, porém, o Estado vai integrando no âmbito das suas tarefas a actividade assistencial, dando lugar ao que se considera ser a
“assistência pública” (por contraposição à “assistência particular”).
De todo o modo, a assistência particular jamais deixou de desempenhar um papel fundamental na prestação de auxílio à população carenciada, complementando a assistência estadual, sempre confrontada com dificuldades financeiras (que, aliás, assolavam também as instituições particulares) e que não tinha, nem poderia ter, capacidade para acorrer a todas as situações de carência social.
De facto, se o peso relativo das assistências pública e privada foi sempre o reflexo do ideário político de cada regime ou governo, nunca o Estado prescindiu da colaboração, nesta tarefa, das instituições particulares.
Recuando a 1924, em plena crise financeira da maior parte das instituições de assistência privada, que se arrastava desde 1916, o Decreto nº
10242 de 1/11/24 regulamenta o exercício da assistência privada em termos que revelam a importância da actividade dos organismos que se dedicam a obras de beneficência e caridade, no quadro de uma Constituição (a de 1911) cujo projecto político desconhece, ainda, qualquer forma de democracia social (Jorge Miranda
“Constituições Portuguesas”, 1976, p. XV), sem, no entanto, deixar de se assinalar que nela se reconhece, com inovação, o “direito à assistência pública”
(artigo 3º - nº 29º).
Naquele diploma e segundo o respectivo preâmbulo, “marcam-se (...) os fundamentos do direito social no capítulo da assistência privada, harmonizando-o, tanto quanto possível, com o exercício da assistência pública, conjugando a iniciativa particular com o Estado para a grande obra a realizar na acção de tam grandioso empreendimento que é também um dos mais sagrados deveres de todos os povos cultos que aspiram a glorificar os seus destinos nos anais da civilização”.
De entre as citadas instituições, avultam, nos domínios da assistência concelhia, as Misericórdias e, nestas, a Misericórdia de Lisboa, expressamente qualificada como “instituto oficial de assistência pública”
(artigo 12º); estabelece-se, mesmo, como “obrigatória” a “assistência concelhia aos indigentes”, “sendo a sua esfera de acção integrada na Misericórdia respectiva” (artigo 3º).
Tal assistência obrigatória compreendia o “socorro aos doentes”, o
“socorro às grávidas e recemnascidos indigentes”, a “assistência à infância desvalida”, o “socorro a indigentes, velhos, inválidos de trabalho, anormais reeducáveis e deformados sem base de reeducação” e a “assistência funerária aos indigentes”.
No que concerne ao regime financeiro destas instituições, é de salientar a faculdade de elas pedirem o lançamento de um adicional até 5 % sobre todas as contribuições gerais do Estado, cujo produto se destinava ao pagamento de subvenções ou subsídios a distribuir anualmente pelas instituições de assistência de cada concelho (artigo 13º).
Vigorava, então, o Código Administrativo de 1896 que, depois de no corpo do artigo 253º atribuir ao Governador Civil “a inspecção superior das irmandades, confrarias, corporações ou instituições de piedade ou beneficência, que por lei não estejam imediatamente subordinadas ao Governo” qualificava, no §
único do mesmo preceito, como “corporações administrativas” “todas as corporações, associações e institutos de piedade e beneficência, sujeitas à inspecção do Governador Civil”.
Tratava-se de pessoas colectivas de fins desinteressados, fins esses que, nos termos do Código Civil então em vigor, caracterizavam a mera utilidade pública das corporações e fundações de direito privado mas, de entre elas, apenas as que, nas palavras de Marcelo Caetano (“Corporações administrativas – Notas sobre o seu conceito e regime jurídico” in “O Direito”, ano 66º, nº 2 p.
35), “se (aproximam) não só pelos fins que vizam, como ainda pelos meios que usam, dos serviços públicos”, o que leva o mesmo autor a concluir que “à margem e paralelamente à administração do Estado e dos corpos administrativos, surge uma outra administração de interesses gerais – verdadeira administração pública que deve exercer-se concorrente e harmonicamente com aquela” e a definir as
“corporações administrativas”, atento o seu regime jurídico especial, como “uma forma intermédia entre as pessoas colectivas de direito público e as pessoas colectivas de direito privado” (loc. cit. pp. 35 e 36).
Diplomas posteriores, entre os quais o já citado Decreto nº 10242, os Decretos com força de lei nºs 15076, de 27/2/1928, e 20285, de 7 de Dezembro de 1931, foram introduzindo alterações no regime destas instituições, particularmente no que concerne à sua articulação com os serviços estaduais e à tutela a que se encontravam sujeitas.
De todo o modo, até à Constituição de 1933, vigora “um sistema de assistência social, onde a intervenção pública se ocupava prioritariamente da coordenação das instituições privadas de ajuda e beneficência” (“Assistência Social” in “Dicionário de história do Estado Novo”, direcção de Fernando Rosas e Brandão de Brito, vol. I, p. 71). Por outro lado, a assistência social era, juntamente com o mutualismo e os seguros sociais (estes dando lugar às Caixa de Pensões de Reforma e, mais tarde, às Caixas Sindicais de Previdência), uma das formas principais de protecção social (“Previdência Social” in ob. cit., vol. I, p. 796).
Com a Constituição de 1933, consagram-se como fins do Estado o de
“coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais (...)” e o de
“zelar pela melhoria das classes sociais mais desfavorecidas (...)” (artigo 6º -
2º e 3º); quanto à “assistência”, o artigo 17º indica, apenas, como um dos objectivos dos organismos corporativos, a “assistência, beneficência ou caridade”, organismos esses que, nos termos do artigo 16º, incumbe ao Estado
“autorizar (...) promover e auxiliar a sua formação”; no que respeita à
“previdência”, o artigo 41º consigna que “O Estado promove e favorece as instituições de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade”.
O Estado assume, assim, quer num quer noutro daqueles domínios, uma função supletiva relativamente à actividade privada que, porém, se deveria exercer sob os seus poderes de promoção, orientação e tutela.
Isto mesmo se afirma expressamente no preâmbulo do Decreto-Lei nº
27610, de 1/4/37, onde se diz que “a organização corporativa e alguns dos princípios essenciais deste levarão logicamente a buscar a solução do problema da assistência mais no desenvolvimento das suas formas privadas do que na luxuriante vegetação de organismos públicos, burocratizados estatizados, ou sejam mecânicos e inertes. Certamente, e não se sabe ainda por que período, a assistência pública – paga, dirigida e administrada pelo Estado – terá de continuar, mas nada exige que desde já se vá além de conferir-lhe uma função supletiva e de coordenação e orientação superiores, no sentido de que ao Estado incumba na assistência, sobretudo, uma função de justiça e aos particulares a função essencial de misericórdia”.
Uma visão evolutiva do papel do Estado no domínio da assistência social, com especial incidência nas relações do Estado com as instituições particulares impõe, obviamente, a ponderação de diplomas tão relevantes como foram a Lei nº 1998, de 15/5/44 (conhecida como Estatuto da Assistência Social), o Decreto-lei nº 35108, de 7/11/45, a Lei nº 2120 de 19/7/63, que revogou a primeira, e, finalmente, o Código Administrativo de 1940 que dedicou o Título VIII às pessoas colectivas de utilidade administrativa e o Título IX às associações religiosas e sua actividade beneficente ou de assistência.
A Lei nº 1998 que, na sua Base I, define em termos muito amplos o conceito de assistência social (“propõe-se valer aos males e deficiências dos indivíduos, sobretudo pela melhoria das condições morais, económicas ou sanitárias dos seus agrupamentos naturais, e para esse efeito organiza, coordena e assegura o exercício de actividades que visem a esse fim”), reafirma na Base IV, “com excepção dos serviços de sanidade geral e outros cuja complexidade ou superior interesse público aconselhem a manter em regime oficial”, a supletividade da função do Estado e das autarquias relativamente às “iniciativas particulares”, que ao Estado incumbe “orientar, tutelar e favorecer”.
O Decreto-Lei nº 35108 reorganiza os serviços da assistência social e, entre outras medidas, cria diversos institutos, no âmbito da Direcção Geral da Assistência, a quem compete “fomentar, dirigir e coordenar a acção das instituições de assistência oficiais e particulares” (artigo 23º); a tutela das instituições particulares tem como limite a vontade dos instituidores ou fundadores, mas permite a intervenção da entidade tutelante quanto à
“actualização técnica dos serviços ou da coordenação ou concentração das instituições, quando necessárias à melhoria da assistência” (artigo 25º).
Todo o Título III deste diploma é dedicado à “assistência particular”, sendo nele de assinalar uma acentuada intervenção do Estado nas instituições que a ela se dedicam, a nível quer dos seus próprios regulamentos
(artigo 103º) quer da sua concentração ou transformação (artigo 104º), quer no aspecto orçamental (artigo 106º), quer, finalmente, na fiscalização dos seus
órgãos (artigo 107º).
Interesse especial merece o disposto no citado artigo 104º onde se estabelece que, exercido pelo Ministro do Interior o poder que lhe fora conferido pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 31666, de 22/11/41, “a instituição que resultar da concentração ou transformação ficará, para com terceiros, com todos os direitos e obrigações das instituições suprimidas, concentradas ou transformadas”.
Relevante é, ainda, o princípio de que as instituições particulares devem exercer a sua acção “em estreita colaboração” com as Misericórdias (artigo
103º).
A Lei nº 2120 proclama na sua Base III o princípio da liberdade do exercício, individual ou colectivo, da caridade ou beneficência; as instituições particulares são autónomas, só podendo ser limitada a sua autonomia pela tutela administrativa do Estado (Base VII); as actividades de assistência “destinam-se a proteger os indivíduos contra os efeitos das carências e disfunções pessoais ou familiares, na medida em que não estiverem cobertos por esquemas de seguro privado ou social” e incluem, entre outros aspectos, a assistência à família à maternidade, à infância, aos menores, aos velhos e aos inválidos e a educação e a reabilitação ou recuperação dos deficientes físicos ou psíquicos bem como dos indivíduos socialmente diminuídos (Base XI, alíneas a) e c)); compete ao Estado, no financiamento das actividades de saúde e assistência, “comparticipar na construção, remodelação e apetrechamento dos estabelecimentos a cargo das instituições particulares e na manutenção dos serviços, na medida em que os encargos não possam ser suportados por força de outros recursos” (Base XXXIV, alíneas a) e b)).
O Código Administrativo de 1936-40, no seu Título VIII, trata das associações beneficentes ou humanitárias e dos institutos de assistência ou educação, fundados por particulares e que não sejam administrados pelo Estado ou por um corpo administrativo; não de todos, mas apenas daqueles que “aproveitem em especial aos habitantes de determinada circunscrição”, ou seja os de
“utilidade local”.
Qualifica-os o artigo 416º como “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa”, conceito assente nos fins desinteressados que prosseguem, “fins comuns de interesse geral”, igualmente prosseguidos pela Administração Pública e que mais fácil e eficazmente se alcançam com a colaboração da iniciativa privada (cfr. Marcelo Caetano “Manual de Direito Administrativo”, 2 ed., 1847, p. 80).
É esta desejável e necessária concorrência de pessoas colectivas de direito privado na prossecução de fins públicos que justifica a sujeição dessas entidades a um regime jurídico especial onde se conjuga uma tutela estadual apertada, ao nível da gestão administrativa, de pessoal e orçamental, com a concessão de diversas regalias.
No que ao caso nos interessa, importa realçar, como disposição comum daquele regime, o que consagra o artigo 432º sobre o destino dos bens e valores das associações e institutos extintos: eles revertem para o Estado e a Direcção-Geral da Assistência “entregá-los-á seguidamente à Misericórdia do lugar onde tenha tido a sua sede a associação ou instituto extinto ou, não a havendo, à da sede do concelho ou, na falta desta, a qualquer obra de assistência pública ou particular existente na circunscrição”.
O Capítulo II dispõe sobre as associações beneficentes ou humanitárias, reservando uma secção própria para as “Misericórdias” (secção I) e definindo nas Secções II e III o conceito de associações de beneficência e de associações humanitárias, como tendo por objecto principal, as primeiras,
“socorrer os pobres e indigentes, na infância, invalidez, doença ou velhice, bem como educá-los ou instruí-los” (artigo 439º) e, as segundas, “socorrer feridos, doentes ou náufragos, a extinção de incêndios ou qualquer outra forma de protecção de vidas humanas e bens” (artigo 441º).
O Capítulo III trata dos “institutos de utilidade local”, fundações constituídas para a prossecução de um fim de assistência ou de educação.
Os institutos de assistência ou de beneficência dirigidos ou sustentados por associações religiosas estão regulados no Título IX, sendo o seu regime, em geral, o que disciplina os institutos de utilidade local de fins análogos.
3.2 - A aproximação histórica, que se deixou apenas esboçada, às instituições que, em grande parte, vieram a ser enquadradas no regime das IPSS - pondo em destaque as tarefas de que ao longo dos tempos elas se têm incumbido, a proximidade da sua acção com a acção pública, o suporte insubstituível que têm representado à acção do Estado na prossecução de objectivos essenciais de uma democracia social, o especial tratamento jurídico a que elas sempre foram sujeitas, com deveres mas também com direitos muitas vezes próximos daqueles que são próprios de instituições públicas – é necessária para abordar as questões de constitucionalidade suscitadas pelo requerente.
Com efeito, ela é decisiva – adiante-se já – para pôr em causa, nomeadamente, o acerto de comparações em que assenta a imputação de violações do princípio da igualdade e da ponderação de expectativas que estão na base da alegação de infracções ao princípio da confiança ou da segurança jurídica.
3.3 - O Estatuto de 79 estabelece o regime a que passaram a ficar sujeitas grande parte das entidades particulares que vimos referindo – primeiro, as que facultavam serviços ou prestações de segurança social (artigo 1º); depois, com o Estatuto de 1983, que revogou o primeiro quase integralmente e redefiniu o conceito daquelas instituições, todas “as constituídas, sem finalidade lucrativa, por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos e desde que não sejam administradas pelo Estado ou por um corpo autárquico, para prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos, mediante a concessão de bens e a prestação de serviços: a) Apoio a crianças e jovens; b) Apoio à família; c) Apoio à integração social e comunitária; d) Protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho; e) Promoção e protecção da saúde, nomeadamente através da prestação de cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação; f) Educação e formação profissional dos cidadãos; g) Resolução dos problemas habitacionais das populações” - podendo, assim, afirmar-se que nelas ficaram compreendidas quase todas as instituições a que se reportavam os diplomas supra citados e sendo, ainda, de salientar que, nos termos do artigo 94º nº 1 do mesmo Estatuto, as instituições anteriormente qualificadas de “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa” que, pelos fins prosseguidos, se devessem considerar instituições particulares de solidariedade social, ficaram igualmente sujeitas ao regime então instituído.
Ao longo das décadas que, a passos muito largos, percorremos, não descuraram os governos, no âmbito da política social prosseguida, alguns aspectos respeitantes ao regime do arrendamento em que, como senhorias ou arrendatárias, as instituições de assistência ou beneficência estavam envolvidas.
A intervenção legislativa em tal domínio, sem carácter sistemático, orientou-se sempre no sentido de garantir condições àquelas instituições para o desenvolvimento das suas actividades e, de impedir, na medida do possível, que as vicissitudes a que elas se mostravam sujeitas, enquanto abrangidas pelo regime geral do arrendamento, prejudicassem a continuidade dos seus serviços a bem da comunidade, tanto mais imprescindíveis quanto – repete-se - se revelava incipiente a actuação assistencial do Estado.
Assim, logo com a Lei nº 1662, de 2/9/24, estabelecido como princípio a não rescisão do contrato de arrendamento com a transmissão do prédio, se excepcionou o caso de esta se efectuar, a título gratuito, a favor das instituições de beneficência que carecessem do imóvel transmitido para as suas instalações (artigo 1º § 2º).
Também o artigo 6º do mesmo diploma legal permitia às associações de socorros mútuos, hospitais, misericórdias, asilos e outras instituições de beneficência legalmente reconhecidas, instalados em edifício próprio, o despejo do inquilino para o termo do contrato, quando carecessem da parte do edifício arrendado para ampliação das suas instalações; exceptuavam-se, porém, os casos em que eram arrendatárias instituições daquele tipo (§ 3º do mesmo artigo).
O Decreto nº 10242, de 1/11/24 consagrou também um regime próprio de actualização de rendas dos prédios das misericórdias arrendadas ao Estado
(artigos 23º e segs.).
Em 1925, o Decreto nº 10774, de 19 de Maio estabeleceu, no seu artigo 2º, que as acções de despejo com fundamento em falta de pagamento de renda onde funcionassem estabelecimentos de assistência ou de beneficência só podiam ser intentadas seis meses depois do vencimento das rendas não pagas e se nesse prazo não fossem liquidadas as rendas em dívida; relativamente às acções de despejo pendentes, ficavam elas suspensas desde a publicação do decreto e só prosseguiriam se no prazo de seis meses a contar da mesma publicação não fossem pagas ou depositadas as rendas (§ único do artigo 2º).
Nos termos do seu 15º, o Decreto nº 15804, de 23/7/28, tornava extensivas às misericórdias as vantagens concedidas pelas leis do inquilinato aos corpos administrativos.
O artigo 20º do Decreto nº 19281, de 29/1/31, outorgava às associações de socorros mútuos, instaladas em edifício próprio, o direito de despejar arrendatários de parte desse edifício para o fim do prazo do arrendamento quando dela carecessem para ampliação das suas instalações, direito esse que vem a ser reafirmado pelo Decreto nº 20944, de 27/2/32 (artigo 33º).
O Decreto nº 20285, de 7/9/31, estende às misericórdias o direito que é atribuído às instituições de assistência pública de darem de arrendamento os seus prédios quando desnecessários aos serviços, arrendamento esse que seria sempre a título precário, rescindível desde que o prédio voltasse a ser necessário (artigo 10º e § único).
Com o Decreto nº 34926, de 20/9/45, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa - então já não qualificada como “instituição oficial de assistência pública” (Decretos nºs 5621, de 10/5/19 e 8219, de 29/6/27), como resulta do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 32255, de 12/9/42 - passa a gozar do direito que ao Estado fora conferido pelo Decreto nº 23465, de 18/11/34, de despejar os seus inquilinos, antes do fim do prazo do arrendamento, quando isso lhe convier (artigo 1º).
Alheio à matéria do arrendamento não é também o já citado artigo
104º do Decreto-Lei nº 35108 no ponto em que, como se viu, as instituições resultantes da concentração ou transformação de outras, passavam a ser titulares de todos os direitos das instituições suprimidas, concentradas ou suprimidas, deles não estando excluídos os direitos como arrendatárias.
Também a Lei nº 2030, de 22/6/48, continha regras aplicáveis especificamente às instituições em causa; era o caso dos artigos 49º nº 1 alínea a) e 72º que, relativamente aos arrendamentos feitos a “pessoas morais com fins humanitários ou de beneficência, assistência ou educação”, previam, o primeiro, actualizações de renda nos termos do artigo 47º (arrendamentos para habitação fora de Lisboa e Porto) e o segundo, a possibilidade do deferimento da desocupação, quando fosse decretado o despejo imediato ou para o termo do prazo.
Finalmente, deve ainda assinalar-se que a Lei nº 2088, de 3/6/57, depois de consagrar o direito de o senhorio requerer o despejo para o fim do prazo do arrendamento com fundamento na execução de obras que permitam o aumento do número de arrendatários, subtraiu a este regime – e pese embora as objecções que a medida suscitou na discussão da proposta de lei na Assembleia Nacional
(cfr. Diários das Sessões nºs 192, 193, 197, 205, 206 e 207) – o arrendamento a casas de saúde e a estabelecimentos de ensino particular, sendo certo que este tipo de actividade poderia ser exercido por instituições particulares de assistência ou de beneficência.
Apesar destas medidas que, embora avulsas e pontuais, não deixavam de evidenciar a necessidade de um regime específico que tivesse em conta a relevância pública ou de interesse geral das actividades exercidas e, em particular, a sua continuidade, nenhum diploma, até à aprovação do Estatuto de
79, estabeleceu um regime de arrendamento próprio das instituições particulares de assistência ou beneficência.
À data da publicação do Decreto-Lei nº 519-G2/79 vigorava um regime geral de arrendamento urbano que assentava, basicamente, no que dispunha o Código Civil sobre o contrato de locação de imóveis e o “arrendamento de prédios urbanos”.
Com efeito, o artigo 1083º determinava a aplicação aos arrendamentos de prédios urbanos das disposições da secção VIII e das normas das secções I a VI (respeitantes à locação) no que não tivessem em oposição com as daquela (nº
1), exceptuando no nº 2, entre outros, os arrendamentos sujeitos a legislação especial (alínea d)) a que, no entanto, mandava aplicar aquelas mesmas disposições que não estivessem em oposição com o regime especial desses arrendamentos.
Não se poderia então considerar que os arrendamentos a estabelecimentos de assistência, de beneficência ou de fins humanitários estivessem sujeitos a legislação especial – os casos em que a lei estabelecera regulação própria para aspectos pontuais desses arrendamentos não são suficientes parta definirem um “regime” especial.
As normas aplicáveis a esses arrendamentos eram, assim, entre outras, a que obstava, em principio, ao direito de denúncia pelo senhorio
(artigo 1095º) (cfr. Acórdão de 31/5/83 da Relação de Lisboa sobre arrendamento a partidos políticos, com anotação crítica de Menezes Cordeiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 54º, p. 843) mas que excepcionalmente o concedia nos termos do artigo 1096º, a que estabelecia a caducidade do arrendamento em caso de extinção da pessoa colectiva (artigo 1051º, alínea e)), a que impedia a cessão de posição contratual sem consentimento do senhorio (artigos 1059º nº 2 e
424º), a que, em matéria de actualização de renda, previa a possibilidade de o senhorio exigir do arrendatário, decorridos cinco anos, uma renda mensal correspondente ao duodécimo do rendimento ilíquido inscrito na matriz, podendo o senhorio requerer a avaliação fiscal do prédio, destinado a corrigir esse rendimento (artigos 1104º e 1105º).
Enquanto isso, o regime então vigente subtraía como se disse já, as casas de saúde e os estabelecimentos de ensino particular daquele direito de denúncia quer com fundamento em necessidade de habitação própria do senhorio quer com fundamento em execução de obras para aumento de número de arrendatários
(artigo 1096º nº 2) e estabelecia que a posição de arrendatário era transmissível sem consentimento do senhorio em caso de trespasse de estabelecimento comercial e industrial (artigo 1118º) bem como, nos casos de arrendamento para exercício de profissões liberais, quando a transmissão se operasse para pessoas que no prédio arrendado continuassem a exercer a mesma profissão (artigo 1120º).
Tratava-se, em suma, de um regime que não acautelava suficientemente o exercício privado da actividade assistencial, de beneficência, ou de fins humanitários, em particular no que concerne à sua necessária continuidade quer através da própria instituição, quer de outras que da primeira resultassem, por transformação, cisão ou fusão.
Ora, com a Constituição da República Portuguesa, uma nova filosofia política redefinira o papel do Estado na sociedade, vinculando-o a fins e tarefas que demandam um tipo de intervenção qualitativamente diverso (e não só mais intenso) nos sectores mais carenciados da população. Democracia social, justiça social, solidariedade social são objectivos e valores plasmados no texto constitucional que impõem ao Estado a responsabilidade primeira e directa nos domínios da segurança social e da acção social e não já a supletividade que repetidamente se afirmava em diplomas do regime anterior.
Não se apaga nem se atenua, por isso, a importância que se reconhecia às instituições particulares naqueles domínios; elas assumem, ao invés, e sem perder a sua autonomia (igualmente reclamada pela Constituição) uma nova dimensão, cumprindo deveres de solidariedade, no concurso que prestam e as envolve na prossecução de fins do Estado.
Foi, assim, que se reconheceu, no Estatuto de 79, o lugar próprio para consagrar, pela primeira vez, um regime especial de arrendamento para as instituições particulares de solidariedade social, adequado às actividades por elas exercidas e, principalmente, aos fins de interesse geral que prosseguem.
Já, entretanto – diga-se em parêntesis - a legislação publicada após a entrada em vigor do Código Civil introduzira algumas alterações ao regime do arrendamento urbano de que importa salientar, no que ao caso interessa, o Decreto-lei nº 155/75, de 25 de Março, que suspendeu todas as acções e execuções de despejo por denúncias contratuais nos termos dos artigos 1096º a 1098º do Código Civil e 1º da Lei nº 2088, o Decreto-lei nº 198-A/75, de 14 de Abril, que, exigindo o consentimento do senhorio para a celebração do contrato de arrendamento, nas ocupações destinadas a fins não habitacionais, tornou o contrato obrigatório quando a ocupação tivesse “um fim social e humanitário reconhecido pelo Ministério da Administração Interna”, o Decreto-lei nº 293/77, de 20 de Julho, que revogou o Decreto-lei nº 155/75 e, entre outras medidas, permitiu o diferimento da desocupação do prédio, em acção de despejo decretada com determinados fundamentos (artigos 1º a 17º) e o pedido, por parte do réu, de declaração de caducidade do direito à resolução do arrendamento por cessação da situação que deu causa ao pedido do autor (artigo 18º) e, finalmente, a Lei nº
55/79, de 15 de Setembro que limitava o direito de denúncia facultado pelo artigo 1096º nº 1 alínea a) do Código Civil (artigos 1º e 2º nº 1) mas estabelecia excepções à limitação constante do artigo 2º nº 1 (artigo 3º), aplicando-se o diploma nas acções de despejo pendentes sem decisão transitada em julgado (artigo 5º nº 1).
O regime especial de arrendamento criado pelo Estatuto de 79 e mantido pelo Estatuto de 83 (artigo 98º, alínea b)) ficou definido no artigo
22º, supra transcrito, cuja constitucionalidade ora se questiona, regime esse que se concretiza nos seguintes termos:
- As normas aplicáveis são as que regem os arrendamentos destinados a habitação, mas o senhorio não pode denunciar o contrato, para o termo do prazo ou da renovação, quando necessite do prédio para sua habitação ou para nele construir a sua residência ou quando se proponha ampliar o prédio ou construir novos edifícios em termos de aumentar o número de locais arrendáveis (nºs 1 e 4 do artigo 22º)
- O direito ao arrendamento é transmissível entre instituições e entre estas e serviços oficiais de segurança social, independentemente do consentimento do senhorio (nº 2 do artigo 22º)
- O contrato de arrendamento não caduca nos casos de extinção das instituições quando o património delas se transmitir para outra instituição ou para serviços oficiais de segurança social (nº 3 do artigo 22º).
As questões de constitucionalidade que o requerente coloca reportam-se à potencialidade aplicativa deste regime em toda a sua dimensão temporal, ou seja, à sua aplicabilidade tanto aos futuros contratos como aos contratos anteriormente celebrados com as IPSS, ou mais rigorosamente com as instituições que passaram a ter uma tal qualificação com os Estatutos de 79 e 83
(arrendamentos de pretérito).
É, pois, nessa dupla vertente que as questões serão apreciadas, muito embora, na argumentação do requerente, se revista de alguma autonomia, a imputação de inconstitucionalidade reportada aos arrendamentos de pretérito, pela alegada violação dos princípios da confiança ou da segurança jurídica que, obviamente, não teria cabimento relativamente aos arrendamentos futuros (no momento da celebração dos contratos os senhorios tinham, então, pleno conhecimento do regime a que aqueles ficavam sujeitos).
3.4 - O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a constitucionalidade do regime de arrendamento instituído pelo Estatuto de 79. Fê-lo, em fiscalização concreta e com o objecto limitado à norma constante do disposto no nº 1 do artigo 22º do Estatuto, no Acórdão nº 50/88, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 571 e segs.
É, aliás, em parte assente na declaração de voto de vencido exarado naquele acórdão e no que mais desenvolvidamente consta do parecer publicado em “XX Aniversário do Provedor de Justiça – Estudos”, pp. 71 e segs, que vem deduzido o presente pedido.
Pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no citado acórdão, no sentido de não julgar inconstitucional a referida norma e, não havendo razões substanciais que agora conduzam a solução diversa, seguir-se-á de perto o que aí se decidiu.
3.5 - Defrontou-se o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº 50/88, com argumentação semelhante à que vem agora expendida para sustentar a violação do princípio da igualdade
De salientar, porém, que, à data em que foi produzido, aquele aresto não podia deixar de ter apenas como regime de referência para apreciação da suposta violação daquele princípio o que o Código Civil estabelecera para o arrendamento urbano bem como os diplomas subsequentes que lhe introduziam alterações pontuais, particularmente na área do regime de rendas e sua actualização.
Passou, entretanto, a vigorar o regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, (RAU), razão por que ele é, agora, uma nova referência para aferir a invocada desigualdade induzida pelas normas constantes do artigo 22º do Estatuto de 79, sendo certo que é a esse regime que o requerente se reporta nos fundamentos do seu pedido.
No que ao caso importa, dir-se-á, contudo, que as inovações trazidas pelo RAU não comprometem o essencial da argumentação do Acórdão nº 50/88.
Na fundamentação do pedido e enquanto se intenta demonstrar a disparidade de tratamento (mais desfavorável) que é dada aos senhorios dos prédios arrendados
às IPSS para o exercício das suas actividades, ressalta um ponto essencial: a qualificação e o regime jurídico a que no quadro traçado pelo RAU (e, anteriormente, pelo Código Civil) estaria sujeito o arrendamento, atendendo aos seus fins, se não vigorassem as normas do artigo 22º do Estatuto de 79; relaciona-se, assim, o regime instituído por este Estatuto e aquele que, sem ele, vigoraria para aquele arrendamento.
Quando foi publicado o Estatuto de 79, o artigo 1086º nº 1 do Código Civil estabelecia, como fins do arrendamento, a habitação, a actividade comercial ou industrial, o exercício de profissão liberal e “outra aplicação lícita do prédio”. A cada um destes fins, à excepção do último, correspondia um regime de arrendamento próprio “transformando assim cada uma das modalidades de arrendamento, consoante o fim a que se destina, numa espécie de contrato típico ou nominado” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado”, 1968, vol. II, p. 359).
Tratava-se, aliás, da consagração em disposição legal, de uma distinção que há muito se desenhava na legislação sobre arrendamento – o Código de Seabra limitava-se a distinguir os arrendamentos de prédios urbanos e os arrendamentos de prédios rústicos, mas já os Decretos nºs 4499 e 5411 e a Lei nº 1662 continham normas específicas sobre arrendamentos de estabelecimentos comerciais e industriais, referindo-se também já a Lei nº 2030 aos arrendamentos para o exercício de profissão liberal (para efeitos fiscais, o Decreto-lei nº 27235, de
23/11/36 dispunha sobre trespasses ou novos arrendamentos de prédios ocupados por “consultórios ou escritórios de profissões liberais”).
A verdade, porém, é que não havia no Código Civil qualquer regulamentação específica para os arrendamentos que tivessem como fim “outra aplicação lícita do prédio”, a eles se aplicando as normas respeitantes à locação no que não estivessem em oposição com as da secção VIII do Capítulo IV do Título II e isto se não estivessem compreendidos nas alíneas a) a d) do nº 2 do artigo 1083º.
Com o RAU manteve-se, ainda, sem regulamentação específica esta modalidade de arrendamento; só com o Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, que ao RAU aditou um Capítulo V, com um único artigo (artigo 123º), os arrendamentos não habitacionais que não se destinem ao comércio ou indústria, nem ao exercício de profissão liberal passaram a ter um “esboço” de regime próprio, limitado a duas normas, uma sobre a possibilidade de aplicação do regime dos contratos de arrendamento de duração efectiva para comércio ou indústria (nº 1 do artigo
123º) e outra que apenas abrange os contratos de arrendamento que se destinam ao exercício de uma actividade não lucrativa (nº 2 do artigo 123º), facultando a alternativa, desde que convencionada, de aplicação das normas especiais que regem os contratos de duração limitada.
Dada a multiplicidade de fins a que estes contratos se podem destinar – afinal todos aqueles lícitos que não sejam o de habitação, comércio ou indústria e exercício de profissão liberal, compreendendo, deste modo, actividades tão diferenciadas como sejam as de um sindicato, de um clube desportivo, de uma sociedade recreativa, de um partido político – pode desde logo questionar-se se o “regime” a que eles estão sujeitos constitui um parâmetro legítimo para se aferir da igualdade reclamada pelo artigo 13º da Constituição, só pela circunstância de, a não existir o artigo 22º do Estatuto de 79, o arrendamento feito às IPSS se integrar naquela modalidade de contratos de arrendamento “para outros fins”.
Era, de resto, o que se deixava perceber no Acórdão nº 50/88 (embora, antes de publicado o RAU, o que não retira validade à argumentação, dada a relativa insignificância das alterações introduzidas pelo citado Decreto-Lei nº 257/95), quando nele se escrevia:
“(...) também não é relevante – para o efeito de uma eventual violação do disposto no artigo 13º da Lei Fundamental – a diferenciação de tratamento entre os contratos feitos a instituições particulares de solidariedade social e os restantes contratos de arrendamento para fins não habitacionais não especificados. É que os arrendamentos a que se refere a parte final do nº 1 do artigo 1086º do Código Civil não constituem uma espécie de arrendamento urbano ao mesmo título que os arrendamentos para habitação, ou aos arrendamentos para actividades comerciais ou industriais, ou aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais. Com efeito, os arrendamentos cuja fim seja “outra aplicação lícita do prédio” podem ser muito distintos uns dos outros, tudo dependendo da sua finalidade específica, a qual, por natureza, se não encontra tipificada; por isso mesmo, não existem disposições especiais aplicáveis a tais arrendamentos, ao contrário do que acontece com todos os autos (cf. subsecções VI, VII, VIII da secção VIII do capítulo IV do título II do livro II do Código Civil). Neste contexto, aparece como inteiramente natural, e consequentemente, como legitimamente admissível, a diferenciação de tratamento jurídico operada pelo legislador ordinário relativamente aos contratos de arrendamento previstos no nº
1 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 519G2/79”.
Não pode, assim, deixar de se reconhecer plena pertinência ao que se diz na resposta do Primeiro-Ministro, quando depois de se afirmar que “o arrendamento da IPSS será arrendamento “para outros fins” ou “outra aplicação lícita do prédio”” se afirma que “não detém esta questão meramente formal da colocação sistemática do tipo de arrendamento em causa virtualidades de limitar a respectiva regulamentação possível em termos de a mesma ser igual para todos – justamente porque ali se contém uma variedade de situações diferentes, a reclamar, por isso mesmo, regulamentações diversificadas, que tenham em atenção elementos essenciais daquilo que está em causa”.
De todo o modo, a violação do princípio da igualdade só ocorre quando se verifica uma diferença de tratamento arbitrária, desrazoável ou sem fundamento racional bastante, sendo legítima a discriminação “sempre que a diferença de regime e baseie em dados objectivos e se reclame de distinções relevantes sob o ponto de vista dos princípios e valores constitucionais e seja adequado à sua realização”(cf. Acórdão nº 126/84, publicado no Diário da República, 2ª série, de 11 de Março de 1985)”, como se salientou no Acórdão nº 50/88, evocando uma jurisprudência do Tribunal Constitucional que se tem mantido até hoje sem discrepâncias.
É agora o momento próprio para apelar – sem necessidade de repetições - para o breve excurso histórico que atrás se fez sobre as instituições particulares de assistência e beneficência, pois dele claramente se retira o interesse público dos fins que elas prosseguiram, inegavelmente valorizado com a Constituição de
76, numa área em que o apoio à actividade dessas instituições se justifica como uma das formas de o Estado cumprir a tarefa fundamental que o artigo 9º alínea d) da CRP lhe comete e a resposta que dão ao apelo que os artigos 68º nº 1, 69º nºs 1 e 2, 70º nº 3, 71º nº 2 da CRP fazem à “sociedade” civil.
Pode até sustentar-se que o regime de arrendamento a que essas instituições estiveram sujeitas até ao Estatuto de 79, no ponto em que ele era mesmo, em alguns aspectos, mais desfavorável do que vigorava para os arrendamentos para fins comerciais e industriais, ou para o exercício de uma profissão liberal, nomeadamente no que concerne à cessão de posição contratual (artigos 1118 e
1120º do Código Civil), se adequava mal a directrizes constitucionais.
Adiantou-se, ainda, no Acórdão nº 50/88, outra razão, que mantém plena validade, para justificar o regime previsto no nº 1 do artigo 22º do Estatuto de
79. É que, como aí se diz “(...) muitos dos prédios arrendados nestas circunstâncias às referidas instituições se destinam exactamente a assegurar o alojamento de crianças, jovens, doentes, deficientes ou idosos que não dispõem de habitação própría, sendo, consequentemente, bem compreensível que o legislador trate tais arrendamentos da mesma forma que trata os arrendamentos para habitação.”
Um dos aspectos da diferença de tratamento a que o requerente atribui particular relevância prende-se com o regime de rendas, na mesma linha seguida pelo voto de vencido exarado no Acórdão nº 50/88, convindo desde já recordar o que a tal propósito se disse nesse aresto, embora na perspectiva de uma suposta violação do princípio da confiança também então invocada:
“De acordo com o que se encontrava disposto nos artigos 1104º e 1105º do Código Civil “qualquer que seja a renda fixada no contrato o senhorio tem o direito de exigir do arrendatário, uma renda mensal correspondente ao duodécimo do rendimento ilíquido inscrito na matriz”, podendo requerer “a avaliação fiscal do prédio” destinada a corrigir esse rendimento ilíquido. Todavia, não se podia requerer a avaliação sem que tivessem “decorrido cinco anos sobre a avaliação anterior ou sobre a fixação ou alteração contratual da renda”, salvo no caso de trespasse ou cessão do direito ao arrendamento, em que o prazo era de uma ano. Este regime de avaliações fiscais fora instituído pela Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, que, no entanto, suspendera a sua aplicação aos arrendamentos habitacionais em Lisboa e Porto, suspensão que se manteve com a entrada em vigor do Código Civil, ex vi do disposto no artigo 10º do Decreto-Lei nº 47334, de 25 de Novembro de 1966. Pode, pois, dizer-se que o regime de actualização de rendas – nos arrendamentos habitacionais ou não habitacionais – através de avaliação fiscal constituía a regra do nosso ordenamento jurídico, apesar da referida suspensão quanto aos arrendamentos para habitação nos dois principais centros populacionais. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro, estendeu a todo o País a suspensão das avaliações fiscais dos prédios arrendados para habitação. Só a partir desta data, portanto, e a título transitório – tratava-se apenas de uma suspensão – passou a haver um regime verdadeiramente diferenciado, quanto à actualização de rendas, entre os contratos de arrendamento para habitação e os contratos de arrendamento para outros fins. Mais tarde, o Decreto-Lei nº 330/81, de 4 de Dezembro, veio estabelecer um regime de actualização anual de rendas com base num coeficiente “determinado em função da variação do índice médio ponderado de preços no consumidor” e permitir, para além disso, uma avaliação fiscal extraordinária para ajustamento das rendas praticadas à data da aplicação do novo regime. Este diploma, porém, só se aplicava aos arrendamentos para comércio, indústria e exercício de profissões liberais, não abrangendo, portanto, os restantes arrendamentos para fins não habitacionais, os quais só passaram a beneficiar do mesmo regime com a publicação do Decreto-lei nº 189/82, de 17 de Maio, regime esse que se manteve, sem alterações na parte que nos interessa, com a emissão do já citado Decreto-Lei nº 436/83. Finalmente, a Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, veio também consagrar para os contratos de arrendamento para habitação, em todo o País, um regime de actualização anual de renda e estabelecer, concomitantemente, um sistema de correcção extraordinária de rendas fixadas antes de 1 de janeiro de 1980.”
Com o regime de actualização de rendas instituído pelo RAU (artigos 30º e segs) e tendo em conta os coeficientes de actualização, anualmente fixados, pode dizer-se que, neste aspecto, as actualizações nos arrendamentos habitacionais passaram a ser iguais às fixadas para as restantes modalidades de arrendamento urbano (cfr. Portarias nºs 1101 – A a E/90, de 31 de Outubro – 1,11%,
1133-A/91, de 31 de Outubro – 1,115 %, 1024/92, de 31/10 – 1,088 %, 1103-A/93 de
30 de Outubro – 1,0675 %, 975-A/94, de 31 de Outubro – 1,045 %, 1300-A/95, de
31 de Outubro – 1,037 %, 616-A/96, de 30 de Outubro – 1,027 %, 1089-C/97, de 31 de Outubro – 1,023 %, 946-A/98, de 31 de Outubro – 1,023 %, 982-A/99, de 30 de Outubro – 1,028 %, 1062-A/2000, de 31 de Outubro – 1,022 %).
De tudo isto resulta que, neste aspecto, a diferença de tratamento a que deu lugar o nº 1 do artigo 22º do Estatuto de 79 (no Acórdão nº 50/88 refere-se que
“o único efeito da norma em apreço foi a referida suspensão das avaliações quinquenais, já que mais nenhuma das disposições especiais dos arrendamentos para habitação lhes é aplicável”), é, também ela, lógica e materialmente fundada em valores constitucionais, como acima se demonstrou.
O que se deixa dito sobre o disposto no nº 1 do artigo 22º do Estatuto de 79 é inteiramente de transpor para o que se estabelece nos números seguintes do mesmo artigo.
Nos nºs 2 e 3 pretende-se garantir a continuidade da acção de solidariedade social prosseguida pelas IPSS, preocupação sempre presente na legislação que regulou nomeadamente as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, em particular quanto ao destino do património das pessoas extintas. Era o que acontecia com os artigos 432º, 443º, 447º e 448º do Código Administrativo onde se previa a reversão dos bens e valores das associações ou extintos para as Misericórdias, municípios, ou serviços estatais para a prossecução dos mesmos fins. Idêntica preocupação revelava o disposto no já citado artigo 104º do Decreto nº 35108 quando estabelecia que no caso de concentração, supressão, transformação ou transferência de instituições particulares de assistência, por determinação do Ministro do Interior, a instituição que resultasse da concentração ou transformação ficava “para com terceiros com todos os direitos e obrigações das instituições suprimidas, concentradas e transformadas”.
Ora, definido o regime de arrendamento das IPSS, para o exercício das suas actividades, como sendo o que regulava o arrendamento para habitação o legislador de 79 introduziu naquele regime normas, de algum modo, paralelas às que vigoravam nos arrendamentos para comércio ou industria ou para o exercício de profissão liberal (artigos 1113º, 1118º e 1120º do Código Civil) e se mantiveram, para os mesmos arrendamentos, com o RAU (artigos 112º, 115º e 122º).
De resto, estão essas normas na mesma linha do regime traçado nos Estatutos de
79 e 83 para a modificação e extinção das instituições, do destino dos bens das instituições extintas e da sucessão das instituições (artigos 28º, 29º, 31º,
32º, 59º e 67º do primeiro e 26º, 27º, 30º, 50º, 71º e 85º do segundo).
Também aqui, como se disse, relevam como justificação material e racionalmente fundada (por outras palavras, como motivação com carácter objectivo e razoável) da desigualdade invocada - com o regime que disciplina os arrendamentos para outros fins (e mesmo a admitir-se a legitimidade deste termo de referência) - as razões de interesse público acima enunciadas, tendo agora especialmente em conta o impacto social negativo da extinção ou caducidade dos arrendamentos
(esta na exclusiva dependência da vontade do senhorio) de que, muito provavelmente, decorreria o termo, ou pelo menos a interrupção, da acção social desenvolvida pela IPSS.
No que concerne ao disposto no nº 4 do artigo 22º do Estatuto de 79, importa salientar que se trata de norma que apenas encontra paralelo, quanto à denúncia do contrato para o termo do prazo ou da renovação por necessidade, por parte do senhorio do prédio, para sua habitação ou para nele construir a sua residência, ou quando o senhorio se propõe ampliar o prédio ou construir novos edifícios em termos de aumentar o número de locais arrendáveis - exceptuando os casos de arrendamentos previstos então no artigo 1083º nº 2 do Código Civil e, depois, no nº 2 do artigo 5º do RAU – nos arrendamentos feitos às casas de saúde e a estabelecimentos de ensino oficial ou particular (artigo 1096º nº 2 do Código Civil e, mais tarde, artigo 69º nº 2 do RAU).
De salientar, ainda que, o senhorio não pode denunciar o contrato nos termos do artigo 69º do RAU quando se verificarem as situações previstas no artigo 107º nº
1 do mesmo diploma, como já acontecia com a denúncia nos termos do artigo 1096º nº 1 alínea a) do Código Civil quando ocorressem as situações previstas no artigo 2º nº 1 da Lei nº 55/79 na versão original e com a redacção dada pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro.
As ressalvas ou limitações ao direito do senhorio de denunciar o contrato revelam, desde logo, que determinados valores ou interesses de carácter social merecem uma tutela especial em termos tais que se sobrepõem ao interesse do senhorio quer na habitação própria do seu prédio, quer na ampliação do número de locais arrendáveis.
No plano em que por ora nos situamos – o do estabelecimento de uma suposta desigualdade constitucionalmente reprovada – não pode deixar de se reconhecer que, também quanto a esta norma e ainda pelas mesmas razões supra enunciadas, a desigualdade de regime nos arrendamentos feitos às IPSS é materialmente fundada.
E se o termo de aferição da desigualdade se pode aqui alargar a outras modalidades de arrendamento, em particular ao arrendamento para habitação e tendo especialmente em conta o direito de denúncia do senhorio com fundamento na sua necessidade de habitação, a verdade é que, como se viu, no nosso ordenamento jurídico, e sem censuras de inconstitucionalidade, a ponderação do direito à saúde, do direito ao ensino e do direito de habitação do arrendatário nas condições hoje referidas no artigo 107º nº 1 alínea a) do RAU (pese embora, a consideração do que se tem dito ser o “melhor direito” do senhorio no confronto com o do arrendatário) justifica a limitação daquele direito.
Ora, justifica-se, paralelamente, que a acção social desenvolvida pelas IPSS, com os objectivos enunciados no artigo 1º nº 1 do Estatuto de 83 – alguns dos quais se traduzem em proporcionar habitação, educação e cuidados de saúde aos assistidos - e atendendo aos direitos consagrados nos artigos 64º, 67º e 69º a
72º da CRP, mereça idêntica tutela na preservação do direito ao arrendamento.
3.6 - Pode, no entanto, dizer-se que, em bom rigor, o requerente não põe em causa a existência de razões objectivas e materialmente fundadas para o tratamento desigual em que se traduz o regime de arrendamento feito às IPSS para o exercício das suas actividades, mas sim o que neste vê de desproporcionado.
Estaria, pois, aqui em causa o princípio da proporcionalidade que as normas do artigo 22º do Estatuto de 79 violariam
Vejamos se assim é.
Muito recentemente, teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar sobre este princípio em termos que sintetizam o sentido que lhe tem dado a sua jurisprudência. Fê-lo no Acórdão nº 187/01 onde se escreveu:
“Embora tenha havido tentativas de ancorar o princípio de proporcionalidade em raízes mais antigas – ligadas, quer à iustitia vindicativa, quer à iustitia distributiva –, a ideia de subordinar o exercício do poder a uma exigência de proporcionalidade recebe acolhimento jurídico claro apenas a partir do iluminismo, no domínio penal e do direito administrativo de polícia, com a vinculação da administração a uma exigência de necessidade, transitando a partir daí para o direito constitucional. A ideia de proporcionalidade lato sensu representa, hoje, uma importante limitação ao exercício do poder público, servindo a garantia dos direitos e liberdades individuais (a aplicação às limitações a direitos fundamentais, enquanto “limite da limitação” remonta, na verdade, pelo menos a Herbert Krüger,
“Die Einschränkung von Grundrechten nach dem Grundgesetz”, Deutsche Verwaltungsblätter, 1950, pp. 628 e ss). Nas jurisdições constitucionais europeias do pós-guerra, uma das primeiras decisões em que tal princípio foi aplicado, levando a uma decisão de inconstitucionalidade, foi, justamente, a citada primeira decisão do Bundesverfassungsgericht sobre as limitações à abertura de farmácia (Apotheken-Urteil, cit.). Também o Tribunal Constitucional português tem reconhecido e aplicado, em várias decisões, o princípio da proporcionalidade, aferindo frequentemente perante ele, quer normas penais incriminatórias – por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 634/93
(inconstitucionalidade da punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio), 274/98 (não inconstitucionalidade de norma que pune o não acatamento de ordem de demolição), publicados nos ATC, respectivamente vol. 26º, pp. 205 e ss. e vol. 39º, pp. 585 e ss. –, quer normas de outro tipo, que previam encargos ou limitações a direitos fundamentais – v.gr., os Acórdãos n.ºs 451/95 (inconstitucionalidade de norma que estabelece a impenhorabilidade total de bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais), 1182/96
(inconstitucionalidade de normas sobre custas nos tribunais tributários), 758/95
(inconstitucionalidade de norma que impede a participação pessoal, na assembleia geral dos bancos, e em certas condições, de accionistas que não disponham de
1/300 da soma dos votos possíveis), 176/2000 e 202/2000 (perda dos instrumentos do crime) e 484/00 (não inconstitucionalidade de norma que prevê o indeferimento tácito do pedido de legalização de obras), publicados respectivamente nos ATC, respectivamente, vol. 31º, pp. 129 e ss., vol. 35º, pp. 431 e ss., vol. 32º, pp.
803 e ss. e DR, II série, de 27 e 11 de Outubro de 2000 e de 4 de Janeiro de
2001). Relativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República. Mas o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito. Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projectada acção aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessaria ou excessivamente restritivas. O princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode, além disso, desdobrar-se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se escreveu no citado Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).'» Pode dizer-se que a verificação da adequação se configura como a primeira (se a medida não for adequada, será logo violadora do princípio da proporcionalidade). Retomando o que se escreveu no referido Acórdão n.º 1182/96:
“Num primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa (…) é apropriada à prossecução do fim a ela subjacente.” Num segundo momento, há que questionar a possibilidade de adopção de medidas menos intrusivas com os mesmos efeitos na prossecução do fim visado. Como se disse no citado aresto:
“Seguidamente haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos termos, significou a ‘menor desvantagem possível’ para a posição jusfundamental decorrente do direito [de propriedade] . Aqui, equacionando-se se o legislador
‘poderia ter adoptado outro meio igualmente eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos’ [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, pp.
382-383].”
É, porém, certo que medidas que sejam de considerar necessárias ou exigíveis não podem deixar de ser também adequadas (embora o inverso não seja verdadeiro). Assim, na prática, a verificação da necessidade ou exigibilidade resolve logo também a da adequação. A verificação da necessidade ou exigibilidade pode envolver, por outro lado, uma avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor consecução dos objectivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis. Por último, retira-se ainda do princípio de proporcionalidade um último critério, designado como proporcionalidade em sentido estrito ou critério de justa medida.
“Haverá, então, que pensar em termos de ‘proporcionalidade em sentido restrito’, questionando-se ‘se o resultado obtido (…) é proporcional à carga coactiva’ que comporta” (ibidem). Trata-se, pois, de exigir que a intervenção, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, se encontre numa relação “calibrada” – de justa medida – com os fins prosseguidos, o que exige uma ponderação, graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis.”
Não deixou este mesmo acórdão de precisar o alcance do princípio e do seu controle jurisdicional quando está em causa a actividade legislativa, precisão essa que tem aqui inteira pertinência.
Ali se escreveu:
“Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado-Administrador e para o Estado-Legislador. Assim, enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades estabelecidas, o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é adequada a determinada finalidade. E também a ponderação suposta pela exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação. Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (com o referido “crédito de confiança” – falando de um “Vertrauensvorsprung”, v. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14ªed., Heidelberg, 1998, n.ºs 282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer. Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador. Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa. A diferenciação, nestes termos, da vinculação do legislador e da administração
é, aliás, salientada na doutrina nacional e estrangeira (v., para esta, por todos, a obra por último citada) e acolhida na jurisprudência. Assim, escreveu-se recentemente no Acórdão n.º 484/00, citando doutrina nacional:
'O princípio do excesso [ou princípio da proporcionalidade] aplica-se a todas as espécies de actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a jurisdição. Observar-se-á apenas que o controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate de actos legislativos, de actos da administração ou de actos de jurisdição. Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada.' (assim, Gomes Canotilho Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra, 1998, p.
264), Ora, estando em causa a constitucionalidade de uma norma, é apenas a intervenção do legislador que tem de ser aferida – com os limites assinalados.
(...)” (itálico aditado) E tal posição é também a seguida por outras jurisdições que aplicam o princípio da proporcionalidade à actividade legislativa – vejam-se, a título ilustrativo, os Acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 13 de Novembro de 1990 (processo C-331/98, Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça,
1990, p. I-4203), 12 de Novembro de 1996 (processo C-84/94, caso “tempo de trabalho”, in Colectânea cit., 1996, p. I-5755) e 13 de Maio de 1997 (caso
“garantia de depósitos”, processo C-233/94, na Colect. cit., 1997, pp. I-2405), lendo-se no último destes arestos que, quando a situação é economicamente complexa, ao julgar a conformidade com o princípio da proporcionalidade
“o Tribunal não pode substituir a apreciação do legislador comunitário pela sua própria apreciação. De resto, só pode censurar a opção normativa do legislador se esta for manifestamente errada ou se os inconvenientes daí resultantes para certos agentes económicos forem desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.””
Sobre esta matéria e no que concerne à “distribuição de responsabilidade entre legislador e juiz constitucional” cfr. ainda Vitalino Canas “Proporcionalidade
(Princípio da)” Separata do VI Volume do “Dicionário Jurídico da Administração Pública” pp. 49 e segs.
Importa, agora, analisar quais os objectivos visados pelas normas do artigo 22º do Estatuto de 79 e confrontá-los com as medidas que essas normas corporizam e hipotéticas alternativas possíveis, para apurar se, no caso, ocorreu erro manifesto de apreciação do legislador com violação do princípio da proporcionalidade, seguindo, aliás, a mesma via que trilhou o Acórdão nº 187/01 para as normas então em apreço.
Resulta do que já acima se disse que as normas do artigo 22º do Estatuto de 79, definindo, pela primeira vez, um regime de arrendamento próprio para as instituições particulares que tinham como objectivo facultar serviços ou prestações de segurança social (depois, com o Estatuto de 83, com objectivos de solidariedade bem mais vastos), e no cumprimento de deveres constitucionais de apoio e favorecimento dessas instituições, pretenderam, fundamentalmente, criar condições de estabilidade às IPSS no exercício das suas actividades e garantir a continuidade da sua acção desinteressada na satisfação de necessidades colectivas da população mais carenciada.
Como também se disse já, o regime de arrendamento a que as instituições que vieram a ser qualificadas como IPSS estavam sujeitas, na unidade fictícia que a modalidade dos arrendamentos para outros fins representava, não se adequava à especificidade da acção desenvolvida por aquelas instituições sempre em risco de paralisação ou interrupção na decorrência do exercício do direito de denúncia que, em determinadas condições, era conferido aos senhorios, sem que para elas se abrisse qualquer excepção.
Por outro lado, conhecidas as dificuldades financeiras com que tradicionalmente se debatiam aquelas instituições – mais ou menos amplamente subsidiadas pelo Estado – à sujeição dos contratos de arrendamento às IPSS ao regime dos contratos de arrendamento para fins habitacionais não seria alheio o facto de, na altura da emissão do Estatuto de 79, estar suspensa a aplicação do regime de avaliação fiscal dos prédios prevista nos artigos 1104º e 1105º do Código Civil aos arrendamentos habitacionais em todo o país, por força do disposto no Decreto-Lei nº 445/74, de 12 Setembro.
Sendo, como se disse no Acórdão nº 50/88, “o único efeito da norma em apreço [nº
1 do artigo 22º] (...) a referida suspensão das avaliações quinquenais, já que nenhuma das disposições especiais dos arrendamentos para habitação lhes é aplicável”, os aspectos do contrato respeitantes à transmissibilidade do arrendamento foram regulados nas duas normas seguintes do mesmo artigo 22º (nºs
2 e 3) em termos que são de algum modo paralelos aos que vigoravam nos arrendamentos para comércio ou indústria e para o exercício de profissão liberal; finalmente, quanto à impossibilidade de denúncia por parte do senhorio ao abrigo do disposto no artigo 1096º nº 1 do Código Civil (actualmente no artigo 69º nº 1 do RAU) o lugar paralelo é, disse-se já também, o das excepções ou limitações consignadas no nº 2 dos artigo 1096º (actualmente nº 2 do artigo
69º do RAU).
Ora, é líquido que todas as medidas tomadas com o citado normativo são idóneas para alcançar os fins por ele visados.
Não pode, com efeito, pôr-se em dúvida que a sujeição dos arrendamentos feitos
às IPSS ao regime do arrendamento para habitação, no ponto em que permitiu ao menos durante algum tempo que eles se subtraíssem à actualização de rendas se mostra adequada à protecção da situação financeira das IPSS e, no limite, à própria continuidade da sua acção.
Adequadas se mostram também as medidas ínsitas nos nºs 2,3 e 4 do artigo 22 do Estatuto de 79 à mesma continuidade da acção social das IPSS, sendo certo que, neste domínio, a coordenação das instituições particulares pelos serviços públicos responsáveis e a articulação da acção das primeiras com os segundos exigem, frequentemente, concentrações ou transformações que dão lugar a novas instituições que prosseguem os mesmos fins sociais; e, por outro lado, não menos certo é que, nem sempre conseguindo as IPSS sobreviver financeiramente, a afectação dos seus bens a outras instituições privadas ou públicas que prossigam a acção dos entes extintos aconselham ou exigem mesmo a manutenção dos anteriores contratos de arrendamento.
Mas são essas medidas legislativas necessárias ou exigíveis ? Ou, por outras palavras, não poderiam, ou deveriam elas ser substituídas por outras menos restritivas dos direitos dos senhorios ?
No que respeita ao regime de rendas, já no voto de vencido exarado no Acórdão nº
50/88 se respondeu a esta questão em termos afirmativos, que o requerente agora acompanha.
Diz, com efeito, o requerente (tal como naquele voto) e relativamente ao regime de actualização de rendas que o Estado poderia instituir um esquema de subsídios, o que constituiria um meio de alcançar os mesmos fins de apoio às IPSS sem agravar a posição dos respectivos senhorios.
À argumentação mais ampla (em que aquela se inscreve) no sentido de que competiria ao Estado suportar os encargos decorrentes do tratamento mais favorável dado aos arrendamentos feitos às IPSS, se respondeu no Acórdão nº
50/88 em termos que aqui se acolhem e se passa a transcrever:
“Esta observação carece, porém, de fundamento e, levadas às suas últimas consequências, provaria de mais, conduzindo a soluções manifestamente absurdas.
É que, dada a natureza do contrato de arrendamento e o interesse social que reveste o seu conteúdo, sempre o legislador interveio na sua regulamentação, de acordo com opções políticas fundamentais ou de carácter meramente conjuntural, frequentemente restringindo ou limitando os direitos de alguns senhorios, sem que alguma vez se houvesse suscitado a questão de aí poder resultar a violação do princípio da igualdade. Assim, e desde logo, o regime jurídico do contrato de arrendamento para habitação e dos contratos de arrendamento para outros fins têm sido diferenciados sem que se invoque que tal implica uma desigualdade entre senhorios, em prejuízo de uns e benefício de outros. Por outro lado, tem-se entendido que certas qualidades dos inquilinos podem constituir fundamento material bastante para estabelecer um tratamento jurídico diferenciado relativamente aos respectivos contratos de arrendamento, ainda que daí possa resultar algum prejuízo para os correspondentes senhorios, prejuízo não ressarcido pelo Estado. É o que acontece, por exemplo, nos casos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, na redacção da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, em que a faculdade de denúncia do contrato pelo senhorio é eliminada no caso de o inquilino ter 65 anos ou mais anos de idade ou se encontrar inválido para o trabalho, sem que alguma vez se tivesse ousado considerar tal norma inconstitucional, por criar uma situação de desigualdade entre os senhorios com inquilinos jovens e válidos e os senhorios com inquilinos idosos ou inválidos.
É que, em tais casos, como no caso dos autos, de um justificado e razoável tratamento diferenciado dos inquilinos decorre, necessariamente, como consequência inevitável, um tratamento diferenciado dos respectivos senhorios.”
Não deixa aqui de ter inteira pertinência o que se escreveu no Acórdão nº 187/01 no sentido de que o Tribunal não deve substituir a sua avaliação à que é efectuada pelo legislador naqueles casos “em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer” .
Aceita-se sem dificuldade que, neste aspecto, a medida concretamente adoptada pelo legislador possa não ser a única. De todo o modo, ela não deixa de ser necessária ou exigível, inscrevendo-se, aliás, num tipo de intervenção corrente do legislador sempre que os interesses em causa legitimam a protecção relativa de uma das partes no contrato de arrendamento com a consequente oneração da outra.
No caso das medidas previstas nos nºs 2 e 3 do artigo 22º do Estatuto de 79, não se vê mesmo, com facilidade, que alternativas menos gravosas poderiam ser adoptadas para obstar a que os arrendamentos caducassem ou que a sua transmissão dependesse, exclusivamente, do consentimento dos senhorios.
Note-se, de resto, que, neste aspecto, nem o requerente avança com a hipótese de outra opção que igualmente acautelasse os fins visados pelo legislador e, do mesmo passo, menos agravasse a posição dos senhorios.
No que concerne à norma ou normas ínsitas no nº 4 do artigo 22º do mesmo Estatuto estão em causa, do lado do senhorio, dois tipos de direitos: o direito de habitação e o direito de fruição (económica) de um bem de que aquele
é proprietário.
Apesar do que se tem vindo a acentuar sobre os fins prosseguidos pelas IPSS e a tutela constitucional que eles merecem, importa ter presente que o regime de arrendamento criado pelo Estatuto de 79 visa directamente acautelar ou garantir os direitos dos utentes ou beneficiários daquelas instituições. E isto fica desde logo muito claro quando os arrendamentos abrangidos pelo artigo
22º são apenas aqueles feitos pelas instituições “para o exercício das suas actividades”, excluindo-se, assim, os que se reportam a imóveis onde as IPSS desenvolvem outro tipo de actividade nomeadamente para suporte económico da sua acção principal.
Isto significa, em rectas contas, que o confronto ou colisão daqueles direitos do senhorio se faz com outros direitos, de igual modo inseridos no Título III da Parte I da CRP, respeitante aos “direitos e deveres económicos, sociais e culturais”. E são, designadamente, alguns destes direitos que justificam, no nosso ordenamento jurídico, a vigência, desde há algumas décadas - sem que até hoje se conheçam censuras de inconstitucionalidade - de normas que estabelecem o mesmo tipo de limites do direito de denúncia por parte do senhorio consagrados no nº 4 do artigo 22º do Estatuto de 79 – é o caso dos arrendamentos a casas de saúde e a estabelecimentos de ensino, particular ou oficial, em que esses mesmos limites valem independentemente de se tratar de actividades sem ou com fim lucrativo.
Por outro lado, mesmo nos casos em que existe o direito de denúncia de arrendamentos para fins habitacionais, a lei valora determinadas condições atinentes ao arrendatário para excluir tal direito (artigo 107º nº 1 alínea a) do RAU), sendo certo que, ainda recentemente, no Acórdão nº 420/00, o Tribunal Constitucional julgou isenta do vício de inconstitucionalidade a norma daquele citado artigo 107º nº 1 alínea a), mesmo interpretada no sentido de que à dita exclusão se não opõe o facto de o senhorio ter igualmente 65 anos de idade.
Dir-se-á que nestes últimos casos os direitos que se confrontam são ambos de habitação; mas a verdade é que, como se acentuou já, é esta também, frequentemente, a situação que se verifica nos arrendamentos feitos às IPSS
(considerando, obviamente, os direitos dos seus utentes).
Acresce que a estes direitos dos beneficiários das IPSS correspondem do lado passivo, como se disse já, deveres constitucionais que oneram não só o Estado, mas igualmente toda a sociedade (cfr. artigos citados da CRP), o que de algum modo lhes confere um valor acrescido face ao direito de habitação do senhorio.
A limitação imposta pelo artigo 22º nº 4 do Estatuto de 79 aos senhorios das IPSS, na parte em que exclui o direito de denúncia do arrendamento com fundamento em necessidade de habitação própria, não se configura, pois, como desproporcionada.
Quanto à mesma limitação, agora com fundamento na ampliação dos locais arrendáveis – onde, fundamentalmente, está em causa a direito de fruição económica do bem imóvel por parte do seu proprietário (senhorio) - remete-se para o que globalmente se diz infra sobre as normas do artigo 22º do Estatuto e a invocada “restrição” do direito de propriedade.
Deixa-se, por último, a nota de que todas as limitações invocadas dos direitos dos senhorios, em particular no que concerne à disponibilidade do bem, condicionada pela transmissibilidade do arrendamento, perde grande parte da sua relevância nos futuros contratos de arrendamento outorgados na vigência do RAU, com o aditamento do artigo 123º feito pelo Decreto-Lei nº257/95, no ponto em que permite a celebração do contrato com duração limitada.
3.7 – Poderia, nesta linha, dizer-se que a argumentação até agora exposta responde especialmente às questões de constitucionalidade suscitadas sobre as normas em causa enquanto definem um regime jurídico para os futuros contratos de arrendamento, mas não a essas mesmas questões reportadas a um regime também aplicável aos contratos de pretérito.
Mas a essa objecção respondeu-se já no Acórdão nº 50/88, onde, aliás, os votos de vencido visavam exclusivamente esta última dimensão temporal daquelas normas.
Escreveu-se então e agora se reitera:
“Quanto à eventual violação do princípio da igualdade – única suscitada pelo recorrente – não se vê em que medida ela se poderia colocar de forma diferente, relativamente aos contratos de pretérito, daquela que foi colocada relativamente aos contratos de futuro. Com efeito, a questão da violação do princípio da igualdade é materialmente alheia ao problema da eventual aplicação “retroactiva” da norma em apreço. É que, como aquela violação só poderia resultar da inexistência de fundamento material bastante para a diferenciação de tratamento jurídico a que são submetidos os contratos em causa, não se vislumbra como é que tal fundamento material poderia existir para os contratos de futuro, dado que as suas finalidades são as mesmas.
Nesta conformidade, e quanto a esta questão, há apenas que remeter para o que atrás se explanou a propósito da inexistência de qualquer discriminação irrazoável ou arbitrária, violadora do princípio da igualdade”.
3.7 - Considerando a aplicação do artigo 22º do Estatuto de 79 aos contratos de pretérito invoca, ainda, o requerente a violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos do princípio do estado de direito democrático (artigo 2º da CRP).
Note-se que, neste ponto, não toma o requerente como parâmetro de constitucionalidade o disposto no artigo 18º nº 3 da CRP, com o que, implicitamente, não questiona a constitucionalidade das normas daquele preceito do Estatuto como normas com “efeito retroactivo” “restritivas de direitos, liberdades e garantias”.
Por outras palavras, a violação dos referidos princípios constitucionais assenta tão-só na consideração - que, aliás, tem merecido acolhimento na jurisprudência do Tribunal Constitucional – de que a Constituição garante os cidadãos contra alterações do ordenamento jurídico que afectam a sua esfera jurídica (tenham elas efeitos retroactivos ou meramente retrospectivos) desde que elas sejam inadmissíveis, arbitrárias, ou excessivamente onerosas
Sobre os princípios da confiança e da segurança jurídica e a propósito dos limites constitucionalmente impostos àquelas alterações legislativas, escreveu-se no Acórdão nº 287/90 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional” 17º vol. pp. 159 e segs.):
“Em que se traduz esta “inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva” ? A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois critérios seguintes: a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam constar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão) Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária. Os dois critérios completam-se. Como é, de resto, sugerido pelo regime dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na
“onerosidade”, isto é, na frustração forçada das expectativas., é necessário averiguar se o interesse geral que presidia á mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas. Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime do casamento, do arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes. Cabe saber se se justifica ou não na hipótese da parte dos sujeitos de direito ou dos agentes, um “investimento na confiança” na manutenção do regime legal – para usar uma expressão da jurisprudência constitucional alemã atrás referida. Valem aqui, por maioria de razão, as considerações que a jurisprudência deste Tribunal, atrás referida, tem feito ao negar uma proibição genérica de retroactividade. Tal é particularmente claro quando o sacrifício das expectativas anteriores resulta de uma imprevisível alteração das circunstâncias: como na doutrina privatística da base negocial, não há lugar à manutenção das expectativas. Assim, por exemplo, medidas legislativas de política económica conjuntural poderão ser alteradas, com frustração de expectativas, se a conjuntura económica mudar ou se, mesmo sem essa mudança, mudar a orientação geral da política económica em consequência de mudança de governo, constitucionalmente previsível. Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas.”
O fundamento agora invocado não é, também aqui, mais do que a reedição do que fora aduzido no recurso decidido pelo Acórdão nº 50/88 – embora apenas reportado
à norma do nº 1 do artigo 22º do Estatuto - e que aquele aresto rebateu em termos que continuam a merecer acolhimento.
Depois de seriadas as alterações legislativas verificadas em matéria de actualização de rendas, como acima se transcreveu, escreveu-se no Acórdão nº
50/88:
“Desta breve descrição resulta com merediana clareza, que, ao contrário do que alega o recorrente, a norma impugnada não o veio privar retroactivamente do direito de requerer a avaliação fiscal extraordinária prevista no Decreto-Lei nº
436/83, porquanto tal avaliação, no que se refere aos contratos não habitacionais que não tivessem por fim a actividade comercial ou industrial ou o exercício de profissão liberal, só foi introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-lei nº 519-G2/79. Aliás, à data da edição deste último diploma nem sequer existia, para qualquer espécie de contrato de arrendamento, o instituto da avaliação fiscal extraordinária.
É verdade que a norma em apreço, ao submeter os contratos celebrados com instituições particulares de solidariedade social ao regime do contrato de habitação, veio impedir, quanto a esses contratos, a actualização quinquenal das rendas previstas nos artigos 1104º e 1105º do Código Civil. Todavia, tal não implica uma “violação demasiado acentuada do princípio da confiança”. Em primeiro lugar, porque, ao mandar aplicar-lhes o regime dos contratos para habitação, a norma em apreço não eliminou a possibilidade de actualização de rendas, apenas a suspendeu, como atrás se viu. Aliás, que assim era, veio a comprovar-se com a posterior publicação da Lei nº 46/85, cujo regime de actualização anual, bem como cujo sistema de correcção extraordinária, é inteiramente aplicável aos contratos previstos no artigo 22º do Decreto-Lei nº
519-G2/79. Em segundo lugar, porque a eventualidade da suspensão das actualizações de rendas é um facto que os senhorios hão-de ter sempre como previsível, em função da natureza do contrato e da prática legislativa: basta recordar, mais recentemente a Lei nº 2030 e o Decreto-lei nº 445/74. Finalmente, porque a equiparação do tratamento dos arrendamentos feitos às instituições de solidariedade social ao tratamento dos arrendamentos para habitação, designadamente no que se refere ao regime de actualização de rendas, não era inédita no nosso ordenamento jurídico, já que constava também da alínea a) do nº 1 do artigo 49º da Lei nº 2030, embora, aí, não se lhes aplicasse o regime de suspensão das avaliações fiscais. Nem se diga, em sentido contrário, que a norma impugnada veio sujeitar os contratos nele previstos a um estatuto diferente do convencionado pelas partes, estatuto mais desfavorável para os senhorios que o vigente para os arrendamentos idênticos celebrados com outros inquilinos. Com efeito, e como resulta da mera leitura das atinentes disposições do Código Civil, o único efeito da norma em apreço foi a referida suspensão das avaliações quinquenais, já que mais nenhuma das disposições especiais dos arrendamentos para habitação lhes é aplicável. Por outro lado, e como já atrás se referiu, os contratos celebrados com instituições particulares de solidariedade social para o exercício das suas actividades não se encontravam sujeitos ao estatuto respectivo dos contratos de arrendamento para comércio ou indústria ou para o exercício de profissões liberais, nem se pode verdadeiramente falar de um estatuto especial próprio dos restantes contratos para fins não habitacionais. Assim sendo, como também a mera suspensão das actualizações quinquenais através da avaliação fiscal prevista no artigo 1105º do Código Civil não implica essa radical alteração do estatuto contratual convencionado pelas partes, não há igualmente que falar, a esse propósito, de uma arbitrária, opressiva, intolerável e inadmissível retroactividade da disposição em causa.”
Idêntico juízo merece a aplicação aos contratos de pretérito do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 22º do Estatuto.
Com efeito, tendo em conta, por um lado, o que se disse já sobre a justificação destas medidas legislativas e o interesse público que lhes subjaz, num enquadramento constitucional que exige a continuidade da satisfação das necessidades colectivas dos mais carenciados, apelando neste campo a deveres de solidariedade da sociedade civil e, por outro, a manifesta desadequação de um regime que, também neste aspecto, igualava as instituições de assistência, beneficência ou com fins humanitários às pessoas, singulares ou colectivas, que destinavam o prédio arrendado, a todos os outros fins lícitos que não fossem a habitação, o comércio, a industria ou o exercício de profissão liberal, não pode concluir-se que aquela aplicação aos contratos de pretérito infrinja os assinalados limites da liberdade de conformação legislativa impostos pelos princípios da confiança e da segurança jurídica.
Note-se, de novo, que estas medidas não são mais do que a adaptação a esta modalidade de arrendamento de comandos que vigoravam e vigoram nos contratos de arrendamento para comércio ou indústria ou para o exercício de profissões liberais.
Por ultimo, e quanto à consistência das expectativas dos senhorios, não a favorece, de todo, a história legislativa dos arrendamentos às instituições que passaram a ser qualificadas de IPSS (v. supra) quer no que ela revela de pontuais favorecimentos a essas instituições, quer mesmo no ponto específico de transmissão de direitos face a terceiros como foi o caso, já mais do que uma vez referido, do artigo 104º do Decreto-Lei nº 35108.
O que em geral se disse sobre o disposto nos nºs 1 a 3 do artigo 22º do Estatuto é ainda transponível para o que se prescreve no nº 4 do mesmo preceito legal.
Trata-se de uma norma que constitui excepção a uma regra comum aos arrendamentos para habitação, para comércio ou indústria, para o exercício de profissão liberal, e para outros fins, regra essa que vigorava na altura da publicação do Estatuto de 79 nos termos do artigo 1096º nº 1 alínea a) do Código Civil e, por força do artigo 1100º do mesmo Código, do artigo 1º da Lei nº 2088
(tendo ambos como fonte o artigo 69º alíneas b) e c) da Lei nº 2030) e actualmente está consagrada no artigo 69º do RAU, na redacção dada pelo artigo
1º do Decreto-Lei nº 329-B/00, de 22 de Dezembro e citado artigo 1º da Lei nº
2088, agora na redacção dada pelo artigo 2º do mesmo Decreto-Lei nº 329-B/00.
Ora, não se considera que a aplicação do preceito aos contratos de pretérito se deva ter como arbitrária, opressiva ou inadmissível, especialmente ponderando o interesse público da alteração legislativa verificada e as expectativas dos senhorios.
Na verdade, é patente que a já tantas vezes referida exigência de continuidade da acção social levada a cabo pelas IPSS ficaria seriamente comprometida com a faculdade de o senhorio poder denunciar o contrato com fundamento quer na realização de obras para aumento dos locais arrendáveis, quer na necessidade de habitação própria.
Por outro lado, logo com a Lei nº 2088 (artigo 2º) se estabeleceu a já referida ressalva à aplicação da regra da denúncia do contrato com fundamento na ampliação do número de locais arrendáveis quanto aos arrendamentos às casas de saúde e estabelecimentos de ensino, oficial e particular, o que revelava a prevalência de tipos de interesses e valores de ordem social que, muitas vezes, eram eles mesmos a razão de ser de certas instituições de assistência e beneficência. E a relevância de uma tal ressalva manteve-se com o Código Civil
(artigo 1096º nº 2), agora abrangendo, também, a denúncia com fundamento em necessidade de habitação própria do senhorio, constando actualmente do artigo
69º nº 2 do RAU, com a mesma amplitude.
Quanto à denúncia do contrato com este último fundamento, é também de realçar a limitação inicialmente prevista no artigo 2º nº 1 alínea a) da Lei nº 55/79 apenas no caso do inquilino ter 65 ou mais anos de idade e ampliada depois, com a redacção dada ao mesmo preceito pelo artigo 41º da Lei nº 46/85 e, actualmente, no artigo 107º nº 1 alínea a) do RAU, com a redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 329-B/00, aos casos em que o arrendatário se encontra na situação de reforma por invalidez absoluta ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.
Se é certo que se trata aqui de sobrevalorizar o direito de habitação do inquilino tendo em atenção especiais circunstâncias a ele atinentes e que tornam a cessação do arrendamento relativamente mais onerosa, a verdade é que estas limitações demonstram também que este direito de denúncia não é um direito impostergável de modo a legitimar expectativas dos senhorios daquelas instituições –também aqui enfraquecidas com a suspensão do direito de denúncia ocorrida, então muito recentemente, entre 1975 e 1977 – no sentido de se manter um regime que desvalorizava o fim concreto do arrendamento, sempre de elevada relevância social e tantas vezes satisfazendo os próprios direitos de habitação de crianças ou de beneficiários idosos, fisicamente incapacitados e/ou economicamente carenciados.
3.8 - Sobre a tutela constitucional do direito de propriedade, pronunciou-se desenvolvidamente o recente Acórdão nº 187/2001 (publicado in DR, II Série, de 26/6/2001), seguindo uma linha que assentou em pontos firmes da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Nele é citado o Acórdão nº 76/85, que, na parte que ora nos interessa, se transcreve:
““a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função social. Para além desta constatação comummente aceite, já se defendeu que o âmbito objectivo do direito de propriedade compreenderia 3 segmentos distintos: o direito à propriedade, isto é, o direito de apropriação de todos os bens a tal aptos, natural ou culturalmente, pelas formas legítimas de apropriação
(aquisição originária ou derivada); o direito de transmissão da propriedade por vida ou por morte ou expressa consagração, por conseguinte, da liberdade negocial sobre a propriedade e das formas de transmissão mortis causa, designadamente a sucessão; o direito de propriedade, isto é, a titularidade e uso dos bens apropriáveis conforme a respectiva função (...).”
Igualmente citado é o Acórdão nº 275/92, de que se transcreve o seguinte passo:.
“Há-de porém dizer-se que, não obstante o particular regime de que beneficia, o direito de propriedade privada está sujeito a diversas restrições.
...................................................................................................................................
(...) o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros, das liberdade de uso, fruição e disposição (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, pp. 163 e 164).
.................................................................................................................................... Quando o artigo 62º garante o direito à propriedade privada ‘nos termos da Constituição’ quer sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares do texto constitucional.”
Escreveu-se, depois, no Acórdão nº 187/2001:
“O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde
1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei parlamentar (v., na jurisprudência mais antiga, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
1/84, 14/84 e 404/87, in ATC, respectivamente vol. 2.º, pp. 173 e ss. e pp. 339 e ss. e vol. 10º, pp. 391 e ss., sobre a extinção da colonia; e vejam-se também os Acórdãos n.ºs 257/92, 188/91 e 431/94, respectivamente in ATC, vol. 22º, pp.
741 e ss.; vol. 19.º, pp. 267 e ss. e vol. 28.º, pp. 7 e ss). Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal (para a exclusão dos direitos de urbanizar, lotear e edificar, v. os Acórdãos n.ºs
329/99 e 517/99, publicados na II série do DR, respectivamente de 20 de Julho e
11 de Novembro de 1999). Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte (como se diz, por exemplo, nos arestos por
último citados e no também já referido Acórdão n.º 431/94; v. ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 267/95, in ATC, vol. 31º, pp. 305 e ss.) o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão só com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Trata-se, aqui, justamente de um aspecto verdadeiramente significativo do direito de propriedade e determinante da sua caracterização também como garantia constitucional – a garantia contra a privação –, autonomizada no n.º 2 do artigo 62º (assim, com referência à remição da colonia, o Acórdão n.º 404/87). Para além disso, a outras dimensões do direito de propriedade, “essenciais à realização do Homem como pessoa” (nestes termos, o citado Acórdão n.º 329/99), poderá também, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando do seu regime.
................................................................................................................................... Está tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto ius utendi, fruendi et abutendi – ou, na formulação impressiva do Código Civil francês (artigo 544), enquanto direito de usar e dispor das coisas “de la manière la plus absolue”. Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais (para o direito à habitação, veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 4/96, ATC, vol. 33º, pps. 109 e ss.).”
Citado e parcialmente transcrito é ainda o Acórdão n.º 866/96 (ATC, vol. 34º, pp. 53 e ss.) - revelador de uma concepção estabilizada sobre a garantia constitucional do direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional – no trecho seguinte:
“Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, nem sempre têm sido pacíficas as conclusões atingidas pelos seus intérpretes a propósito da dimensão e contornos daquele conceito, sendo, porém, seguro que a velha concepção clássica da propriedade, o jus fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito, em que avulta a sua função social. Como quer que seja, o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional (...)”
Assume também particular interesse para o caso – tratava-se então de saber, fundamentalmente, se o regime de actualização de rendas no arrendamento para a habitação limitava, de modo constitucionalmente censurável, o direito de propriedade privada em termos de diminuir a extensão e o conteúdo desse direito
– o decidido no Acórdão nº 263/2000 (ainda inédito).
Depois de aí se acentuar, com apoio na jurisprudência deste Tribunal, que “o direito de propriedade privada é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando da força jurídica do artº 18º da Constituição” e de se salientar nos termos dos acórdãos atrás citados os limites da garantia constitucional desse direito – cujo núcleo essencial garantido caracteriza como o direito de não ser o respectivo titular dele privado por requisição e expropriação por utilidade pública sem que lhe seja atribuído uma justa indemnização e o direito de transmissão em vida ou por morte - extracta-se do Acórdão nº 4/96 (in DR de 30/4/96) a afirmação de que, não sendo o direito de propriedade privada um direito ilimitado “a verdade é que o mesmo há-de ser compatibilizado com um outro direito de natureza social...”
(no caso, o direito à habitação).
Ora, é, desde logo, indiscutível que o complexo normativo ínsito no artigo 22º do Estatuto de 79 não atinge aquele núcleo essencial do direito de propriedade privada constitucionalmente garantido – ele não priva o senhorio do seu direito de propriedade nem põe em causa o direito de transmissão do prédio em vida ou por morte.
Mas não pode recusar-se que, tal como se entendeu no Acórdão nº 263/2000, embora aí só reportado ao regime de rendas do arrendamento para habitação, que a norma do nº 1 do artigo 22º, impondo aquele regime constitui “uma «diminuição»,
«limitação» ou «compressão» da liberdade contratual e da livre fixação da contrapartida contratual”.
Interroga-se, depois, aquele aresto sobre se “essas «diminuição», «limitação» ou
«compressão», de um lado, podem ser consideradas como algo que, verdadeiramente, restringe o direito de propriedade do senhorio sobre o arrendado e, a dar-se resposta afirmativa, se isso vai diminuir o extensão e o conteúdo essencial desse direito”.
A esta interrogação responde o Acórdão nº 263/2000 nos seguintes termos:
“Este Tribunal, no seu Acórdão deste Tribunal nº 425/87 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 5 de Janeiro de 1988) referiu, perspectivando o direito de propriedade, que se diria “desde logo, que a conflitualidade existente entre o senhorio e o inquilino radica numa base obrigacional, derivando os direitos e deveres respectivos de um contrato entre ambos celebrado” e, tomando por referência o direito à habitação, teve ocasião de discretear assim no Acórdão nº
311/93 (mesmos jornal oficial e Série, de 22 de Julho de 1993):
“... O direito à habitação - ou seja, o direito a ter uma morada condigna - é, assim, um direito a prestações. Pois bem: quer esse direito deva conceber-se como um verdadeiro direito subjectivo, quer, antes, como um direito a uma 'prestação não vinculada' que, ao cabo e ao resto, se deva reconduzir a uma mera pretensão jurídica - (neste
último sentido, cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1985, ps. 205 e 209; diferentemente, cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, p.
106, e J.J. GOMES CANOTILHO, Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor A. Ferrer Correia, III, Coimbra, 1991, p. 461 e sg) - ,uma coisa é certa. E é esta: o seu grau de realização depende das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais
(financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor. O direito em causa é, assim, um direito 'sob reserva do possível' - um direito que corresponde a um fim político de realização gradual (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, loc. cit. p. 201). A concretização do direito à habitação - o facultar a cada pessoa uma morada condigna - é, pois, uma tarefa cuja realização - gradual, como se disse - a Constituição comete ao Estado. Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana ( ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir....”
Tal entendimento, já assumido no Acórdão nº 151/92 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 28 de Julho de 1992) foi, neste último aresto, desenvolvido em termos perfeitamente extrapoláveis para os presentes autos, o qual, ao avaliar as normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática obrigatória, refere que é nelas que “o legislador, conhecendo como conhece, a falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação. De facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado - direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61º, nº 1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62º, nº 1, da Constituição)”, acrescentando, ainda, que a “legislação sobre arrendamento para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade é, talvez, mais forte.”.
4.1. Poderá, neste contexto, afirmar-se que as «diminuição», «limitação», ou
«compressão» que, reportadamente ao direito de propriedade, se surpreendem com os grupos de normas questionados pelo recorrente, verdadeiramente, não traduzem uma qualquer restrição de tal direito.
Efectivamente, de um lado, elas, obviamente, não «tocam» no «núcleo» essencial do direito de propriedade dos senhorios, que continuam a poder transmiti-lo e fruí-lo (convindo-se, contudo, que se não pode escamotear que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa reportadamente a um outro que se não encontre «onerado» com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa).
Todavia, de outro, com a consagração constitucional do direito à habitação, no sentido de se tratar de um direito de interesse colectivo ou social e cuja prossecução imposta ao Estado não deixa também de vincular os proprietários particulares, como resulta da postura assumida por este Tribunal e se extrai das citações dos seus arestos que acima foi efectuada, o que haverá de concluir é que os grupos de normas de que curamos constituem, mais propriamente, uma forma de composição do conflito que se surpreende entre aquele direito e aqueloutro de propriedade dos senhorios, de cuja «concordância» resultam as assinaladas
«diminuição», «limitação» ou «compressão» deste último que, como se viu, não atingem, porém, a sua extensão e o seu conteúdo essencial.
Como se pode ler em J.C. Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 1985, 200), “[n]a realidade, certos direitos, como, p. ex.., os direitos à habitação, ..., dependem, na sua actualização, de determinadas condições de facto. Para que o Estado possa satisfazer as prestações a que os cidadãos têm direito, é preciso que existam recursos materiais suficientes e é preciso ainda que o Estado possa dispor desses recursos. Ora, a escassez dos recursos postos à disposição (material e jurídica) do Estado para satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado da experiência, pelo que não está em causa a mera repartição desses recursos, segundo um princípio de igualdade, mas sim uma verdadeira opção quanto à respectiva afectação material. Por outro lado, essa opção revela-se extremamente articulada e complexa, já que a escassez dos recursos disponíveis está intimamente ligada às variações no desenvolvimento económico e social, tornando, por isso, a escolha dependente de um sistema global em que pesam todas as coordenadas que condicionam esse desenvolvimento”.
E, mais adiante, expressa-se esse autor no sentido de que:
“...As políticas de habitação, saúde, segurança social, educação, cultura, etc., dadas as suas complexidades e contingência, não podem estar determinadas nos textos constitucionais e a sua realização implica opções autónomas e específicas de órgãos que disponham simultaneamente de capacidade técnica e de legitimidade democrática para se responsabilizarem por essas opções.
........................................................................................................................................ Podemos falar aqui da necessidade de uma concretização jurídico política da Constituição ou de uma conformação do conteúdo dos direitos fundamentais.
........................................................................................................................................ Quanto aos direitos (sociais) a prestações, já as coisas se passam de outro modo. As normas que os prevêem contêm directivas ao legislador ou, talvez melhor, são normas impositivas de legislação, ... ,porque apenas indicam ou impõem ao legislador que tome medidas para uma maior satisfação ou realização concreta dos bens protegidos.
........................................................................................................................................”
Ao analisar as situações de colisões ou conflitos de direitos, Vieira de Andrade
(ob., cit., 220 e seguintes), após asseverar que a soluções dessas situações não poderá ser resolvida com o “recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais”, não se podendo “sempre (ou talvez nunca) estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes”, e de assinalar que se não pode, além disso, ignorar “que, nos casos de conflito a Constituição protege os diversos valores ou bens em jogo e que não é lícito sacrificar pura e simplesmente um deles ao outro”, conclui que se terá, pois, de respeitar “a protecção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando a solução no quadro da unidade da Constituição, isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes”, sendo certo que um tal princípio de concordância prática como critério de solução de conflitos não pode ser perspectivado como “um regulador automático”, já que “a sua aceitação pressupõe que o conflito entre direitos nunca afecta o conteúdo essencial de nenhum deles”.
E, na decorrência, expende:
“...Por outro lado, o princípio da concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de cada um dos valores em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõem a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição, (essa sim) seja preservada na maior medida possível. Ora, a realização máxima das prescrições constitucionais pode depender da intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu conteúdo e a sua função específica. Isto é, a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) pode ser diferente, dependendo do modo como se apresentam e das alternativas possíveis de solução do conflito. O princípio da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito. Por um lado, exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros. Se o não for, não se trata sequer de um verdadeiro conflito. Por outro lado, e aqui estamos perante a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, impõe-se que a escolha entre as diversas maneiras de resolver a questão concreta se faça em termos de comprimir o menos possível cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação (segundo a intensidade e a extensão com que a sua compressão no caso afecta a protecção que lhes é constitucionalmente concedida). A questão do conflito de direitos depende, pois, de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas ou modos de exercício específicos
(especiais) dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais (à ordem constitucional).
........................................................................................................................................”
4.2. Em face desta parametrização, ponderando que já se concluiu que o «núcleo» ou dimensão essencial do direito de propriedade do senhorio não é posto em crise pelos normativos sub specie, que aos interesses dos cidadãos em verem garantido o seu direito à habitação não é alheia a vinculação dos particulares, chamados, com o seu direito de propriedade, a cumprir a função social decorrente daquele direito à habitação, a par com as incumbências que o Estado deve prosseguir, e que a escassez do mercado habitacional reclama a adopção de medidas tendentes a conseguir a preservação do direito de habitação, como um valor indubitavelmente protegido pela Lei Fundamental, igualmente se haverá de concluir que as normas em apreço, ao conferir características vinculísticas ao contrato de arrendamento para habitação, designadamente no que se reporta à sua livre revogação por banda do senhorio e às limitações quanto à actualização da contrapartida pelo desfrute do arrendado, se não configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado de resolução do conflito que, à partida, se postaria entre um e outro daqueles direitos.
E, justamente por isso, não violam elas, designadamente, os artigos 62º, 13º e
18º da Lei Fundamental.”
O trecho transcrito do Acórdão nº 263/2000, tem plena aplicação ao presente caso, muito embora a tese nele sustentada se reporte à limitação do direito de propriedade do senhorio face ao direito de habitação do arrendatário no quadro do regime vinculístico que vigora no arrendamento para habitação.
Entende-se, porém, que o mesmo tratamento jurídico-constitucional deve ser dado ao caso, no ponto em que se consideraram como adequadas e proporcionadas, nos limites consentidos pela Constituição, as normas que sujeitaram os arrendamentos feitos às IPSS ao regime do arrendamento para habitação, tendo decisivamente em conta os direitos sociais (entre eles, frequentemente, também o da habitação) dos beneficiários daquelas instituições que, constitucionalmente, merecem a mesma protecção de que goza o direito de habitação. E se este vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade social), nas palavras supra transcritas do Acórdão nº. 311/93, em termos de legitimar limitações ao direito de propriedade, pode dizer-se que aqueles direitos sociais, no quadro axiológico de valores plasmado na CRP, vinculam especialmente os particulares e o direito de propriedade “que tem uma função social a cumprir”.
Nesta conformidade, não se mostra violado o artigo 62º da CRP pelas normas do artigo 22º do Estatuto em qualquer dimensão temporal da sua potencialidade aplicativa.
4 - Decisão
Em conclusão e pelos fundamentos expostos, decide-se não julgar inconstitucionais as normas constantes dos nºs 1 a 4 do artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº
519-G2/79, de 29 de Dezembro, mantidos em vigor pelo artigo 98º alínea b) do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro.
Lisboa, 3 de Julho de 2001- Artur Maurício José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto (vencido pois teria declarado a inconstitucionalidade das normas em causa, enquanto aplicáveis a arrendamentos de pretérito por violação do princípio da confiança baseando-me no essencial das razões expendidas pelo Cons. Messias Bento, no voto de vencido aposta ao acórdão nº 50/88). Vítor Nunes de Almeida ( vencido conforme declaração de voto que junta) Maria Fernanda Palma (vencida, em parte, quanto ao segmento normativo do artigo
22º, nº 4, que se refere à restrição da denúncia para habitação própria, aplicável a contratos pretéritos, nos termos da declaração de voto que junto) Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos reconduziveis na sua essencialidade à declaração de voto do Exmº Conselheiro Messias Bento aposta ao acórdão nº 50(88). Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Messias Bento (vencido em parte, por ter entendido que as normas sub iudicio, enquanto aplicáveis aos arrendamentos de pretérito (isto é: anteriores a 1 de Janeiro de 1980), celebrados com as IPSS para fins não habitacionais, são inconstitucionais. De facto – pelas razões que expus no voto de vencido que apus ao acórdão nº
50/88, para as quais me remeto por comodidade - continuo a entender que, nessa sua aplicação, elas violam os princípios da igualdade e da confiança lidos conjugadamente). Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencido quanto à decisão tirada no presente processo essencialmente por discordar da aplicação da norma do artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro e mantida em vigor pelo artigo 98º, alínea h) do Estatuto das Instituições Portuguesas de Solidariedade Social
(IPSS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, aos contratos de arrendamento de pretérito, isto é, enquanto aplicada aos arrendamentos para fins não habitacionais celebrados antes do início da vigência daquele diploma.
As razões do meu entendimento vão ao encontro das explanadas pelo Exmo Conselheiro Messias Bento, na declaração de voto que exarou ao Acórdão deste Tribunal n.º 50/88, de 3 de Março de 1988, publicado in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', Vol. 11º, pág. 571).
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, nomeadamente com o preceituado no artigo 22º, ora em questão, (que preceitua que os arrendamentos para fins habitacionais celebrados com instituições privadas de solidariedade social passaram a ficar “sujeitos ao regime jurídico dos arrendamentos destinados a habitação independentemente do fim do contrato”) os senhorios que deram os seus prédios em arrendamento viram-se na situação forçada de ver a relação jurídica de que são sujeitos submetida a um regime jurídico mais desfavorável.
Efectivamente, assim se disse na declaração de voto citada:
“Este regime mais desfavorável (...) é aplicável apenas aos senhorios cujos os inquilinos sejam instituições privadas de solidariedade social, pois que todos os outros arrendamentos não habitacionais ficaram submetidos à disciplina dos Decretos-Lei n.ºs 330/81, 189/82 e 436/83, antes indicada. Significa isto que o legislador, ao editar a norma do artigo 22º do Decreto-Lei n.º 519-G/79, na parte aqui questionada, veio fazer tábua rasa do sentido com que os senhorios se vincularam, ao arrendar os seus prédios a instituições privadas de solidariedade social, e sujeitar os arrendamentos em causa a um regime jurídico (a um estatuto) diferente do convencionado, a um estatuto que é desfavorável para os senhorios, quando confrontado com aquele a que continuaram sujeitos os arrendamentos idênticos celebrados com inquilinos que não sejam instituições privadas de solidariedade social.
Como este Tribunal já, por diversas vezes, afirmou, não se questiona a legitimidade do legislador para, em determinadas matérias, incluindo esta matéria de arrendamento urbano, estabelecer um regime de favor para as instituições privadas de solidariedade social, tanto mais que, por um lado, este Tribunal já sublinhou, no seu Acórdão n.º 39/88 (publicado in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 11º Vol., pág. 278) que os fins prosseguidos pelas IPSS são “fins relevantes no nosso ordenamento jurídico” e, por outro lado, o princípio constitucional da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções. Proíbe sim as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante.
Assim, como se escreveu na citada declaração de voto a cujos fundamentos adiro, “(...) a instituição de um regime de favor para tais instituições, em matéria de arrendamento urbano, não pode ser havida como uma opção arbitrária do legislador, antes haverá de ser tida como uma escolha a que presidiu uma motivação racional, ou seja, um fundamento material suficiente.
(...) Mas, se, por esse lado, a instituição do apontado regime de favor não é susceptível de levantar dúvidas de constitucionalidade, outro tanto já não sucede quando se considere que um tal regime foi instituído à custa da imposição de um encargo especial aos senhorios.
Ao menos como regra, o legislador só deve impor um encargo especial a um determinado grupo de cidadãos para beneficiar especialmente um outro grupo se esse for o único meio de que dispõe para poder dispensar a este outro grupo o tratamento de favor que pretende instituir.
(...) Pois bem: com a sujeição dos arrendamentos não habitacionais celebrados com instituições privadas de solidariedade social ao regime dos arrendamentos urbanos para habitação, o que, em direitas contas se fez foi, como se viu, primeiro de tudo, congelar as rendas respectivas (...). Ora, este objectivo (o objectivo de evitar aumentos de rendas elevados, ou, vistas as coisas de outro ângulo, o objectivo de poupar as instituições privadas de solidariedade social a aumentos sensíveis das despesas de renda das suas instalações) é coisa que o legislador bem podia conseguir mediante a instituição de um esquema de subsídios, à semelhança, de resto, do que veio a fazer em matéria de arrendamento para habitação quanto aos inquilinos mais pobres (...)
A defesa da constitucionalidade da solução adoptada pelo legislador no artigo
22º do Decreto-Lei n.º 519-G2/79 não pode, por isso, fazer-se argumentando para o efeito com o facto de não ser questionável a legitimidade constitucional de soluções legislativas como a (...) do senhorio estar impedido de denunciar o arrendamento para satisfazer as suas próprias necessidades de habitação quando o inquilino tenha 65 anos ou mais, de idade, ou, independentemente desta, estiver na situação de reforma antecipada por motivo de doença ou invalidez absoluta, ou, não beneficiando da pensão de reforma, se encontrar incapacitado para o trabalho por invalidez.
É que, nestas hipóteses o legislador não tem outro meio de garantir a permanência do inquilino no locado (ou seja, de evitar o despejo) que não seja retirando ao senhorio o direito de denúncia do contrato. Ao que acresce que sempre se trata aí tão-somente de introduzir uma especialidade no regime de arrendamento para habitação, e não de submeter o contrato celebrado a um estatuto diferente, como sucede no caso dos autos.
Por último, e para defender, como defendo, a inconstitucionalidade do preceito em apreço no Acórdão ora tirado, sempre se poderá dizer que o argumento de que o senhorio 'advertido de que os arrendamentos não habitacionais celebrados com instituições privadas de solidariedade social se regem pelas normas que disciplinam o arrendamento para habitação, quando se decidir a arrendar o prédio a essas instituições, é porque sopesou devidamente aquele facto', se valer, apenas vale, no meu entender, para os arrendamentos de futuro e não já para os arrendamentos de pretérito.
Em minha opinião, quanto aos arrendamentos de pretérito o legislador não considerou os interesses e o sentido com que os contraentes se vincularam e sujeitou, retroactivamente, aqueles arrendamentos a um regime diferente e mais desfavorável para o senhorio.
Como explicita no voto de vencido que vimos seguindo,
“ele veio, de facto, colocar tais arrendamentos sob o império de um diferente estatuto (o dos arrendamentos para habitação), que, quanto a um aspecto importante do respectivo regime (o sistema de actualização de rendas) é substancialmente diverso daquele a que o contrato ficou submetido aquando da sua celebração (o qual, por isso, estava na vontade dos contraentes) e diverso, bem assim, daquele a que ficaria submetido por virtude das alterações entretanto operadas no ordenamento jurídico, se não fora aquela intervenção legislativa.
Acresce, por último, que considero que o artigo 22º em análise, na sua dimensão de aplicação aos arrendamentos de pretérito, particularmente, com a edição do nº4 do artigo 22º em apreciação e na medida em que retira aos senhorios o direito de denúncia para habitação própria, viola, igualmente, o princípio da confiança que está implícito na ideia de Estado de Direito. De facto, ao tratar determinados senhorios de forma discriminatória e ao criar para estes uma situação de desfavor, fá-lo apenas na medida em que origina essa situação numa categoria meramente subjectiva – a que é identificada por aquela qualidade de senhorio de tais instituições – sendo apenas por este motivo (pois do tratamento privilegiado dos inquilinos não tem de decorrer necessariamente ou inevitavelmente um tratamento em desfavor dos senhorios) injusto e sem fundamento que estes vejam eliminadas as expectativas que porventura tinham de poderem usar o direito que a lei do arrendamento urbano lhes reconhece de denúncia do contrato para habitação própria.
Ora, uma tal privação inesperada e surpreendente do uso dos meios de cessação normais previstos no contrato de arrendamento é indiscutivelmente violadora do princípio da confiança e da segurança jurídicas.
Na verdade, o princípio da confiança - que deve presidir a qualquer relação jurídica validamente constituída – é postergado, se se atentar na impossibilidade de previsibilidade da situação a que ficam sujeitos os senhorios que celebraram contratos com estas instituições, uma vez que se é certo que nos arrendamentos outorgados após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 519º-G2/79, o senhorio celebra o contrato consciente da aplicabilidade do regime previsto naquele diploma, já nos anteriores os senhorios vêem sujeitos os contratos a um estatuto diferente do previsto, e que lhes é francamente desfavorável, maxime se confrontado com aquele a que continuaram sujeitos os arrendamentos idênticos celebrados com inquilinos que não sejam IPSS.
Por todas estas razões, já constantes do voto de vencido que vimos seguindo - onde, aliás, estão melhor explicitadas -, votei vencido quanto à aplicação do regime do artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social aos contratos de arrendamento de pretérito.
Lisboa, 2001.07.04
Vítor Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencida, em parte, quanto à inconstitucionalidade do artigo
22º, nº 4, do Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, que regulou o Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social.
O meu voto de vencida circunscreve-se ao segmento normativo constante do nº 4 do artigo 22º, do qual se deduz a aplicação aos contratos de pretérito (isto é, já celebrados antes da entrada em vigor da norma que foi questionada) de uma alteração substancial do regime desses contratos de arrendamento no que se refere à possibilidade de denúncia pelo senhorio para habitação própria. Nesse sentido, o meu voto não coincide com os outros votos de vencido, embora entenda, no que respeita à violação do princípio da confiança, que os outros votos englobam logicamente a minha perspectiva, a qual constituiria um mínimo denominador comum.
1. Entendo, diferentemente do Acórdão, que há uma violação conjugada do princípio da confiança (artigos 2º e 18º, nº 2, da Constituição) e do direito à habitação (neste caso decorrente da conjugação dos artigos 62º, nº
1, e 65º, nºs 1 e 2, da Constituição) através dessa aplicação retrospectiva da lei aos contratos anteriormente celebrados, na medida em que não é exigível e é desproporcionado que uma alteração posterior à celebração de um contrato na área de um direito essencialíssimo seja suportada pelos próprios titulares do direito
à habitação (sejam eles senhorios, como no caso, ou inquilinos, como noutros casos), sem que estes se vejam, de alguma forma, compensados patrimonialmente pela afectação de expectativas inerentes a faculdades integrantes de direitos de que são titulares.
2. A minha posição assenta em algumas razões fundamentais:
1ª A ponderação de valores que justifica uma restrição retroactiva de direitos fundamentais, isto é, que não sendo desproporcionada é tolerável e não afecta o princípio da confiança, não pode invadir espaços nucleares de direitos fundamentais, como será o do direito à habitação, consubstanciado no direito potestativo de denúncia do arrendamento para habitação própria.
2ª O direito à habitação do titular da propriedade do prédio, nas circunstâncias de necessidade comprovada, previstas no Código Civil, é uma dimensão pessoal do direito de propriedade que assume natureza de direito fundamental.
3ª Uma visão constitucionalmente coerente imporia uma compensação pecuniária, em situações de conflito do direito à habitação do proprietário com a protecção dos interesses obtida pela continuidade do arrendamento às Instituições Privadas de Solidariedade Social, na medida em que está em causa uma afectação retroactiva do direito de denúncia para habitação, constituído, enquanto expectativa tutelada, logo no momento da celebração do contrato de arrendamento
(momento anterior ao da entrada em vigor da lei que suprime esse direito). Com efeito, estando em causa a dimensão pessoal, por excelência, do direito de propriedade, em conflito com interesses colectivos de solidariedade social assegurados por actividade privada, não se entende que ela não beneficie do mesmo regime protectivo de que goza a propriedade (mesmo numa dimensão puramente económica) quando está em causa a expropriação para a realização de um interesse público.
4ª Em matéria de direito à habitação a tutela das expectativas relacionadas com a alteração de leis reguladoras do regime do contrato de arrendamento está sujeita a fortes limites decorrentes do princípio da confiança, tal como o Tribunal tem reconhecido, relativamente aos direitos do inquilino no alargamento do prazo máximo a partir do qual se extingue o direito de denúncia do senhorio, relativamente a contratos anteriormente celebrados. A situação aqui em causa não
é de natureza absolutamente diferente só pelo facto de nos casos decididos pelo Tribunal já ter decorrido o prazo anterior de extinção do direito de denúncia do senhorio. Com efeito, a expectativa jurídica relativa ao poder de denúncia para habitação constitui-se também no momento em que se gerarem legalmente as condições para o seu exercício, e pode plausivelmente haver um condicionamento da decisão de celebrar o contrato pela possibilidade de denúncia para habitação.
Neste caso, tal como nas outras situações referidas, há uma alteração essencial de um direito potestativo. No caso anterior há um alargamento de um direito potestativo que pretende manter uma situação de sujeição do inquilino que já não existia, ressuscitando-a. No caso em análise, extingue-se, pura e simplesmente, a expectativa jurídica que conduz ao possível exercício de um direito potestativo. Mas em ambos os casos, há uma afectação de expectativas jurídicas adquiridas.
3. Estas razões prevalecem contra os argumentos do Acórdão, que se referem a um paralelismo entre a situação normativa em análise e o que estava já estipulado no Código Civil, no artigo 1096º, nº 2 (actualmente 69º, nº 2, do RAU). Com efeito, tal paralelismo não adianta nada à justificação de uma violação das expectativas e da confiança tutelada. Tratando-se, nesse local paralelo, de excepções especificamente consagradas e restrições ao direito de denúncia para habitação só poderia resultar desse paralelismo, do ponto de vista jurídico do investimento da confiança, a expectativa de que outras eventuais excepções apenas deveriam ser criadas para o futuro, não sendo aplicáveis a contratos pretéritos. Aliás, se em matéria de restrições ao espaço natural dos direitos, o Tribunal tende geralmente a considerar, mesmo em áreas que não atingem o foro pessoal, que tais restrições não são configuráveis por analogia relativamente a outras consagradas (como acontece no que se refere ao dever de declaração de rendimentos de entidades não expressamente nomeadas na respectiva lei - caso dos juízes do Tribunal de Contas - mas que faria todo o sentido que estivessem integradas no elenco legal), também deveria ter entendido, por maioria de razão, que, retroactiva ou mesmo retrospectivamente, não é concebível um alargamento de excepções na área do direito à habitação. Na realidade, também nesta matéria, obviamente, a regra é a da manutenção deste direito pelo proprietário do imóvel arrendado, em caso de necessidade comprovada. Outras excepções poderão ser aceitáveis, mas não susceptíveis de imposição retroactiva.
Por outro lado, o paralelismo invocado com o modo como o legislador resolve os conflitos entre o direito de habitação do senhorio e o do arrendatário, no arrendamento para habitação, só poderá ser aceitável como expressão de um tipo de ponderação de valores que, no conflito entre o direito à habitação do senhorio e o do locatário, comprime excepcionalmente o direito do senhorio por uma opção global de distribuição de custos na tutela do direito à habitação. Mas a transposição dessa lógica para justificar a leitura de uma colisão entre o direito à habitação do senhorio e o direito à continuidade do arrendamento de Instituições Privadas de Solidariedade Social, que se repercute nos contratos de pretérito - e para justificar a ausência de qualquer compensação ao senhorio pela restrição do seu direito na situação em que teria podido denunciar o contrato para habitação própria - é inadequada, porquanto o que está em causa não é directamente a justificação da restrição do direito à habitação do senhorio na situação de conflito com outros direitos igualmente relevantes, mas a justificação da exigibilidade de aceitação retroactiva desse modo de decisão do conflito que o destinatário da norma não podia ter em consideração no momento de celebração do contrato.
Coloca-se, assim, o senhorio na posição de ter de suportar uma restrição excepcional do seu direito que não tinha que prever no momento de celebração do contrato, sem qualquer compensação, o que não pode deixar de ser considerado, à luz de qualquer princípio de Justiça, excessivamente oneroso. Deste modo, os próprios argumentos baseados em lugares paralelos do direito ordinário não atingem a questão essencial da violação da confiança, quando está em causa a anulação retroactiva de um núcleo essencial do direito à habitação contido no direito de propriedade. De resto, toda a argumentação expendida no Acórdão sobre colisão de direitos, através da citação do Acórdão nº 263/2000, é absolutamente inaplicável ao conflito que aqui se avalia, na medida em que nele se espelha a anulação incondicional do direito à habitação do senhorio, sem qualquer compensação, não assumida contratualmente, mas traduzida na extinção de um direito potestativo previamente existente.
4. Toda a minha compreensão do valor constitucional de direitos como o direito à habitação, que me tem levado a pronunciar-me de modo muito directo pela inconstitucionalidade de normas que afectam intoleravelmente este direito, quando está em causa o direito dos inquilinos, não me permitiriam, também neste caso, decidir de modo diferente. Assim, não só subscrevi vários Acórdãos no sentido da inconstitucionalidade do artigo 107º, nº 1, alínea b), do RAU, que alargava o prazo para o exercício do direito de denúncia do senhorio
(cf. Acórdãos nº 70/99 - D.R., II Série, de 6 de Abril de 1999, e nº 97/2000 - D.R., I Série-A, de 17 de Março de 2000), como também fiquei, isoladamente, vencida quando o Tribunal Constitucional decidiu julgar não inconstitucional os artigos 69º, nº 1, alínea b), do RAU, e 1º, 3º, nº 2, e 5º da Lei nº 2088, de 3 de Junho de 1957, na redacção da Lei nº 46/95, de 20 de Setembro, no caso do chamado despejo para obras, quando o valor das rendas anuais (base de determinação legal de indemnização do inquilino) em que consistia a indemnização atribuída a um casal octagenário, para suportar as despesas de habitação durante o período de obras, era irrisório, não permitindo a realização do direito a habitação a qualquer pessoa, em manifesta contradição, aí sim, com os mesmos lugares paralelos que se invocam no presente Acórdão (Acórdão nº 333/99 - D.R., II Série, de 25 de Outubro de 1999). É, assim, o mesmo o sentido do
“intolerável” que me conduz no Direito que aqui afirmo, reconhecendo que se me impõe de tal forma que as “formulações jurídicas” são seguramente uma vestimenta insuficiente para razões desta natureza. Por estas razões, nunca poderia aceitar na íntegra o conteúdo deste Acórdão.
Maria Fernanda Palma
Declaração de Voto
Votei vencido quanto à solução de não inconstitucionalidade a que se chegou no acórdão de que faz parte integrante esta declaração.
Cumpre, por isso, brevitatis causa, indicar as razões da minha dissensão.
Não ponho em causa a filosofia política que emergiu da Constituição de 1976 quanto à vinculação do Estado a fins e tarefas que demandam um tipo de intervenções qualitativa e quantitativamente diferenciadas quanto aos sectores mais carenciados da população e, bem assim, quanto ao não «apagamento» ou atenuação da importância que se reconhece, e deve reconhecer, às instituições particulares de solidariedade social.
Não ponho também em crise o interesse público que - inclusivamente, até se pode porventura retirar da Lei Fundamental - recai sobre aquelas instituições, atentos os fins que prosseguem e, por isso, poderá demandar o apoio que o Estado lhes deve dispensar, enquanto elas complementam as tarefas sociais que a este estão constitucionalmente cometidas.
Igualmente não questiono a conclusão - e a grande maioria da fundamentação que a ela conduz - que se faz no aresto a que esta declaração se apendicula e de harmonia com a qual não haverá violação do princípio da igualdade quanto ao desenho algo diferenciado dos arrendamentos, nomeadamente no confronto dos em apreço nas normas sub iudicio e os para habitação.
Outrossim não nego que haja determinados valores ou interesses de carácter social a merecerem tutela específica e que levam a que os arrendamentos de imóveis às instituições privadas de solidariedade social devam revestir características diferentes dos arrendamentos «para outros fins», na terminologia do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção com que lhe foi introduzido o Capítulo V
(dada pelo Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro).
O que ponho em causa e, por isso, não aceito que se sustente, é que as medidas comportadas pelos normativos em espécie, no ponto em que constituem uma constrição, diminuição, limitação ou restrição de alguns dos direitos dos senhorios - como é o caso, designadamente, da manutenção obrigatória dos contratos de arrendamento, da não diminuição da liberdade de estipulação das rendas confrontadamente com outros arrendamentos que não os para habitação, da obrigatoriedade de «sucessão» para outras entidades do negócio jurídico primitivamente celebrado com dada instituição privada de solidariedade social, e da não possibilidade de o senhorio obter o arrendado para habitação própria - se tenham, em nome daqueles pontos que acima não questionei, como necessárias ou exigíveis, e isto tanto mais que, aqui, as mais das vezes, não estão em causa arrendamentos incidentes sobre imóveis que se destinam directamente à habitação de quem quer que seja, ou, de modo mais explícito, de quem está socialmente carecido de habitação.
Neste particular, não adiro ao argumento com que esgrime o acórdão ao fazer alusão à circunstância de existirem tipos de limites do direito de denúncia por parte do senhorio, como é o caso dos arrendamentos a casas de saúde e estabelecimentos de ensino (e esta é, parece, a única
«constrição» que se surpreende nesses arrendamentos), em que há uma certa paridade com os arrendamentos às instituições privadas de solidariedade social.
É que, e tenho isso para mim como óbvio, uma tal argumentação não repousa em considerações de ordem constitucional, mas sim de lei ordinária, sendo que, no presente aresto, se não debatem, nem podem debater, essas situações do ponto de vista da sua conformidade com o Diploma Básico.
Na minha óptica, o Estado, ao pretender, com normas com o jaez das em análise, estar, sob o manto de ajuda às instituições privadas de solidariedade social, a complementar uma acção social que, sobre ele, Estado, constitucionalmente impende, o que verdadeiramente consegue é, por um lado, demitir-se da prossecução directa desse encargo constitucional e, por outro, tentar alcançar uma acção previdencial que, em direitas contas, é, e só, suportada pelos particulares e por imposição do poder daquela pessoa colectiva pública.
Até aceitaria que algumas das limitações ou restrições à liberdade negocial pudessem ser impostas aos senhorios, em face das carências do mercado de locação imobiliária, dos fins das instituições particulares de solidariedade social amplamente referidos neste aresto e das dificuldades em o Estado poder proporcionar aos carenciados sociais aquilo que os mesmos mereceriam e a Constituição defende para eles. Simplesmente, e porque, novamente o assinalo, os direitos sociais estão cometidos ao Estado, então o que este deveria era compensar - e este não é o local asado para fazer, ainda que a título meramente exemplificativo, qualquer enunciação nesse sentido - os particulares senhorios das imposições que lhes impõem aquelas medidas.
Não agindo assim, a meu ver, isso redunda num actuar do Estado de molde a fazer segurança e previdências sociais à custa de particulares, aos quais, de todo, a Lei Fundamental não comete tal tarefa.
E nem se diga que a situação em apreciação não se distingue, como parece fazer crer o acórdão, daqueloutra que foi objecto de tratamento no Acórdão nº 263/2000.
Estava, aí, em causa o direito de propriedade, numa dimensão, tida pelo então recorrente como fazendo parte daquele direito, de livre fixação da contrapartida pela utilização do locado, e o direito de habitação que os cidadãos inquilinos directamente desejavam assegurar quando firmaram negócio jurídico com os senhorios, que, ao colocarem no mercado de habitação, os seus imóveis, já sabiam da destinação dos mesmos.
Aqui, por outra banda, estão em confronto o direito de propriedade do locado (e até o direito à habitação do senhorio, quando necessite do locado para nele habitar) e outros deveres sociais que a Constituição comete, e só, ao Estado.
Por isso não anuo a que exista paridade de situações que permitam a invocação dos fundamentos carreados ao citado acórdãos para também suportar a solução a que, no vertente se chegou.
Opino, pois, que, no ponto em que se não prevêem medidas compensadoras dos senhorios, as normas em apreço limitam desproporcionada e desnecessariamente o direito de propriedade dos senhorios e, por isso, são ofensivas do artigo 62º da Constituição.
Bravo Serra