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Processo n.º 269/13
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido, em conferência, pela 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 11 de dezembro de 2012 (fls.248 a 253), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 720º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável “ex vi” artigo 4º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que “[n]o âmbito de um processo-crime, pode o tribunal, sem que antes seja dada a possibilidade do arguido se pronunciar, determinar a extração de traslado e o envio dos autos para a comarca, para a execução de uma pena efetiva de prisão”.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu as seguintes alegações:
«1° - Em 13/11/2012 o Recorrente Apresentou no Supremo Tribunal de Justiça, requerimento devidamente fundamentado, arguindo a nulidade de despachos proferidos por aquele Tribunal, nomeadamente, por Omissão de Pronúncia;
2° - Em 11/12/2012 foi proferido Acórdão através do qual, sem que fossem apreciadas as nulidades arguidas, e sem que o recorrente tivesse sido notificado para se pronunciar sobre a referida decisão se decidiu, ao abrigo do artigo 720° do C.P.C.: “Pelo exposto, acordam nesta 3ª Seção em determinar a extração de traslado e o envio dos autos para a comarca, para a execução do julgado”;
3° - E, assim, em consequência de tal decisão foi o recorrente detido e transportado a Estabelecimento prisional para cumprimento de pena;
4º - Com o presente Recurso pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 720º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido com que o foi na decisão recorrida, isto é, que a declaração de uso do artigo 720º do C.P.C. no âmbito do processo criminal não está sujeita a prévia audição do arguido;
5º - Entende o recorrente, que o ordenamento jurídico português nas suas vertentes processuais penais e constitucionais não se compadece com decisões surpresa;
6° - Ora, interpretando o referido artigo nos termos em que o S.T.J. o interpretou resultam desde logo duas situações que a nosso ver são manifestamente inconstitucionais:
• O recorrente não tem o direito de se pronunciar sobre uma decisão que forçosamente o vai afetar;
• A aplicação do referido preceito legal está na livre decisão do Relator, isto é, o Relator é livre de entender quando e como deve suscitar o incidente;
Sendo certo que essa análise é efetuada nas costas do arguido, ou seja, sem que ao mesmo seja dado qualquer conhecimento daquilo que se está a passar no processo;
7º - Com efeito, verte o artigo 720º do C.P.C. que:
“1 - Se ao relator parecer manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, levará o requerimento à conferência, podendo esta ordenar, sem prejuízo do disposto no artigo 456°, que o respetivo incidente se processe em separado.
2 — O disposto no número anterior é também aplicável aos casos em que a parte procure obstar ao trânsito em julgado da decisão, através da suscitação de incidentes, a ela posteriores, manifestamente infundados.”
8°- O recorrente admite que o referido preceito legal, por aplicação do artigo 4° do C.P.P., possa ser aplicado no âmbito de um procedimento penal, contudo, não o poderá ser com a mesma abrangência do que no âmbito do Processo Civil;
9° - Isto porque, o processo penal está sujeito a um conjunto de garantias constitucionais que não existem no âmbito do Processo civil;
10º - Interpretando e aplicando o artigo 720° do C.P.C. como o aplicou o S.T.J. violou desde logo o artigo 20, n.º 4, na sua vertente de Direito a um processo equitativo, nos termos do referido preceito legal “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”
11° - “O due process” positivado na constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.
Uma densificação do processo justo ou equitativo é feita pela própria constituição em sede de processo penal (cfr. art. 32°) — garantias de defesa, presunção de inocência, julgamento em prazo curto compatível com as garantias de defesa, direito à escolha de defensor e à assistência de advogado, reserva de juiz quanto à instrução de processo, observância do principio do contraditório, direito de intervenção no processo, etc. A doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios: direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, pág.415, Coimbra Editora)
12° - Ora, salvo o devido respeito, por opinião diversa, o direito a um processo equitativo pressupõe, no âmbito do procedimento penal, desde logo, que o arguido não esteja sujeito ao arbítrio do julgador, ao facto de este em determinado momento entender que o arguido pretende ou não com determinado requerimento obstar ao trânsito em julgado de uma decisão judicial;
13° - É que seguindo este entendimento corremos o risco, como se tem vindo a constatar, de violar o próprio princípio da igualdade de todos os cidadãos, vertido no artigo 13° da C.R.P., é que a alguns cidadãos todos os requerimentos e arguições de nulidades são admitidas, a outros basta arguir uma nulidade por omissão de pronúncia para logo se usar mão do artigo 720° do C.P.C.
14° - Mas, mais grave do que isso, que todo esse expediente/incidente seja tramitado sem que ao arguido seja dada a possibilidade de se pronunciar;
15° - O arguido, confrontado com a intenção do Senhor Relator de dar início ao incidente previsto no artigo 720º do C.P.C., e sendo o mesmo remetido à conferência, tem o direito de contraditar a opinião do Senhor Juiz Relator;
16° - Até porque a decisão de considerar ou não dilatórios os requerimentos apresentados, é uma apreciação pessoal do Juiz Relator;
17° - E O arguido tem o direito de demonstrar ou tentar demonstrar a razão dos requerimentos que apresenta;
18° - No caso Sub Júdice, os Senhores juízes Conselheiros, decidiram em Conferência, uma proposta do Senhor Juiz Conselheiro Relator, que teve uma afetação direta na vida do arguido, sem que o mesmo tivesse sequer conhecimento do que se estava a passar;
19º - Estamos perante uma verdadeira decisão surpresa;
20° - Nos termos do artigo 32º, nº 5 da C.R.P. “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
21° - O princípio do contraditório significa, nomeadamente, “em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo... (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, pág.523, Coimbra Editora)
Assim, e sempre com o devido respeito por opinião diversa não restam quaisquer dúvidas que a interpretação efetuada pelos Senhores Juízes Conselheiros ao artigo 720° do C.P.C. viola os artigos 2°, 13°, 20°, nº4 e 32°, n.°5 da C.RP.
EM CONCLUSÃO
I
O S.T.J. entendeu que no âmbito do incidente previsto no artigo 720º do C.P.C. o arguido não tem que ser notificado previamente para se pronunciar, ou seja, que:
“No âmbito de um processo-crime, pode o tribunal, sem que antes seja dada a possibilidade do arguido se pronunciar, determinar a extração de translado e o envio dos autos para a comarca, para a execução de uma pena efetiva de prisão.”
II
O recorrente admite que o referido preceito legal, por aplicação do artigo 4° do C.P.P., possa ser aplicado no âmbito de um procedimento penal, contudo, não o poderá ser com a mesma abrangência do que no âmbito do Processo Civil;
III
Isto porque, o processo penal está sujeito a um conjunto de garantias constitucionais que não existem no âmbito do Processo civil;
IV
Interpretando e aplicando o artigo 720º do C.P.C. como o aplicou o S.T.J. violou desde logo o artigo 20, nº4, na sua vertente de Direito a um processo equitativo;
V
O arguido tem o direito de ser confrontado com a intenção do Senhor Relator de dar início ao incidente previsto no artigo 7200 do C.P.C., e sendo o mesmo remetido à conferência, tem o direito de contraditar a opinião do Senhor Juiz Relator;
VI
A decisão de considerar ou não dilatórios os requerimentos apresentados, é uma apreciação pessoal do Juiz Relator, e o arguido tem o direito de demonstrar ou tentar demonstrar a razão dos requerimentos que apresenta;
VII
No caso Sub Júdice, os Senhores juízes Conselheiros, decidiram em Conferência, uma proposta do Senhor Juiz Conselheiro Relator, que teve uma afetação direta na vida do arguido, sem que o mesmo tivesse sequer conhecimento do que se estava a passar;
VIII
Assim, e sempre com o devido respeito por opinião diversa, a interpretação efetuada pelos Senhores Juízes Conselheiros ao artigo 720° do C.P.C, nos termos em que aquela o foi, viola os artigos 2°, 13°, 20°, n.4 e 32°, n.°5 da C.R.P.
Termos em que requer a V. Exas. Egrégios Juízes que se dignem considerar inconstitucional o artigo 720º do C.P.C. quando interpretado no sentido que o foi pelo tribunal S.T.J., ou seja que:
“No âmbito de um processo-crime, pode o tribunal, sem que antes seja dada a possibilidade do arguido se pronunciar, determinar a extração de translado e o envio dos autos para a comarca, para a execução de uma pena efetiva de prisão.» (fls. 303 a 308).
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
«1. Sendo constitucionalmente aceitável a aplicação em processo penal do disposto no artigo 720º do Código de Processo Civil, essa aplicação deve ser integral, sem desvios que descaracterizem ou desvirtuem o regime ali previsto.
2. Era o que sucederia se, antes de antes de ser ordenada a extração de traslado, ao sujeito processual cujo comportamento processual esteve na origem da decisão, fosse dada a oportunidade se pronunciar.
3. Se na sequência da aplicação do disposto no artigo 720º do Código de Processo Civil, o cumprimento da decisão significa o cumprimento de numa pena de prisão, tal está em plena consonância com a finalidade pretendida com aquela solução legislativa.
4. Assim, a norma do artigo 720.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de que no âmbito de um processo-crime, pode o tribunal, sem que antes seja dada a possibilidade do arguido se pronunciar, determinar a extração de traslado e o envio dos autos para a comarca, para a execução de uma pena efetiva de prisão, não é inconstitucional.
5. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. O recorrente sustenta que o artigo 720º do CPP, quando aplicado ao processo penal, por via do artigo 4º do CPP, seria inconstitucional quando a parte que provoca o incidente processual dilatório que constitui causa da extração de traslado não tiver sido previamente ouvida quanto a essa extração e consequente baixa dos autos ao tribunal recorrido.
Com efeito, o referido artigo 720º do CPP determina que:
«1. Se ao relator parecer manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, levará o requerimento à conferência, podendo esta ordenar, sem prejuízo do disposto no artigo 456.º, que o respetivo incidente se processe em separado.
2. O disposto no número anterior é também aplicável aos casos em que a parte procure obstar ao trânsito em julgado da decisão, através da suscitação de incidentes, a ela posteriores, manifestamente infundados.
3. A decisão da conferência que qualifique como manifestamente infundado o incidente suscitado determina a imediata extração de traslado, prosseguindo os autos os seus termos no tribunal recorrido.
4. No caso previsto no número anterior, apenas é proferida a decisão no traslado depois de, contadas as custas a final, o requerente as ter pago, bem como todas as multas e indemnizações que hajam sido fixadas pelo tribunal.
5. A decisão impugnada através de incidente manifestamente infundado considera-se, para todos os efeitos, transitada em julgado.
6. Sendo o processado anulado em consequência de provimento na decisão a proferir no traslado, não se aplica o disposto no número anterior.»
Perante a mera aplicação deste mecanismo processual – que, ainda que implicitamente, prescinde da prévia audição da parte que provoca um incidente dilatório –, o recorrente entende que ficam preteridos os princípios do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP), da igualdade (artigo 13º da CRP) e do contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 5, da CRP), bem com o direito fundamental a um processo equitativo (artigo 20º, n.º 4, da CRP).
Em certa medida, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de sindicar a conformidade constitucional da norma extraída do artigo 720º do CPC, tendo concluído, pelas duas vezes, no sentido da sua não inconstitucionalidade (nesse sentido, ver Acórdãos n.º 547/2004 e n.º 376/2012, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Contudo, a configuração da dimensão normativa ora em análise ultrapassa, parcialmente, o âmbito da questão jurídica então apreciada, pois, desta vez, a específica interpretação extraída artigo 720º do CPC surge configurada como dispensando a prévia audição da parte que provoca o incidente dilatório. É, portanto, dessa específica configuração que se curará, de ora me diante.
5. Desde logo, não se vislumbra de que modo aquele preceito legal poderia contender com o “princípio da igualdade”, visto que o mesmo não pressupõe a consulta de nenhum dos intervenientes processuais em processo penal, sejam eles o arguido, o assistente ou o Ministério Público. Se a extração de traslado e baixa imediata dos autos é determinada pelo tribunal, em conferência, mediante iniciativa do Relator, sem qualquer notificação prévia a qualquer um dos intervenientes processuais, não se alcança – nem se aceita – qualquer violação do referido princípio da igualdade (artigo 13º da CRP). E o mesmo se diga quanto ao “princípio do Estado de Direito Democrático” que vem invocado pelo recorrente a título absolutamente acessório, enquanto mero argumento de exposição, mas sem que dele se possa extrair uma concreta antinomia entre o artigo 720º do CPC e aquele mesmo princípio (artigo 2º da CRP). Sendo certo que o princípio do Estado de Direito Democrático deve enformar toda a conduta dos órgãos constitucionais – neles incluídos os tribunais –, não pode, neste caso concreto, dele extrair-se um específico parâmetro de normatividade que coloque a norma objeto do presente recurso em confronto direto e imediato com aquele princípio.
Importa, então, verificar se a não audição da parte que provoca um incidente dilatório consubstancia uma restrição, constitucionalmente vedada, do “direito a um processo equitativo” (artigo 20º, n.º 4, da CRP) e do “princípio do contraditório em processo penal” (artigo 32º, n.º 5, da CRP).
A posição assumida pelo tribunal recorrido em face destes argumentos é sintomática da ponderação de valores fundamentais em presença (e em conflito), pois assume que:
«Ora, há que não perder de vista a razão de ser do instituto, o qual só é operável num contexto de exacerbada atividade processual que a parte ou o arguido muito bem conhece, já após a prolação da decisão final em recurso.
Sendo um instrumento reativo contra as demoras abusivas não faria sentido conceder mais uma hipótese de retardamento do processo.»
E, com efeito, a ponderação acerca da inconstitucionalidade da norma ora em apreço não pode ser desligada da necessária ponderação dos valores constitucionais e dos bens fundamentais potencialmente em conflito, sendo admissível que o legislador procure obstar a uma eventual sucessão de meios processuais pós-decisórios que possam comprometer o célere trânsito em julgado de uma decisão de mérito, já proferida. E, não pode deixar de registar-se que, nos presentes autos, a conduta do recorrente denota uma utilização reiterada de tais incidentes pós-decisórios, visto que foram apresentados pedidos de aclaração relativamente a todas as decisões tomadas pelo tribunal recorrido: o primeiro em relação ao acórdão condenatório que decidiu sobre o mérito da causa, o segundo relativo a despacho do Relator proferido em 01 de outubro de 2012, sobre o dever de pagamento de multa, e o terceiro sobre a própria decisão sobre o referido pedido de aclaração, proferida em 25 de outubro de 2012.
Ora, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de apreciar uma questão idêntica, através do Acórdão n.º 376/2012, no qual disse que:
«O regime previsto no artigo 720.º do Código de Processo Civil insere-se no âmbito do poder-dever do juiz de providenciar pelo andamento regular e célere do processo, obviando a expedientes impertinentes e dilatórios.
Assim, não é logicamente compreensível a alegação de inconstitucionalidade do entendimento que preconiza a aplicabilidade do artigo 720.º do Código de Processo Civil, no âmbito do processo penal, por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Aliás, os recorrentes – que expõem vários argumentos em defesa da tese oposta, em termos infraconstitucionais – não aduzem uma argumentação substantivamente densificada, no âmbito constitucional, que justifique materialmente o juízo de inconstitucionalidade, reportado aos concretos parâmetros da Lei Fundamental, cuja violação é apenas simplisticamente alegada.
Não se percebe em que medida a consagração de um mecanismo, tendente a obviar a comportamentos injustificadamente dilatórios das partes, belisca o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, sendo manifesto que o artigo 20.º da Constituição, que expressamente consagra o direito a uma decisão “em prazo razoável”, não abarca, – poderá mesmo dizer-se que, logicamente, exclui - no seu âmbito de proteção, um direito a um uso abusivo do processo, com fins dilatórios, que corresponderia à negação do próprio conceito de processo justo e equitativo.
Da mesma forma, não se compreende que a interpretação normativa posta em crise acarrete qualquer violação dos direitos de defesa do arguido, que não compreendem, logicamente, o reconhecimento de um direito a um uso abusivo do processo ou a expedientes meramente dilatórios.»
O sentido fundamentador do referido aresto é de reiterar, na sua integralidade. Impõe-se, porém, abordar o problema da inconstitucionalidade do artigo 720º do CPC, na perspetiva da admissibilidade da não audição prévia da parte que provoca o incidente processual dilatório que constitui causa da extração de traslado. Evidentemente, nenhum direito fundamental é absoluto ou irrestringível, sendo constitucionalmente autorizado que o legislador ordinário comprima (ou restrinja) o âmbito máximo de proteção de cada direito, liberdade e garantia (cfr. artigo 18º, n.º 2, da CRP) – ou de direito análogo, como é o caso do direito ao processo equitativo (cfr. artigos 17º e 20º, n.º 4, da CRP) –, desde que ressalvado o respetivo “núcleo essencial” (cfr. artigo 18º, n.º 3, da CRP).
Ora, como é por demais evidente, a restrição do exercício ao contraditório visa acautelar outros valores fundamentais em presença, que a Lei Fundamental também consagra, tais como a celeridade na administração da Justiça e o respeito pela formação de caso julgado de modo a acautelar os direitos e interesses prosseguidos por sentenças penais condenatórias. Assim sendo, o emprego de sucessivos expedientes processuais pós-decisórios, designadamente, de pedidos de aclaração deduzidos contra decisões jurisdicionais objetivamente esclarecedoras e inequívocas não pode deixar de ser equacionado como um fator de demora processual que o legislador (e o intérprete) deve(m) procurar combater para defesa de outros direitos fundamentais. Assim sendo, a admitir-se que uma decisão de extração de traslado e baixa imediata dos autos ao tribunal recorrido tivesse de ser, necessariamente, precedida de audição da parte que provocou o incidente processual dilatório, estar-se-ia a acrescentar uma ainda maior demora processual a uma tramitação já de si prolongada no tempo. Tal significaria, em si mesmo, o esvaziamento da utilidade processual do mecanismo de extração de traslado.
Como é óbvio, ao saber da vigência da norma consagrada no artigo 720º do CPC, qualquer recorrente pode antecipar que a insistência consecutiva em requerimentos pós-decisórios – sejam eles de aclaração, de reforma ou de arguição de nulidade várias – é suscetível de preencher a previsão ínsita naquele norma e, portanto, de gerar a estatuição nela fixada. Tal, aliás, é reforçado pela prévia existência de uma orientação jurisprudencial constante nos tribunais portugueses – no sentido da aplicação do referido artigo 720º do CPC, em casos de reiteração de requerimentos pós-decisórios –, razão pela qual os recorrentes conhecem (ou podem conhecer) a orientação consolidada dos tribunais portugueses nesse sentido. Pode mesmo afirmar-se que, caso entendam que a sucessão de requerimentos pós-decisórios apresentados não configura causa para extração de traslado, podem sempre antecipar, “ad cautelam”, o recurso – pelo tribunal competente – a esse mecanismo, sustentando, a título prévio, a admissibilidade dos mesmos.
Para além disso, nem sequer se pode dizer que a medida seja “excessiva” (ou desproporcionada em sentido estrito), visto que a imediata baixa dos autos ao tribunal recorrida nem sequer obsta à posterior apreciação do requerimento que deu causa ao incidente processual dilatório, sendo apenas a sua apreciação remetida para momento posterior à liquidação das custas legalmente devidas.
Por todas estas razões, não se julga inconstitucional uma interpretação extraída do artigo 720º do CPC, aplicável “ex vi” artigo 4º do CPP, que pressuponha a não audição prévia da parte que provoca o incidente processual dilatório que dá causa à decisão de extração de traslado.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 720º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” artigo 4º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que “[n]o âmbito de um processo-crime, pode o tribunal, sem que antes seja dada a possibilidade do arguido se pronunciar, determinar a extração de traslado e o envio dos autos para a comarca, para a execução de uma pena efetiva de prisão”;
E, em consequência:
b) Negar provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 3 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 29 de maio de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – Pedro Machete - João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.