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Procº nº 107/01 ACÓRDÃO Nº 359/01
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – M... foi autuado pela G.N.R., no dia 2 de Julho de
1999, sob a acusação de ter praticado a infracção prevista e punida no artigo
27º, nº1, do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro.
Na sequência deste auto de notícia, veio o arguido a ser condenado, em processo de contra-ordenação, pela Direcção Geral dos Transportes Terrestres na coima de 600.000$00, por o motorista do veículo pesado de matrícula RQ-57-31 se ter recusado a conduzir o veículo para pesagem nas balanças da Brigada da G.N.R..
M... notificado desta decisão, veio impugná-la judicialmente recorrendo para o Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, negando nesta impugnação a acusação e que a responsabilidade da infracção – a existir – tem de ser imputada ao motorista, por o mesmo ter instruções patronais para respeitar sempre as ordens das autoridades policiais.
2. – Realizado o julgamento, depois de se consignarem na acto os factos que foram considerados provados e os factos não provados, o Senhor Juiz passou a analisar uma questão prévia, que considerou impeditiva do conhecimento do mérito da questão, questão esta relativa à inconstitucionalidade do artigo 29º do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro, com referência ao artigo 27º, nº4, do mesmo diploma.
Estruturou, da seguinte forma, a decisão judicial em apreço:
'Dispõe o art. 27º, nº4 que Nenhum condutor se pode escusar a levar o veículo à pesagem nas balanças ao serviço das entidades fiscalizadoras (..., sendo punível tal conduta com a coima prevista no nº 2 deste artigo, sem prejuízo da responsabilidade criminal a que houver lugar. O art. 29º, relativo à imputabilidade da pessoa singular ou colectiva que efectua o transporte. Ora, a previsão legal do art. 27º, nº4 pressupõe desde logo um comando que, emanado pela autoridade competente, seja dirigido ao condutor do veículo ordenando-lhe expressamente que conduza o veículo à balança (a uma distância não superior à 5 Km) para efeitos de fiscalização. Em causa está um dever (de obediência) cuja violação pressupõe então a existência cumulativa dos seguintes elementos: competência e identificação dos agentes, uma ordem dada por estes, legitimidade dessa ordem, específico conteúdo dessa ordem, e que a mesma seja transmitida ao agente e por este recebida. Parece-nos então que a ordem, com aquele conteúdo específico – condução do veículo às balanças -, tem de ser directa, isto é, comunicada ao destinatário ou àquele que está em condições de a receber. Por outro lado, sendo a ordem equívoca ou duvidosa não se verifica a infracção ou contra-ordenação em análise; pode então verificar-se apenas a contra-ordenação prevista pelo art. 4º do Cód. da Estrada perante a conduta do automobilista que não pára a sua viatura quando para tal lhe é feito sinal pelo agente em funções de fiscalização de trânsito ou, parando, abandona o veículo impedindo a respectiva identificação e fiscalização. Ou seja, o não acatamento das ordens legítimas emanadas das autoridades e agentes competentes para fiscalizar o trânsito faz incorrer o visado em responsabilidade contra-ordenacional por referência a uma ou a outra norma em concreto (princípio da legalidade), ou até responsabilidade criminal, consoante as especificidades ou circunstâncias concretas do caso, em estreita correlação com o conteúdo da ordem ou comunicação transmitida pela autoridade fiscalizadora ao agente.
De uma forma ou de outra, nem o Dec. Lei nº 38/99 prevê nem nós vislumbramos em que fundamentos, factos ou circunstâncias (ou sequer ratio legis) assenta a responsabilização de quem não recebeu nem estava em condições de receber a ordem emanada pela autoridade, como é o caso do arguido, sendo que, em nosso entender, o simples facto de a condução ser efectuada por conta deste
(único pressuposto ou condição prevista pelo art. 29º em apreço) não configura uma qualquer ligação objectiva ou subjectiva, lógica ou necessária, ou uma qualquer relação idónea de causa e efeito com a recusa a pesagem por parte do condutor por forma a permitir imputar este acto de recusa – deliberado ou negligente (?) – ao titular do transporte ou em nome de quem é feito, ou seja, forma a respeitar os pressupostos da impugnação subjectiva do facto a título de dolo ou negligência enquanto realização do tipo de ilícito (sendo que, em termos simplistas e resumidos, o dolo pressupõe conhecimento e vontade de realização do facto, e a negligência pressupõe uma qualquer acção ou omissão do agente violadora de um dever objectivo de cuidado). Assim prevista a responsabilização de quem não recebeu a ordem da autoridade, mais não consagra do que uma responsabilização objectiva daquele (no pressuposto do ubi commoda, ubi incommoda), pois que prescinde da imputação do facto a título de dolo ou negligência, em perfeita oposição com o disposto no art. 8º do regime legal das contra-ordenações, e sem que para tanto tenha sido concedida autorização legislativa.
Ora, nos termos do art. 165º, nº1, al. d) da Constituição da república Portuguesa, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre regime geral (...) dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Concluindo, porque nos termos do art. 8º do Dec. Lei nº 433/82 só é punível o facto praticado com dolo ou negligência e ao Governo não foi concedida autorização para legislar em sentido diverso nesta matéria, decido desaplicar o disposto no art. 29º com referência ao art. 27º, nº4, ambos do Dec. Lei nº 38/99 de 06.02, na medida em que prevê uma forma de responsabilização objectiva contrária ao disposto no citado art. 8º do Dec. Lei nº 433/82, e que assim e nos termos da citada norma da lei fundamental, conjugada com respectivo art. 198º, nº1, al. b) julgo inconstitucional.
Consequentemente, determino o arquivamento dos autos.'
É desta decisão que o representante do Ministério Público junto do Tribunal de Albergaria-a-Velha interpõe o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea a) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 29º, com referência ao artigo 27º, nº4, ambos do Decreto-Lei nº
38/99, de 6 de Fevereiro.
Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o Ministério Publico formulou a seguinte conclusão: 'Conclui-se pelo exposto que o artigo 29º do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro, com referência ao artigo
27º, nº4 do mesmo diploma, não é inconstitucional, designadamente por violação do artigo 165º, nº1, alínea d), da Constituição'.
O recorrido não alegou, limitando-se a louvar-se na decisão recorrida.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS
3. – No caso em apreço, o arguido vem acusado de uma infracção praticada por um condutor de veículo pesado, ao seu serviço, que, por se ter escusado, segundo a acusação, a levar o veículo que conduzia à balança da G.N.R., 'pondo-se em fuga depois de trancar as portas do veículo', impossibilitou o controlo do peso da carga que transportava.
Importa acentuar que, nos presentes autos, tal como decorre da específica referência no nº4 do artigo 27º à coima do nº2 do mesmo preceito, apenas está em causa a punição da entidade transportadora por excesso de carga, na sequência da escusa do condutor de lavar o veículo à balança, contraordenação essa da responsabilidade do transportador. A consideração de um eventual crime de desobediência - esse apenas da responsabilidade do condutor - excede o âmbito com que foi aplicada a norma recusada.
Na decisão recorrida, houve recusa de aplicação das normas do artigo 29º, com referência ao artigo 27º, nº4, ambas do Decreto-Lei nº
38/99, com fundamento na sua inconstitucionalidade, uma vez que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o regime geral das contra-ordenações, não tendo, no caso, sido concedida ao Governo qualquer autorização legislativa, veio ele a prever nas normas em questão uma forma de responsabilização objectiva que é contrária ao preceituado no artigo 8º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, o que torna tais normas violadoras do disposto no artigo 165º, nº1, alínea d), da Constituição.
O Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro estabelece um novo regime jurídico aplicável aos transportes rodoviários de mercadorias, por conta de outrem e por conta própria, nacionais e internacionais. O artigo 27º do diploma inserido no capítulo IV, sob a epígrafe Fiscalização e Regime sancionatório, trata nos três primeiros números do sancionamento do excesso de carga. O diploma procede à transposição da Directiva nº 96/26/CE, do Conselho, de 29 de Abril de 1996, com as alterações introduzidas pela Directiva nº
98/76/CE, do Conselho, de 1 de Outubro de 1998, na parte referente ao acesso à profissão de transportador rodoviário de mercadorias.
O nº4 do artigo 27º tem o seguinte teor:
'4 – Nenhum condutor se pode escusar a levar o veículo à pesagem nas balanças ao serviço da entidade fiscalizadoras, que se encontrem num raio de 5 Km do local onde se verifique a intervenção das mesmas, sendo punível tal conduta com a coima prevista no nº2 deste artigo, sem prejuízo da responsabilidade criminal a que houver lugar'.
Por outro lado, o artigo 29º do mesmo diploma, sob a epígrafe Imputabilidade das infracções, estabelece:
'Sem prejuízo do disposto no artigo 21º, no nº2 do artigo 26º e no nº3 do artigo
27º, as infracções ao disposto no presente diploma são da responsabilidade da pessoa singular ou colectiva que efectua o transporte'
De acordo com o transcrito nº4 do artigo 27º, a recusa em levar o veículo à balança para pesagem acarreta uma coima de 250.000$00 a
750.000$00, equivalente à coima correspondente ao excesso de carga máximo (nº2).
Foram estas normas que a decisão recorrida recusou aplicar invocando que no regime geral das contra-ordenações só é punível o facto praticado com dolo ou negligência e ao Governo não foi concedida autorização legislativa para legislar em sentido diverso nesta matéria e as normas em causa prevêem uma forma de responsabilidade objectiva contrária ao referido artigo 8º do Decreto-Lei nº 433/82, assentando a recusa na violação do artigo 165º, nº1, alínea d), da Constituição.
Vejamos.
4. – A questão que vem suscitada nos presentes autos situa-se no âmbito do direito de mera ordenação social, havendo necessidade de averiguar se a matéria sobre que incidem as normas questionadas é matéria que pertença ao domínio do regime geral das contra-ordenações – caso em que pertence também à reserva legislativa da Assembleia da República – ou, ao invés não se inclui naquele regime geral e, nesse caso, o Governo pode livremente legislar sobre tal questão, sem necessidade de qualquer autorização legislativa parlamentar.
Com efeito, o artigo 168º, nº1, alínea d), da Constituição (hoje, artigo 165º, nº1, alínea d)) estabelece que 'é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (...) regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo'.
Assim, só com observância desse regime geral, e dos limites aí definidos, pode o Governo modificar, criar ou eliminar contra-ordenações e estabelecer as coimas a elas aplicáveis.
Na verdade, este Tribunal tem-se debruçado detalhadamente sobre a questão das competências respectivas do Parlamento e do executivo em matéria do ilícito de mera ordenação social.
Desde o Acórdão nº 56/84 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º V., pág. 153 e ss), entende o Tribunal que o Governo tem competência (concorrente com a da Assembleia da República) para definir, alterar e eliminar contra-ordenações, e bem assim, para modificar a sua punição; porém, considera o Tribunal que é matéria reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social, isto é, sobre a definição do ilícito contra-ordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites e das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação das coimas, em concreto.
No caso em apreço, segundo a decisão recorrida, a recusa de aplicação dos artigos 29º, com referência ao artigo 27º, nº4, ambos do Decreto-Lei nº 38/99, assentou em que tais normas prevêem 'a responsabilização de quem não recebeu a ordem mas apenas efectua o transporte por intermédio do condutor do veículo (...)', o que equivale à consagração de uma responsabilidade objectiva daquele [transportador] (...), pois que prescinde da imputação do facto a título de dolo ou negligência, em perfeita oposição com o disposto no artigo 8º do regime geral das contra-ordenações, e sem que para tanto tenha sido concedida autorização legislativa.'
Ora, as normas que vêm questionadas não consentem a interpretação feita nos autos, de tal forma que se possa afirmar que o legislador do Decreto-Lei nº38/99 inovou em sede de responsabilidade objectiva contra-ordenacional.
Com efeito, o nº4 do artigo 27º ao prever as coimas por excesso de carga não podia deixar de considerar um modo de verificar o peso exacto das mercadorias transportadas. E a única maneira de o fazer era proceder a esse controlo nas balanças da GNR. Não sendo facilmente exequível o reboque de viaturas pesadas de carga, a solução mais natural e conforme a um correcto procedimento é a determinação feita ao condutor para se apresentar numa balança que esteja a menos de 5Km do local do controlo, para se efectuar a pesagem, o que implica necessariamente uma ordem directa ao condutor. Se a pesagem não se efectuar por esse motivo, terá de haver condenação por excesso de carga.
De acordo com o artigo 29º tal infracção é da responsabilidade da pessoa singular ou colectiva que efectua o transporte. Esta imputação da infracção em causa não tem origem em qualquer responsabilidade objectiva. De facto, o ilícito de mera ordenação social acolhe, por regra, o princípio da culpa, ainda que não lhe atribua a mesma censura ética (há apenas imputação do facto à responsabilidade social do agente); daí, que o artigo 8º do regime geral das contra-ordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro) estabeleça que 'só é punível o facto praticado com dolo, ou nos casos especialmente previstos na lei, com negligência'.
Todavia, em sede de ilícito de mera ordenação social, assume uma relevância particular a questão da responsabilidade por actuação em nome de outrem, desde logo porque se afasta do carácter eminentemente pessoal da responsabilidade criminal. As razões que estão na base deste tipo de responsabilidade são manifestas: prendem-se com a inadequação do direito penal clássico para fazer face às múltiplas exigências das sociedades modernas, derivadas da burocratização das sociedades e do facto de as grandes organizações públicas ou privadas serem actualmente os verdadeiros protagonistas da vida económica.
A racionalidade própria das grandes organizações exige processos dinâmicos e complexos de actuação que impõem uma cada vez maior amplitude de resposta por parte da Administração.
Foi para obviar à impunidade resultante destas cada vez mais crescentes e complexas tarefas, cujo desenvolvimento desemboca numa clara impunidade face à difusa impessoalidade ou impossibilidade na descoberta do autor da infracção, que a ideia da responsabilidade por actuação em nome de outrem começou por fazer responder os gerentes e administradores pelas infracções 'imputáveis' à empresa. Quando o agente factual da infracção é um trabalhador por conta de outrem (ligado à empresa ou ao empregador por um contrato de trabalho) então a responsabilidade por actuação em nome de outrem pode assentar na culpa in eligendo ou in vigilando.
No nosso direito de mera ordenação social as coimas tanto podem aplicar-se às pessoas singulares como às pessoas colectivas, sendo as pessoas colectivas ou equiparadas responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções – artigo 7º do Decreto-Lei nº 433/82.
No caso do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro, a escusa do condutor em levar o veículo às balanças para pesagem é imputada à entidade que efectua o transporte, seja pessoa singular ou colectiva (artigo
27º, nº4 e 29º).
Ora, não se vê que estas normas se possam incluir na definição da natureza do ilícito de ordenação social, na definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e muito menos na fixação dos respectivos limites ou na tramitação processual das contra-ordenações.
Assim, é manifesto que a edição das normas questionadas apenas pelo Governo sem autorização legislativa do Parlamento não invade o
âmbito da reserva legislativa da Assembleia da República, pelo que a norma constante do artigo 29º com referência ao artigo 27º, nº4, ambas do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro não são organicamente inconstitucionais.
III – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar não inconstitucional a norma do artigo 29º com referência ao artigo 27º, nº4, do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro, e, em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida, em conformidade, com o juízo de constitucionalidade que se acaba de fazer.
Lisboa, 12 de Julho de 2001 Vitor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa