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Processo n.º 543/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
(Conselheira Maria João Antunes)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes A. e B. e são recorridos o Ministério Público. C., D. e E., foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 9 de maio de 2012.
2. Em 5 de dezembro de 2012, pelo Acórdão n.º 590/2012, proferido pela 1.ª Secção, decidiu-se «julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».
3. Notificado deste acórdão, o Ministério Público interpôs dele recurso obrigatório para o Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1 da LTC, nos seguintes termos:
«1. O representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional, notificado do douto Acórdão n.º 590/2012, proferido no processo em epígrafe, vem interpor recurso obrigatório para o Plenário deste Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 79.º - D. n.º 1 da LTC.
2. O Acórdão. Ora recorrido, julgou inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29.º, n.º 1, e 32-º, n.º 1, da Constituição).
3. Anteriormente, pelos Acórdãos n.ºs 649/2009, 643/2011 e Decisão Sumária n.º 366/2012 (proferida no Proc. n.º 552/12, da 2.ª Secção), já o Tribunal Constitucional se pronunciara sobre a interpretação normativa em causa, não a tendo julgado inconstitucional.
4. Assim, o juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão recorrido é contraditório com o juízo de não inconstitucionalidade formulado nos Acórdãos e na Decisão Sumária atrás identificados, cabendo ao Plenário dirimir tal conflito jurisprudencial».
4. Admitido o recurso, o Ministério Público alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1. Mesmo que se entenda que o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, nºs 1 e 3, da Constituição, tem, em relação às normas processuais que regulam o regime dos recursos em processo penal, a mesma força impositiva, o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, não viola o princípio da legalidade em matéria criminal, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Deve, consequentemente, conceder-se provimento ao recurso».
5. Os agora recorridos contra-alegaram e pronunciaram-se no sentido de que o recurso do Ministério Público não merece provimento, concluindo o seguinte:
«A) O entendimento normativo cuja inconstitucionalidade foi julgada encontra-se manifestamente fora da moldura semântica do texto, que em lado algum distingue as penas parcelares da pena única aplicada.
B) Assim sendo, e seguindo o ensinamento de Figueiredo Dias citado no acórdão recorrido, deve concluir-se que o entendimento normativo em pauta – em que foi utilizado um argumento de semelhança, isto é, por analogia – é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade, tal como foi julgado pelo acórdão recorrido, em cuja fundamentação os Recorridos se louvam.
C) Acresce que a inconstitucionalidade de tal entendimento normativo resulta ainda de uma restrição irrazoável e desproporcionada do direito ao recurso consagrado no art. 32.º, n.º 1 da CRP, o que justamente também foi arguido pelos ora Recorridos no recurso interposto.
D) A questão está em saber se, consagrado um terceiro grau de jurisdição, as limitações ao seu exercício respeitam ou não os princípios constitucionais que informam os direitos fundamentais e o processo penal.
E) Neste âmbito, que sentido é que faz – entre os condenados com pena superior a 8 anos de prisão – distinguir a situação daqueles que o foram por causa de um único crime daqueles outros que o foram por força do cúmulo derivado da prática de uma pluralidade de crimes ?
E a resposta só pode ser que tal distinção não faz sentido. Se o critério é a gravidade da pena (isto é, o castigo infligido), parece ser indiferente se isso é o resultado de uma pena única ou do cúmulo de penas parcelares.
F) Quando a pena superior a 8 anos de prisão é o resultado do cúmulo de penas parcelares de montante i9nferior, não é razoável que o arguido só tenha acesso ao Supremo Tribunal para discutir o cúmulo e já não as matérias decisórias referentes aos crimes e às penas parcelares, que são, afinal, e por regra, na substância da condenação, o mais relevante, condicionando os termos da pena única aplicada.
G) Ora, quando o Supremo Tribunal limita o direito ao recurso com base no critério irrazoável e desproporcionado que elegeu – de resto, à margem do que consta do texto legal -, está a ofender os valores que a Constituição assegura.
H) Pelo exposto, o entendimento dado pelo acórdão recorrido ao art. 400.º, n.º 1-f) do C.P.P., no sentido de que, havendo uma pena única superior a 8 anos, não há recurso para o STJ relativamente à matéria decisória dos crimes e penas parcelares inferiores a 3 anos, é inconstitucional, não só pela violação do princípio da legalidade tal como consta do acórdão recorrido, como ainda pela ofensa do direito ao recurso consagrado no art. 32º nº 1 da CRP, que é restringindo em termos desproporcionados, irrazoáveis e iníquos».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Antes de mais, importa verificar da existência dos requisitos legais que consentem a admissibilidade do recurso interposto e seus limites, para, num momento posterior, admitida a sua existência, e nessa medida, dirimir a divergência jurisprudencial que ocorra e cuja resolução se imponha resolver, porquanto, como dispõe o artigo 79.º - D, n.º 1, da LTC, «[s]e o Tribunal Constitucional vier [a] julgar a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal, …». (sublinhado nosso)
Ora, não subsistem dúvidas quanto a que a 1.ª Secção e a 3.ª Secção, respetivamente, nos Acórdãos n.ºs 590/2012 e 649/2009, julgaram em sentido divergente a questão de saber se é constitucionalmente conforme ‘interpretar o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, no sentido de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal’.
Porém, já o mesmo se não pode afirmar quanto às restantes decisões mencionadas pelo Ministério Público – Acórdão n.º 643/2011 e Decisão Sumária n.º 366/2012 -, porquanto nestas foram julgadas dimensões interpretativas (normativas) do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), diversas da julgada no Acórdão n.º 590/12. Desde logo, no Acórdão n.º 643/2011, não foi julgada ‘inconstitucional a interpretação normativa extraída do “artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP no sentido de que somente é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que confirme decisão de 1.ª instância, quando condene em pena por crime parcelar que seja superior a 8 anos, e não quando a pena concretamente aplicada seja, em concurso, superior a 8 anos, sendo as penas parcelares inferiores”; por sua vez, no que concerne à Decisão Sumária n.º 366/2012, não foi julgada ‘inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, em caso de concurso de infrações, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão da Relação que confirme a decisão da 1.ª instância e aplique pena única de prisão superior a 8 anos, quando as penas parcelares aplicadas aos crimes singulares não sejam superiores a esse limite’.
Do exposto resulta, portanto, que a divergência justificativa (requisito) da interposição do presente recurso ao abrigo do artigo 79.º - D, n.º 1 da LTC ocorre simplesmente no que concerne aos Acórdãos n.ºs 590/2012 (1.ª Secção) e 649/2009 (3.ª Secção), divergência essa que constituirá, por isso, o objeto daquele, com exclusão das restantes.
7. Como resulta do acórdão recorrido, a norma aí objeto de recurso é « … o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».
Ora, a mencionada disposição legal tem a seguinte redação:
Artigo 400.º
1. Não é admissível recurso :
(…)
f) De acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
(…).
No acórdão recorrido, entendeu-se, pelas razões que se enunciarão adiante, que a referida norma, interpretada da forma supra mencionada, deveria ter-se como não conforme à Constituição, convocando, para tanto, o disposto nos seus artigos 29.º, n.ºs 1 e 3 e, bem assim, 32.º, n.º 1.
Nesse acórdão, com o intuito de deixar uma perspetiva do sistema de recursos em processo penal, quer no plano legal quer jurisprudencial e doutrinário, deixa-se afirmado:
«…
2. O artigo 399.º do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo 400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo 399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não obstante ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, aos casos de maior merecimento penal (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República, Ministério da Justiça, 1998, p. 27, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na redação de 1998); num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da pena aplicada (pena concreta), para restringir, ainda mais, “o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na atual redação).
A partir de 1998, a alínea f) passou a dispor que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infrações; a partir de 2007, a mesma alínea prevê a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. A gravidade da pena aplicada ao arguido (pena concreta) passou a ser o critério de acesso, em segundo grau de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça, relativamente a acórdãos condenatórios das relações que, em recurso, confirmem decisão de 1.ª instância.
No plano do direito infraconstitucional, a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação vigente, suscitou a questão de saber se, em caso de concurso de crimes, é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, correspondendo, porém, a cada um dos crimes em concurso pena de prisão inferior a oito anos (sobre isto, Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2011, comentário ao artigo 400.º, ponto 11).
O Supremo Tribunal de Justiça, muito embora aceite a recorribilidade do acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, ainda que a cada um dos crimes em concurso corresponda pena de prisão inferior a oito anos, tem vindo a entender que, neste caso, se restringe “o objeto do recurso à sindicância da pena única” (Acórdão de 11-1-2012, processo 131/09, louvando-se em jurisprudência anterior, disponível em www.dgsi.pt. E, no mesmo sentido, Paulo Pinto Albuquerque, ob. cit., comentário ao artigo 400.º, ponto 11). Não se trata, porém, de entendimento unânime. Este Tribunal já apreciou a interpretação normativa extraída do “artº 400/1 al. f) do CPP no sentido de que somente é recorrível para o STJ o acórdão da relação que confirme decisão de 1ª instância, quando condene em pena por crime parcelar que seja superior a 8 anos, e não quando a pena concretamente aplicada seja, em concreto, superior a 8 anos, sendo as penas parcelares inferiores”, bem como “a norma do artigo 400.º, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, em caso de concurso de infrações, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão da Relação que confirme a decisão da 1ª instância e aplique pena única de prisão superior a 8 anos, quando as penas parcelares aplicadas aos crimes singulares não sejam superiores a esse limite” (cf., Acórdão n.º 643/2011 e Decisão Sumária n.º 366/2012, respetivamente disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, decisões que concluíram no sentido da não inconstitucionalidade).
A norma que tem sido aplicada, como razão de decidir, no sentido de que é recorrível o acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, ainda que a cada um dos crimes em concurso corresponda pena de prisão inferior a oito anos, restringindo-se, neste caso, “o objeto do recurso à sindicância da pena única”, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional: no Acórdão n.º 649/2009 não foi julgado inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretado no sentido de que “no caso de concurso de infrações tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P., na versão da Lei 48/2007 de 29 de agosto, sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aqueles limites”. O julgamento de não inconstitucionalidade fundou-se no entendimento de que não é “constitucionalmente desconforme a inadmissibilidade de um terceiro grau de jurisdição quanto à aplicação de pena parcelar não superior a 8 anos de prisão”.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
…».
8. Na revisão da Constituição, em 1997, consagrou-se no seu artigo 32.º, n.º 1, que 'O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso', devendo extrair-se da norma aí plasmada que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente acauteladas, impondo, consequentemente, que, em direito penal, o direito de defesa apenas se satisfaça com a existência de um 'duplo grau de jurisdição', como era já jurisprudência deste Tribunal (cfr., neste sentido, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, página 516). Por isso que se entenda que a inadmissibilidade legal de um triplo grau de jurisdição se não afigure desconforme com o direito ao recurso consagrado naquela norma constitucional, desde que dela se não possa concluir por uma excessiva e intolerável limitação do direito ao recurso suscetível de colocar em crise manifesta as 'garantias de defesa’ do arguido (cfr. os acórdãos n.ºs 189/01, 264/04, 64/06 e 640/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, como se explicita no acórdão recorrido (na parte supra citada), o legislador ordinário elegeu, no sistema de recursos vigente em processo penal, a gravidade da pena aplicada como critério primordial para que seja admissível 'um triplo grau de jurisdição' (duplo grau de recurso), reservando, desta forma, o acesso ao STJ para os casos de, no seu entendimento, maior importância e gravidade. No caso em apreço - artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP - o legislador, no âmbito dos seus poderes de conformação, tendo subjacente a norma resultante do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, entendeu que, na interpretação impugnada - “havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão” -, não é admissível recurso para o STJ, afigurando-se-nos que não resulta à evidência que tal limitação possa ser considerada excessiva ou intolerável e, consequentemente, injustificável, havendo, por isso, que ser considerada conforme à Constituição.
Afastada a inconstitucionalidade da norma à luz do artigo 32.º da Constituição, ter-se-á que a validade da interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso há de depender, bem entendido, da sua não desconformidade com o princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP. Admitindo-se – talqualmente o faz o acórdão recorrido – a vigência daquele princípio também no direito processual penal, é mister concluir que a questão de constitucionalidade a apreciar passa por apurar se o segmento normativo extraído da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP consubstancia uma situação de analogia in malam partem, logo, constitucionalmente vedada.
O acórdão recorrido considerou que do processo hermenêutico empreendido pelo tribunal a quo resultou uma norma que não é reconduzível “à moldura semântica do texto”, isto é, um sentido que, porque não tendo na letra da lei “um mínimo de correspondência verbal”, extravasava o domínio da mera interpretação jurídica, reconduzindo-se ao domínio da analogia e – in casu – da analogia (constitucionalmente) proibida nos domínios penal e processual penal.
No entanto, apesar das limitações impostas pelo princípio constitucional da legalidade criminal, nem o direito penal nem o direito processual penal se encontram subtraídos aos cânones da hermenêutica jurídica, à luz dos quais há que proceder ao apuramento do sentido vertido nas suas normas. Assim sendo, cumpre esclarecer que a transição da interpretação para a analogia, ao abrigo dos cânones tradicionais, é determinada pela letra da lei (elemento gramatical ou literal). É, com efeito, a partir desta que se determinam os significados do preceito a que ainda é possível aceder através da interpretação, e quais aqueles que resvalam para a analogia. Obtidos os significados ainda compatíveis com o teor verbal da norma, a conclusão do processo hermenêutico faz-se com o auxílio dos outros elementos da interpretação – os elementos histórico, sistemático e racional (ou teleológico).
Sucede que o sentido vertido na interpretação normativa extraída da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP – nos termos da qual “havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão” – ainda se afigura cabível na letra daquele preceito. Não é de excluir, na verdade, que a referência à “pena de prisão” que nele se encontra possa ser entendida tanto como “pena devida pela prática de um único crime”, quanto como “pena parcelar em caso de concurso de crimes”. Na realidade, este sentido revela-se – ainda assim – tolerável à luz do teor verbal do preceito, resultando a solução hermenêutica encontrada da conjugação dessa tolerância ou cabimento com outros elementos da interpretação, designadamente com o elemento sistemático. Este elemento baseia-se “no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (João Batista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, 13.ª reimpressão, Almedina, 2002, p. 183). Tal postulado sustenta a interpretação normativa contestada, vedando a incoerência ou irracionalidade que resultaria da circunstância de se admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça relativamente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, quando a pena conjunta seja superior a 8 anos de prisão, e não se admitir tal recurso quando esteja em causa pena de prisão não superior a 8 anos devida pela prática de um único crime.
Finalmente, talqualmente sublinhado pelo acórdão fundamento, o facto de este entendimento radicar num processo de “cisão em parcelas das diversas penas que compõem o cúmulo jurídico” - permitindo que, para efeitos de admissibilidade ou não admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, se distinga entre as penas parcelares integrantes da pena conjunta e a operação de determinação da pena conjunta obtida através de cúmulo jurídico, não é suscetível de colocar em crise a sua formulação. Tal cisão, com efeito, tem respaldo no direito penal positivo - . artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal - (cfr., ainda, artigo 403.º, do Código de Processo Penal), circunstância que reforça cabalmente a possibilidade de a recorribilidade que a contrario se infere da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º valer quer para penas superiores a 8 anos devidas pela prática de um único crime, quer para penas conjuntas superiores a 8 anos obtidas através de cúmulo jurídico, mas apenas no que às operações do cúmulo respeite.
Daí que cumpra concluir pela não inconstitucionalidade da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, impondo-se, consequentemente, a revogação do acórdão recorrido.
III. Decisão
9. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão;
e, em consequência,
b) Julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 4 de abril de 2013.- J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Vítor Gomes (com declaração) – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins (remetendo para a declaração do Conselheiro Vítor Gomes) – Pedro Machete (com declaração) – Maria José Rangel de Mesquita (vencida, nos termos da declaração de voto da Conselheira Maria João Antunes) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria João Antunes) – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria João Antunes, para a qual remeto) – Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração de voto que se anexa) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria João Antunes)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Pelo essencial das razões que, mutatis mutandis, fiz constar da declaração que apus ao acórdão n.º 183/2008, entendo que uma das questões que o presente acórdão analisa – violação do princípio da legalidade criminal por determinada interpretação do direito infraconstitucional não se conter nos limites do sentido hermenêuticamente possível - não constitui questão de constitucionalidade normativa que caiba na competência do Tribunal. Nos termos em que a questão é colocada no acórdão recorrido e que o presente acórdão aceita rever, não se pretende censurar uma deficiência estrutural dos enunciados normativos dos preceitos em causa para cumprir as exigências constitucionais do princípio da legalidade (as exigências acrescidas da determinabilidade da lei em matéria penal ou processual penal). Nem sequer é objecto de apreciação uma norma (ou uma determinada interpretação dela pelos tribunais, ainda que implícita) que verse sobre os critérios de interpretação da lei processual penal e a propósito da qual se discuta se habilita os tribunais à aplicação das normas processuais penais de modo que possa contrariar o princípio constitucional da legalidade criminal. Dito de outro modo, no caso, não é sujeita a apreciação de constitucionalidade uma norma que admita a possibilidade de usar certos modos de interpretação ou a analogia em determinado domínio, mas averiguar se o sentido com que a norma foi aplicada não estava contido no preceito legal.
Ultrapassada esta questão, acompanho a decisão.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, desde logo, por entender que a interpretação normativa questionada tem no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal aquele mínimo de correspondência verbal que permite delimitar a interpretação da lei da sua integração: a «pena» referida naquele preceito, na hipótese de ter havido condenação por um concurso de crimes, pode ser entendida como reportando-se apenas à pena conjunta ou a esta última juntamente com as penas parcelares. Nesta perspetiva, o problema da extensão com que o princípio da legalidade criminal vigora no âmbito processual penal nem sequer tem de ser discutido para a resolução do caso, porquanto existe norma legal aplicável.
No que respeita ao direito ao recurso, votei a decisão sem prejuízo de ulterior ponderação. Na verdade, e uma vez que o âmbito de proteção desse direito abrange prima facie a totalidade da decisão recorrida (cfr. o artigo 402.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), é necessário avaliar os interesses que justificam a limitação dos poderes de cognição e decisão do tribunal ad quem à apreciação da pena conjunta, deixando intocadas as penas parcelares. Com efeito, o legislador não está constitucionalmente vinculado a admitir um segundo grau de recurso em matéria penal; mas nos casos em que admita tal segundo grau de recurso, já não é livre de restringir o âmbito do recurso, ao arrepio das regras gerais aplicáveis nesse domínio (cfr. os artigos 402.º e 403.º, ambos do Código de Processo Penal). Acresce que, do ponto de vista do titular do direito ao recurso, o que releva é igualmente a decisão condenatória no seu todo, e não apenas a medida da pena conjunta fixada necessariamente a partir de decisões condenatórias parcelares, entretanto tornadas indiscutíveis; e, do ponto de vista do tribunal de recurso, não deixa de existir uma limitação séria à sua capacidade de apreciação global do caso objeto do recurso, porventura, em contradição com as regras de punição do concurso (v., em especial, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal). Em suma, o critério normativo aplicado no presente caso suscita dúvidas quanto à sua constitucionalidade à luz dos princípios da proibição do arbítrio e (ou) da proporcionalidade (v. respetivamente, os artigos 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, ambos da Constituição).
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida por entender que o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, é inconstitucional por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
Entendi que se coloca, desde logo, a questão de saber se a interpretação normativa que é objeto do recurso se contém, ainda, no sentido possível das palavras da lei ou se, ao invés, coloca o intérprete no domínio da analogia constitucionalmente proibida. Questão que se enquadra no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, por estar em causa a apreciação de uma norma que é, por isso mesmo, suscetível de controlo por parte do Tribunal (assim, Acórdão n.º 183/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
2. O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 conclui-se relativamente a este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade a decidir, que:
«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
(…)
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível - uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político-criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)».
Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade “a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo o momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas”. No sentido preciso de o recurso à analogia em processo penal estar vedado, sempre que venha a traduzir-se “num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»” (Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, ed. policopiada, 1988-9, p. 68 e s.). Segundo o autor, “razões históricas [que remontam à Carta Constitucional de 1826, à Constituição Política de 1911 e à Constituição Política de 1933] e teleológicas dão-se pois as mãos para convencer que, quando o artigo 29.º, n.º 1 da atual CRP refere o princípio da legalidade à exigência de se não ser «sentenciado criminalmente», quer aplicá-lo tanto ao direito penal como ao direito processual penal, não obstante a limitação ao primeiro sugerida pelo restante texto legal”.
E abona neste mesmo sentido o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Poder-se-á mesmo afirmar que “perturbações essenciais do direito de defesa permitem, em última análise, uma frustração do próprio nullum crimen sine lege. Esta exigência da lei incriminadora concretiza-se no Processo Penal pela possibilidade de o agente demonstrar que não praticou o crime que lhe é imputado. Se o não puder fazer devidamente, o nullum crimen sine lege será um artefacto que permitirá atribuir responsabilidade onde em concreto possa não ter existido qualquer crime” (Fernanda Palma, “Linhas estruturais da reforma penal – Problemas de aplicação da lei processual penal no tempo”, O Direito, 2008, I, p. 20 e s.).
O processo penal só assegurará plenamente as garantias de defesa através de lei estrita que conforme a posição processual do arguido e os seus direitos processuais, nomeadamente o direito ao recurso. As garantias de defesa só estarão plenamente asseguradas se, no momento relevante para o exercício do direito ao recurso (o da notificação do acórdão condenatório em primeira instância), o destinatário da norma conhecer as condições do respetivo exercício com a segurança que o garanta contra a imprevisibilidade. Esta exigência impõe-se necessariamente quando o que está em causa é o acesso a um segundo grau de recurso, num ordenamento processual penal onde a irrecorribilidade das decisões constitui uma exceção (artigos 399.º e 400.º do CPP) e que dá ao recorrente a possibilidade de aceder diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, quando pena de prisão aplicada em acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo seja superior a cinco anos (artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP).
3. Vai também no sentido da extensão do princípio da legalidade ao processo penal, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, a jurisprudência constitucional em matéria de aplicação da lei processual penal no tempo. O Tribunal tem entendido que o princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição) não se restringe à aplicação da lei penal substantiva (entre outros, Acórdãos n.ºs 247/2009 e 551/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e indicações doutrinais aí contidas). Como o direito ao recurso é uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido e as questões de constitucionalidade que importava apreciar tinham a ver com a sucessão no tempo de normas sobre a recorribilidade de decisões, um dos parâmetros de aferição da conformidade constitucional das normas em causa foi precisamente o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição. Há que salvaguardar o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, de onde resulta que não deve aplicar-se a nova lei processual penal num processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
4. Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2012, “não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, pelo que só é “admissível recurso de decisão confirmatória da relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo”. E assim sendo, “certo é ser irrecorrível a decisão impugnada no que respeita às penas parcelares aplicadas” (itálico aditado), uma vez que são não superiores a 8 anos de prisão.
Dispondo a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP que “não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos” (itálico aditado), é de concluir que a norma aplicada pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, ultrapassa o sentido possível das palavras da lei. Na verdade, a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, na parte que se refira a penas de prisão parcelares não superiores a 8 anos, ultrapassa a moldura semântica daquele texto.
A norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, ao prever que não seja admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, constitui uma exceção ao princípio geral da recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei (artigo 399.º do mesmo Código). Deve, por isso, o intérprete ater-se ao texto “acórdãos condenatórios”, o qual aponta inequivocamente para a decisão no seu todo.
Nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP o critério da irrecorribilidade assenta na natureza dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, atento o dispositivo da decisão (cf. artigo 374.º, n.º 3, alínea b) do CPP). Isto é: acórdãos absolutórios ou condenatórios (acórdãos que apliquem pena), no seu todo. São estes, e não uma parte deles, que são irrecorríveis, ressalvado o que se dispõe nos n.ºs 2 e 3 do artigo 400.º, prevendo-se aqui, de forma expressa, a inadmissibilidade ou a admissibilidade do recurso quanto a uma parte da decisão (parte relativa à indemnização civil). Coisa diferente é – afirmada a recorribilidade do acórdão – limitar depois o recurso a uma parte da decisão, nomeadamente em caso de concurso de crimes, relativamente a cada um dos crimes, uma vez que estes não perdem autonomia (artigos 77.º e 78.º do Código Penal e 403.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do CPP).
O entendimento de que o texto “acórdão condenatório” aponta para a decisão no seu todo harmoniza-se, de resto, com o critério de acesso ao segundo grau de recurso seguido pelo legislador em 2007 – o critério da gravidade da condenação penal em 2.ª instância. No que se refere aos casos denominados de “dupla conforme condenatória”, são recorríveis os acórdãos que apliquem pena de prisão superior a 8 anos (corresponda ela à condenação por um único crime ou à condenação por vários crimes em concurso).
5. Como não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos pela prática de um único crime, o tribunal recorrido conclui – através de um argumento de semelhança – que, então, não é também recorrível a parte do acórdão condenatório (proferido, em recurso, pelas relações que confirme decisão de 1.ª instância e aplique pena única de prisão superior a oito anos) que se refira às penas parcelares inferiores a oito anos de prisão.
Desta forma é criada uma outra exceção à regra da recorribilidade das decisões, que coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, nomeadamente por razões de coerência ou de racionalidade. A liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas. Um processo criminal que assegure todas as garantias de defesa, garante a proteção que é devida ao destinatário das normas sobre recorribilidade de decisões condenatórias, que deverá poder prever as condições do exercício do direito ao recurso, e, concomitantemente, que é o legislador quem decide sobre os graus de jurisdição.
Maria João Antunes