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Proc. nº 189/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. O Estado, representado pelo Ministério Público, interpôs no Tribunal Judicial de Setúbal, contra C... e A ..., acção com processo ordinário pedindo que se declarasse que certa construção que estes implantaram, sem licença, em prédio situado no Parque Nacional da Arrábida não poderia aí permanecer e que, em consequência, fosse ordenada a sua demolição.
2. O Tribunal Judicial de Setúbal, por acórdão de 15 de Março de 1991, julgou a acção improcedente.
3. Inconformado, o Ministério Público, em representação do Estado português, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 10 de Outubro de 1995, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, condenando os réus a demolirem, no prazo de 30 dias, a expensas suas, a dita construção.
4. Desta decisão recorreu a Ré A ... para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 6 de Fevereiro de 1997, decidiu negar provimento ao recurso. Escudou-se, para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação:
'II – Vejamos antes de mais, se estará em vigor e é eficaz a Portaria 26-F/80, de 9 de Janeiro. O artigo 3º do Dec.-Lei 622/76, de 28 de Julho, prescreve no seu art. 1º que «no prazo de seis meses, a contar da sua publicação, será elaborado o projecto de ordenamento do Parque Natural da Arrábida por um grupo de trabalho nomeado pelo Secretário de Estado do Ambiente». O artigo 4º dispõe, por sua vez, que «até à entrada em vigor da portaria que regulamentará a orgânica e funcionamento do Parque, este será administrado por uma comissão instaladora». Nos seis meses que se seguiram à publicação do Dec.-Lei 622/76 não foi elaborado o projecto de ordenamento do Parque nem publicada portaria que regulamentasse a sua orgânica e funcionamento. Em 11 de Janeiro de 1978 foi, porém, publicado o Decreto 4/78 em cujo art. 9º, nº 1, se dispõe que «o Secretário de Estado do Ambiente poderá constituir grupos de ordenamento e elaboração dos regulamentos dos parques, reservas e outras
áreas classificadas». E dispõe no seu nº 2 que «os planos de ordenamento referidos no nº 1 serão aprovados por despacho do Secretário de Estado do Ambiente». Os regulamentos de funcionamento, esses, serão, segundo o nº 3 do mesmo artigo, aprovados por portaria conjunta dos Secretário de Estado do Ambiente e da Administração Pública. Enquanto não forem aprovados os planos de ordenamento e os regulamentos respectivos, diz o nº 4 do citado art. 9º, que os parques, reservas e outras
áreas classificadas serão administrados e dirigidos por comissões instaladoras, cuja composição, atribuições e competência dos seus membros serão definidas por despacho do Secretário de Estado do Ambiente, sob proposta do serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico. Entretanto foi publicada a portaria 26-F/80, de 9 de Janeiro, que aprovou normas provisórias para dotar o Parque de meios que possibilitem a sua administração e funcionamento. Segundo se lê no preâmbulo da Portaria foi concluído o regulamento geral do parque, de acordo com o plano de ordenamento preliminar, os quais dotarão o Parque Natural com os seus órgãos definitivos. Anexo àquela Portaria e por ela aprovado foi publicado o Regulamento do Parque Nacional da Arrábida, sendo aquela aprovada pelos Secretários de Estado da Administração Pública e do Urbanismo e do Ambiente. O artigo 18º dispõe no seu nº 1 que o «presente Regulamento Geral entra em vigor com o Plano Preliminar de ordenamento e será complementado com regulamentos específicos à medida que forem sendo oportunos, como sejam os regulamentos de caça, de pesca, de ocupação dos apoios para campismo de utilização de postos de venda de artesanato, etc.». Tal Plano Preliminar foi aprovado com o regulamento aprovado pela Portaria
26-F/80 e é um plano com vista a permitir a entrada em funcionamento dos órgãos regulamentares previstos para a organização do Parque Natural (art. 3º, nº 1 do Regulamento anexo à portaria). O Plano tem carácter provisório e com a aprovação superior do Plano Oficial do Ordenamento do Parque, o respectivo regulamento revogará o que agora entra em vigor (art. 18º, nº 2 do regulamento anexo à portaria). Consta do Plano Preliminar do Ordenamento do capítulo segundo do regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80. Nada inova em relação ao Dec.Lei nº 622/76 e para todas as questões nele não mencionadas ou susceptíveis de criar dúvidas, bem como para as disposições relativas a autorizações, fiscalizações, contravenções e multas será aplicado o disposto naquele Dec.Lei (art. 17º do Regulamento anexo à Portaria 26-F/80). Tal como acontecia com o Dec.Lei 622/76, o Regulamento exige quanto a obras, autorização dos órgãos directivos do Parque. Proíbe a execução de quaisquer trabalhos ou obras sem a referida autorização. De tudo o exposto resulta que existe um Plano Preliminar de Ordenamento do Parque e que tal Plano está inserido no Regulamento Geral aprovado em anexo à Portaria 26-F/80. A Portaria em causa foi como dela consta, aprovada pelos Secretários de Estado da Administração Pública e do Urbanismo e do Ambiente e o regulamento pelo Secretário de estado do Ambiente. Está tudo conforme o previsto no art. 9º do Decreto 4/78, de 11 de Janeiro. Estão em vigor e são eficazes tanto a Portaria como o Regulamento, embora a duração deste seja limitada, conforme atrás se referiu. O Conselho de Ministros só terá que intervir na aprovação do projecto final
(art. 3º, nº 3 do Dec.Lei nº 622/76). O prédio em questão é uma casa de habitação e, conforme está provado, foi construída em pleno Parque Natural da Arrábida e numa área classificada de paisagem protegida. Nesta área são proibidas quaisquer trabalhos, obras ou actividades sem autorização da Direcção do Parque (art. 12º, nº 3 do Regulamento anexo à Portaria). A construção foi iniciada cerca de um ano antes da propositura da acção e prosseguida sem autorização da Direcção do Parque. Daí que estivesse sujeita a demolição. III – Mas, se a demolição não pudesse ser ordenada ao abrigo do regulamento aprovado por Portaria 26-F/80, podê-lo-ia ser ao abrigo do Dec.Lei 622/76. O artigo 5º deste Dec.Lei estatui que a realização de quaisquer trabalhos, obras ou actividades em terrenos abrangidos pelo Parque sem autorização da comissão instaladora constitui contravenção. E o nº 2 do artigo seguinte prescreve que a aplicação da multa não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados. O nº 3 dispõe, por sua vez, que se o infractor se recusar a demolir as obras ou trabalhos efectuados para que tivesse sido intimado, a comissão instaladora, ou de futuro, a direcção do Parque mandaria proceder à demolição apresentado a relação das despesas para cobrança ao infractor e recorrendo aos tribunais sempre que necessário. Conforme já se referiu, a realização de quaisquer trabalhos em terrenos abrangidos pelo Parque sem autorização da comissão instaladora (hoje direcção do Parque) constitui contravenção e a aplicação da multa não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados. A Serra da Arrábida contem em si um alto valor nacional que urge preservar. E foi por isso que se reconheceu a necessidade de se tomarem medidas eficazes de protecção, restringindo-se, na medida do necessário, os direitos dos cidadãos que ali têm interesses. Daí que só excepcionalmente e com a autorização da direcção do Parque nele possam ser levadas a efeito construções. Não está provado que a obra levada a efeito pelos réus tenha algo a ver com o prosseguimento das actividades tradicionais do Parque. E a prova de que qualquer obra levada a efeito em zona de paisagem protegida pode ser autorizada cabe ao infractor, ou seja, no caso presente, aos réus. Tendo feito as obras sem licença da direcção do Parque cabia-lhe provar que ela pode ser concedida. A eles cabia, nos termos do nº 2 do art. 342º do Código de Processo Civil, a prova dos factos impeditivos do direito invocado pelo autor. De tudo o exposto resulta que quer ao abrigo do regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, quer ao abrigo do Dec.Lei nº 622/76, a demolição da obra podia ter lugar. IV – O artigo 62º da Constituição da República Portuguesa dispõe no seu nº 1 que
«a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão por vida ou por morte, nos termos da Constituição». Tal direito está, porém, sujeito a restrições de uso, fruição e disposição quer a favor do estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros. Assim, o legislador ordinário pode estabelecer restrições ao direito de propriedade. E pode a intervenção estatal limitar-se a condicionar a utilização normal dos bens condicionar a utilização normal dos bens ou excluir essa utilização normal. Foi o que aconteceu quer no Dec.Lei nº 622/76, de 27 de Julho, quer no Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, de 11 de Janeiro. Assim, ao ordenar-se a demolição do prédio que os réus erigiram em zona de paisagem protegida, a da Serra da Arrábida, sem qualquer licença da direcção do Parque e cuja construção prosseguiram mesmo depois de a obra ter sido embargada, não foi infringido o disposto no art. 62º da Constituição da República. E não se infringiu também o disposto no art. 65º, em cujo nº 1 se dispõe que
«todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». Desta disposição não resulta que cada cidadão possa construir a sua habitação onde quiser e da forma que lhe convenha. Todos os cidadãos estão sujeitos à lei e têm de agir dentro dos limites que ela impõe. Justifica, apenas, aquele artigo 65º a pretensão dos cidadãos à prestação do Estado, nos termos que do mesmo artigo constam. Não os dispensa de observar o que a lei ordinária dispõe quanto às obras de construção civil, de reconstrução, ampliação, alteração ou reparação das edificações. Não se violou, também, no acórdão recorrido o artigo 1º do protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem'.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende a recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas contidas na Portaria nº 26-F/80, de 11 de Janeiro; e nos nºs 2 e 3, do art. 6º do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho, por alegada violação 'das normas e princípios constitucionais consagrados nos artigos 20º, 122º, nº 2, 62º, 65º e 266º, nº 2 da Constituição'.
6. Neste Tribunal a recorrente apresentou alegações, que concluiu da seguinte forma:
'A – O entendimento do acórdão recorrido sobre as normas constantes da Portaria
26-F/80, maxime dos artigos 12º e 18º do Regulamento que aprova, segundo o qual o Plano deveria considerar em vigor com a aprovação do Regulamento, mesmo sem publicação do Plano, viola o princípio constitucional da publicidade dos actos de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, que o artigo 122º da C.R.P. consagra (neste caso, particularmente, o artigo 122º, nº 1, al. h) e nº 2). B – Na verdade, se o Regulamento só entra em vigor com o Plano e se o Plano, mesmo que não publicado na sua parte mais substancial, se considera aprovado sem que essa publicação tenha ocorrido, então é porque se está a aceitar a existência de um acto de conteúdo regulamentar e genérico – o Plano – sem que se tenham cumprido as garantias constitucionais de publicidade acima referidas. C – a interpretação dada pelo STJ ao artigo 6º, nºs 2 e 3 do D.L. 622/76, bem como ao artigo 12º, nº 2, do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, no sentido de que hoje – 21 anos depois de continuar sem aprovação e publicação o Plano de Ordenamento que devia estar pronto ao fim de 6 meses – podem sustentar a demolição de qualquer obra não autorizada construída no P.N.A., é inconstitucional por restringir de forma desproporcionada o direito à propriedade privada e o direito à habitação, que a Constituição consagra, tal como, de resto, o artigo 1º do protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem D – Por outro lado, mesmo que outra argumentação não procedesse, não se concebe que os números 2 e 3 do artigo 6º do D.L. 622/76, bem como ao artigo 12º, nº 2, do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, possam ser interpretados no sentido de não exigirem ao Parque, para que este possa exigir a demolição de uma construção, o ónus de demonstrar que a obra não pode ser autorizada à luz dos princípios e critérios que fundaram o P.N.A. E – O STJ, ao efectuar a interpretação intolerável referida na conclusão anterior, relativa aos preceitos referidos, por si só ou conjugados com o art.
342º do CC, está a violar o princípio geral da proporcionalidade, bem como a restringir desproporcionadamente e, por isso, inconstitucionalmente, os artigos
62º e 65º da C.R.P.'.
7. O recorrido, da sua parte, formulou as seguintes conclusões:
'1º - Carece de interesse a apreciação da constitucionalidade das normas regulamentares invocadas pela recorrente, já que a condenação constante da decisão recorrida assenta, em termos decisivos e só por si suficientes, na invocação do regime constante do artigo 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76.
2º - É ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a licenciamento ou autorização administrativa que incumbe a iniciativa e o ónus de providenciar pelo suprimento ou sanação da falta de autorização e pela superveniente legalização das obras efectuadas, requerendo à entidade competente à prática do acto administrativo destinado à concessão «a posteriori» da licença ou autorização legalmente exigida.
3º - Sendo ilegalmente indeferida a concessão de tal licença ou autorização para construir, é obviamente lícito ao particular impugnar contenciosamente o acto administrativo lesivo dos seus direitos e interesses legítimos.
4º - E – se já estiver pendente acção visando a declaração ou efectivação da obrigação de demolir a obra ilegalmente efectuada – é manifesto que deve o juiz determinar a suspensão da instância por prejudicialidade, nos termos dos artigos
97º e 279º do Código de Processo Civil – até que se mostre definitivamente julgado o recurso contencioso e apurada a possibilidade ou não de sanação do vício de ilegalidade da construção efectuada.
5º - Não é viável discutir directamente, no âmbito de uma acção de demolição, pendente nos tribunais comuns, a viabilidade de ser outorgada autorização superveniente para a construção efectuada, já que tal levaria a que fossem os tribunais judiciais a substituírem-se, quer à Administração, na prática de uma acto administrativo, quer aos tribunais administrativos, aos quais está constitucionalmente cometida a apreciação da legalidade dos actos da Administração lesivos de direitos e interesses legítimos dos particulares.
6º - Nesta perspectiva, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a interpretação da norma constante dos nºs 2 e 3 do artigo 6º do Dec.Lei nº
622/76, em termos de incumbir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a licenciamento ou autorização o respectivo suprimento, funcionando como facto impeditivo da obrigação de demolir, peticionada na causa, a demonstração da sanação do vício decorrente da falta de autorização administrativa'.
8. Na sequência, foi a recorrente notificada para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o que fez, tendo concluído pela sua improcedência.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
1. Questão prévia: delimitação do objecto do recurso. Pretende a recorrente, em primeiro lugar, ver apreciada a constitucionalidade das normas - concretamente as que se extraem dos artigos 12º e 18º - contidas no Regulamento aprovado pela Portaria nº 26-F/80, de 11 de Janeiro, referente ao Plano Preliminar de Ordenamento do Parque Nacional da Arrábida. Na sua contra-alegação, porém, o Ministério Público veio sustentar que não teria interesse a apreciação da constitucionalidade daquelas normas regulamentares, na medida em que a condenação constante da decisão recorrida assentou, 'em termos decisivos e só por si suficientes', na invocação do regime constante do artigo
6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho. Vejamos. O Tribunal Constitucional tem reiterada e uniformemente entendido que, por força da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, só deve conhecer de uma questão de constitucionalidade normativa se a resolução de tal questão se repercutir de alguma forma no julgamento da questão substantiva apreciada na decisão recorrida. Dessa forma, para decidir a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, decisivo é saber se, pronunciando-se o Tribunal pela inconstitucionalidade daquelas normas regulamentares, tal implicaria uma alteração do decidido quanto
à questão substantiva que foi objecto da decisão recorrida. Entende o Ministério Público que não, na medida em que, na lógica do acórdão recorrido, a decisão de ordenar a demolição do prédio da autora assenta num duplo fundamento alternativo - por um lado, nas normas constantes dos artigos
12º e 18º do Regulamento aprovado pela Portaria nº 26-F/80; por outro, nas normas constantes dos nºs 2 e 3 do artigo 6º, do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho -, cada um deles considerado, por si só, suficiente para suportar normativamente a decisão.
É certo, como sustenta o Ministério Público, que a decisão recorrida entende – e, di-lo expressamente – que 'se a demolição do prédio não pudesse ser ordenada ao abrigo do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, podê-lo-ia ser ao abrigo do Decreto-Lei nº 622/76'. É, portanto, certo, que o acórdão recorrido considera que o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 622/76 são fundamento normativo suficiente do decidido: ordenar a demolição do prédio da autora. Mas, significa isso que pode afirmar-se, desde já, que não tem interesse conhecer do objecto do recurso no que se refere àquelas normas regulamentares ? Cremos que não. Questionando a recorrente, igualmente, a constitucionalidade do disposto nos nºs
2 e 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 622/76, há que concluir que a utilidade/inutilidade do conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares dependerá decisivamente do julgamento da questão de constitucionalidade reportada àquele artigo 6º do Decreto-Lei nº
622/76. Assim, se for de concluir que o artigo 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, não é inconstitucional, deixa efectivamente de ter utilidade o conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares. Mas se, pelo contrário, o Tribunal Constitucional vier a considerar inconstitucional este artigo 6º, já tem utilidade conhecer da questão de constitucionalidade reportada às normas do Regulamento aprovado pela Portaria nº 26-F/80, que a decisão recorrida considerou igualmente um fundamento suficiente da decisão. Em suma: a decisão quanto à utilidade/inutilidade do conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares depende decisivamente do sentido do julgamento da questão de constitucionalidade reportada ao artigo 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho, pelo que começaremos por decidir esta questão.
10. Apreciação da constitucionalidade dos nºs 2 e 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho.
É o seguinte o seu teor:
'Artigo 6º
(Multas)
1. (...)
2. A aplicação da multa pelas contravenções previstas nas alíneas a) e g) do artigo anterior não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados.
3. Se o infractor se recusar a demolir as obras ou trabalhos efectuados para que for intimado, a comissão instaladora, ou de futuro a direcção do Parque, mandará proceder à demolição, apresentando a relação das despesas para cobrança ao infractor, recorrendo aos tribunais sempre que necessário'.
Nos termos do artigo 5º do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho, a realização de quaisquer trabalhos, obras ou actividades em terrenos abrangidos pelo Parque Natural da Arrábida, sem autorização da Direcção do Parque, constitui contravenção. E, nos termos do nº 2 do artigo 6º do mesmo diploma, a aplicação da multa prevista para essa contravenção não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados. No caso dos autos é certo que a recorrente realizou obra em prédio situado no Parque Natural da Arrábida sem que previamente tivesse obtido a necessária autorização da direcção do Parque - a qual, apesar de ter sido requerida, não lhe foi concedida. Em função dessa matéria de facto entendeu a decisão recorrida ordenar a demolição da obra que havia sido realizada. Para o efeito considerou que seria à ora recorrente que caberia provar, para efeitos de aplicação da parte final do nº 2 do art. 6º do Decreto-Lei nº 622/76, que a obra realizada estava em condições de ser aprovada. Nesse sentido pode ler-se na decisão recorrida:
'(...) E a prova de que qualquer obra levada a efeito em zona de paisagem protegida pode ser autorizada cabe ao infractor, ou seja, no caso presente, aos réus. Tendo feito as obras sem licença da direcção do Parque cabia-lhe provar que ela pode ser concedida. A eles cabia, nos termos do nº 2 do art. 342º do Código de Processo Civil, a prova dos factos impeditivos do direito invocado pelo autor'.
É, fundamentalmente, esta dimensão normativa daquele artigo 6º, relacionada com a distribuição do ónus da prova da verificação da situação prevista na parte final do seu nº 2, que a recorrente contesta. Dessa forma, a questão de constitucionalidade que vem colocada ao Tribunal Constitucional pode, assim, formular-se nos seguintes termos: é inconstitucional a norma que se extrai do artigo 6º, nºs 2 e 3, do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho - designadamente por restringir desproporcionadamente o direito de propriedade privada e o direito à habitação, consagrados nos artigos 62º e 65º da Constituição - quando interpretada em termos de atribuir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a autorização da direcção do Parque, sem previamente ter obtido essa autorização, o ónus de provar a verificação da situação prevista na parte final do nº 2 daquele art. 6º - ou seja, que a obra poderia ser autorizada - configurando-se essa prova como facto impeditivo do direito à demolição ?
A resposta a dar a esta questão é, como veremos já de seguida, negativa.
10.1. Começaremos por confrontar aquele interpretação normativa com o direito de propriedade privada previsto no artigo 62º da Constituição Portuguesa, para decidir se ela implica uma sua restrição desproporcionada, como alega a recorrente. Sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade e a relação entre este princípio e a limitação do ius aedificandi como parte integrante do direito de propriedade privada escreveu-se recentemente, com bastante interesse para os presentes autos, no acórdão deste Tribunal nº 484/00, (publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Janeiro de 2001):
'(...) O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos). Ora, a medida restritiva atinge verdadeiramente o ius aedificandi, sendo discutido se este se integra no direito de propriedade ou radica antes no acto administrativo autorizativo (cfr. os Acórdãos n.ºs 329/99, 517/99 e 602/99, os dois primeiros publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Julho de
1999 e 11 de Novembro de 1999 e o último ainda inédito; e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 333, anotação VII ao artigo 62º; em sentidos opostos podem ver-se Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 372-382 e Freitas do Amaral, 'Apreciação da dissertação de doutoramento do licenciado Fernando Alves Correia', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXII, 1991, pp. 99-101; um inventário e apreciação das diferentes posições da doutrina portuguesa encontra-se em Mário Esteves de Oliveira, 'O direito de propriedade e o ius aedificandi no direito português', Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 3, 1995, pp. 187-198). Pode, assim, desde logo duvidar-se de que esteja em causa uma 'restrição' de direitos, liberdades e garantias e, consequentemente, o âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 18º da Constituição. No primeiro daqueles referidos Acórdãos escreveu-se: 'mesmo quando se entenda que o direito a construir (...) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições decorrentes dos planos urbanísticos (...) resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a extensão em que tal seja possível ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são em parte sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade (...) importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.'
Partindo desta fundamentação concluiu-se naquele acórdão que 'não pode considerar-se que a demolição de obras tidas como ilegais - por não terem sido autorizadas - ofenda qualquer dos três subprincípios do princípio da proporcionalidade mesmo, como se disse, 'quando se entenda que o direito a construir (...) é uma dimensão do direito de propriedade.' Esta argumentação é inteiramente transponível para o caso dos autos, conduzindo agora - como ali - à conclusão de que a estatuição da obrigação de demolição de obras construídas ilegalmente, por falta da necessária autorização, não constitui uma limitação desproporcionada do direito de propriedade. A recorrente coloca, porém, o acento tónico da sua alegação quanto à inconstitucionalidade daquele artigo 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, de
28 de Julho, não tanto no facto de se sancionar a construção da obra ilegal com a obrigação da sua demolição, mas num outro ponto: no facto de se colocar a cargo do particular que construiu sem a necessária autorização ó ónus de provar, como forma de obstar à demolição, que a obra poderia ser autorizada. Porém, também não se vê em que é que a atribuição ao particular - que começou por construir abusiva e ilegalmente a obra - do ónus da prova de que ela poderia ser autorizada, como forma de obviar à consequência que a lei prevê para o acto ilícito que praticou, constitua uma limitação desproporcionada ao seu direito de propriedade. Sendo a demolição a consequência prevista na lei para a construção sem prévia autorização, a qual só excepcionalmente poderá ser evitada, demonstrando-se que poderia ser autorizada, parece óbvio - como, bem, evidencia o Ministério Público na sua alegação - que pela própria 'natureza das coisas', é ao sujeito responsável pela construção ilegal que tem de caber o ónus de demonstrar - como forma de obviar à sanção que a lei prevê para o seu acto ilegal - que a mesma estaria em condições de ser autorizada, que aqui funciona efectivamente como facto impeditivo do direito do autor. Efectivamente, tendo o sujeito particular começado por desrespeitar a sua obrigação de não construir sem prévia autorização, parece evidente que não faria agora sentido premiar o infractor, que construiu ilegal e abusivamente, com a inversão do ónus da prova de que a construção estaria em condições de ser autorizada, impondo esta a cargo da administração. Acresce, finalmente, como evidencia igualmente o Ministério Público na sua alegação, que o particular dispõe de outros meios processuais para fazer valer o seu alegado direito a construir, podendo sempre requerer à entidade competente,
à posteriori, a prática do acto administrativo destinado à concessão da autorização legalmente exigida e, na hipótese de ser ilegalmente indeferida a concessão de tal autorização, impugnar contenciosamente esse acto administrativo. E mesmo que, como acontecia nos autos, já esteja pendente acção destinada a obter a declaração ou efectivação da obrigação de demolir a obra ilegalmente efectuada, pode sempre o particular requerer a suspensão da instância por prejudicialidade, nos termos dos artigos 97º e 279º do Código de Processo Civil, até que se mostre definitivamente julgado o recurso contencioso e apurada a possibilidade ou não de sanação do vício de ilegalidade da construção efectuada. Por tudo o exposto, torna-se evidente que a interpretação normativa do artigo
6º, nºs 2 e 3, do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho, utilizada pela decisão recorrida – que supra já identificámos – não consubstancia, como pretende a recorrente, qualquer limitação desproporcionada ao seu direito de propriedade.
10.2. Quanto à alegada violação do direito à habitação previsto no artigo 65º da Constituição, é igualmente manifesta a sua improcedência. É que - como, bem, se refere na decisão recorrida - 'desta disposição não resulta que cada cidadão possa construir a sua habitação onde quiser e da forma que lhe convenha (...), passando por cima do que a lei ordinária dispõe quanto às obras de construção civil, de reconstrução, ampliação, alteração ou reparação das edificações'.
11. E, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do disposto nos artigos 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho, não pode, pelas razões que já antes deixámos expostas, conhecer-se do objecto do recurso no que se refere
às normas contidas no Regulamento aprovado pela Portaria nº 26-F/80.
III – Decisão. Nestes termos, decide-se: a) não conhecer do objecto do recurso no que se refere às normas contidas no Regulamento aprovado pela Portaria nº 26-F/80, de 11 de Janeiro; b) não julgar inconstitucional a norma que se extrai do artigo 6º, nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 622/76, de 28 de Julho - designadamente por restringir desproporcionadamente o direito de propriedade privada e o direito à habitação, consagrados nos artigos 62º e 65º da Constituição - quando interpretada em termos de atribuir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a autorização da direcção do Parque, sem previamente ter obtido essa autorização, o ónus de provar que a obra poderia ser autorizada, como forma de obstar à obrigação de demolição que naquele nº 2 se prevê.
Por consequência, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 23 de Outubro de 2001 José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa