Imprimir acórdão
Processo n.º 550/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. O objeto do recurso foi delimitado, no respetivo requerimento de interposição, nos seguintes termos.
“(…) Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação seguida pelo Tribunal da Relação de Évora.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) No presente caso, a recorrente não enuncia, no requerimento de interposição de recurso, o específico critério normativo, cuja sindicância pretende, limitando-se a identificar a disposição legal, que lhe servirá de suporte, e a remeter para a interpretação assumida pelo Tribunal da Relação, sem que, em rigor, concretize os específicos contornos de tal interpretação.
Incumpre a recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Na verdade, por força do referido preceito, tem este Tribunal entendido que sobre a parte, que pretenda questionar a constitucionalidade de uma norma ou de determinada interpretação normativa, impende o ónus de enunciar expressamente tal norma ou interpretação, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
A omissão de menção, autónoma e especificada, de tal elemento não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar à recorrente a possibilidade de suprir tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que a mesma aperfeiçoasse, de forma satisfatória, o requerimento de interposição de recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, pelas razões que exporemos de seguida.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Como já referimos, a recorrente não enuncia, de forma clara e explícita, no requerimento de interposição de recurso, a concreta interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada.
Da argumentação aduzida, na mesma peça processual, depreende-se que a questão de constitucionalidade surge no contexto da discordância da recorrente face à decisão, assumida no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de não conhecer da matéria do recurso relativa à impugnação da matéria de facto.
Porém, o acórdão recorrido baseia tal decisão no não cumprimento, por parte da recorrente, do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Assim, caso a recorrente pretendesse a sindicância da constitucionalidade do critério normativo utilizado como ratio decidendi do acórdão recorrido, neste âmbito, não poderia, na identificação do respetivo suporte de disposições legais, deixar de referir os mencionados n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, já que o artigo 428.º do mesmo diploma, isoladamente considerado, não constitui suporte suficiente de qualquer critério normativo utilizado como fundamento jurídico da solução dada ao caso pela decisão recorrida.
Acresce que se impunha que a recorrente suscitasse a questão de constitucionalidade normativa, que pretendia erigir como objeto de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, previamente, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Ora, na presente situação, a recorrente assume que a questão de constitucionalidade “apenas é suscitada na sua plenitude” no requerimento de interposição de recurso.
E, na verdade, analisada a motivação do recurso interposto do acórdão condenatório da 1.ª Instância – peça processual em que deveria ter sido suscitada ou renovada a suscitação da questão de constitucionalidade que se pretenderia ver apreciada - constata-se que a recorrente não enunciou nem problematizou a conformidade constitucional de qualquer critério normativo extraível do artigo 428.º, isoladamente ou sequer em conjugação com os n.os 3 e 4 do artigo 412.º, ambos do Código de Processo Penal.
Justifica a recorrente tal omissão, referindo “não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma ao [caso] concreto”, sendo-lhe “impossível (…) prever ou admitir (…) que com os aludidos fundamentos, totalmente imprevisíveis, o Tribunal da Relação se abstivesse de sindicar a matéria de facto impugnada em sede de recurso”.
Tal justificação, porém, não colhe, como melhor explicitaremos.
Na verdade, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de forma criteriosa e necessariamente restritiva, a exceção ao princípio de que a suscitação da questão de constitucionalidade deve preceder a prolação da decisão recorrida, reservando-a para aquelas situações, absolutamente atípicas, em que o recorrente não podia razoavelmente antecipar a possibilidade de uma dada dimensão normativa – objetivamente surpreendente - ser acolhida na decisão recorrida.
De facto, recaindo sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas na decisão, cumpre-lhes, em observância de um dever de litigância tecnicamente prudente, a formulação de um juízo de prognose que antecipe as várias hipóteses, razoavelmente previsíveis, de enquadramento normativo do litígio, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que poderão viciar as normas ou interpretações normativas convocadas.
Assim, não se vislumbrando que a decisão recorrida tenha utilizado qualquer critério normativo surpreendente, extraível do artigo 428.º ou mesmo dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, não se encontrava a recorrente desobrigada do cumprimento do ónus de suscitação prévia da respetiva questão de constitucionalidade. Tendo incumprido tal ónus, ficou prejudicada a sua legitimidade para interpor o presente recurso, ex vi artigo 72.º, n.º 2, da LTC. ”
4. Notificada desta Decisão sumária, a recorrente apresentou requerimento, referindo pretender “esclarecimento/correção” da mesma, nos termos do artigo 380.º do Código de Processo Penal (CPP), (sendo que a referência feita, no requerimento, ao acórdão n.º 550/2012 deve ser entendida como mero lapso).
Para fundamentar tal pretensão, defende a recorrente que, ao contrário do que afirma a decisão colocada em crise, cumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade, logo que tal cumprimento lhe foi processualmente possível, acrescentando que o cerne de tal questão consiste no não conhecimento, pelo Tribunal da Relação, da matéria de recurso relativa à impugnação da matéria de facto. Para demonstrar o que afirma, transcreve excerto das conclusões da motivação de recurso que dirige ao Supremo Tribunal de Justiça.
Pelo exposto, conclui não conseguir compreender a razão de tal suscitação não ter sido considerada, mais referindo que deveria ter-lhe sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A, da LTC, o que requer.
Por último, refere que o núcleo essencial do seu direito ao recurso foi limitado, quanto à matéria de facto, não tendo sido respeitado o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
5. O Ministério Público, em resposta, refere, desde logo, que, “sendo subsidiariamente aplicável aos recursos no Tribunal Constitucional o Código de Processo Civil (artigo 69.º da LTC), ao pedido de esclarecimento é aplicável o disposto no artigo 669.º do Código de Processo Civil e não o artigo 380.º do CPP”.
Acrescenta que o requerimento apresentado não identifica qualquer ambiguidade ou obscuridade da decisão, traduzindo, ao invés, uma discordância com o decidido.
Mais refere que a pretensão da requerente deverá ser perspetivada como uma reclamação para a conferência, uma vez que nada impede “que sejam qualificados como tal, inidóneos pedidos de aclaração (v.g. Acórdão n.º 590/2007).”
Salienta ainda o Ministério Público que a recorrente não refere, sequer, no requerimento de interposição de recurso, o concreto preceito utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida – artigo 412.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal – limitando-se a referir o artigo 428.º do mesmo diploma.
Igualmente é certo que a recorrente não se encontrava dispensada de cumprir o ónus de suscitação prévia, nem era admissível, no caso, um convite ao aperfeiçoamento, como se explica na decisão sumária proferida.
Por último, refere o Ministério Público que a questão de saber se, no caso concreto, foram cumpridos os ónus previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não se insere na competência do Tribunal Constitucional.
Conclui, nestes termos, pelo indeferimento da reclamação.
Os restantes reclamados, regularmente notificados, optaram por não apresentar resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. A pretensão da recorrente – independentemente do nomen iuris utilizado e da remissão para o artigo 380.º do Código de Processo Penal, diploma não aplicável, face ao disposto no artigo 69.º da LTC, que expressamente remete para o Código de Processo Civil - corresponde, substancialmente, a uma impugnação e consequente pedido de reapreciação da decisão sumária proferida.
Ora, o meio processual idóneo para arguir vícios da decisão sumária, bem como para contradizer a sua argumentação, é a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Porém, nada obsta a que o Tribunal decida a questão substancial colocada, no âmbito do meio processual idóneo, apesar de o seu acionamento não ter sido inequivocamente operado pela parte.
7. Feito este esclarecimento prévio justificativo da tramitação do requerimento apresentado como reclamação para a conferência, cumpre apreciar a sua pertinência.
A reclamante, não obstante pedir um esclarecimento, não especifica qualquer excerto da decisão, que, comportando alguma incompreensibilidade ou incongruência, torne inteligível o seu pedido.
Na verdade, o esclarecimento ou aclaração justifica-se quando a decisão é obscura – impedindo a inteligibilidade do pensamento nela expresso - ou ambígua – admitindo mais do que um sentido – o que não sucede in casu.
Igualmente, não especifica a reclamante qualquer erro, inexatidão ou lapso manifesto, que se enquadrem no âmbito de um pedido de correção ou retificação.
Assim, concluímos – como já aflorado supra – que a pretensão apresentada não corresponde substancialmente a uma dificuldade de compreensão da decisão, nem se resume a uma intencionada mera retificação, traduzindo-se antes numa manifestação de discordância relativamente aos fundamentos e sentido decisório.
Ora, os argumentos aduzidos pela reclamante, no sentido de fundamentar tal discordância, não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, a reclamante não enunciou, de forma clara e explícita, no requerimento de interposição de recurso, a concreta interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada. Porém, face ao preceito selecionado, tornou-se, desde logo, manifesto que a reclamante não procedeu à certeira indicação do suporte legal em que a ratio decidendi da decisão recorrida assentaria.
Acresce que não suscitou previamente a questão de constitucionalidade que pretenderia ver apreciada, perante o tribunal a quo – salientando-se que tal suscitação teria de ser necessariamente prévia à prolação da decisão recorrida – não estando dispensada de o fazer, como se explica, com completude, na decisão sumária.
Relativamente à inadequação de um convite ao aperfeiçoamento, no caso, a decisão proferida também é expressa e concludente.
Encontrando-se a sindicância do Tribunal Constitucional, neste âmbito, restringida à apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, qualquer outra apreciação incidente sobre a decisão recorrida encontra-se legalmente vedada, ao contrário do que parece supor a reclamante.
Nestes termos, reafirmando a fundamentação constante da decisão reclamada, conclui-se pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e confirmar a Decisão sumária proferida no dia 27 de fevereiro de 2013.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de maio de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.