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Processo nº 692/01 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1. - E..., identificado nos autos, na qualidade de mandatário do Partido Social Democrata às próximas eleições autárquicas de Freixo de Espada
à Cinta, notificado do despacho do Senhor Juiz da respectiva Comarca, de 23 de Outubro de 2001, que ordenou a afixação das listas de candidatura, prevista no artigo 25º, nº 1, da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto – afixação que ocorreu no próprio dia, sem menção de hora – veio, no dia imediato, e nos termos do nº 3 do artigo 25º do mesmo diploma legal, impugnar a elegibilidade de J..., também identificado nos autos, primeiro candidato efectivo à Câmara Municipal do mesmo concelho na lista apresentada pelo Partido Socialista.
Em seu entender, a situação do candidato enquadra-se na previsão da alínea c) do nº 2 do artigo 7º daquela Lei Eleitoral, uma vez que, e no que releva:
- o candidato é sócio de uma empresa de camionagem –
'S...' – que se dedica ao transporte de passageiros e está sediada naquela localidade;
- a referida empresa mantém com a Câmara Municipal local
'uma relação contratual' através da qual são assegurados os transportes escolares no concelho;
- esse facto é do conhecimento público, perdurando há muito tempo, tratando-se de um contrato de execução continuada;
- factualidade esta que põe em causa a 'justiça de actuação e a imparcialidade dos órgãos do poder local no plano da gestão autárquica'.
Pede, em consequência, que seja declarada a inelegibilidade do candidato J....
2. - Notificado o mandatário concelhio às mesmas eleições do Partido Socialista, às 12,20 horas do dia 25 de Outubro, veio este responder, em documento entrado na secretaria judicial no dia 29, sem menção de hora, defendendo a improcedência da impugnação e, consequentemente, a declaração da elegibilidade do candidato em causa.
Fundamentalmente, porque a quota de que era titular na empresa de camionagem 'S..., Lda.', foi cedida a terceiro por escritura pública lavrada a 17 de Outubro último – ou seja, antes da apresentação da sua candidatura, que ocorreu a 22 – no cartório notarial de Freixo de Espada à Cinta, exarada a fls. 82 a 83 do livro 24-C de Escrituras Diversas.
Junta fotocópias autenticadas comprovativas do alegado.
3. - Em face do exposto, o respectivo magistrado judicial julgou improcedente a impugnação apresentada, o que fez nos seguintes termos:
'A fls. 26 dos presentes autos o Ilustre mandatário do PSD, E... impugnou a elegibilidade do candidato J... invocando que o mesmo é sócio de uma empresa que presta serviços de transporte escolar à Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta e juntou para o efeito docs. de fls. 29 e segs. Notificado para se pronunciar o Ilustre mandatário do PS invocou que essa questão estava ultrapassada uma vez que o mencionado candidato já havia transmitido a sua quota em data anterior à da apresentação da candidatura, juntou para os efeitos os docs. de fls. 41 e segs. Cumpre decidir. A Lei Eleitoral dispõe no seu artº 7º, nº 2, al., c) o seguinte:
‘Não são elegíveis para os órgãos das autarquias locais em causa: c) os membros dos corpos sociais e os gerentes das sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada.' Compulsados os autos constata-se, efectivamente, que o candidato J... foi até
17/10/01 sócio da sociedade a que se refere o mandatário reclamante. No entanto, e conforme ressalta da certidão da escritura pública junta aos autos, o mesmo deixou de o ser através de uma cessão de quota celebrada antes da apresentação da sua candidatura. Não obstante ter existido até essa altura um fundamento de inelegibilidade a verdade é que o mesmo ficou sanado com a celebração do referido negócio desaparecendo por isso o pressuposto legal em que a lei fundamenta essa inelegibilidade, ou seja, a referida qualidade de membro de corpo social, a qualidade de sócio gerente ou de proprietário de empresa. Para efeitos legais J... deixou de pertencer àquela sociedade. Pelo exposto a reclamação apresentada tem que ser declarada improcedente. Notifique.'
4. - Em 30 de Outubro ordenou-se o cumprimento do disposto no nº 5 do artigo 29º da Lei Eleitoral.
5. - Em 31 de Outubro, A ..., na qualidade de candidato do Partido Social Democrata, invocando o nº 1 do artigo 29º citado, veio reclamar contra a admissão do candidato J..., por considerar verificar-se uma situação subsumível ao estatuído na citada alínea c) do nº 2 do artigo 7º, isto porque o candidato é sócio de outra empresa de transportes colectivos de passageiros – a Empresa de Transportes C... Limitada – que mantém 'uma relação contratual' com a Câmara Municipal, mediante a qual assegura o transporte escolar dos alunos de freguesia de Ligares.
Junta, como documento, uma cópia simples que transcreve, parcialmente, a acta da reunião do Conselho Consultivo dos Transportes Escolares, realizada em 11 de Abril de 2000, e nos termos do qual foi atribuído a essa sociedade, sediada em Vila Flor, um dos circuitos de transportes de alunos para a sede do concelho, assegurando o transporte de dois alunos.
6. - Respondeu o mandatário constituído do Partido Socialista
(notificação em 2 de Novembro, resposta em 5), igualmente no sentido da improcedência do requerido.
Alega, essencialmente, que em 17 de Outubro, antes da apresentação da respectiva candidatura, em assembleia geral da respectiva sociedade, renunciou à gerência e à qualidade de sócio que tinha nessa sociedade, nessa mesma data recebendo o respectivo 'preço', tendo a escritura pública sido celebrada em 3 de Novembro, no mesmo cartório notarial.
Entende, ainda, que o impugnante confunde o Conselho Consultivo em referência com a Câmara Municipal, não podendo considerar-se esta
última como outorgante de qualquer contrato.
7. - Subsequentemente, foi proferida a seguinte decisão judicial, em 5 de Novembro último:
'A fls. 50 dos presentes autos o candidato, A... impugnou a elegibilidade do candidato J... invocando que o mesmo é sócio de uma empresa que presta serviços de transporte escolar à Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta e juntou para o efeito docs. de fls. 53 e segs.. Notificado para se pronunciar o Ilustre mandatário do PS invocou que essa questão estava ultrapassada uma vez que o mencionado candidato já havia transmitido a sua quota em data anterior à da apresentação da candidatura e argumentou também que não resulta demonstrada a qualidade de outorgante da Câmara Municipal no contrato celebrado com a referida empresa, juntou para o efeito os docs. de fls. 67 e segs.. Cumpre decidir. A Lei Eleitoral dispõe no seu artº 7º, nº 2, al. c) o seguinte:
‘Não são elegíveis para os órgãos das autarquias locais em causa: c) os membros dos corpos sociais e os gerentes das sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada.' Compulsados os autos constata-se, efectivamente, que o candidato J... foi até
03/11/01 sócio da sociedade a que se refere o mandatário reclamante, ou seja data posterior à da apresentação das candidaturas. No entanto, a questão não se coloca a este nível porquanto é preciso demonstrar, antes de mais, que a autarquia de Freixo de Espada à Cinta através do seu órgão executivo que é a Câmara Municipal, outorgou efectivamente o contrato de transportes escolares com a mencionada empresa. Salvo o devido respeito por melhor entendimento, o reclamante não logrou fazer tal demonstração e isto porque, conforme bem salienta o Ilustre mandatário do PS e conforme ressalta da acta de reunião junta aos autos a fls. 53 e segs., a entidade que se vinculou foi o Conselho Consultivo dos Transportes Escolares, entidade na qual se encontra representado o município (na pessoa do Presidente da Câmara Municipal mas e cuja composição fazem parte a Delegada Escolar, os secretários das escolas EB 2 e 3 ciclo, Secundária Dr. Ramiro Salgado e a Coordenadora Regional do SASE e representantes da empresa transportadora. Vale isto por dizer que, face aos elementos constantes dos autos não resulta que seja a autarquia a entidade que celebra tais contratos antes resulta que os mesmos são celebrados por uma outra entidade que celebra tais contratos com competências próprias e de enquadramento legal definido, ou seja, o Conselho Consultivo dos Transportes Escolares. Vale isto por dizer que «in casu» falece um dos requisitos legais para a existência de uma inelegibilidade do candidato, ou seja, a celebração de um contrato com a autarquia, cfr, artº 7º, nº 2 al. c) da Lei nº 1/01 de 14/08. Pelo exposto a reclamação apresentada tem que ser declarada improcedente. Notifique.'
8. - Notificado o reclamante da decisão em 6 de Novembro, e dado cumprimento, na mesma data, ao disposto nos nºs. 5 e 6 do artigo 29º da LEOAL, E... veio, no dia 8, nos termos do artigo 31º do mesmo diploma, interpor recurso 'da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância de Torre de Moncorvo relativa à admissão da candidatura de J..., candidato do Partido Socialista', decisão esta que afirma ter sido proferida no dia 6 (como se registou, a decisão
é de 5, sendo do dia 6 a notificação, o que se deverá, eventualmente, a mero lapso).
9. - Aqui se defende a manutenção da existência de uma relação contratual estabelecida entre a Câmara e a empresa de transportes 'C...' e não entre esta última e o CCTE, considerando que o disposto no Decreto-Lei nº
299/84, de 5 de Setembro, relativamente à competência deste Conselho na preparação do plano de transportes escolares do município, não deixa de responsabilizar a administração local por todo o processo de organização, funcionamento e financiamento dos transportes escolares, o que é reforçado não só pelo disposto na alínea a) do nº 3 do artigo 19º da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro – sobre a competência dos órgãos municipais no que se refere à rede pública quanto a assegurar os transportes escolares – e da alínea m) do nº 1 do artigo 64º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro – sobre a competência das Câmaras na organização e gestão dos transportes escolares –, como da alínea n) do nº 1 do artigo 13º da Lei nº 30-C/2000, de 29 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2001, nos termos da qual compete aos municípios assegurar os transportes da rede escolar pública, nos termos do nº 3, alínea a), do artigo 19º da citada Lei nº 159/99.
10. - Respondeu o mandatário do Partido Socialista pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, dado, em síntese, já não se verificar a situação que originaria inelegibilidade do candidato.
Cumpre decidir.
II
1. - O regime de inelegibilidades – em sentido restrito entendidas – previsto nos nºs. 1 e 2 do artigo 7º da LEOAL visa garantir a dignificação e a genuinidade do acto eleitoral, de modo a não se reconhecer capacidade eleitoral passiva a quem possa exercer algum tipo de influência como candidato sobre os eleitores ou, como nomeadamente sucede nas situações contempladas na alínea c) do nº 2, ao actuarem como órgãos eleitos da administração autárquica, a sua gestão permita duvidar da transparência e da objectividade que lhe devem assistir, em Estado de direito democrático.
Neste sentido, ao abrigo da anterior lei eleitoral, o Tribunal Constitucional pronunciou-se por diversas vezes, mantendo-se a mesma teleologia no diploma actual (cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 4/84, 253/85,
715/93, 716/93 e 717/93, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 2º, págs. 223 e segs.; 6º, págs. 929 e segs. e 26º, págs. 379 e segs., 393 e segs., e 407 e segs., respectivamente).
Consoante se escreveu no último destes arestos, está em causa «o exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos autárquicos' ou seja, 'interessa é que para os órgãos de determinada autarquia local, não seja eleito quem, ao iniciar o exercício do cargo, seja membro dos corpos sociais ou proprietário de uma empresa que tenha contratos pendentes com essa autarquia. E isso, tanto no caso de a subsistência do contrato, nesse momento, se dever ao facto de se tratar de negócio cuja execução se protrai no tempo, como naquele em que, sendo um contrato de outro tipo, as obrigações que dele decorrem ainda se acharem nessa altura por cumprir, ao menos em parte'.
2. - As inelegibilidades recortam-se como obstáculo à usufruição plena da capacidade eleitoral passiva dos cidadãos, o que enforma um princípio geral de direito eleitoral que é precipitação quer do artigo 48º do texto constitucional, relativo à participação dos cidadãos na vida pública, quer do artigo 50º do mesmo diploma, que respeita ao direito de acesso aos cargos públicos.
Deste modo, cessada a situação fáctica que determina a inelegibilidade, perde esta a sua razão de ser, deixa de ser necessário mantê-la em nome da garantia de isenção e independência do exercício do cargo. Como se ponderou no citado acórdão nº 717/93, a inelegibilidade 'deixou de ser necessária para garantir a isenção e a independência do exercício do cargo'.
É também esse o entendimento perfilhado pelo acórdão nº
719/93 – publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º volume, págs.
423 e segs. – ao escrever-se que, em sede de contencioso de apresentação de candidaturas, o Tribunal Constitucional tem que decidir em função do quadro legal e da situação fáctica existente no momento em que é chamado a decidir – o que, aliás, se conjuga com o princípio processual civil relativo à atendibilidade, na sentença, dos factos supervenientes, constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, que se produzam posteriormente à propositura da acção, 'de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão' (nº 1 do artigo 663º do Código de Processo Civil).
3. - Sendo assim, torna-se evidente a improcedência do recurso, independentemente do que se possa entender a respeito da natureza e estrutura do CCTE e dos respectivos vínculos jurídico-funcionais ao órgão executivo do município.
III
Em face do exposto, confirma-se a decisão recorrida quanto à inexistência da inelegibilidade prevista na alínea c) do nº 2 do artigo
7º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovada pela Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto, se bem que por fundamentação diversa e, consequentemente, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 20 de Novembro de 2001 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa