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Processo n.º 814/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido, em conferência, pela 4ª Secção do Tribunal de Relação do Porto, em 10 de outubro de 2012 (fls. 564 a 577), para que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
“1.ª A norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º e 249, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Buscas Domiciliárias podem ser realizadas pelo O.P.C., em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade;
e
“2.ª A norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º, 178.º e 249, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Apreensões realizadas no decurso de Buscas Domiciliárias levadas a cabo pelo O.P.C . são válidas ainda que as Buscas tenham sido levadas a cabo em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade;” (fls. 581 e 581-verso)
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1. A posição perfilhada pelo tribunal “a quo” abre um “rombo colossal” em duas traves mestras da nossa Constituição que, a manter-se, abrirá um inqualificável precedente que reduzirá a pó dois princípios basilares que norteiam o não só o nosso Processo Penal, mas também a própria vida numa sociedade livre, democrática e responsável.
2. A improcedência do presente recurso, pela jurisprudência que fará e pelas manifestas e patentes consequências futuras que terá, determinará por certo o fim do estado de direito democrático como o conhecemos e abrirá as portas a uma nova organização societária: O ESTADO DE POLÍCIA
3. Como resulta dos Autos, está assente que:
A) A busca levada a cabo à residência do Arguido foi realizada no âmbito de um processo de Inquérito em que se investiga a prática do Crime de Tráfico de Produtos Estupefacientes p.p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Dec. Lei 15/93 de 22 de janeiro (Criminalidade Altamente Organizada no conceito do art.º 1.º al. m) do C.P.P.); b) A busca em causa foi realizada na residência do Arguido pelas 23H40 do dia 03 de julho de 2012, ou seja, entre as 21H e as 7H00 a que alude o art-.º 177.º do C.P.P. c) A busca em causa não foi autorizada ou consentida pelo Arguido; d) A busca em causa não autorizada nem ordenada pela Autoridade Judiciária competente; e) A busca foi realizada fora de qualquer situação de “Flagrante Delito”.
4. A Requerimento prévio do Arguido e em sede de 1-º interrogatório judicial, a meritíssima Juiz de Instrução Criminal concluiu que: “…a busca domiciliária efetuada ao ora arguido A. é nula, não podendo surtir qualquer efeito, nos termos dos artigos 177.º e 126.º,n.º 3 do C.P.P.
Nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1 do C.P.P., a nulidade da busca domiciliária é causa de nulidade consequente da apreensão feita durante a busca, pelo que e em consequência, se ordena o levantamento das apreensões efetuadas na sequência da busca domiciliária a A. e restituição dos respetivos bens.”
5. O Ministério Público interpôs então recurso esta decisão com uma posição que, diríamos é, no mínimo, inovadora, pois entende o M.P. que, no caso, “não tem qualquer aplicação in casu o artigo 174.º, n.º 5, b) do Código de Processo Penal, devendo ser observada – como foi – a disciplina do artigo 249.º, n.º 1 e 2, c) do Código de Processo Penal, a qual confere aos órgãos de polícia criminal competência cautelar própria e legitima as apreensões efetuadas.
6. Por seu turno o Tribunal da Relação do Porto, sem qualquer tipo de juízo critico, limitou-se a transcrever as motivações do M.P. e conclui que “Pela própria resenha dos autos devidamente certificada bem se alcança que no caso se trata de providências cautelares quanto a meios de prova, nos próprios dizeres do art.º 249 do CPP e daí que salvo o devido respeito, não se vislumbre o cometimento de qualquer nulidade, sendo certo que que de tais providências foi dado conhecimento oportuno à autoridade judiciária competente.
Daí que o recurso proceda na sua totalidade.
7. Ou seja, o entendimento sufragado pelo “tribunal a quo” é no sentido que, quando estamos na presença de “providências cautelares quanto a meios de prova” nos termos do disposto no art.º 249.º e mesmo que se trate de uma Busca Domiciliária, não há que respeitar as regras a que alude o art.º 177.º do C.P.P..
8. É esta, no fundo, a problemática que se coloca à sindicância de V/ Exas: saber se, o disposto no art.º 177.º do C.P.P. é inaplicável quando estamos na presença de “providências cautelares quanto a meios de prova” nos termos do disposto no art.º 249.º do mesmo diploma e quais as consequências ao nível das apreensões efetuadas no âmbito dessas buscas.
9. Ora, antes de me mais, o “tribunal a quo” parece ter-se esquecido de um fator muito importante: É que estamos na presença de uma BUSCA DOMICILIÁRIA, e não de um qualquer outro meio de obtenção de prova, nomeadamente revistas, buscas a veículos ou em espaços públicos.
10. Se é verdade que o direito à inviolabilidade do domicílio é imprescindível à dignidade da pessoa, e portanto às suas manifestações sob a forma da autonomia e da reserva da intimidade, e como tal, porque se subjetiva na sua titularidade, tem de ser tutelado, não é menos verdade que tem de admitir concessões, cedências, limitações.
11. Mas, porque se trata de um direito tão fundamental, constitucionalmente consagrado e protegido, tais limitações não podem ser deixadas ao alvedrio da Administração ou da Polícia.
12. Resulta do art.º 34.º n.º 3 da C.R.P. que “Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.”
13. Concretizando e densificando aquele preceito constitucional, determina a Lei Ordinária, nomeadamente no art.º 177.º do C.P.P.
14. Da leitura destes dois preceitos conclui-se que:
“A Busca Domiciliária autorizada por juiz pode ter lugar: a) Entre as 7 e as 21 horas, em relação a qualquer crime. b) Entre as 21 e as 7 horas nos seguintes casos: i. Terrorismo, criminalidade especialmente violenta (ver anotação ao art.º 1.º) ou altamente organizada; ii) Consentimento Documentado do visado; iii) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos. A busca domiciliária autorizada pelo Ministério Público ou efetuada pelo órgão de polícia criminal pode ter lugar: a) Entre as 7 e as 21 horas, nos seguintes casos: i) Fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa no âmbito de terrorismo, de criminalidade violenta ou altamente organizada; solução que não é inconstitucional (acórdão do TC n.º 7/87, mas contra GUEDES VALENTE, 2010:16; ii) Consentimento Documentado do Visado ou iii) Detenção em flagrante delito por crime punível com pena de prisão. Entre as 21 e as 9 horas, nos seguintes casos: i) Consentimento documentado do visado ou ii) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos”
15. A primeira coisa a reter é que, nem o art.º 34.º da C.R.P. nem o art.º 177.º do C.P.P., prevêm, em parte alguma, que as Buscas domiciliárias poderão ser levadas a cabo pelo OPC, entre as 21 e as 9 horas, no caso de estarmos perante uma situação de providências cautelares quanto a meios de prova nos termos do disposto no art.º 249.º do C.P.C.
16. É patente, da Leitura destes preceitos que as únicas situações em que é admissível uma Busca Domiciliária noturna sem prévia autorização judicial (com mera autorização do M.P. ou efetuadas pelo OPC) são as situações em que há “Consentimento documentado do visado” ou nas situações de “Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos”
17. O próprio Legislador constitucional é bem claro nos termos a que alude o próprio art.º 34.º n.º 3.º da C.R.P. e ele próprio adiantou uma tipificação fechada às situações em que é admissível uma busca domiciliária noturna, não tendo consignado, em parte alguma daquele preceito, a tomada de providências cautelares quanto a meios de prova a que alude o art.º 249.º do C.P.C.
18. Ora, pelo que ficou dito, é patente que a Constituição da República Portuguesa não admite a existência de Buscas Domiciliárias Noturnas fora dos casos previstos no art.º 34.º n.º 1, 2 e 3 e melhor densificados no art.º 177.º n.º 1, 2 e 3 do C.P.P., mesmo que estejamos na presença de uma providência cautelar quanto a meios de prova a que alude o art.º 249.º do C.P.P.
19. Aqui chegados, impõe-se trazer à colação outro preceito constitucional, o art.º 32.º n.º 8 da C.R.P. que dispõe que: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida provada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”
20. O Código de Processo Penal, na própria densificação daquele preceito constitucional, dispõe, no art.º 126.º n.º 3 que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular”
21. Ora, no que toca às Buscas Domiciliárias, “os casos previstos na lei” são precisamente aqueles que supra se identificaram, não preenchendo a situação dos autos nenhuma dessas situações.
22. Assim, como vimos supra, estando em causa nos presentes autos uma Busca Domiciliária Noturna, efetuada Fora de Flagrante delito, sem autorização do visado e sem prévio despacho da autoridade judiciária competente, é notório que, o tribunal recorrido ao “branquear” a mesma estribando-se no facto de se tratarem de Medidas Cautelares a que alude o art.º 249.º do C.P.P., fez uma interpretação das disposições conjugadas dos art.º 177.º, 178.º e 249.º inconstitucional por violação dos artigos 32.º n.º 8 e 34.º n.º 1, 2, e 3 da C.R.P.
Pois,
23. É inconstitucional, por violação do disposto no art.º 32.º, n.º 8.º e 34.º n.º 1, 2 e 3 todos da C.R.P., da norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º e 249.º, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Buscas Domiciliárias podem ser realizadas pelo O.P.C., em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade;
E, consequentemente,
24. É inconstitucional, por violação do disposto no art.º 32.º, n.º 8.º e 34.º n.º 1, 2 e 3 todos da C.R.P. da norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º, 178.º e 249.º, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Apreensões realizadas no decurso de Buscas Domiciliárias levadas a cabo pelo O.P.C. são válidas ainda que as tais Buscas tenham sido levadas a cabo em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade.» (fls. 629 a 632).
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
«36. O presente recurso foi interposto ao abrigo do previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei 28/82 de 15 de novembro e visa obter a declaração da inconstitucionalidade de duas interpretações normativas, extraídas da conjugação dos artigos 177.º, 178.º e 249.º, n.º 1 e 2, c), todos do Código de Processo Penal, aplicadas, na versão do recorrente, pelo Tribunal da Relação do Porto, na decisão proferida nos autos à margem referenciados.
37. Segundo o perspetivado pelo recorrente, tais interpretações normativas são, a
1.ª, “A norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º e 249, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Buscas Domiciliárias podem ser realizadas pelo O.P.C., em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade;
e a
2.ª ”A norma extraída da interpretação normativa das disposições conjugadas do art.º 177.º, 178.º e 249, n.º 1 e 2, c), ambos do C.P.P. segundo a qual, quando esteja em causa a realização das Medidas Cautelares quanto aos meios de Prova (art.º 249.º do C.P.P.), as Apreensões realizadas no decurso de Buscas Domiciliárias levadas a cabo pelo O.P.C . são válidas ainda que as Buscas tenham sido levadas a cabo em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P., não existindo, assim, qualquer nulidade”.
38. Acontece que, distintamente do afirmado pelo recorrente, aquelas interpretações normativas não constituíram a “ratio decidendi” da decisão proferida, uma vez que não foram efetivamente aplicadas na dirimição do caso, pelo tribunal “a quo”.
39. Quanto à primeira das regras enunciadas, não recorreu a ela o tribunal “a quo”, na medida em que considerou que a busca em causa nos autos foi válida por ter sido autorizada, inicialmente, pela mãe do arguido e, mais tarde, pelo próprio arguido, pelo que constituiu uma busca autorizada pelo visado, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2 do artigo 177.º do Código de Processo Penal.
40. Quanto à segunda regra, não foi, igualmente, aplicada pelo tribunal “a quo”, uma vez que a apreensão cautelar dos bens se fez, singelamente, ao abrigo do estatuído na alínea c), do n.º 2, do artigo 249.º do Código de Processo Penal, na sequência de uma busca julgada legal, por se encontrar coberta pelo plasmado na alínea b), do n.º 2 do artigo 177.º do Código de Processo Penal.
41. Para além da não aplicação, pelo tribunal “a quo”, das interpretações normativas invocadas pelo recorrente, verifica-se que as formulações destas alegadas regras evidenciam uma incongruência lógica, que as tornam inoperativas.
42. Em primeira linha, as interpretações normativas, alegadamente aplicadas pelo tribunal “a quo”, ao resultarem da síntese da aplicação de um normativo legal (o artigo 249.º do C.P.P.) em violação de um outro dispositivo legal (o artigo 177.º do C.P.P.) do mesmo acervo normativo, cria uma disfunção interpretativa, inadmissível e insuportável, que, para além do mais, não tem amparo no texto legal.
43. É, também, incoerente a versão do recorrente, na parte em que retira regras de decisão da conjugação de dois preceitos legais, os artigos 177.º e 249.º do C.P.P., cujas normas operariam em violação recíproca, quando não existe sobreposição dos âmbitos das suas previsões.
44. É, ainda, incoerente, quando pretende, quanto à primeira interpretação normativa, defender que a regra, extraída pelo tribunal “a quo”, referente à validade da busca domiciliária, se baseou no artigo 249.º do C.P.P., normativo este que rege apenas a matéria das providências cautelares quanto aos meios de prova.
45. É, por fim, incoerente, quanto à segunda interpretação normativa, que, tendo por objeto as providências cautelares de preservação dos meios de prova, apela à violação do artigo 177.º do C.P.P., cujo campo de aplicação é o das buscas domiciliárias, enquanto critério de definição do seu alcance.
46. O presente recurso deve, ainda, improceder, uma vez que as interpretações normativas, cuja inconstitucionalidade é invocada, não se prefiguram como violadoras, quer do artigo 32.º, n.º 8, quer do artigo 34.º, n.º s 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
47. As normas constitucionais cuja violação é invocada protegem a inviolabilidade do domicílio e, bem assim, garantem a nulidade de quaisquer provas obtidas através dessa violação.
48. Ora, uma vez que os atos praticados pela autoridade policial, foram-no com autorização do visado, sem desproteção da inviolabilidade do domicílio, não faz sentido que as normas, supostamente criadas pelo tribunal “a quo”, para regulação da situação de facto, ostentassem a potencialidade de infringir o princípio da inviolabilidade do domicílio.
49. Conclui-se, assim, que o Tribunal Constitucional não deverá conhecer do fundo do presente recurso, uma vez que as supostas interpretações normativas, aplicadas pelo tribunal “a quo”, não constituíram a “ratio decidendi” do acórdão recorrido.
50. Para a eventualidade, no entanto, de, assim, se não entender, deverá este Tribunal Constitucional julgar o mesmo recurso improcedente, pelas razões atrás apontadas.» (fls. 646 a 649)
4. Face à invocação de fundamentos que obstariam ao conhecimento do objeto do recurso, ao abrigo dos artigos 703º, n.º 2, e 704º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, a Relatora determinou que fosse notificado o recorrente para que viesse aos autos pronunciar-se sobre a possibilidade de não conhecimento desse objeto. Respondendo ao referido convite, o recorrente veio pronunciar-se no seguinte sentido:
«4. Ora, com o devido respeito: nada mais errado.
5. É certo que a decisão “a quo” é, como bem refere o Exmo Procurador Geral Adjunto, rodeada de alguma, ou mesmo muita, opacidade quanto aos respetivos fundamentos.
6. E, só essa opacidade e inerente confusão, poderá justificar a posição do M.P. que, bem vistas as coisas, cuidamos tratar-se de lapso. Se não vejamos:
7. Ao contrário do que refere o M.P., na busca colocada à sindicância, nunca esteve em causa o consentimento do visado, que aliás nunca foi dado.
8. A este propósito, importa desde já apontar um notório lapso de escrita que, parecendo de somenos importância parece ter também contribuído para a confusão instalada.
9. É que, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto ora em crise, o seguinte:
“No próprio despacho que ora vem sindicado pelo MP diz-se claramente que:
[…]
No caso dos autos constata-se que o consentimento expresso da busca domiciliária que foi realizada entre as 21h e as 1 h foi prestado pela mão do arguido A. – B. – cfr. Fls. 1289.
Porém, resulta também dos autos que a busca foi efetuada na presença do arguido, o qual atestou pela aposição da sua própria assinatura que havia acompanhado a busca efetuada – cfr. Fls. 1292 e 1293”
10. Porém, não era isso que dizia o despacho sindicado pelo M.P. para o T.R.P.
11. Na verdade, o que se lê daquele despacho é algo bem diferente, a saber
“No caso dos autos constata-se que o consentimento expresso da busca domiciliária que foi realizada entre as 21h e as 1 h foi prestado pela mãe do arguido A. – B. – cfr – Fls. 1289.
Porém, resulta também dos autos que a busca foi efetuada na presença do arguido, o qual atestou pela aposição da sua própria assinatura que havia acompanhado a busca efetuada – cfr. Fls. 1292 e 1293”
12. Ou seja, uma coisa é o consentimento ter sido prestado pela MÃO do Arguido… e, coisa completamente distinta é tal consentimento ter sido prestado pela MÃE do Arguido, como foi o caso dos autos e os mesmos documentam.
Acresce que,
13. Não obstante a questão do consentimento ter sido discutida pelo M.P. quando o mesmo, em 1.ª instância, se pronunciou acerca da Nulidade das Buscas e das Apreensões tempestivamente requeridas pelo Arguido, o certo é que, em sede de Recurso para o T.R.P., nunca tal questão foi abordada.
14. Aliás, é o próprio M.P. que deixa cair esta questão quando refere “Não se discute aqui saber se a apreensão efetuada teve a autorização do arguido, da mãe deste ou do “visado”, uma vez que não tem aplicação in caso o art.º 174, n.º 5, b) do Código de Processo Penal.”
15. Esta afirmação também faz parte da motivação da decisão recorrida, quando esta refere “Como a nosso ver bem anota o Digno Recorrente: […] Não se discute aqui saber se a apreensão efetuada teve a autorização do arguido, da mãe deste ou do “visado”, uma vez que não tem aplicação in caso o art.º 174, n.º 5, b) do Código de Processo Penal.”
Por outro Lado,
16. É insofismável que o art.º 249.º do C.P.P. teve aplicação nos presentes autos, o que foi feito sem que a disciplina de tal artigo fosse conjugada com a disciplina do art.º 177.º do C.P.P., o que necessariamente provoca a violação do disposto no art.º 32.º n.º 8 e 34.º n.º 1, 2 e 3 da C.R.P.
Na verdade,
17. É a própria decisão recorrida que expressamente refere que “Pela própria resenha dos autos devidamente certificada bem se alcança que no caso se trata de providências cautelares quanto a meios de prova, nos próprios dizeres do art.º 249.º do CPP”.
18. Pelo que, parece-nos evidente que o art.º 249.º do C.P.P teve efetiva aplicação dos presentes autos, sem que tal aplicação tivesse em conta o disposto no art.º 177.º do C.P.P. porquanto, no caso, de uma Busca Domiciliária se tratava.
19. Não está, como nunca esteve, em causa qualquer autorização do “visado”, do Arguido ou da sua mãe, o que expressamente admitido pelo M.P. em sede de alegações de recurso e pela decisão recorrida na parte que, da sua fundamentação, transcreve as alegações do MP, com elas concordando.
Isto Posto,
20. Estribando-se toda a demais posição do M.P. junto deste alto tribunal no alegado consentimento do visado – que não existiu – manifesto se mostra que não lhe assiste razão, importando pois conhecer o Recurso.
Uma última nota:
21. Não se compreende o alegado em 25.º das Contra Alegações, sendo os presentes autos a prova vida de que, como é óbvio, o art.º 249.º C.P.P. e o art.º 177.º C.P.P. podem, em certas situações, sobreporem-se… basta que as apreensões operadas ao abrigo do art.º 249.º do C.P.P sejam levadas a cabo na sequência de uma Busca Domiciliária que é disciplinada pelo art.º 177.º do C.P.P.» (fls. 655 a 657)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Face à invocação, pelo Ministério Público, de uma divergência entre as interpretações normativas que constituem objeto do presente recurso e aquelas que foram efetivamente aplicadas pela decisão recorrida, importa começar por ponderar se tal divergência se verifica, pois, em caso afirmativo, tal obsta ao conhecimento do objeto do recurso, por força do artigo 79º-C da LTC.
Com efeito, ambas as interpretações normativas pressupõem que tenham sido adotadas medidas cautelares quanto aos meios de prova, mas sempre “em violação da disciplina a que alude o art.º 177.º do C.P.P.” (fls. 581 e 581-verso). Ora, nos termos do referido preceito legal – que regula as buscas domiciliárias, exige-se que, para que tais diligências ocorram durante as 21h e as 7 horas, que se tenha verificado um “consentimento do visado, documentado por qualquer forma” [cfr. alínea b) do n.º 2 do artigo 177º do Código de Processo Penal].
É certo que, ao longo de toda a tramitação dos autos recorridos, o recorrente tem insistido que não prestou qualquer consentimento direto para que as buscas domiciliárias tivessem ocorrido. Porém, não cabe a este Tribunal aferir da validade dos juízos concretos quanto à matéria dada por provada pelo tribunal recorrido. E a verdade é que este considerou ter ocorrido tal consentimento, conforme se constata pela decisão ora recorrida:
«Assim, cerca das 23:40 horas do acima referido dia, os agentes C. e D.do NIC da GNR de Santo Tirso apresentaram-se naquela residência e obtiveram da mãe do arguido A., B., ali residente, a respetiva autorização para efetuarem busca domiciliária — cfr. autorização de busca domiciliária de fls. 1289 - a qual, de imediato iniciaram.
Entretanto, tinha ainda apenas começado a acima aludida busca, chegou àquele local o arguido A. que, desde aquele momento e quando ainda nem sequer tinha sido iniciada a busca no seu quarto, acompanhou os agentes enquanto executavam aquela diligência, tendo assinado o respetivo auto de apreensão — cfr. fls. 1290 e 1291.
Uma vez iniciada a busca no quarto do arguido A., sempre por este acompanhada, os agentes depararam-se com a existência de um cofre que se encontrava fechado com o respetivo código de segurança.
Os agentes da GNR não dispunham do código respetivo, nem sequer de meios para arrombarem o cofre, pelo que pediram ao arguido que o abrisse.
Continuando a demonstrar a colaboração e não oposição à diligência que decorria, voluntariamente, o arguido A. abriu o cofre.» (com sublinhado nosso)
Independentemente da questão de saber se o consentimento da mãe do arguido seria bastante para que se desse por validamente expresso o consentimento para busca domiciliária – que o recorrente recupera, quando se pronuncia sobre as contra-alegações do Ministério Público –, certo é que a decisão recorrida toma posição no sentido de considerar que o próprio recorrente, por sua livre manifestação de vontade, teria consentido a busca domiciliária. Assim se deduz da afirmação de que o recorrente acompanhou, livremente, toda a diligência de investigação, bem como abriu o cofre onde estavam depositados os bens apreendidos.
Por conseguinte, não procede o argumento esgrimido pelo recorrente de que teria sido uma errada transcrição do despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que teria motivado a conclusão, pelo tribunal recorrido, de que se teria verificado um consentimento legítimo pelo recorrente. Ora, evidentemente, a circunstância de a decisão recorrida – apenas por evidente lapso de escrita – se referir a “que o consentimento expresso da busca domiciliária que foi realizada entre as 21h e as 1 h foi prestado pela mão do arguido A. – B. – cfr – Fls. 1289” e não, como verdadeiramente consta do despacho, “pela mãe” do recorrente não se afigura bastante para invalidar a conclusão de que tal consentimento direto ocorreu. Desde logo, porque se torna evidente que a decisão recorrida se refere, expressamente, à mãe do recorrente, B., e não ao recorrido. Por outro lado, como decorre da transcrição já supra feita, a decisão recorrida entende que, após chegado a casa, o recorrente consentiu, de modo expresso, na realização da busca domiciliária, tendo-a acompanhado e até colaborado na mesma.
Não cabe, assim, ao Tribunal Constitucional sindicar, em sede de recurso de constitucionalidade, o concreto juízo que o tribunal recorrido formulou quanto aos factos dados como provados. Certo é que aquele considerou que o recorrente consentiu na realização da busca domiciliária; razão pela qual deu por preenchida a exigência formulada pela alínea b) do n.º 2 do artigo 177º do CPP.
Assim sendo, torna-se incontornável concluir que a decisão recorrida não adotou, como razão determinante do seu juízo, as interpretações normativas que constituem objeto do presente recurso, na medida em que qualquer uma delas pressuporia que teria ocorrido um desrespeito pelas exigências legais decorrentes do artigo 177º do CPP. Como tal, conclui-se pela impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC´s, nos termos do n.º 3 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 10 de abril de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – Pedro Macete - João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.