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Processo n.º 337/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O relator no Tribunal Constitucional proferiu decisão sumária pela qual não conheceu do recurso que A., ora reclamante, interpôs nos autos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com fundamento no caráter não normativo do seu objeto e, ainda que assim não fosse, pelo facto de o tribunal recorrido não ter adotado quaisquer das supostas interpretações da lei que o recorrente integrou no objeto do recurso, o que sempre tornaria inútil a sua apreciação de mérito (decisão sumária n.º 278/2013).
O recorrente, inconformado, dela reclamou para a conferência, alegando, em síntese, no que respeita ao primeiro dos fundamentos de não conhecimento do recurso, que a delimitação do objeto do recurso apenas deve ser efetuada em sede de alegações do recurso, e que tendo antecipado tal delimitação no requerimento de interposição – que observou rigorosamente o preceituado no artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC –, sem estar a isso obrigado, era exigível ao Tribunal Constitucional, a quem compete fiscalizar o cumprimento da Constituição, que interpretasse a referida peça processual, em articulação com aquelas onde suscitou perante o Tribunal recorrido as questões de inconstitucionalidade ora em sindicância, de modo a descortinar nelas, apesar de eventuais vícios de expressão ou enunciação, o caráter normativo que verdadeiramente assumem, sob pena de violação do artigo 20.º da Constituição. Por outro lado, também não é fundado o juízo formulado pelo relator quanto à inutilidade do recurso, resultando da decisão recorrida, e da própria decisão sumária reclamada, a demonstração do contrário.
O recorrido Conselho Superior da Magistratura, notificado da reclamação, não lhe apresentou resposta.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O recorrente deve indicar no requerimento de interposição do recurso, além do mais, a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC). Contrariamente ao que o reclamante pretende, é, pois, nessa peça processual, e não nas alegações, que se fixa o objeto de recurso, em termos aliás irreversíveis, servindo estas últimas, uma vez verificada a regularidade processual da instância de recurso, para a invocação das razões por que se considera que a norma indicada viola as normas ou princípios constitucionais enunciados, como objeto de violação, no requerimento de interposição do recurso (n.º 2 do citado preceito legal).
Observado que esteja este requisito formal do requerimento, e os demais legalmente exigidos – fazendo-se uso, se necessário, ao convite a que alude o citado artigo 75.º-A, nºs. 5 e 6, da LTC -, há que verificar, em face do objeto do recurso, tal como foi enunciado pelo recorrente, se estão reunidos os pressupostos processuais de que depende o seu conhecimento (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
No caso concreto, o reclamante integrou no objeto do recurso, no momento processualmente exigível e relevante para o efeito, o da sua interposição, as seguintes questões de inconstitucionalidade:
1) «interpretação dos artigos 123.º e 131.º EMJ e 13.º CP, no sentido de que quando nenhuma prova concreta (documental e testemunhal) existe de factos que preencham os elementos objetivos de infração disciplinar, negando o arguido a prática dos factos, deve ser efetuada ponderação em desfavor do arguido», por violação do princípio da presunção de inocência e do princípio da proibição da inversão do ónus da prova consagrados no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP);
2) «interpretação dos artigos 123.º e 131.º EMJ e 13.º CP, no sentido de que quando nenhuma prova concreta (documental e testemunhal) existe do preenchimento dos elementos subjetivos da infração disciplinar, negando o arguido a prática dos factos e existindo provas nos autos e regras de experiência comum que afastam o preenchimento desses elementos subjetivos da infração, deve ser efetuada ponderação em desfavor do arguido», por violação dos referidos princípios da presunção de inocência e da proibição da inversão do ónus da prova;
3) interpretação dos «artigos 123.º e 131.º EMJ e 13.º CP no sentido de que em processo disciplinar, ao arguido deve ser assacada culpa, quando não lhe era exigível adotar procedimento diverso por o seu comportamento integrar o cumprimento de deveres funcionais do seu cargo», por violação do princípio nulla poena sine culpa consagrado nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 25.º, 205.º, n.º 2, e 204.º da CRP;
4) interpretação dos «artigos 123.º e 131.º EMJ e 13.º CP no sentido de que a apresentação de uma queixa criminal – fora do circunstancialismo a que alude o artigo 365.º CP (tipo de crime de denúncia caluniosa) – integra infração disciplinar, e não corresponde ao exercício de um direito», por violação do direito fundamental de acesso aos Tribunais consagrado nos artigos 20.º, nºs.. 1 e 5, e 204.º da CRP;
5) interpretação do «artigo 94.º, n.º 1, EMJ, no sentido de que a aplicação de pena disciplinar de suspensão do exercício em caso em que ocorrem circunstâncias que diminuem acentuadamente a gravidade do facto e a culpa do agente, e em que os fins das penas se alcançariam mediante a aplicação de uma sanção menos onerosa para o magistrado», por violação dos princípios da justiça e da proporcionalidade consagrados nos artigos 20.º, n.º 4, e 266.º, n.º 2, da CRP; e
6) interpretação do «artigo 97.º EMJ, no sentido de que a pena disciplinar não deve ser especialmente atenuada, nem aplicar-se pena de escalão inferior, quando existam circunstâncias anteriores, posteriores à infração e contemporâneas dela que diminuam acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do agente», por violação dos referidos princípios da justiça e da proporcionalidade.
Da análise do requerimento de interposição do recurso, na parte relevante, que se esgota no acima transcrito, parece manifesto que o ora reclamante não sujeitou à apreciação do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade de verdadeiras normas jurídicas mas aquilo que o recorrente considera vícios do julgado, seja no que respeita à conclusão decisória, que o recorrente reputa inconstitucional, de que estão preenchidos, no caso, os pressupostos de que depende a sua responsabilidade disciplinar [é o que sucede com as questões de inconstitucionalidade supra enunciadas em 1), 2), 3) e 4)], seja no que respeita à decisão que lhe aplicou, em virtude disso, a pena disciplinar de suspensão, que o arguido também considera violadora da Constituição [caso das questões de inconstitucionalidade supra enunciadas em 5) e 6)].
No primeiro caso, o que o arguido, ora reclamante, verdadeiramente julga inconstitucional é que se pondere a prova em seu desfavor, quando negou a prática dos factos e dela não decorre, nem o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos da infração disciplinar, nem a sua culpa, por violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, proibição da inversão do ónus da prova e nulla poena sine culpa; ou que se julgue que determinados factos, aqueles que concretamente se discutem nos autos, integram uma infração disciplinar quando, na sua perspetiva, corresponde ao exercício de um direito de queixa e acesso aos tribunais, por violação das respetivas garantias constitucionais; No segundo caso, insurge-se o recorrente contra a espécie da pena aplicada (pena de suspensão) e a sua não atenuação especial.
É que pouco interessa que o recorrente enuncie de forma abstrata o que incontornavelmente diz respeito ao caso concreto em discussão nos autos. O que é decisivo é que, independentemente da forma como o recorrente apresenta o objeto do recurso, esteja rigorosamente em causa um critério normativo de decisão, que decorra de dado preceito legal, num dos seus sentidos interpretativos possíveis (artigo 9.º do Código Civil), sendo, por isso, potencialmente aplicável a uma generalidade de casos idênticos. O julgamento da matéria de facto e a sua subsunção ao Direito, sendo uma atividade estritamente jurisdicional, tal como o é a determinação da espécie e medida da pena aplicável a uma certa infração, está claramente excluída do controlo do Tribunal Constitucional, a quem compete apenas fiscalizar a constitucionalidade das soluções normativas consagradas pelo legislador (artigos 280.º da CRP e 70.º da LTC).
Ora, confrontando o que o reclamante apresentou como constituindo interpretação da lei (cf. alíneas 1) a 6) supra) com a redação dos preceitos legais identificados como sendo a respetiva fonte hermenêutica (artigos 121.º e 131.º do EMJ e 13.º do CP, por um lado, e artigos 94.º, n.º 1, e 97.º do mesmo EMJ, por outro), facilmente se constata que nenhum destes normativos legais comporta tais pretensas interpretações normativas, atentos os critérios enunciados no artigo 9.º do Código Civil, não existindo, desde logo, qualquer correspondência literal entre cada uma dessas pretensas interpretações da lei e a redação dos preceitos legais em que alegadamente assentam, como salientou o relator.
O objeto do recurso não assume, pois, tal como se sustenta na decisão sumária ora em reclamação, verdadeira natureza normativa, o que, só por si, inviabiliza o prosseguimento dos autos para apreciação de mérito. Assim sendo, não se justifica apreciar a questão da utilidade do recurso, atento o caráter cumulativo dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.