Imprimir acórdão
Processo n.º 102/13
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 142/2013:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 04 de janeiro de 2013 (fls. 155 a 157), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 11 de dezembro de 2012 (fls. 145 a 150), que indeferiu reclamação de despacho proferido pelo Relator junto desse Tribunal e Secção, em 23 de outubro de 2012 (fls. 126 a 130), que não admitiu recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em intempestividade. Em sede de requerimento de interposição de recurso, veio a recorrente configurar assim o respetivo objeto:
«A ora recorrente considera que o artigo 74º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (doravante, RGCO), que dispõe que “O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”, interpretada e aplicada como o foi pela Relação Recorrida, é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da confiança legítima e da segurança jurídica, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, como também por violação do princípio da igualdade e do processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.º 4 e 13.º do mesmo diploma, designadamente quando confrontado com o facto de o prazo da resposta ao recurso ser de 20 dias, por força do disposto no n.º 1 do artigo 413.º do disposto no Código de Processo Penal, uma vez que o RGCO não dispõe sobre esta matéria – artigo 74.º, n.º 4, do RGCO.» (fls. 155 e 156)
2. Na medida em que a recorrente remetia para uma determinada norma jurídica, “interpretada e aplicada como o foi pela Relação Recorrida”, sem especificar, inequivocamente, que interpretação teria sido essa, a Relatora proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento, em 13 de fevereiro de 2013 (fls. 162). Na sequência desse convite, a recorrente viria a responder, especificando que pretendia que fosse apreciada a interpretação extraída do artigo 74º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), “na versão que se mantém em vigor, e que resulta do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de dezembro de 2008”, quando assumida nos seguintes termos:
«3.2. O tribunal a quo, bem como o Supremo naquele acórdão uniformizador, resolveram o problema através de uma interpretação da norma do n.º 4 do artigo 74.º do mesmo RGCO segundo o qual fica fora do âmbito da remissão que dela consta o prazo de resposta do recorrido, previsto no artigo 413.°, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP). Daí que — conclui o Tribunal recorrido — o disposto no artigo 413.°, n.º 1, do CPP não seja aplicável ao prazo para a resposta do recorrido em recurso da decisão proferida pelo juiz em impugnação judicial, não se aplicando o prazo previsto nesta norma do CPP mas o prazo previsto no nº 1, do artigo 74.° do RGCO, o qual dispõe apenas para a interposição do recurso.
4. Contudo, parece-nos que a remissão constante do artigo 74.°, nº 4, do RGCO, para o artigo 413, nº 1, do CPP, não é, em si, inconstitucional, nem há norma constitucional que imponha restrição, no âmbito da remissão, de onde resulta, tendo até em conta o artigo 41.° do RGCO, a aplicação, ao prazo de resposta em recurso para a Relação da sentença proferida no recurso de contraordenação, do disposto no artigo 413.°, nº 1, do CPP, que estabelece, para o efeito, o prazo de 20 dias.
5. Ora, não sendo admissível, em face dos princípios constitucionalmente consagrados, da igualdade de armas, do processo equitativo e da segurança jurídica, que o recorrido disponha do prazo de 20 dias para responder e que o recorrente disponha, apenas, do prazo de 10 dias para interpor recurso, é a norma que, no artigo 74.°, nº 1, do RGCO, estabelece este prazo de 10 dias, que é manifestamente inconstitucional.»
6. Esta solução jurídica é preferível, em face da Constituição — designadamente dos princípios da segurança, da igualdade de armas e do processo equitativo — à que resulta da interpretação do Tribunal recorrido.» (fls. 165 e 166)
Tudo visto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 28 de janeiro de 2013 (fls. 158), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. O objeto do recurso interposto assenta num pressuposto que não se confirma, qual seja o de que a decisão recorrida teria adotado uma interpretação normativa, extraída do artigo 74º do RGCO, que seria contrária ao princípio da igualdade de armas e do processo equitativo – na linha do já afirmado pelo Acórdão n.º 27/2006 do Tribunal Constitucional – por admitir que pudesse aplicar-se um prazo de resposta de 20 (vinte) dias, fundado na aplicação subsidiária do n.º 1 do artigo 413º do CPP, enquanto o prazo de interposição de recurso seria de apenas 10 (dez) dias. Tal conceção vem bem evidenciada, desde logo, no próprio requerimento de interposição de recurso:
«(…) designadamente quando confrontado com o facto de o prazo da resposta ao recurso ser de 20 dias, por força do disposto no n.º 1 do artigo 413.º do disposto no Código de Processo Penal, uma vez que o RGCO não dispõe sobre esta matéria – artigo 74.º, n.º 4, do RGCO» (fls. 155 e 156)
E, mesmo quando convidada a aperfeiçoar esse requerimento de interposição – que remetia para uma interpretação mais exaustiva, quando «interpretada e aplicada como o foi pela Relação Recorrida (fls. 155), a recorrente vem reiterar esta construção do objeto do presente recurso, pois insiste em sustentar a aplicação do prazo de 20 dias, na sua perspetiva, decorrente da necessidade de aplicação subsidiária da norma contida no n.º 1 do artigo 413º, do CPP, relativo à resposta a recurso interposto em processo penal, à resposta a produzir em sede de processo contraordenacional. Senão, reveja-se:
«4. Contudo, parece-nos que a remissão constante do artigo 74.°, nº 4, do RGCO, para o artigo 413, nº 1, do CPP, não é, em si, inconstitucional, nem há norma constitucional que imponha restrição, no âmbito da remissão, de onde resulta, tendo até em conta o artigo 41.° do RGCO, a aplicação, ao prazo de resposta em recurso para a Relação da sentença proferida no recurso de contraordenação, do disposto no artigo 413.°, nº 1, do CPP, que estabelece, para o efeito, o prazo de 20 dias.
5. Ora, não sendo admissível, em face dos princípios constitucionalmente consagrados, da igualdade de armas, do processo equitativo e da segurança jurídica, que o recorrido disponha do prazo de 20 dias para responder e que o recorrente disponha, apenas, do prazo de 10 dias para interpor recurso, é a norma que, no artigo 74.°, nº 1, do RGCO, estabelece este prazo de 10 dias, que é manifestamente inconstitucional.»
6. Esta solução jurídica é preferível, em face da Constituição — designadamente dos princípios da segurança, da igualdade de armas e do processo equitativo — à que resulta da interpretação do Tribunal recorrido.» (fls. 165 e 166)
Evidentemente, esse modo de configurar o objeto do presente recurso pressuporia que a decisão recorrida tivesse não só aplicado o prazo de 10 (dez) dias para a interposição de recurso de decisão em processo de impugnação de decisão sancionatória contraordenacional, previsto no n.º 1 do artigo 74º, n.º 1, do RGCO, como exigia ainda que, em simultâneo, se tivesse tido por admissível a aplicação subsidiária do prazo de 20 (dias) para a produção de resposta ao recurso, ao abrigo do n.º 1 do artigo 413º do CPP. Ora, bem pelo contrário, a decisão nunca considera que os prazos de interposição de recurso e de resposta, em processo contraordenacional, sejam distintos, tendo optado por decidir que ambos são fixados em 10 (dez) dias; como, aliás, a própria recorrente chega a admitir, no § 3.2. do seu requerimento de aperfeiçoamento (cfr. fls. 165).
No fundo, a recorrente pretenderia que o tribunal recorrido tivesse aplicado subsidiariamente o prazo, mais longo, previsto para a resposta a recurso interposto em processo penal (artigo 413º, n.º 1, do CPP, “ex vi” artigo 74º, n.º 4, do RGCO), e daí extrairia a inconstitucionalidade da aplicação do prazo, mais curto, expressamente previsto para a interposição de recurso em processo contraordenacional (artigo 74º, n.º 1, do RGCO). Não foi essa, porém, a interpretação efetivamente acolhida pela decisão recorrida.
Tendo em conta que o Tribunal Constitucional só pode conhecer de normas jurídicas ou de interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (artigo 79º-C da LTC) e não tendo a interpretação normativa que a recorrente delineou como objeto do presente recurso sido aplicada pela decisão recorrida, não deve este Tribunal conhecer do objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação:
«(…)
3. Explicitando: da interpretação uniformizadora do artigo 74.°, nº 1, do RGCO, norma aqui em crise, resulta que em processo de contraordenação, é de dez dias quer o prazo de interposição de recurso para a Relação, quer a respetiva resposta .
4. Inequivocamente, daqui se extrai que o prazo para a interposição do recurso, pelo recorrente, terá de ser igual ao prazo de resposta, do recorrido.
5. No entanto, entende a recorrente, tal como mencionado na resposta ao convite de aperfeiçoamento formulado pela Senhora Juíza Conselheira Relatora, nos seus pontos 4. 5. e 6., que o entendimento que esse prazo seja de 10 (dez) dias é inconstitucional, desatendendo ilegitimamente à remissão da norma do nº 4, do artigo 74.°, do RGCO, para o prazo previsto no artigo 413º, nº 1, do Código de Processo Penal, norma que melhor se coaduna com os princípios constitucionais consagrados na Constituição da República Portuguesa.
6. Aliás, que o prazo do recurso é de 20 dias e não de 10, veio a ser expressamente decidido pela douta decisão pela Relação de Guimarães, de 27-06-2011, posterior ao acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº 1/2009, cujo sumário aqui se transcreve:
I — Em face da jurisprudência obrigatória fixada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 27/2006, o nº 1 do art. 74ºdo RGCO terá de ser interpretado no sentido de que o prazo de interposição do recurso da sentença, em processo contraordenacional, é o previsto no Código de Processo Penal para a resposta ao recurso penal, ou seja o de 20 dias (art. 413 nº 1 do CPP, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 48/2007).
II — estabelecer o prazo de dez dias, quer para o recurso quer para a respetiva resposta, como faz o STJ no Acórdão Uniformizador nº 1/2009, quando a Lei estatui expressamente o de vinte dias para o recorrido responder ao recurso, consubstancia uma interpretação/ aplicação corretiva, postergada pelo art. 8, nº 2 do Código Civil.
III — Não podem ser os tribunais a definir qual é o prazo para a apresentação do recurso — que se apresenta como uma garantia suprema da defesa dos cidadãos — muito menos a posterior, isto é, num momento posterior ao da prática do ato.
IV — Face aos princípios da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, corolários do princípio do estado de direito (art. 2.º da CRP) o prazo aplicável à interposição do recurso, em processo de contraordenação, deve ser o mais favorável ao arguido, ou seja o de 20 dias.
7. Ora, a decisão recorrida, ao não ter aplicado o prazo mais longo, previsto para a resposta ao recurso interposto em processo penal veio, por si só, violar o princípio da igualdade de armas, do processo equitativo e da segurança jurídica, vertidos nos artigos 20º, nº 4, 13º, e 2º da Constituição da República Portuguesa.
8. E assim é independentemente de o tribunal recorrido aplicar o prazo de 10 (dias) para resposta ao recurso pois que, salvo o devido respeito, aquilo por que a recorrente pugna é pela interpretação corretiva do artigo 74.°, nº 1, do RGCO, no sentido de que o prazo de interposição de recurso da decisão judicial só pode ser o previsto no Código de Processo Penal para a resposta ao recurso penal, isto é, o de 20 dias não se podendo, salvo o devido respeito, socorrer da argumentação expendida no ponto 3.2 do seu requerimento para daí retirar que a ora recorrente se conforme com a aplicação do prazo de 10 dias pelo tribunal recorrido para a resposta ao recurso.
9. Termos em que, indo à Conferência, se requer o prosseguimento dos autos.» (fls. 175 a 178)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos:
«(…)
7.º
A decisão recorrida considerou que o prazo para interposição do recurso era de 10 dias, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO).
8.º
Foi essa a norma aplicada como ratio decidendi.
9.º
O que a recorrente alega e que integrou na interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, tem a ver com a não aplicabilidade daquela norma, mas antes com a aplicação subsidiária do prazo de 20 dias, previsto para a resposta ao recurso interposto em processo penal, como decorreria do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, aplicável por força do disposto no n.º 1, do artigo 74.º do RGCO.
10.º
Assim, como se demonstra na douta Decisão Sumária, não há coincidência entre as duas interpretações: a questionada e a aplicada.
11.º
Se a recorrente pretendesse ver apreciada a inconstitucionalidade da norma efetivamente aplicada - por considerar o prazo exíguo - bastaria identificar o artigo 74.º, n.º 1, do RGCO, enquanto fixa um prazo de 10 dias.
12.º
Não o fez, todavia.
13.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Conforme já demonstrado pela decisão reclamada, o tribunal recorrido não procedeu a qualquer aplicação do prazo de 20 dias, previsto no n.º 1 do artigo 413º do CPP – seja para efeitos de resposta a recurso interposto, seja para efeitos da respetiva interposição –, por ter considerado que o n.º 4 do artigo 74º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) não determina uma remissão para aquela específica norma processual penal. Assim sendo, toda a argumentação do reclamante, estruturada em torno de uma alegada violação do princípio da igualdade – por, em teoria, se fixarem prazos diferenciados para o recorrente e o recorrido –, cai por terra.
Torna-se, por conseguinte, incontornável que a decisão recorrida não aplicou efetivamente – como pretendia o ora reclamante – qualquer interpretação normativa que pressupusesse a aplicação de um prazo de 20 dias, seja para interposição de recurso, seja para a apresentação da correspetiva resposta. Ora, tendo sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade apenas pode colocar em crise a interpretação efetivamente aplicada pela decisão recorrida e não a decisão de não aplicação de uma outra interpretação alternativa, defendida pelo reclamante, que nunca chegou a ser alvo de efetiva aplicação.
Razão pela qual se mantém a decisão reclamada.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 15 de maio de 2013. – Ana Martins Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.