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Processo nº 230/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrente A... e recorrido J..., foi proferida, em 4 de Junho último, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, na qual se não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Do assim decidido reclama, agora, a recorrente para a conferência, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º do mesmo texto (terá querido escrever 78º-A).
O recorrido, notificado, nada disse.
Cumpre decidir.
2. - Entendeu-se, na oportunidade, que, desde logo, incumbindo ao recorrente o ónus de equacionar, de modo correcto, claro e inequívoco, a interpretação impugnada das normas em causa, no sentido que se considera ter servido de fundamento decisório, a recorrente não logrou alcançar esse objectivo, limitando-se a adiantar o sentido que, em sua maneira de ver, devia ter sido o adoptado no caso concreto, sem, no entanto, indicar a interpretação normativa que pretende ver apreciada. E, logo em segundo lugar, se adiantou que, mesmo a não se seguir esse entendimento, sempre seria de não conhecer do recurso porque as normas impugnadas não foram aplicadas na decisão de que se intenta recorrer.
3. - Para melhor compreensão, transcreve-se integralmente a decisão sumária sob reclamação:
'1. - A... intentou, no Tribunal Cível da comarca de Lisboa, acção executiva contra J... (e outra), o qual deduziu embargos de executado que, por sentença de
7 de Janeiro de 1998, do 5º Juízo Cível dessa comarca, foram julgados procedentes. Do assim decidido recorreu, de apelação, a embargada, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o Desembargador relator, por decisão liminar, proferida ao abrigo do artigo 705º do Código de Processo Civil (CPC), em 27 de Janeiro de
2000, negado provimento ao recurso, assim confirmando a decisão recorrida.
2. - Inconformada, interpôs a exequente e embargada novo recurso, agora de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por despacho de 17 de Fevereiro seguinte do Relator, não foi admitido, por se entender que 'para o STJ se recorre de acórdãos e não de decisões liminares do relator'. A recorrente veio, então, aos autos, em 8 de Março, alegar que só por lapso recorreu do despacho de 27 de Janeiro quando, na verdade, o que pretendia era reclamar para a conferência, requerendo, consequentemente, que aquele despacho fosse submetido à conferência, nos termos do nº 3 do artigo 700º do CPC. O Desembargador relator, por despacho de 4 de Abril seguinte, não admitiu a reclamação para a conferência, por já ter decorrido o prazo para o efeito, de 10
(dez) dias, não restando nada mais do que o indeferimento do requerido, pois já há muito transitara em julgado o despacho liminar de rejeição do recurso. A recorrente pediu, então, que sobre a matéria recaísse acórdão, argumentando que perante o seu erro, que consistiu na interposição directa de recurso do despacho do relator, se deveria ter mandado seguir os termos de reclamação para a conferência, devendo a reclamação de 8 de Março ser considerada apresentada no prazo legal – ou seja, no prazo em que foi indevidamente interposto recurso para o Supremo. A conferência, por acórdão de 1 de Junho de 2000, indeferiu a reclamação. Como, então, se escreveu, 'o motivo por que se não admitiu a reclamação para a conferência da decisão proferida foi apenas então ter decorrido já o prazo para que a parte pudesse reclamar'. Na verdade, notificada a decisão de 27 de Janeiro em 2 de Fevereiro de 2000, a reclamação deveria ter sido apresentada até 17 desse mês, não se podendo, agora, deferir a pretensão da reclamante 'sob pena de ofender o caso julgado, pois o seu deferimento implicaria a revogação do despacho de fls. 136 [de 17 de Fevereiro], já transitado'.
3. - Mantendo-se inconformada, interpôs a interessada recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando, na oportunidade, a questão de constitucionalidade das normas contidas nos nºs. 3 e 4 do artigo 700º do CPC,
'na interpretação que lhe deu o acórdão, por violadora das garantias de defesa previstas no nº 2 do artigo 202ºda Constituição e do princípio constitucional da igualdade'. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Janeiro de 2001, negou provimento ao agravo. Observa-se no aresto, a certo passo:
'O que a requerente, no fundo, pretende, é a substituição do requerimento de fls. 135 pelo de fls. 141, com a eficácia jurídica deste repristinada à data daquele, fazendo tábua rasa do despacho que recaiu sobre o primeiro requerimento e que, como se disse, transitou em julgado'. Ora, acrescenta-se, estas questões extravasam o acórdão recorrido, que delas não tratou e que só agora são trazidas à lide; assim, 'suscitando em alegações problema novo, não apreciado no despacho ou sentença recorrida, a decisão não é permitida em sede de recurso, até porque isso implicaria a suspensão de uma instância'. E, ainda:
'A agravante errou quanto interpôs recurso para o STJ em vez de reclamar para a conferência e voltou a errar quando reclamou para a conferência (pretendendo colmatar o primeiro erro), fazendo-o fora de prazo. Dado esta extemporaneidade e o facto de o despacho que não admitiu o recurso não ter sido objecto de reclamação para o presidente do STJ, o mesmo transitou em julgado' – termos em que, 'sem mais considerações, porque absolutamente desnecessárias, se nega provimento ao recurso.'
4. - Notificada, a recorrente arguiu a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à questão de constitucionalidade suscitada. O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão tirado em conferência aos 15 de Março
último, indeferiu a arguição deduzida por considerar inexistente a nulidade invocada. Aí se ponderou, designadamente:
'No acórdão [anterior] escreveu-se expressamente: A recorrente pretende agora que o Supremo aprecie: - se houve erro na interposição do recurso, porque onde disse «recurso para o STJ» queria dizer «reclamação para a conferência»; - se o juiz deveria ter corrigido esse erro para evitar violar normas processuais e princípios constitucionais (sublinha-se agora). O que a requerente, no fundo, pretende, é a substituição do requerimento de fls. 135 pelo de fls. 141 , com a eficácia jurídica deste repristinada à data daquele, fazendo tábua rasa do despacho que recaiu sobre o 1º requerimento e que, como se disse, transitou em julgado. Ora, salvo o devido respeito, estas questões estão fora daquilo que é permitido à recorrente fazer. São questões que extravasam o acórdão recorrido, que ele não tratou e só agora são trazidas à lide.' Com o é sabido, o artº 668º nº 1 d) tem de articular-se com o artº 660º nº 2 do CPC, em termos de a omissão de pronúncia não se verificar se não for apreciada uma questão colocada porque precludido o seu conhecimento pela solução dada a outra ou outras. No acórdão só faria sentido este Supremo pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade do art. 700º nºs, 3 e 4 do CPC se estivesse nos seus poderes de cognição a apreciação, ao menos da 2ª questão acima referida. Mas esta foi, como se disse, então, uma questão nova, como tratamento que lhe foi dado no acórdão e que resulta de jurisprudência há muito firmada. Termos em que se indefere a arguição por inexistir a nulidade pretendida.'
5. - Reagiu uma vez mais a recorrente, agora com a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alegando que 'a constitucionalidade das normas contidas nos nºs. 3 e 4 do artigo 700º do Código de Processo Civil foi suscitada na alegação do recurso para este Supremo Tribunal [o recurso é dirigido ao 'Dr. Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça'], por violadoras das garantias de defesa previstas no nº 2 do artigo 202º da Constituição e do princípio constitucional de igualdade'.
6. - O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator – o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional: cfr. o nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82. Já neste Tribunal, o relator lavrou despacho do seguinte teor:
'Suscita-se a questão de inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs. 3 e
4 do artigo 700º do Código de Processo Civil, ‘na interpretação que lhe deu o acórdão por violadora das garantias de defesa previstas no nº 2 do artigo 202ºda Constituição e do princípio constitucional da igualdade’. Constitui ónus do recorrente a indicação, clara e inequívoca, do sentido interpretativo impugando. Assim sendo, notifique-o para, em 10 dias, nos termos e para os efeitos previsto no artigo 75º-A, nºs. 1, 2, 6 e 7, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, prestar o esclarecimento necessário.' Respondeu assim, a recorrente, notificada do despacho:
'Tinha reservado para as alegações a indicação do sentido interpretativo impugnado pois não vê que esse ónus lhe seja imposto já na interposição do recurso pelo artigo 75º-A da Lei nº 13-A/98. Assim, e só por mera cautela: As normas constantes dos nºs. 3 e 4 do artigo 700º do Código de Processo Civil devem ser interpretadas no sentido de que, tendo a parte recorrido de despacho do relator em vez de reclamar para a conferência, se deverão mandar seguir os termos próprios da reclamação.'
7. - Entende-se ser de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82, por não se poder conhecer do objecto do recurso.
8. - Considera-se, antes de mais, que, como vem sendo reiterada e uniformemente entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, incumbe ao recorrente a cabal identificação da norma a apreciar e/ou a indicação precisa da interpretação adoptada pela decisão recorrida que se tem por violadora do texto da Constituição. Só mediante a satisfação desse ónus pode equacionar-se correctamente, de modo expresso e claramente inequívoco, qual a interpretação impugnada das normas em causa que se entende ter servido de fundamento decisório.
É que, como se retira da alínea b) do nº 1 do artigo 70º citado, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade implica que a norma a apreciar tenha sido aplicada durante o processo e aplicada com o sentido inconstitucional invocado. Como se ponderou no acórdão nº 1/95, publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de 1995, 'se a norma não for aplicada com esse sentido alegadamente inconstitucional, mas sim com um outro, não há manifestamente fundamento para recurso ao abrigo dessa disposição, pois não pode dizer-se que tenha havido aplicação de norma alegadamente inconstitucional'.
É o que de resto, exige o nº 1 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82. Assim, e contrariamente à tese defendida pela recorrente, quando se questiona – como é o caso – uma dada interpretação de um preceito legal ou a norma que se extrai da leitura conjugada de mais de um texto de lei, tem essa interpretação ou norma que ser enunciada pelo recorrente, em termos de, se vier a ser julgada inconstitucional, poder ser enunciada na decisão como o comando normativo que os operadores do direito não devem aplicar, por sobre ele incidir um juízo de ilegalidade constitucional (assim, entre tantos outros, o acórdão nº 593/95, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Março de 1996). Ora, não obstante o convite feito, a recorrente continua a não especificar qual a interpretação impugnada, pois que se limita a adiantar a interpretação que entende deve ser feita no caso concreto, mas não assim a interpretação normativa que impugna.
9. - De qualquer modo, e mesmo que outro fosse o entendimento a conceder, sempre seria de não conhecer do objecto do recurso, uma vez que o acórdão recorrido (e esse acórdão só pode ser o de 11 de Janeiro de 2001), não aplicou as referidas normas, como resulta, à evidência, do processado descrito e das questões abordadas nesse mesmo aresto. Consequentemente, não se verifica um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, pertinente à aplicação de norma, no seu todo ou em parte, ou num determinado sentido, actuando como causa decidendi do julgamento. Na realidade, a posição da recorrente subentende não um controlo normativo de constitucionalidade mas um novo juízo a enunciar, sobre o acerto decisório do Supremo Tribunal de Justiça, o que, obviamente, não cabe na competência do Tribunal Constitucional.
10. - Em face do exposto, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.'
4. - Reagiu a recorrente mediante reclamação em que, essencialmente, defende:
a) não lobrigar disposição legal que lhe imponha o ónus de, logo no requerimento de interposição de recurso, indicar 'a interpretação normativa que impugna', assim se configurando como inadmissível essa exigência;
b) a questão de constitucionalidade foi, de resto, em sua tese, suscitada de modo processualmente adequado para o Supremo Tribunal de Justiça em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
5. - Mantém-se o decidido sumariamente.
5.1. - Antes de mais, observe-se que o ónus de uma suscitação inequívoca da questão de constitucionalidade – que pode estar, segundo a jurisprudência corrente, orientada para um determinado sentido normativo – resulta da conjugação do artigo 70º, nº 1, alínea b), e do artigo 75º-A, nºs. 1 e 2, da Lei nº 28/82, e compreende-se que assim seja, como, de resto, constitui jurisprudência uniforme, reiterada e unânime deste Tribunal.
Na verdade, o controlo de constitucionalidade que a Lei Fundamental e a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional conferem a este, é um controlo normativo, que tem por objecto normas (como actos de poder normativo público) e não actos de poder público de outro tipo, como são as decisões judiciais.
E se é verdade que se concede aos interessados discutir apenas um dado segmento normativo ou uma determinada interpretação da norma, então impõe-se que, ao recorrer, identifique cabalmente esse sentido.
Remete-se, a este propósito, para o que se escreveu em acórdão deste Tribunal – nº 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, que mais não é do que a expressão corrente da jurisprudência constitucional. Aí se escreveu: De facto, tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, acórdão nº 269/94, Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental. Escreveu-se a propósito no acórdão nº 367/94 (Diário da República, II série, de
7 de Setembro de 1994): Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.
[...] esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, violar a Constituição.
Mas mais: a reclamante, ao colocar a questão de constitucionalidade, nem sequer indicou a norma ou princípio constitucional que era infringido pelas normas de direito ordinário que apontou.
Ora - como se sublinhou no já citado acórdão nº 269/94 -, a questão de constitucionalidade só se suscita de forma clara e perceptível, quando se indica - além da norma (ou segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que se tem por inconstitucional - também 'o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando-[se], ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido'. E acrescentou-se: Ora, sendo isto assim - e não se vê que possa ser de outro modo, pois que não é exigível que os tribunais decidam questões (designadamente, questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem as razões por que entendem que elas devem ser decididas num sentido, e não noutro -, sendo isto assim, dizer que determinados preceitos legais 'aplicados ao caso dos autos são inconstitucionais', sem tão-pouco se indicar a norma ou princípio constitucional que os mesmos violam, não é suscitar, de modo processualmente adequado, a questão de constitucionalidade desses preceitos.'
5.2. - Acresce que, de qualquer modo, a parte final da decisão sumária entendeu que a normação em causa não foi objecto da causa decidendi do acórdão recorrido pelo que sempre seria de não tomar conhecimento do objecto do recurso.
6. - Em face do exposto, e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, indefere-se a presente reclamação e confirma-se a decisão sumária, de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta. Lisboa, 12 de Julho de 2001 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida