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Proc. nº 344/01 ACÓRDÃ0 Nº 358/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. P..., SA. veio reclamar para a conferência da decisão sumária de 12 de Junho de 2001 (a fls. 208 e seguintes), que, por não considerar verificados os pressupostos processuais exigidos no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, decidiu não tomar conhecimento do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional A reclamante invocou, em síntese, a seguinte argumentação:
'[...]
3. [...] a) O DL 231/98, de 22 de Julho, revogou expressa e totalmente o regime constante do DL 276/93, de 10 de Agosto, dele não constando qualquer ressalva ou norma transitória sobre a manutenção temporária em vigor de parte da legislação revogada; b) O douto acórdão recorrido interpretou o Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho, no sentido de os cartões de identificação emitidos ao abrigo do disposto no DL 276/93, de 10 de Agosto, se manterem em vigor após a entrada em vigor daquela norma revogatória, considerando assim relevantes, para efeitos de definição dos pressupostos da punição aplicada à recorrente, cartões de identificação que já não tinham qualquer valor legal; c) As normas do DL 231/98, de 25 de Julho, interpretadas de acordo com o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido, são assim claramente inconstitucionais, por violação do art. 29º da CRP. Assim sendo, temos de concluir que no caso sub judice não está em causa a apreciação da constitucionalidade de qualquer decisão judicial, mas apenas concretas normas jurídicas, de acordo com o sentido normativo que lhes foi fixado através da interpretação constante da decisão judicial recorrida. Nesta conformidade, cremos ser manifesto que a decisão sumária em análise violou frontalmente o disposto nos arts. 70º/1/b) e 78º-A da LTC.'
2. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o Ministério Público respondeu que:
'1º– A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que o ora reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto.
2º– Não se questiona, como é evidente, que a questão de inconstitucionalidade pode reportar-se, não à norma – objectivamente considerada – mas a uma dada interpretação ou dimensão normativa, concretamente aplicada à dirimição do caso concreto.
3º– Só que – neste caso – cabe naturalmente ao recorrente definir e delimitar o objecto da questão que pretende colocar à ulterior e eventual apreciação do Tribunal Constitucional, definindo em termos claros, directos e perceptíveis qual a interpretação normativa que especificamente pretende questionar, a qual se não pode confundir com a mera questão da subsunção casuisticamente realizada na decisão recorrida.
4º– Ora, não tendo o recorrente cumprido tal ónus, é manifesto que se não verificam os pressupostos do recurso interposto.'
3. Como se disse na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional tem considerado, embora não por unanimidade, que não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada em recurso de fiscalização concreta, a análise de uma possível inconstitucionalidade do processo interpretativo seguido pelo tribunal a quo no preenchimento dos elementos definidores de um determinado tipo legal, em domínios em que vigora o princípio da legalidade.
Na verdade, tem entendido este Tribunal que uma interpretação alegadamente extensiva ou analógica dos elementos do tipo, em matéria fiscal ou penal – e por isso também em matéria contraordenacional –, feita pelo tribunal a quo, é indissociável das circunstâncias do caso e, por isso, a eventual inconstitucionalidade é de imputar à decisão judicial e não à norma aplicada.
Disse o Tribunal Constitucional no acórdão nº 674/99 (Diário da República, II Série, nº 47, de 25 de Fevereiro de 2000, p, 3856 ss), onde se discutiu amplamente esta questão e se fez uma análise da jurisprudência anterior sobre a matéria:
'[...] Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial – excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal)
[...]. Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa [...].'
4. A reclamação agora apresentada não contém argumentos novos que levem a alterar esta jurisprudência.
Aliás, dentro da perspectiva adoptada maioritariamente por este Tribunal, que acaba de ser referida, o teor da reclamação vem confirmar que está a ser impugnada a aplicação ao caso das normas dos artigos 10º, nº 1, alínea b), e 31º, nº 1, alínea h), do Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho – isto é, está a ser impugnada a operação de subsunção, e, consequentemente, a própria decisão judicial que condenou a ora reclamante pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punível por aquelas normas.
Na verdade, a reclamante repete que:
'[...] O douto acórdão recorrido interpretou o Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho, no sentido de os cartões de identificação emitidos ao abrigo do disposto no DL
276/93, de 10 de Agosto, se manterem em vigor após a entrada em vigor daquela norma revogatória, considerando assim relevantes, para efeitos de definição dos pressupostos da punição aplicada à recorrente, cartões de identificação que já não tinham qualquer valor legal;
[...].'
5. Reitera-se, pois, o que já se afirmou na decisão sumária reclamada.
A reclamante considera afinal que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao aplicar ao caso as normas dos artigos 10º, nº 1, alínea b), e
31º, nº 1, alínea h), do Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho.
Ora, ainda que se entendesse que este Tribunal poderia conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes da circunstância de ter sido utilizado um processo de interpretação constitucionalmente proibido (por via da integração analógica ou de uma operação equivalente), sempre será de considerar excluída da competência do Tribunal Constitucional a apreciação de interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
É que, sendo a competência do Tribunal Constitucional restrita ao julgamento de questões de inconstitucionalidade normativa, não pode este Tribunal censurar uma decisão judicial que, por eventual erro de julgamento, haja violado directamente uma norma ou princípio constitucional.
Conclui-se, assim, que não estão verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide confirmar a decisão sumária reclamada, de 12 de Junho de
2001, que não tomou conhecimento do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 12 DE julho DE 2001 mARIA hELENA bRITO Vítor nUNES DE aLMEIDA Luís nUNES DE aLMEIDA