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Processo n.º 122/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado, na Comarca da Grande Lisboa Noroeste Sintra (recuperação de pendências), Pequena Instância Criminal, pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 8, no montante global de € 720.
O arguido interpôs recurso desta decisão, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa negado provimento ao recurso, por acórdão proferido em 4 de outubro de 2012.
Desta decisão o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“1. Entende o recorrente que o douto Acórdão – na sequência da decisão da Comarca viola os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reu subjacentes à apreciação da prova pelo Tribunal.
2. Apesar do douto Acórdão recorrido invocar e reproduzir a fls. 12 parte do Acórdão de 8/1/1998 do STJ (Proc. 1031/97) no sentido de legitimar a decisão perfilhada é precisamente invocando o mesmo aresto jurisprudencial que se sustenta o presente Recurso, isto é:
3. É convicção do recorrente que o Tribunal recorrido deu como provado algo que notoriamente está errado, e retira de um facto dado como provado conclusões que, podendo até aceitar-se serem logicamente possíveis são arbitrárias e notoriamente violadoras das regras da experiência comum.
4. Como escreveu o Prof, Cavaleira Ferreira:
“A Lei não está ausente da “livre convicção” do juiz. O sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade mas não ao arbítrio a que a Lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre a matéria de facto, e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição, a sua fé ou convicção sem provas e sem base objetiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação, que não pode confundir-se com a supressão da prova ou com a faculdade, por exemplo, de inverter por seu alvedrio o ónus da prova” (in Curso de Direito Penal II, pág. 300).
5. Ora, apesar da profusa justificação efetuada foi o que o Tribunal – e em duas instâncias – fez pois, extraiu conclusões de factos genéricos e que não podiam conduzir a tal resultado.
6. Chama-se especial atenção para o depoimento das duas únicas testemunhas – que eram funcionários do queixoso/recorrido – que pouco ou nada disseram de concreto e de onde o Tribunal, sem se perceber como vem a dar como provado o que consta dos pontos 2.1 do douto Acórdão (sobretudo nos parágrafos primeiro, segundo e sexto)
7. Da audição das testemunhas não se pode extrair que tais expressões tenham sido ditas pois nada disso elas referiram, ficando até a ideia da relativa irrelevância da questão pois, uma das testemunhas não só não largou o que estava a fazer (?) como NEM SEOUER SE LEMBRAVA JÁ DAS EXPRESSÕES PROFERIDAS... (ex vi dos 3 primeiros parágrafos do ponto 2.3 do douto Acórdão);
8. É esta a prova produzida.
9. Parece depois o Tribunal assentar a sua convicção no depoimento – que até elogia (?) – do recorrido/assistente o que, sendo possível é estranho pois, sendo o interesse no resultado de um processo o principal fator de suspeição de uma testemunha deverá o assistente nos autos ser sempre ouvido com sérias reservas de credibilidade.
10. Acresce que o móbil da discussão – a devolução de um sinal entregue pelo arguido/recorrente ao assistente para obra não realizada – veio a obter ganho em ação judicial para tal dada a juízo pelo recorrente, o que o Tribunal já sabia na data da Sentença.
11. É o conjunto dos fatores relatados, conjugados com as regras da experiência comum e a simples audição dos depoimentos gravados das testemunhas que obrigava a, sendo usados e valorados devidamente os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reu, absolver o recorrente.
12. Voltando às palavras do Mestre, Prof. Cavaleira Ferreira enaltecem-se as seguintes pela acutilante aplicação ao caso sub iudice:
“O sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade mas não o arbítrio a que a Lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre matéria de facto e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição a sua fé ou convicção sem provas e sem base objetiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação”.
13. Tudo visto, conclui-se que, a interpretação que o Tribunal faz das regras sobre a apreciação da prova (que é livre mas não arbitrária) do artº 127º do CPP é, in casu, inconstitucional pois deixa violados dois dos seus limites, um endógeno que é o da observância do princípio de inocência e o outro exógeno pelo condicionamento que o in dubio pro reu delimita no alcance do grau de convicção e apreciação da prova.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Em primeiro lugar o arguido recorre ao abrigo da competência definida na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, não se verificando que o acórdão recorrido tenha recusado a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Em segundo lugar, dos termos do recurso apresentado é manifesto que o Recorrente alega a inconstitucionalidade da própria decisão Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que decidiu sobre a fixação da matéria de facto pela 1.ª instância, e não qualquer critério normativo sustentado pela decisão recorrida, pelo que nunca este recurso podia ser conhecido dado o seu objeto não ter um conteúdo normativo.
Por esta razão deve ser proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.”
O Recorrente reclamou desta decisão, alegando o seguinte:
6. Logo nas Alegações do recurso para a Relação de Lisboa o recorrente imputou ao Tribunal recorrido (a Comarca de Sintra) a violação da Constituição na dimensão normativa que serviu de critério decisório em matéria de direito probatório
7. Deve assinalar-se que a distinção entre a invocação da inconstitucionalidade da decisão recorrida e a da inconstitucionalidade dos seus fundamentos normativos, a mais das vezes, e apesar da certeza com que o Tribunal Constitucional parece diferenciar os planos, e que nesta douta Decisão sumária até esclarece, é de difícil separação.
8. Em rigor quando se questiona a constitucionalidade de uma decisão está-se, inseparavelmente, também a questionar a interpretação que o julgador faz das normas a que subsumiu a decisão.
9. Sem embargo de se entender os planos dialéticos e jurídico/axiomáticos diferentes, na realidade, a mais das vezes, estamos perante a mesma realidade de facto com, apenas, diversas perspetivas de abordagem, isto é:
10. O que se quer dizer é que, para ser admissível um recurso para o Tribunal Constitucional só a arguição da inconstitucionalidade de normas - que não de decisões judiciais - é aceitável, nesse recurso pode impugnar-se simplesmente uma certa interpretação de determinada norma (ou, o que vale o mesmo, esta última enquanto interpretada num certo sentido ou com uma certa dimensão), pois, então não se estará já a arguir (apenas) a inconstitucionalidade de uma decisão judicial, mas ainda, verdadeiramente, o seu suporte normativo, a norma que ela aplicou.
11. É certo que, na esteira do douto esclarecimento da Decisão Sumária ora em reclamação, para além da desconformidade inconstitucional da interpretação perfilhada na decisão que se questiona, necessário é que a essa 'interpretação normativa' se possa imputar um caráter de generalidade suscetível de aplicação genérica e não só à decisão judicial concreta em causa.
12. Ora, este conceito definidor é de difícil preenchimento e subsunção na realidade processual pois não é fácil distinguir, partindo de uma decisão judicial que se antolha inconstitucional, para o critério normativo que lhe gerou essa inconstitucionalidade e assumir que isso é um critério genérico do decisor;
13. Na realidade, é quase imputar ao julgador que decide contra a Constituição, uma predisposição legislativa e sequencial de que, no futuro, fará e decidirá na mesma forma.
14. Ora, salvo o devido respeito e, a aceitação do sistema processual junto do Tribunal Constitucional no que tange à necessidade argumentativa, não se pode aceitar pacificamente esta postura expendida na douta decisão sumária porque, em rigor, quase inviabilizaria todo e qualquer recurso de constitucionalidade;
15. Ou, pelo menos, tomá-lo-ia sempre subjetivo e difuso pois implicaria extrair da decisão criticada virtudes de generalidade que não tem de ter pois é sempre dependência de um caso concreto, contudo;
16. Ora, salvo sempre o devido respeito, quer parecer ao recorrente que no texto do recurso que interpôs para este Constitucional Areópago da decisão da Relação de Lisboa se deu cumprimento suficiente (pelo menos) a este ónus.
17. Acresce que, como já se referiu, é convicção do recorrente que, pelo menos de forma suficiente, – e essa suficiência afere-se pela convicção que lhe assiste de este douto Tribunal Constitucional ter entendido o objeto e o objetivo do recurso - ter cumprido o exigente crivo da 'suscitação da inconstitucionalidade de forma adequada' que, agora, em sede de decisão Sumária, lhe é dito não ter sido cumprido.
18. O que verdadeiramente se questiona é a interpretação de certa norma - num certo sentido e dimensão - de forma que, o que é posto em causa não é a decisão 'tout court' mas o seu suporte normativo, a norma que aplicou - artº 127º CPP - ;
19. Foi isso que o recorrente julga ter feito, contudo, e aqui surge o segundo ponto de discordância com a douta Decisão Sumária;
Se não foi porque desprezar, à partida, a virtude corretiva dos nºs 5 e 6 do artº 75º da L.T.C.?
20. Por outro lado, e ainda relativamente aos dos nºs 5 e 6 da L.T.C., é também relevante invocar os artºs 264º a 266º-A todos do Cód. Proc. Civil.
21. Os artigos invocados criam um enquadramento judicial que não acolhe o formalismo extremo que o Exmo. Sr. Conselheiro Relator entende sobrevir da L.O.T.C. pois, seguindo-os - especialmente os nºs 1 a 3 do artº 265º do C.P.C. - nunca o Tribunal abdicaria 'ab initio' do instituto previsto expressamente do suprimento de erros ou incorreções de âmbito formal,
22. Que, ao ser desperdiçado, viola ostensivamente o nº 1 do artº 266º do C.P.C., ficando a perder a realização da Justiça, fim último dos Tribunais (ex. vi do artº 202º da C.R.P.).
23. A interpretação defendida, na douta Decisão sumária para os artºs 70º e 75º da L.T.C. e 265º a 266º-A do C.P.C. ofendem os artºs 202º, 13º, 20º e 32º n' 1 todos da C.R.P. justificando esta Reclamação para a Conferência, momento jurisdicionalmente derradeiro para possibilitar, no âmbito do recurso interposto da decisão da Relação de Lisboa, a possibilidade de, num segundo grau de jurisdição, apreciar o uso que o Tribunal da Relação fez de vários princípios constitucionais que restringem, na opinião do recorrente os seus direitos.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
A decisão recorrida não admitiu o recurso por o objeto deste não ter um conteúdo normativo, incidindo antes sobre o sentido da decisão recorrida.
O Recorrente além de questionar a necessidade do recurso constitucional se dirigir apenas a normas, diz que o recurso se dirigiu ao suporte normativo que sustentou a decisão recorrida, ou seja o artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
Se o disposto no artigo 280.º, da Constituição, e no artigo 70.º, da LTC, não deixa margem para dúvidas que no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, também a leitura do requerimento de interposição de recurso revela claramente que o Recorrente dirigiu a sua pretensão de fiscalização de constitucionalidade à própria decisão do recurso da matéria de facto e não a qualquer norma que o julgador tenha utilizado para suportar essa decisão. Nesse requerimento o Recorrente limitou-se a manifestar o entendimento que o modo como o Tribunal da Relação tinha apreciado a impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, violava o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência do arguido.
E sendo esse o conteúdo e sentido do requerimento de interposição de recurso, não podia ter sido utilizado o mecanismo do convite á correção, uma vez que não nos encontrávamos perante a falta de objeto da pretensão de fiscalização, mas sim perante a indicação de algo que não era suscetível de fiscalização de constitucionalidade.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 29 de maio de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro.