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Processo n.º 928/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., S.A., melhor identificada nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
«(…)
“A., S.A.”, Recorrente nos autos à margem identificados, não se conformando com a Douta Decisão Sumária nº 52/2013 vem dela RECLAMAR nos termos do artigo 78º A nº 3 da Lei nº 28/82 de 15 de novembro para a Conferência, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1º
No Douto Acórdão recorrido, emanado do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, é referido nas suas conclusões que “A rejeição de um plano de insolvência pela Administração Fiscal através da não aceitação de garantias traduzidas em hipoteca ou penhor, configura, sendo esse plano aprovado, não obstante essa oposição, um fundamento para a não homologação oficiosa desse plano, nos termos do arrigo 215º do CIRE.
2º
Mais concluindo que “A interpretação dos artigos 30º nº 3 da LGT e 199º nºs 1 e 2 do CPPT que conduz ao resultado aqui indicado não implica qualquer entendimento inconstitucional dessas normas.”
3º
Não se conformando com este entendimento e conforme havia anteriormente suscitado no mesmos autos, a Reclamante requereu que fosse declarada a inconstitucionalidade material dos artigos 30 nº 3 da LGT e 199º do CPTT quando interpretados no sentido de que é suficiente, para se aferir da indisponibilidade dos créditos tributários, a mera aceitação ou não pela Administração Fiscal, das garantias envolvidas na afetação desses créditos, sem que para tanto, sejam apresentados e/ou justificados os motivos que presidiram a tal não aceitação, por violação do princípio da legalidade, consagrado nos artigos 266º nº 2 e 268º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
4º
Assim e contrariamente ao vertido na Douta Decisão Sumária ora reclamada, a Reclamante não pretende por em causa “o juízo sobre a eventual suficiência ou insuficiência da fundamentação apresentada pela Fazenda Nacional quanto à recusa do plano de insolvência.”
5º
O que a Reclamante pretende por em causa, por violar o princípio da legalidade constitucionalmente protegido, é a interpretação dada aos artigos 30º nº 3 da LGT e 199º do CPPT no sentido de que a Fazenda Nacional não tem de fazer qualquer juízo, não tem de apresentar qualquer justificação e de uma forma totalmente arbitrária e discricionária possa recorrer contra a homologação de um plano de insolvência, limitando-se para o efeito a invocar o teor dos mencionados preceitos legais.
6º
Ora, esta interpretação dada aos artigos 30º nº 3 da LGT e 199º do CPPT é, repete-se, inconstitucional,
7º
pelo que, no modesto entender da Reclamante, tem caráter normativo a questão da constitucionalidade levantada.
SEM PRESCINDIR:
8º
Refere ainda a Douta Decisão Singular ora reclamada que a “interpretação cuja constitucionalidade a recorrente vem impugnando na sua intervenção processual não foi fundamento determinante da decisão recorrida.”
9º
Com o devido respeito, que é muito, a Reclamante não pode igualmente acolher tal entendimento.
10º
Com efeito, analisando a folhas 4 do Douto Acórdão em crise, a presente questão de inconstitucionalidade, foi a única invocada pela ora Reclamante junto daquele Venerando Tribunal e que foi por ele decidida,
11º
e é rigorosamente idêntica àquela que foi invocada junto deste Tribunal Constitucional.
(…)»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«(...)
5. A., S.A., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, com data de 5 de dezembro de 2012, na medida em que ‹padece de inconstitucionalidade material a interpretação de que o Tribunal “a quo” atribuiu aos mencionados artigos 30º nº 3 da LGT e 199º do CPPT no sentido de que é suficiente, para se aferir da indisponibilidade dos créditos tributários, a mera aceitação ou não pela Administração Fiscal, das garantias envolvidas na afetação desses créditos, sem que para tanto, sejam apresentados e/ou justificados os motivos que presidiram a tal não aceitação. Com efeito, a ora Recorrida limita-se a invocar para essa não aceitação uma avaliação que a Recorrente desconhece, para considerar a garantia prestada como inidónea e, recusa de forma dogmática, o penhor como garantia, apesar de constar essa possibilidade, de forma expressa, do teor do artigo 199º nº 1 do CPPT.›
6. Decretada a insolvência da sociedade A., S.A., iniciou-se a fase concursal na qual foi reconhecido um crédito fiscal da Fazenda Nacional. Seguiu-se a apresentação, na assembleia de credores, pelo Administrador da insolvência, de um plano de insolvência, com o qual a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, manifestou a sua discordância. Essa discordância manteve-se mesmo após a reformulação do primeiro plano apresentado, sendo que, em função da votação dos credores, tal plano acabaria por ser aprovado pela assembleia e mais tarde homologado por sentença com data de 23 de janeiro de 2012. Inconformado com tal desfecho, o Ministério Público interpôs recurso junto do Tribunal da Relação de Coimbra que, em decisão sumária datada de 5 de Outubro de 2012, julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e recusando a homologação do plano de insolvência na versão nela considerada aprovada.
Em requerimento com data de 26 de outubro de 2012, a ora recorrente interpôs recurso de constitucionalidade, o qual, porém, em virtude do não esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão, foi convolado em requerimento para a conferência (fls. 332). Finalmente, em resposta a tal requerimento, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu desatender a questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente, e confirmar a decisão sumária de 5 de Outubro de 2012 (fls. 332).
7. O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º. n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
8. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi da decisão recorrida.
In casu, porém, não é isso que se verifica. Desde logo, a questão de constitucionalidade avançada pela recorrente não tem conteúdo normativo, no sentido de que nela não está em causa uma situação de desconformidade entre certas normas jurídicas e o conjunto das normas e princípios que enformam o parâmetro normativo-constitucional. Recorde-se, com efeito, que o controlo efetuado pelo Tribunal Constitucional é um controlo normativo, o que significa, portanto, que não se recorre do mérito da sentença nem da eventual inconstitucionalidade das próprias decisões judiciais (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, 2010, p. 945). Ora, no caso vertente aquilo que a recorrente pretende controverter não é verdadeiramente a interpretação sufragada pelo tribunal recorrido a propósito dos artigos 30.º, n.º 3, da LTC e 199.º, do CPPT, mas antes o juízo sobre a eventual suficiência ou insuficiência da fundamentação, apresentada pela Fazenda Nacional, quanto à recusa do plano de insolvência. Tal conclusão é reforçada pela própria decisão recorrida:
‹(…)
2.1.2. Note-se, completando a discussão desta questão, tendo em vista a estruturação do argumento de inconstitucionalidade nos exatos termos em que a Reclamante o apresentou a esta Relação no requerimento de fls. 329, que o controlo dos motivos da recusa de aceitação das garantias envolvidas no plano de insolvência ultrapassa a incidência de uma regra com vocação de generalidade que se possa extrair da interpretação do artigo 199º, nºs 1 e 2 do CPPT. Ao invés, situa-se esse argumento na valoração das vicissitudes do caso concreto e não tanto na exploração do sentido objetivo da norma.
(…)›
Acresce que, mesmo reconhecendo caráter normativo à questão de constitucionalidade levantada, sempre seria de recusar a admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto, atento o facto de a “interpretação” contestada pela recorrente não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida. Com efeito, conclui-se a partir da leitura do acórdão impugnado que o sentido nela vertido advém de uma interpretação conjugada dos artigos 216.º, do CIRE, 30.º, n.º 3, da LGT e 199.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, nos termos da qual “no processo concursal, a homologação judicial de um plano de insolvência que afete créditos fiscais reconhecidos, depende sempre do acordo da administração tributária quanto às garantias a constituir relativamente a esses créditos, estando vedada a homologação judicial de um plano, nos termos do artigo 215º do CIRE, sem esse acordo referido às garantias propostas.” O mesmo é dizer que não tendo sido esta a interpretação objeto de suscitação pela recorrente no requerimento de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, nem tampouco – já o vimos – no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, foi sobre ela que incidiu o juízo de não inconstitucionalidade veiculado no acórdão de 5 de dezembro de 2012, e foi igualmente com base nela que o tribunal recorrido confirmou o sentido da decisão sumária objeto de recurso. Constata-se, portanto, que a “interpretação” cuja constitucionalidade a recorrente vem impugnando na sua intervenção processual não foi fundamento determinante da decisão recorrida.
Assim sendo, há que concluir não estarem preenchidos in casu os pressupostos processuais de que está dependente a admissibilidade dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
9. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)»
5. A reclamação apresentada pela reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, concretamente, na circunstância de a questão de constitucionalidade cuja constitucionalidade se contestou não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida.
Argumenta a reclamante, na reclamação submetida a apreciação, que “pretende pôr em causa, por violar o princípio da legalidade constitucionalmente protegido, é a interpretação dada aos artigos 30º nº 3 da LGT e 199º do CPPT no sentido de que a Fazenda Nacional não tem de fazer qualquer juízo, não tem de apresentar qualquer justificação e de uma forma totalmente arbitrária e discricionária possa recorrer contra a homologação de um plano de insolvência, limitando-se para o efeito a invocar o teor dos mencionados preceitos legais.” Sustenta que tal questão de constitucionalidade foi decidida pelo tribunal a quo, contestando, nessa medida, o juízo veiculado na decisão sumária de que a questão gizada nos termos mencionados supra não teria sido fundamento determinante da decisão recorrida.
Ora, não tem novamente razão a reclamante. Resulta, com efeito, do acórdão recorrido que este se centrou na validade de uma interpretação conjugada dos artigos 216.º, do CIRE, 30.º, n.º 3, da LGT e 199.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, nos termos da qual “no processo concursal, a homologação judicial de um plano de insolvência que afete créditos fiscais reconhecidos, depende sempre do acordo da administração tributária quanto às garantias a constituir relativamente a esses créditos, estando vedada a homologação judicial de um plano, nos termos do artigo 215º do CIRE, sem esse acordo referido às garantias propostas.” Como é bom de ver, esta questão não se confunde com o problema de saber em que termos pode a administração praticar um ato de recusa de homologação do plano de insolvência proposto. Tal facto, aliado à diversidade de normas e princípios constitucionais em jogo, evidencia cabalmente a diferença que medeia entre a questão apreciada e decidida pelo tribunal a quo, e a questão identificada pela reclamante no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional e reiterada na reclamação apresentada.
Confirma-se, pois, o acerto da decisão sumária reclamada quanto ao não preenchimento, no caso vertente, dos pressupostos processuais inerentes aos recursos de constitucionalidade da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 20 de março de 2013.- José Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro