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Processo n.º 185/13
Plenário
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da LTC, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 814.º do Código de Processo Civil (CPC), na redação do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, quanto interpretada no sentido de limitar a oposição à execução fundada em injunção à qual foi aposta a fórmula executória.
Invoca o requerente que esta dimensão normativa foi julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 468/2012 e 529/2012 e pelas Decisões Sumárias n.ºs 490/2012, 571/2012, 581/2012, 89/2013 e 112/2013 (todas transitadas em julgado), embora a formulação constante das respetivas decisões não seja absolutamente coincidente.
2. Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, aplicáveis por força do artigo 82.º, da LTC, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
3. Foi elaborado memorando, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, ex vi artigo 82.º da LTC, que veio a ser apreciado e discutido em Plenário, importando, agora, formular a decisão que, então, veio a ser fixada.
II. Fundamentação
4. Nos termos do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, o Tribunal aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos.
Para verificação dos requisitos previstos naquele preceito constitucional e no artigo 82.º da LTC, o requerente indica os Acórdãos n.ºs 437/2012, 468/2012 e 529/2012 e as Decisões Sumárias n.ºs 490/2012, 571/2012, 581/2012, 89/2013 e 112/2013.
Os Acórdãos n.ºs 437/2012 e 468/2012 julgaram inconstitucional a norma contida no artigo 814.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de «limitar a oposição à execução fundada em injunção à qual foi aposta fórmula executória», concluindo-se naquele primeiro aresto que «a norma em apreço, na medida em que limita injustificadamente os fundamentos de oposição à execução baseada em ‘requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória’, padece do vício de inconstitucionalidade por violar o ‘princípio da proibição da indefesa’, enquanto aceção do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição.»
Por seu turno, o Acórdão n.º 529/2012, remetendo para a orientação fixada nos Acórdãos n.ºs 437/2012 e 468/2012, julgou inconstitucional, com um voto de vencido, a norma contida no n.º 2 do artigo 814.º do CPC, explicitando que não se considerava necessário «introduzir especificações no alcance do julgamento de inconstitucionalidade porque a norma não tem outro efeito jurídico senão aquele que se julga inconstitucional, o de limitar aos enunciados no n.º 1 do mesmo preceito legal os fundamentos de oposição à execução titulada por requerimento de injunção». A mesma norma do n.º 2 do artigo 814.º do CPC foi julgada inconstitucional pela Decisão Sumária n.º 571/2012.
Não se desviando da orientação fixada nestes Acórdãos, embora recorrendo a fórmulas decisórias não inteiramente coincidentes, a Decisão Sumária n.º 490/2012 julgou inconstitucional a norma constante do artigo 814.º, n.º 2, do CPC, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, quando interpretada no sentido de estabelecer uma equiparação entre o requerimento de injunção a que seja aposta fórmula executória e uma qualquer decisão judicial condenatória ao pagamento de uma certa importância pecuniária, por violação do direito fundamental do acesso ao direito, previsto no artigo 20.º da CRP, nas vertentes da proibição de indefesa e do direito a um processo equitativo; a Decisão Sumária n.º 581/2012 julgou inconstitucional a norma extraída da conjugação entre a alínea g) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 814.º do CPC, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, interpretada no sentido de que «os factos impeditivos ou modificativos da obrigação a que se refere a alínea g) do n.º 1 do artigo 814.º do CPC apenas terá relevância quando seja posterior ao encerramento da discussão do processo de declaração e se prove por documento ou, no caso da prescrição, por qualquer meio»; e as Decisões Sumárias n.ºs 89/2013 e 112/2013 julgaram inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 814.º do CPC, quando interpretada no sentido de limitar a oposição à execução fundada em injunção à qual foi aposta fórmula executória.
Ora, como ressalta do supra exposto, as decisões enumeradas concluíram que o regime previsto no artigo 814.º do Código de Processo Civil, quando aplicado à injunção com fórmula executória aposta e com o simples argumento de que o requerido (executado) dispôs de oportunidade de defesa em momento anterior à execução, viola o princípio da indefesa, consagrado no artigo 20.º da Constituição, porquanto desse regime jurídico resulta, por equiparação da injunção a uma sentença judicial, a restrição dos meios de oposição à execução movida com base naquela.
O Tribunal, no seu Acórdão n.º 437/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional. pt), abordou a questão nos seguintes termos:
(…)
7. A presente questão, como seja a de saber se na oposição à execução que tenha como título executivo ‘injunção a que tenha sido aposta fórmula executória’ podem ser opostos outros fundamentos que não só os previstos para execução fundada em sentença judicial e sob pena de violação do 'princípio da indefesa', foi, pode dizer-se, ainda que sob contornos e circunstâncias diversas, já abordada por este Tribunal, no Acórdão 658/2006, em que estava em causa a aplicação da norma contida no artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, interpretada no sentido de que 'na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se tem por demonstrado', e , bem assim, no Acórdão 283/2011, no qual se apreciou a questão de (in)constitucionalidade relativamente à norma contida no artigo 814.º do Código de Processo Civil, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, na medida em que equipara 'o requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória' à 'sentença judicial', enquanto títulos executivos, para efeitos de limitação dos fundamentos de oposição à execução com base neles deduzida, sendo que, neste caso concreto, acrescia o facto de o 'requerimento de injunção' como título executivo ser anterior à entrada em vigor do citado Decreto-Lei; em ambos os casos, as normas aí em causa foram julgadas materialmente inconstitucionais com fundamento, designadamente, na violação do princípio da proibição da 'indefesa', consagrado no artigo 20.º da Constituição.
8. O caso ‘sub judice’, ainda que (sublinhe-se) com contornos algo diversos dos tratados nos ditos acórdãos, é perpassado por idêntica questão, como seja a de saber quais os meios de oposição à execução suscetíveis de serem usados no caso de o título executivo ser integrado por ‘requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória’ sem que ocorra violação do ‘princípio da proibição da indefesa’, enquanto aceção do ‘princípio do acesso ao direito e aos tribunais’ consagrado no artigo 20.º da Constituição.
À compreensão de tal problemática é de toda a pertinência proceder a uma breve abordagem relativamente ao regime jurídico da injunção e sua evolução, ao que se revela de toda a utilidade, apesar das sucessivas alterações nele introduzidas após a publicação do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, a doutrina vertida no Acórdão n.º 669/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de fevereiro, onde, a tal propósito, se deixou exarado que:
(…)
A injunção, como providência destinada a conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efetivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de dezembro, prevendo-se que, na falta de oposição do requerido, o secretário judicial do tribunal aporia fórmula executória no requerimento de execução. Este diploma não continha qualquer disposição específica quanto às execuções fundadas nesse título, mas no respetivo preâmbulo esclareceu-se que:
“A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um ato jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura ação executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º do Código de Processo Civil.”
Esse regime foi substituído pelo instituído pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, que alargou a aplicabilidade da providência aos contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância (artigo 7.º do Regime anexo), tendo posteriormente o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, estendido essa aplicabilidade às obrigações comerciais abrangidas por esse diploma. No que concerne à execução fundada em requerimento de injunção, o artigo 21.º, n.º 1, do Regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98 limitou-se a determinar que a mesma seguiria, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário para pagamento de quantia certa, ou os termos previstos no Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de outubro, se se verificasse o requisito da alínea b) do artigo 1.º deste diploma; isto é, em termos práticos, o processo sumário de execução – em regra, utilizável apenas quando a execução se fundava em sentença judicial condenatória (artigo 465.º, n.º 2, do CPC) – passou a ser utilizável na execução fundada em requerimento de injunção a que fora aposta a fórmula executória, com a consequente atribuição exclusiva ao exequente do direito de nomear bens à penhora (artigo 924.º do CPC), e se o exequente nomeasse apenas bens móveis ou direitos que não tivessem sido dados de penhor, com exceção do estabelecimento comercial, não haveria lugar a reclamação de créditos na execução em causa (artigos 1.º, alínea b), e 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 274/97). Mas, tirando estas duas especialidades, nenhuma alteração se introduziu nomeadamente quanto à extensão dos fundamentos invocáveis pelo executado na dedução de embargos à execução.
A generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo secretário judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra um título executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à execução nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis na oposição à execução fundada em sentença, “quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”. JOSÉ LEBRE DE FREITAS (A Ação Executiva – Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 64 e 182) refere que os títulos em causa, “formados num processo mas não resultantes de uma decisão judicial, têm sido classificados como judiciais impróprios” e que o referido alargamento dos fundamentos da oposição à execução baseada em títulos diferentes das sentenças e das decisões arbitrais se compreende porque “o executado não teve ocasião de, em ação declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do requerente”. Também FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA (Curso de Processo de Execução, 6.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 39-46 e 152-153) salienta a ausência, no sistema português do processo de injunção, da emanação por parte de um juiz de uma ordem de pagamento de determinada quantia ou de satisfação de outra prestação em curto prazo (como sucede nos direitos italiano, francês e espanhol), sendo a fórmula executória aposta por um oficial de justiça, reconhecendo que “não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente ação declarativa”, pelo que “consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela ação”. J. P. REMÉDIO MARQUES (Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, págs. 79-80 e 153, nota 379) considera que a atividade conducente à aposição da fórmula executória – o “execute-se” – pelo secretário judicial não se insere na função administrativa do Estado, visto que não visa a prossecução de interesses gerais da coletividade, “mas também não é um ato jurisdicional – equiparável”, parecendo-lhe tratar-se “de um ato meramente instrumental, análogo àqueles que se praticam no exercício de uma função, que tanto pode ocorrer em processos jurisdicionais como em procedimentos administrativos”; de qualquer forma, sempre que “não existe um processo declarativo prévio, o executado, nos embargos, pode impugnar ou excecionar – mas nunca reconvir – a obrigação materializada pelo título extrajudicial”. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (A Reforma da Ação Executiva, Lisboa, 2004, pág. 69) faz derivar da alteração da redação do artigo 53.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, o estabelecimento de uma tripartição dos títulos executivos: decisões judiciais (que são as sentenças condenatórias referidas no artigo 46.º, n.º 1, alínea a), do CPC), títulos extrajudiciais (que são os documentos mencionados nas alíneas b) e c) do mesmo preceito) e outros títulos de formação judicial, entendido como os que provêm de um “processo” (e não de uma “ação”, como os títulos judiciais), categoria esta última que seria justamente utilizada para designar os títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção ao qual o requerido não deduziu oposição. Também CARLOS LOPES DO REGO (obra citada, vol. I, pág. 90) considera que por “título de formação judicial” deve ser considerado o “título judicial impróprio, formado no âmbito de um procedimento cometido aos tribunais judiciais, mas sem qualquer intervenção jurisdicional, como ocorre, de forma paradigmática, no processo de injunção”. Porém, esta autonomização dos “títulos de formação judicial” relativamente aos títulos extrajudiciais apenas releva para efeitos de determinação do tribunal onde deve correr a ação executiva no caso de cumulação inicial de execuções, quer se trate de títulos homogéneos (n.ºs 2 e 4 do artigo 53.º do CPC), quer de títulos heterogéneos (n.º 3 do mesmo artigo), não extraindo os autores citados qualquer outra consequência dessa autonomização, designadamente no sentido de sequer questionarem a aplicação plena do regime do atual artigo 816.º (anterior artigo 815.º, n.º 5) às execuções fundadas em títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção. Pode, pois, concluir-se que doutrinalmente é pacífico o entendimento assim sintetizado por SALVADOR DA COSTA (A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 2.ª edição, Coimbra, 2002, p. 172), em passagem já reproduzida no pedido de reforma da sentença apresentada pela ora reclamante:
«A aposição da fórmula executória não se traduz em ato jurisdicional de composição do litígio, consubstanciando-se a sua especificidade de título executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à sua notificação pessoal.
Assim, a fórmula executória é insuscetível de assumir efeito de caso julgado ou preclusivo para o requerido que pode, na ação executiva, controverter a exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito.
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na ação declarativa, nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil.
(…).
Assim definido o regime jurídico da injunção e, designadamente, a natureza do título executivo formado no seu seguimento, quando não seja apresentada contestação pelo requerido, com a aposição da fórmula executória pelo respetivo secretário (cfr. artigo 14.º do Regime dos Procedimentos anexo ao Decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro, vigente), há que voltar à questão que nos ocupa no caso ‘sub judice’, importando averiguar se a nova redação dada ao artigo 814.º do Código de Processo Civil, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, altera os dados do problema e no sentido de nos conduzir a uma solução diversa da que veio a ser alcançada nos arestos citados.
9. O artigo 814.º do Código de Processo Civil, mais propriamente o seu n.º 2 (na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro), ao determinar que se aplica «… à oposição à execução fundada em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, desde que o procedimento de formação desse título admita oposição pelo requerido» o previsto no número anterior, no qual se enumeram os fundamentos que podem ser utilizados pelo executado na oposição à execução fundada em ‘sentença judicial’, procede a uma equiparação entre ambos os títulos executivos – ‘sentença judicial’ e ‘requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória’ – (cfr., ainda, o artigo 816.º do Código de Processo Civil na redação dada pelo mesmo diploma legal), limitando-se, desta forma, os fundamentos de oposição à execução também quando esta tenha por base este último título executivo.
Tal equiparação permite-nos concluir que a ‘norma’, que apenas era conseguida pela via interpretativa dos preceitos legais pertinentes, se encontra, após a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, contida de forma explícita no mencionado preceito legal – artigo 814.º, n.º 2 (e, acrescente-se, reafirmada no artigo 816.º); ou seja, a ‘norma’ que dantes era alcançada por via interpretativa encontra-se, agora, plasmada na letra da lei, sem que, diga-se, o regime jurídico da injunção tenha sofrido qualquer alteração, de natureza substantiva ou adjetiva, suscetível de influenciar decisivamente a solução a dar à questão.
Não há dúvida que o legislador é livre na conformação da lei, tendo em conta as situações que com ela pretende regular e os resultados que pretende alcançar; porém, não poderá nunca olvidar, no exercício da sua função legislativa, os princípios constantes da Constituição, enquanto parâmetros validadores da eficácia daquela função.
Daí que, ainda que a questão se coloque com um enfoque diverso do que se colocava anteriormente à redação ora resultante do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, se afigure que a solução a dar à questão de (in)constitucionalidade suscitada, tendo em conta o princípio da tutela judicial e efetiva, não possa ser diversa da que foi encontrada nos Acórdãos 658/2006 e 283/2011 deste Tribunal, cuja doutrina, no essencial e decisivo, é aplicável no caso ‘sub judice’.
Ora, no Acórdão n.º 658/2006, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de janeiro, perante uma idêntica situação de limitação dos fundamentos de oposição à execução, cujo título executivo era uma ‘injunção a que havia sido oposta fórmula executória’, tão só aos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente, afirmou-se o seguinte:
(…)
“ … a característica deste título judicial impróprio, que o afasta dos restantes títulos criados por força de disposição legal, resulta, aliás, do facto de a força executiva ser conferida apenas depois de se conceder ao devedor a possibilidade de, judicialmente, discutir a causa debendi, alegada. Ou seja, no processo de injunção, o requerido tem a possibilidade de, deduzindo oposição, impedir que seja aposta força executiva à ação”.
Pode talvez dizer-se que o título executivo não é uma sentença porque o devedor optou por, no procedimento de injunção, não se opor à pretensão do requerente. Mas, seja como for, a falta de oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção não têm o condão de transformar a natureza (não sentencial) do título, tornando desnecessária, em sede de oposição à execução, a prova do direito invocado, deixando ao executado apenas a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente.
Tendo presente, por um lado, que a demonstração do direito do exequente não tem o mesmo grau de certeza relativamente a todos os títulos executivos, reconhecendo-se que o título executivo que resulte da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção demonstra a aparência do direito substancial do exequente, mas não uma sua existência considerada certa, e, por outro lado, que a atividade do secretário judicial não representa qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor de obrigação pecuniária, há que evitar a “indefesa” do executado, entendendo-se por “indefesa” a privação ou limitação do direito de defesa do executado que se opõe à execução perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
Nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, se uma limitação interfere com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se limite “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – não podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
No caso, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de “indefesa”, ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, existe apenas na medida necessária à salvaguarda do interesse geral de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, «de forma célere e simplificada», de um título executivo” (9.º § do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro), assim se alcançando o justo equilíbrio entre esse interesse e o interesse do executado de, em sede de oposição à execução, se defender através dos mecanismos previstos na parte final do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil (correspondente hoje ao artigo 816.º, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março).
Ora a norma em causa, na interpretação perfilhada dos autos, segundo a qual a não oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção determinam a não aplicação do regime da oposição à execução previsto nos artigos 813.º e segs. do Código de Processo Civil, designadamente o afastamento da oportunidade de, nos termos do atual artigo 816.º do mesmo Código, e (pela primeira vez) perante um juiz, o executado alegar “todos os fundamentos de oposição que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”, afeta desproporcionadamente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, na sua aceção de proibição de “indefesa”.
(…).
Ponderado o que acaba de ser citado, sem deixar de notar que a ‘norma’ em análise resulta, agora, diretamente do texto da lei – artigo 814.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – e se projeta na parte inicial do artigo 816.º deste diploma legal, após a alteração introduzida a ambos os preceitos legais pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, haver-se-á de concluir que apenas se justificam «… normas restritivas quando se revelem proporcionais, evidenciem uma justificação racional ou procurem garantir o adequado equilíbrio face a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, …» (cfr. Acórdão n.º 283/2011, disponível ‘in’ www.tribunalconstitucional.pt), pelo que a ‘norma’ em apreço, na medida em que limita injustificadamente os fundamentos de oposição à execução baseada em ‘requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória’, padece do vício de inconstitucionalidade por violar o ‘princípio da proibição da indefesa’, enquanto aceção do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição.
(…).
Aliás, a ponderação do equilíbrio de interesses, subjacente ao juízo de (in)constitucionalidade formulado no citado aresto, sai reforçada na medida em que, não havendo oposição ao requerimento de injunção, não deixa de formar-se título executivo com a aposição de fórmula executória, podendo, desde logo, o exequente dar início ao processo executivo e obter a penhora em bens do executado suficientes à satisfação da obrigação exequenda sem que haja lugar a citação prévia (cfr. artigos 812.º-C, alínea b) e 812.º-F, n.º 1 do Código de Processo Civil), como acontece com outros títulos de formação não judicial.
No que importa ao objeto dos presentes autos, refira-se, ainda, que, não obstante as diferentes formulações decisórias, é comum a todas as decisões, identificadas pelo requerente (Acórdãos n.ºs 437/2012, 468/2012 e 529/2012 e as Decisões Sumárias n.ºs 490/2012, 571/2012, 581/2012, 89/2013 e 112/2013), um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do artigo 814.º do CPC, interpretada no sentido de limitar a oposição à execução fundada em injunção à qual foi aposta a fórmula executória.
5. Aderindo-se à fundamentação das decisões deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da mesma norma, encontra-se preenchido o pressuposto da generalização, prevista no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, à qual se deverá em conformidade proceder.
III – Decisão
6. Nos termos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 814.º, nº 2 do Código de Processo Civil (CPC), na redação do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula executória, por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20º, nº 1 da Constituição.
Lisboa, 9 de julho de 2013. – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano (vencido parcialmente pelas razões constantes da declaração de voto apresentada pelo Conselheiro Pedro Machete) – Fernando Vaz Ventura (vencido parcialmente pelas razões constantes da declaração de voto apresentada pelo Senhor Conselheiro Pedro Machete) – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão nº 529/12) – Pedro Machete (vencido parcialmente conforme declaração) – Maria João Antunes (vencida, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Pedro Machete) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, no essencial, pelos fundamentos invocados no voto de vencido da Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral no Acórdão 529/2012) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
Tem voto de conformidade o Senhor Conselheiro Vítor Gomes que não assina por, entretanto, ter cessado funções.
José da Cunha Barbosa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido em parte, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade não salvaguarda o regime relativo a “obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro” (cfr. o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro) – um regime próprio das transações entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respetiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração.
Nos termos do artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, a injunção a que se reporta o artigo 814.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é uma providência que tem por fim conferir força executiva aos requerimentos destinados a exigir o cumprimento de dois tipos de obrigações pecuniárias: (i) aquelas que resultam de contratos de valor não superior a € 15 000; e (ii) aquelas que resultam de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro. Relativamente ao primeiro tipo de obrigações, o objetivo é procurar racionalizar e agilizar um «contencioso de massa», obstando a que os tribunais se convertam em «agentes» ou «serviços de cobrança» de empresas que negoceiam com milhares de consumidores (v. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, na sua redação originária); no tocante ao segundo tipo de obrigações, está em causa uma medida que visa concretizar o objetivo definido no artigo 5.º, n.º 1, da Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 2000, que estabelece medidas de luta contra os atrasos no pagamento nas transações comerciais. Como refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro – o diploma que transpõe a citada Diretiva - “o incumprimento pode também ser financeiramente atraente devido à lentidão dos processos de indemnização. A diretiva exige que o credor possa obter um título executivo num prazo máximo de 90 dias sempre que a dívida não seja impugnada. O presente diploma facilita ao credor a obtenção desse título”. Recorde-se que as «transações comerciais» em causa, na medida em que respeitam sempre ao relacionamento entre «empresas» tal como definidas no artigo 3.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 32/2003, são transações entre profissionais, ou seja, entre entidades a quem incumbem especiais deveres de lealdade e de informação.
Como referido no Acórdão deste Tribunal n.º 176/2013 – que subscrevi - o artigo 814.º, n.º 2, do Código de Processo Civil operacionaliza um efeito preclusivo da defesa perante a execução. Todavia, as exigências de eficácia do sistema de execução e o relevo que reconhecidamente assumem para a dinâmica económica e o tráfego comercial – e são estes os objetivos claramente visados pelo legislador – nem sempre justificam que, a partir de uma fase não jurisdicional, sujeita a um controlo meramente formal da competência do secretário judicial em que se prescinde de qualquer juízo de adequação do montante da dívida aos factos em que ela se fundaria, se assuma a existência de um crédito e se opere efeito preclusivo para o qual não houve advertência, já que o nível de organização e informação não são iguais para todos os devedores.
É, na verdade, diferente a posição do consumidor final que pontualmente incumpre um determinado contrato da posição do operador que contrata com outras empresas no exercício da sua atividade profissional. Se em relação ao primeiro, a ausência de uma advertência quanto aos efeitos da não oposição ao requerimento de injunção pode criar uma situação de indefesa, dado considerar-se inexigível o conhecimento do efeito preclusivo; em relação ao segundo, já o conhecimento de tal efeito não pode deixar de ser exigível, atenta a condição de profissional em que intervém.
Nestes termos, apenas não se encontra fundamento idóneo a justificar materialmente a restrição do direito de defesa em sede de execução e da obtenção de pronunciamento judicial sobre as razões oponíveis ao direito exercido pelo credor prévias à aposição da fórmula executória no âmbito das relações de particulares entre si ou com «empresas»; mas já não no âmbito do relacionamento comercial entre «empresas», tal como definidas no artigo 3.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro (“qualquer organização que desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular”). Daí que, tal como referido na minha declaração feita no citado Acórdão n.º 176/2013, não considero inconstitucional o artigo 814.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando aplicável às injunções que visem exigir o cumprimento de obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro.
Pedro Machete