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Processo n.º 555/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Município do Porto, o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela Secção do Tribunal Central Administrativo Norte, em 16-12-2012 (fls. 752 a 798), para que sejam apreciadas as seguintes questões:
i) Inconstitucionalidade material da norma extraída da conjugação entre o artigo 5° do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, e do artigo 6° do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de dezembro, quando interpretada no sentido de impor “a frequência de estágio com carácter probatório e formativo aos candidatos a advogado síndico”, que já se encontrem devidamente habilitados para o exercício da profissão pela Ordem dos Advogados, por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição da República Portuguesa - CRP), do direito de escolha de profissão e de acesso à função pública (artigo 47º, n.ºs 1 e 2, da CRP) e da regulação por lei do patrocínio forense, incluindo as respetivas imunidades (artigo 208º da CRP);
ii) Inconstitucionalidade orgânica da norma extraída do artigo 5° do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, por este versar sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa parlamentar [artigo 168º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da CRP, na redação anterior à Lei Constitucional n.º 1/1989], sem que estivesse devidamente habilitado por lei de autorização legislativa, em função da falta de previsão pela alínea f) do artigo 16º da Lei n.º 2/88, de 26 de janeiro.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso justifica-se dada a complexidade jurídica e a relevância social das questões suscitadas nos autos, designadamente o papel da advocacia e do advogado síndico enquanto funcionário público por contraposição com os chamados advogados de empresa ou em prática liberal.
2. Está em causa o «direito fundamental de acesso à profissão de advogado síndico e função pública», consagrado nos artigos 47.°, n.º 1 e 2 da CRP bem como a interpretação do artigo 208.° da CRP, do principio da igualdade previsto no artigo 13.° da CRP e do complexo quadro legal disciplinador da função pública e da profissão de advogado.
3. A questão prende-se com o pleno e autónomo exercício da advocacia, bem como as condições legais de acesso à profissão de advogado sob tirocínio exclusivo ou não da Ordem dos Advogados.
4. Entende o Recorrente que a advocacia não pode deixar de ser compreendida pelo prisma da sua função social e de inegável interesse público, sujeita a regras deontológicas especificas previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados, que prevalecem e têm obrigatoriamente de ser compaginadas com as regras em sentido contrário da função pública, nomeadamente quando esteja em causa funções exclusivas de consulta jurídica e patrocínio judicial para entidades públicas.
5. O Acórdão recorrido, com o devido respeito não soube interpretar todo o quadro normativo complexo supra referido, de forma a conferir unidade ao sistema jurídico, tendo incorrido diversos erros de interpretação e aplicação do direito constitucional e ordinário vigente, em clara e ostensiva violação dos princípios e regras previstos no artigo 9.° do Código Civil, para além de que não atentou em diversa jurisprudência do STA e do Tribunal Constitucional.
6. Não existe nenhum fundamento legal, razão lógica, adequada e proporcional para se exigir a um advogado habilitado a exercer de forma plena a advocacia, a repetição de um estágio com caracter probatório e formativo, o que viola em si o disposto nos artigos 47.°, n.º 1 e 2 da CRP, bem como a interpretação do artigo 208.° da CRP.
7. Contrariamente ao defendido na decisão recorrida, tem cabimento invocar o disposto no artigo 184.° do atual EOA, uma vez que os princípios e regras consagradas nesta norma já decorriam do anterior EOA e mais não constituem do que a concretização por via de lei ordinária do disposto no artigo 208.° da CRP que o Tribunal violou.
8. É manifesto que os artigos 5.° do DL 265/88, de 28/07 e 6.° do DL 427/89, de 7/12, quando impõem a frequência de estágio com caracter probatório e formativo aos candidatos a advogado síndico (nos restantes candidatos a funcionários públicos a questão não se coloca) não tiveram em conta a especificidade da profissão de advogado que deve ser auto- regulada pela Ordem dos Advogados enquanto associação pública orientadora do estágio de advocacia e violam, por tal motivo, frontalmente o disposto nos artigos 47.° n.º 1 e 2, 13.° e 208.° da CRP — inconstitucionalidade material.
9. Os artigos 5.° do DL 265/88, de 28 de Julho e 6.° do DL 427/89, de 7 de Dezembro - deveriam fazer uma discriminação positiva, que assegurasse uma efetiva igualdade no plano material e jurídico entre candidatos, prevendo a dispensa do estágio quando, como é o caso, o candidato já exercia as funções do lugar a prover há mais de um ano e não existe necessidade de um período probatório e de graduação dos candidatos.
10. Não se encontrando prevista a dispensa de estágio na lei ordinária, as normas em causa são ainda inconstitucionais por violação dos artigos 13.° e 47.°, n.º 1 e 2 da CRP — inconstitucionalidade por omissão -, as quais têm aplicação direta e imediata por respeitarem a ((direitos, liberdades e garantias» fundamentais, vinculando quer entidades públicas, quer entidades privadas (artigos 17.° e 18.°, n.º 1 e 2 da CRP).
11. O artigo 5.° do DL 265/88, de 28/07, viola o disposto na alínea f) do artigo 16.° da Lei 2/88, de 26/07, pois não resulta do seu teor literal qualquer autorização para o Governo legislar em matéria de estágios na função pública e muito menos para a carreira de advogado síndico — constituindo tal autorização um verdadeiro cheque em branco não conforme com a Constituição e o principio da especialidade das autorizações legislativas consagrado no artigo 168.°, n.º 2 da CRP que o Tribunal recorrido deveria ter considerado.
12. A interpretação que o Tribunal deu ao referido normativo viola o artigo 9.° do Código Civil, na exacta medida em que o sentido que se quer dar à lei e à vontade do legislador não corresponde minimamente ao texto e letra dessa lei.
13. O artigo 15.° do DL 265/88 não tem aplicação ao caso dos autos por não respeitar a matéria de estágios na função pública e ter caracter limitado ao ano de 1988 e não vir sequer invocado no DL 265/88.
14. A interpretação do Tribunal recorrido da alínea f) do artigo 16.° do DL 2/88, de 26/01, não comporta pois o sentido e alcance que o Tribunal lhe dá pelo que dúvidas não restam de que o artigo 5.° do Decreto-lei nº 265/88, de 06/07, ao impor a obrigatoriedade e as condições de realização de estágios na função pública, viola o disposto na lei de autorização legislativa (artigo 16.°, al. f) da Lei 2/88, de 28/07) e, consequentemente, os artigos 168.°, nº 1, alínea b) e n.º 2; 169.°, n.º 2 e 115.°, n.º 2 da CRP (RC 1982).
15. Contrariamente ao decidido, não se verifica da leitura dos artigos 15.° e 16.° da Lei 2/88, de 26/07 o respeito por um conteúdo mínimo exigível que permita de uma forma inteligível ajuizar da conformidade da lei autorizada com a lei autorizante, como impunha o citado artigo 168.°, n.°2 da CRP.
16. No caso dos advogados síndicos, ainda que tal conteúdo mínimo tivesse sido estabelecido, o mesmo seria desconforme com a constituição atento o disposto nos artigos 47.º, n.º 1 e 2, 13.° e 208.° da CRP.
17. O artigo 5.° do Decreto-lei 265/88, de 28/07, veio assim alterar o conteúdo daquelas normas constitucionais, respeitantes ao «direito fundamental de acesso à profissão de advogado síndico e função pública», de uma forma inovatória passando a prever, para além do concurso, a necessidade de realização de estágio probatório sujeito a avaliação por um júri que não está habilitado a exercer a profissão de advogado.
18. Tal disposição inovatória configura inconstitucionalidade orgânica relevante que deve ser conhecida pelo Tribunal em consonância com a mais recente Jurisprudência do Tribunal Constitucional (Ac. do TC n.º 3/2011, publicado no DR, 1ª Série, n.º 17, de 25 de Janeiro de 2011).»
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido veio apresentar contra-alegações, que ora se resumem:
«I. Questões Prévias
1. O presente recurso, enquanto recurso de decisão negativa de inconstitucionalidade, é uma reacção a uma decisão judicial que aplicou uma norma não obstante a invocação no processo da sua inconstitucionalidade pelo Recorrente.
2. O Recorrente não pode recorrer do mérito da questão ou do feito submetido a julgamento, mas da norma a que reporta a questão da constitucionalidade.
3. Não se compreende que o Recorrente ocupe praticamente metade do seu recurso a propugnar que a decisão judicial do Tribunal Central Administrativo Norte devia ter julgado a causa relativamente a aspectos não directamente implicados pela questão de constitucionalidade, mas referentes à legalidade, de modo diverso ao que o fez.
4. É também inusitada a referência do Recorrente aos pressupostos do recurso excepcional de revista para o Supremo Tribunal Administrativo ao abrigo do artigo 150.º do Código de processo nos Tribunais Administrativos.
5. Além disso, o Recorrente procura constantemente estender e ampliar os limites do processo a problemáticas e a questões quiméricas, que manifestamente não têm que ver com o que se discute nos autos e que o Recorrente, muito bem sabendo não ser legítimo fazê-lo, nitidamente só invoca para ver se (ao menos) por aí logra alcançar os seus intentos.
6. A maioria dessas problemáticas (ainda) são jurídicas e até podiam importar ao processo se esse realmente as convocasse, mas outras há também que nem sequer se situam no domínio do jurídico.
7. Nenhuma dessas questões, por não se poderem incluir no objecto do presente recurso, deverá ser relevada por este Tribunal, o qual - como muito melhor do que nós saberá - deverá centrar-se e cingir-se à questão de constitucionalidade efectivamente suscitada pelo Recorrente.
II. As questões de inconstitucionalidade suscitadas
8. No caso dos autos, a questão da inconstitucionalidade são, na verdade, as questões, porque não é apenas uma, mas duas, a saber: a) Por um lado, a inconstitucionalidade material e por omissão dos artigos 5.º do Decreto-Lei n.º 265/68, de 28 de Julho e 6.º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, por suposta violação do “princípio da igualdade” do “direito fundamental de escolha e acesso à profissão e à função”, que o Recorrente trata e explana no capítulo III da sua alegação; b) Por outro lado, a inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 265/68, de 28 de Julho, por violação da alínea f) do artigo 16.º da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, a que, por seu lado, o Recorrente se reporta no capítulo IV do seu articulado.
9. Nenhuma outra questão poderá ser objecto do presente recurso, designadamente, aquela constante do capítulo V da mais recente peça processual do Recorrente, sob o título “Da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 15.º e 16.º da Lei 2/88, de 26 de Janeiro (Orçamento de Estado) por violação dos artigos 168.º, n.º 2, 47.º, n.º 1 e 2, 13.º e 208.º da CRP e do “princípio da especialidade” das autorizações legislativas”.
10. Essa questão não foi nunca, senão no articulado a que ora se responde, suscitada nos autos, o que, entre o mais, se infere e demonstra pelo requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, construído, única e exclusivamente, em redor das questões enunciadas no ponto 6 supra referido.
III. O não provimento do recurso
11. As questões de constitucionalidade efectivamente suscitadas pelo Recorrente foram resolvidas de modo uniforme pelas duas instâncias judiciais que se já pronunciaram sobre o caso, ambos no sentido da sua improcedência.
12. Com todo o respeito, não passam de meras atoardas, só explicáveis ou pela litigância pela litigância ou pela ausência de rigor de quem, por litigar em causa própria, deixou de ver as coisas com a cabida e indispensável objectividade.
13. Cumpre lembrar que o peticionado pelo Recorrente nestes autos é a condenação do aqui Recorrido a nomeá-lo, por tempo indeterminado, técnico superior advogado síndico do respectivo quadro de pessoal, com efeitos desde 12 de Maio de 2003, sendo que, para tanto, toma como fundamento a suposta inconstitucionalidade da necessidade de prévia realização de estágio para o ingresso no lugar. Estágio esse de que o Recorrente pediu dispensa em momento em que já estava concluído, que foi indeferida, e no qual foi reprovado.
I) A inconstitucionalidade material e por omissão dos artigos 5.º do Decreto-Lei n.º 265/68, de 28 de Julho e 6.º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, por suposta violação do “princípio da igualdade” do “direito fundamental de escolha e acesso à profissão e à função pública (artigos 47.º, n.º 1 e 2, 13.º e 208.º da CRP).
14. O Recorrente, junto das instâncias, fez por assentar esta intitulada questão de inconstitucionalidade na consideração de que “a única restrição que o artigo 47.º, n.º 2 estabelece para acesso à função pública é que a mesma se efectue, em regra, por via do concurso público” e nada mais (página 10 das alegações de recurso para o STA), o que foi categoricamente desmentido pelo Recorrido e corroborado pelos dois tribunais que se inclinaram sobre a questão.
15. O que dispõe o n.º 2 do artigo 47.º da CRP não é que ‘todos os cidadãos têm acesso à função pública, (direito esse só limitado) por concurso’, mas que “todos os cidadãos têm direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”.
16. A Constituição pressupõe a existência de condições para o acesso à função pública, condições essas que, não sendo directamente fixadas pela Constituição, hão-de, naturalmente, ser fixadas pela lei ordinária e/ou por normas regulamentares.
17. Aquilo que postula a Constituição não é que a lei não possa estabelecer condições de acesso à função pública, senão que o faça em termos não arbitrários, por via de regras gerais e arbitrárias.
18. Porquanto a tese supra exposta do Recorrente foi categoricamente desmentida por todas as instâncias que sobre ela se pronunciaram, o Recorrente, nas alegações a que se responde, optou por dar um passo em frente e alegar que “a argumentação do acórdão recorrido seria eventualmente válida caso o lugar a que se candidatou não fosse o lugar de advogado síndico, mas de qualquer outro da carreira técnica superior” (cf. páginas 12 e 13).
19. Refere o recorrente que há um “estatuto especial que rege o exercício da sua profissão (EOA) ” (página 13) e que as normas questionadas “quando impõem a frequência de estágio com carácter probatório e formativo aos candidatos a advogado síndico não tiveram em conta a especificidade da profissão de advogado” (página 15).
20. E é também a esse propósito que afirma haver aí “(…) uma restrição ilegítima, desadequada, desproporcional e arbitrária de acesso não à função pública como ainda à profissão de advogado síndico, não compatível com o interesse público ou colectivo que o Estado reconhece à Ordem dos Advogados para auto-regular a sua profissão” (página 15).
21. As alegações do Recorrente alicerçam-se num equívoco fundamental: é que a actividade do advogado síndico, à semelhança de advogado em prática liberal ou advogado em regime de contrato subordinado, não constitui em si mesmo uma profissão. Profissão é-a sim a de advogado, seja em prática liberal ou subordinada, sendo que o advogado síndico não constitui mais do que uma modalidade do exercício da advocacia em regime de subordinação.
22. O advogado-síndico é, na nomenclatura da administração pública, uma categoria da carreira de técnica superior, assim como, no contexto do advogado em subordinação no seio de uma pessoa colectiva privada pode, designadamente, existir o lugar de advogado da empresa e/ou de director jurídico, de director jurídico adjunto, etc.
23. Curam-se, portanto, não de profissões, mas de categorias ou posições a que correspondem conteúdos funcionais entre si distintos.
24. A exigência do cumprimento de determinadas condições ou requisitos para aceder a essas categorias ou posições não configuram quaisquer limitações ou barreiras ao acesso às profissões respectivas, mas só, tão-só, às respectivas categorias ou posições, o que é manifestamente diferente.
25. A exigência do estágio, ao contrário do que tenta defender o Recorrente, não serve para averiguar da idoneidade e aptidão dos candidatos para o exercício da advocacia, o que de facto já é atestado pela inscrição do candidato na OA.
26. Aquilo que o estágio para acesso à categoria ou posição de técnico superior visa aquilatar é da aptidão e habilidade do candidato para o exercício dos funcionais que integram a categoria ou posição a que o candidato se candidata.
27. O facto de ter sido exigida a realização de um estágio ao Recorrente, não obstaculizou o acesso do Recorrente à profissão de advogado, nem, Por outro lado, a reprovação no estágio de acesso à carreira de técnico superior permite concluir que o Recorrente não é idóneo e apto para o exercício da advocacia, mas antes que não dispunha das características necessárias ao desempenho do lugar de advogado-síndico a que candidatou.
28. O Recorrente não deixou de ser advogado pela circunstância de ter reprovado no estágio de acesso à carreira de técnico superior advogado síndico do Recorrido, omo, outrossim, se demonstra pela circunstância de o Recorrente litigar em causa própria no presente processo.
29. Aquilo que o Recorrente propugna não é o direito de aceder a uma profissão – a essa acedeu o Recorrente através da Ordem dos Advogados, o Recorrente clama e reclama o direito de acesso a uma posição ou um lugar, o que não pode reconhecer-se se não reuniu todas as condições e requisitos previamente exigidos para o efeito.
30. Em qualquer caso, e ainda que se quisesse ver na categoria de advogado síndico uma profissão, o que não se aceita a não ser como mero exercício teórico, sempre a exigência prévia de estágio, por não arbitrária e perfeitamente razoável, constitui uma condição conforme à Constituição.
31. Não existe qualquer nótula específica que justifique que o acesso à categoria de advogado síndico da carreira de técnico superior do Recorrido beneficie de um estatuto mais facilitado e menos exigente, só pela circunstância de estar em causa categoria em que se exige inscrição na Ordem dos Advogados e uma tal solução é que poderia, ela sim, ser inconstitucional por violação do princípio da igualdade.
32. A Constituição não impõe que o Recorrido, por ter exercido funções idênticas àquelas a que se candidatou posteriormente ao abrigo de contrato a termo durante cerca de 1 ano, devesse, por essa razão, ser dispensado do estágio para aceder à carreira de técnico superior advogado síndico do Recorrido.
33. As exigências subjacentes a um contrato a termo de um ano com possibilidade de prorrogação máxima por seis meses, sendo temporárias, nada têm que ver com aquelas relativas ao ingresso numa carreira, por nomeação, que é permanente e definitiva.
34. Não é arbitrária a exigência de estágio, nem há qualquer inconstitucionalidade por omissão, por efeito de a lei não prever a discriminação positiva dos sujeitos nas mesmas condições que o Recorrente.
II) a inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de Julho, por violação da alínea f) do artigo 16.º da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, a que, por seu lado, o Recorrente se reporta no capítulo IV do seu articulado.
35. Não se verifica qualquer inconstitucionalidade do já mencionado artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de Junho, por hipotética violação da respectiva lei de autorização legislativa, a Lei n.º 2 /88, de 26 de Janeiro.
36. Salienta o Recorrente que a Lei n.º 2/88, de 26 de “(…) não autorizou o Governo a legislar sobre o regime jurídico de estágios na função pública” (página 16). E que a redacção dela constante, que autoriza o Governo a legislar sobre “a revisão da carreira técnica superior da Administração Pública, no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação”, não consente a instituição do estágio como condição de acesso às carreiras em questão.
37. o Decreto-lei n.º 265/88 não institui qualquer regime de estágio na função pública, Consagra, isso sim, a sua obrigatoriedade no âmbito do acesso à carreira técnica superior, cuja revisão é autorizada e propugnada pela lei de autorização.
38. o facto de a alínea autorizativa em questão não referir textualmente a possibilidade ou necessidade da consagração de um estágio, não parece importar a impossibilidade de o consagrar.
39. a formulação utilizada – “revisão da carreira técnica superior da Administração Pública” – sendo embora sintética, parece suficientemente abrangente para incluir os vários aspectos relativos à carreira em questão, designadamente, as condições e requisitos de acesso e, dentro destes, o estágio.
40. O tema do estágio não parece ter a densidade suficiente para se entender que não se contém nos contornos de uma fórmula global e compreensiva a não ser que seja expressa e especificamente invocado.
41. A lei autorizativa habilita o Governo a legislar sobre “a revisão da carreira técnica superior da Administração Pública, no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação”, mas essa autorização não tem o significado que lhe pretende atribuir o Recorrente, no sentido de, de todo, não admitir a regulamentação pelo Governo, seja de que forma for, do acesso a tais carreiras. Bem pelo contrário.
42. A mencionada formulação parece claramente dirigir-se às condições de acesso de tais carreiras, já que tornar carreiras mais atractivas não significa apenas almejar que recursos humanos que já integram as carreiras não as abandonem mas também criar condições para que os recursos humanos que não integrem essas carreiras possam, pelas boas condições que possam ser oferecidas, interessar-se mais pelas mesmas, o que não importa o aligeiramento ou a facilitação do acesso à sobredita carreira.
43. A própria lei de autorização menciona que a meta de atractividade por si sustentada se insere no “aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública”, bem como, na “necessidade imperiosa de uma melhoria do nível de qualidade dos serviços do Estado”, além de esclarecer que “a política de recursos humanos visará em 1998 um aumento da eficiência e da eficácia dos serviços, mediante a racionalização de estruturas orgânicas e a aplicação de uma política de emprego de modo a que não haja aumento global do número de efectivos da Administração Pública, salvaguardando os sectores da saúde e da educação, e se faça uma racionalização rigorosa dos meios orçamentais”.
44. A instituição de um estágio é perfeitamente coerente com os objectivos propugnados pela Lei n.º 2/88, designadamente, como salienta o Decreto-lei autorizado no respectivo preâmbulo, “como forma mais selectiva de ingresso nas carreiras em causa” e que, ainda nas suas palavras, constitui “(…) um passo significativo para uma ampla reestruturação e revalorização das mesmas carreiras (…)”.
45. Dúvidas não podem, portanto, subsistir quanto à não violação da lei de autorização (Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro) pelo decreto-lei autorizado (Decreto-lei n.º 265/88, de 28/07), o qual, bem ao contrário, é justamente no sentido da sua concretização.
46. Ainda que o Tribunal Constitucional viesse a considerar não existir habilitação legal bastante na alínea f) do artigo 16.º da Lei n.º 2/88 para a consagração da obrigatoriedade do estágio - o que não se aceita, nem concebe, senão como exercício teórico – importa dizer que, nem assim, desapareceria a exigência de realização de estágio para a carreira a que o Recorrente se candidatou.
47. Efectivamente, tal exigência não decorre apenas do referido artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 265/88, mas de um conjunto de outros diplomas, vigentes à data do concurso, com é designadamente o caso do Decreto-lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, no seu artigo 4.º, número 1, que, de resto, constitui o primeiro dos fundamentos legais mencionados no aviso de abertura do concurso a que se reportam estes autos.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Cingindo-nos às duas questões colocadas pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso – já supra identificadas – importa começar por tratar o problema relacionado com a alegada inconstitucionalidade orgânica, por falta de autorização legislativa. Com efeito, alega o recorrente que a norma extraída do artigo 5° do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, versa sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa parlamentar, por proceder a uma regulação de um direito, liberdade e garantia – in casu, a liberdade de escolha de profissão e de acesso à função pública [cfr. artigos 47º e 168º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da CRP, na redação anterior à Lei Constitucional n.º 1/1989] –, sem que tal intervenção legislativa governamental se encontre devidamente habilitada pela alínea f) do artigo 16º da Lei n.º 2/88, de 26 de janeiro.
Com efeito, o Decreto-Lei n.º 265/88 invoca expressamente aquela alínea do artigo 16º da Lei n.º 2/88 – apesar de, em teoria, poder equacionar-se a aplicação das alíneas a) e e) –, que estipula o seguinte:
«Artigo 16.º
Regime jurídico da função pública
Fica o Governo autorizado a legislar no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime da função pública em matéria de:
a) Regime de provimento e de exercício de funções públicas, visando a definição do tipo de vínculos entre a Administração e quem lhe prestar serviço ou actividade, das formas de exercício transitório de funções, do regime de incompatibilidades e acumulações, da prestação de serviço de funcionários em empresas públicas e privadas, do regime de exercício de funções por trabalhadores daquelas empresas na Administração e da posse e suas formalidade;
(…)
e) Regime geral de recrutamento e selecção de pessoal, visando a simplificação do processo e redução das formalidades e prazos de realização de concursos;
(…)
f) Revisão da carreira técnica superior, no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação.» (com sublinhado nosso)
Já à data da aprovação do referido Decreto-Lei n.º 265/88, o n.º 3 do (então) artigo 201º (atual artigo 198º) da CRP impunha que os decretos-lei autorizados invocassem expressamente a lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foram aprovados. Torna-se, portanto, decisivo que o legislador governamental tenha optado, por sua livre iniciativa, por invocar apenas a alínea f) do artigo 16º da Lei n.º 2/88.
Faz-se esta referência porque quer a alínea a), quer a alínea e) do artigo 16º daquele diploma legal se referem ao “regime de provimento e de exercício de funções públicas” e ao “regime geral de recrutamento e selecção de pessoal”, o que poderia ser interpretado como habilitação legal para que o legislador governamental fixasse um regime de estágios para acesso à carreira técnica superior. Porém, nem o Decreto-Lei n.º 265/88 alude, de modo algum, àquelas alíneas, nem tão pouco a decisão recorrida as teve em consideração. Fica, por conseguinte, este Tribunal circunscrito a averiguar se a alínea f) do artigo 15º da Lei n.º 2/88 constituía habilitação suficiente para que o Governo adotasse, por via de decreto-lei, um regime de estágios para acesso à carreira técnica superior.
Desde logo, regista-se que a eventual inconstitucionalidade orgânica do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 265/88 não decorre de uma violação da alínea t) do (então) artigo 168º (atual artigo 165º) da CRP, que incluía na reserva relativa de competência parlamentar as “Bases do regime e âmbito da função pública”. Evidentemente, a fixação das metodologias de acesso a determinadas carreiras da função pública – incluindo através da imposição da realização de um estágio prévio ao início de funções no cargo – não ficaria abrangida por essas “Bases do regime e âmbito da função pública”, que apenas incluem as matérias que fixam as orientações normativas fundamentais desse regime.
Sucede, porém, que o recorrente invoca, a favor da tese da ausência de habilitação legislativa parlamentar, a circunstância de o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 265/88 afetar e incidir sobre a “liberdade de escolha de profissão e de acesso à função pública” (cfr. artigo 47º da CRP).
Aqui chegados, importa fazer um parêntesis, com vista à ponderação da configuração específica da interpretação normativa em apreço nos presentes autos. Com efeito, encontra-se dado como provado que o recorrente chegou a prestar funções de advogado-síndico entre 05/11/2001 e 04/06/2003, data em que cessou, por decurso do tempo, o correspondente contrato a termo (nesse sentido, ver os §§ 10 e 11, a fls. 768). Finda esta relação jurídica, o recorrente viria a candidatar-se em novo concurso aberto para provimento de lugar de técnico superior advogado-síndico estagiário (assim, ver §§ 12 a 14, a fls. 768), tendo-a exercido até à data em que requereu a dispensa de estágio para ingresso na categoria de técnico superior advogado-síndico de 2ª classe. Portanto, só mais tarde, quando requereu essa dispensa, em 15/04/2004 (ver o § 16, a fls. 769), é que o recorrente confrontou a recorrida com o problema da inconstitucionalidade da norma que o sujeitaria à realização de um estágio como advogado-síndico. Porém, pode concluir-se que o que o recorrente questiona, em bom rigor, é o direito de acesso a determinada função pública – in casu, a de advogado-síndico – e não uma mera progressão na carreira. Tanto assim é que a categoria de advogado-síndico estagiário, pressupõe, por si só, a exigência da realização de tal estágio para se aceder à categoria de advogado-síndico (assim apelidada “de 2ª classe”).
Em suma, a questão normativa reside em saber se o condicionamento do acesso à função de advogado-síndico (de 2ª classe) pode repousar na sujeição de um estágio profissional durante um período de tempo em que o candidato é sujeito à permanência numa categoria de advogado-síndico estagiário.
Ora, nessa medida, torna-se inquestionável que aquele preceito legal, ao regular o sistema de estágios para acesso à carreira de técnico superior da função pública versa sobre matéria incluída num direito subjetivo qualificado como “direito, liberdade e garantia”. Assim sendo, em função da alínea b) do n.º 1 do (então) artigo 168º (atual artigo 165º) da CRP, impunha-se que o referido decreto-lei beneficiasse da necessária habilitação legislativa da Assembleia da República.
Sucede que o sentido e a extensão da autorização legislativa resultante da alínea f) do artigo 16º da Lei n.º 2/88 – no sentido de permitir ao Governo legislar sobre “Revisão da carreira técnica superior, no sentido de a tornar mais atractiva e de propiciar condições para reduzir situações de acumulação” – não constitui, de modo nenhum, uma credencial bastante para que pudesse restringir-se (ou sequer condicionar-se) o acesso àquela carreira da função pública, mediante a sujeição a um estágio para ingresso. Do sentido possível das palavras empregues por aquela norma habilitadora não se pode extrair qualquer autorização para a imposição de uma restrição (ou sequer condicionamento) da referida “liberdade de escolha de profissão e de acesso à função pública” (cfr. artigo 47º da CRP), salvo no sentido de redução de situações de acumulação de funções.
Pelo exposto, mais não resta do que concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma extraída do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, por ofensa à reserva relativa de competência legislativa parlamentar [cfr. artigos 165º, n.º 1, alínea b), 198.º, n.º 1, al. b) e 47.º, n.º 2, da CRP].
E nem sequer a circunstância, aventada pelo recorrido, de que o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de dezembro, conteria uma exigência idêntica de realização de estágio para acesso à carreira de técnico superior da função pública obsta a esta conclusão. Com efeito – e ao contrário do que sucede quanto à norma que constitui objeto do presente recurso –, o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 404-A/98 já conferiria uma habilitação legislativa parlamentar bastante, visto que o artigo 2º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 77/98, autorizou expressamente o Governo a legislar sobre “ingresso, acesso e progressão nas carreiras e categorias de regime geral, bem como as respectivas escalas salariais, tendo em vista: a) A revisão da estrutura e reenquadramento indiciário das carreiras, em correspondência com os conteúdos funcionais e exigências necessárias ao seu exercício”.
Sucede, porém, que a decisão recorrida nunca se fundou – expressa ou sequer tacitamente – no referido artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de dezembro. Percorrido o texto da mesma, constata-se que a mesma apenas adotou como “ratio decidendi” o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, que constitui o objeto único do presente recurso de constitucionalidade. Como tal, o Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao tribunal recorrido, aplicando uma norma jurídica que nunca chegou a ser tida em consideração por aquele.
Tudo visto e ponderado, conclui-se pela inconstitucionalidade orgânica da norma que constitui objeto do presente recurso, por ausência de respeito pelo sentido e extensão da lei de autorização legislativa.
Em função da verificação deste vício, fica prejudicado o conhecimento do vício de inconstitucionalidade material, por ausência de interesse processual.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, por violação da reserva de lei parlamentar decorrente da alínea b) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 165º e do artigo 47.º, nº 2, da CRP e por violação da lei de autorização legislativa decorrente do artigo 198.º, n.º 1, al. b), da CRP;
ii) Conceder provimento ao recurso interposto.
E, em consequência:
iii) Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que a decisão proferida seja reformada, em conformidade com este julgamento de inconstitucionalidade, conforme determinado pelo artigo 80º, n.º 2, da CRP.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 22 de outubro de 2013. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete (vencido, conforme declaração que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo, no essencial, com a declaração apresentada pelo Senhor Conselheiro Pedro Machete).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho a decisão por entender que o estágio institucionalizado pelo Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, em vista da revalorização da carreira técnica superior e da carreira técnica ainda se pode reconduzir, no que se refere às citadas carreiras, às finalidades referidas na lei de autorização legislativa expressamente invocada, a saber o artigo 16.º da Lei n.º 2/88, de 26 de junho (cfr. o corpo deste artigo articulado com as respetivas alíneas a), e) e f) ), designadamente ao aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico dessas duas carreiras.
Estando em causa o direito de acesso à função pública e matéria respeitante às bases do regime e âmbito da função pública – matérias integradas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos das alíneas b) e t) do artigo 165.º, n.º 1, da Constituição –, considero que a indicação expressa da pertinente lei de autorização legislativa – o artigo 16.º da mencionada Lei n.º 2/88 – cumpre de modo suficiente a função garantidora da reserva de competência legislativa da Assembleia da República e dos parâmetros de controlo, função essa que corresponde ao objetivo precípuo da exigência de invocação expressa da lei habilitante – da «lei», sublinhe-se, e não de «parte da lei» – prevista no artigo 198.º, n.º 3, da Constituição. A referência expressa no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 265/88 apenas à alínea f) do citado artigo 16.º pode explicar-se pela circunstância de se tratar da alínea que se reporta diretamente a uma das carreiras objeto da disciplina legislativa contida no Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho. Aliás, a omissão de tal referência – a essa alínea f), assim como a qualquer uma das demais alíneas que são aplicáveis – não prejudicaria a habilitação do Governo para legislar sobre a estrutura da carreira técnica superior e da carreira técnica, como fez mediante a aprovação daquele Decreto-Lei. Acresce que a ideia de uma «renúncia tácita» a qualquer outra norma habilitadora constante das demais alíneas do artigo 16.º da Lei n.º 2/88, não só não tem o menor apoio textual, como desconsidera, quer a unidade de sentido do conjunto do corpo do referido preceito com as suas alíneas – está em causa o aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública -, quer a circunstância de a alínea f) ser a única que se reporta especificamente a uma das carreiras objeto da disciplina contida no Decreto-Lei n.º 265/88.
Assim: porque devidamente autorizado por lei de autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 265/88, de 28 de julho, não pode ser considerado organicamente inconstitucional; e porque o mesmo Decreto-Lei invoca expressamente a lei de autorização legislativa ao abrigo da qual é aprovado, inexiste inconstitucionalidade formal.
Pedro Machete