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Processo n.º 307/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por sentença proferida em 4 de novembro de 2010 no Tribunal Judicial de Matosinhos, foram condenados A., B. e a sociedade C., Lda, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1, do RGIT, 30.º, n.º 2, e 7.º, do Código Penal, sendo os dois primeiros sancionados com pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano, com a condição de pagamento da quantia de 49.770,36€ e de metade dos juros moratórios devidos pela omissão de entrega de IVA, e a arguida sociedade com pena de multa.
Depois de afirmar o desconhecimento da existência de bens da sociedade condenada e decidir não instaurar execução relativamente à mesma, pela multa e custas em que fora condenada, o Ministério Público promoveu que “nos termos do preceituado no n.º 7 do art. 8.º do RGIT (...) se considerem os condenados em nome individual solidariamente responsáveis pelo pagamento do montante da pena de multa aplicada à sociedade e que, após notificação para o exercício do contraditório, que sejam emitidas e remetidas guias aos mesmo[s] para pagamento daquele montante referente à pena de multa aplicada à condenada sociedade”.
Por despacho de 19 de dezembro de 2012, foram declaradas extintas as penas de prisão suspensa na sua execução aplicadas aos dois arguidos, entendendo-se que o não pagamento da quantia a que se subordinara a suspensão não era imputável aos arguidos.
E, agora por despacho de 21 de março de 2013, decidiu-se:
“Não obstante a promoção do Digno Ministério Público (...) com base na responsabilidade solidária por tal pagamento, ao abrigo do art. 8.º, n. 7, do RGIT, [m]as considerando o Acórdão do Tribunal Constitucional n. 1/2013, de 22/02/2013, no proc. n. 373/2012, que julgou inconstitucional a mencionada norma, por violação do art. 29.º, n.º 5, da CRP, com cujos fundamentos se concorda, indefiro o promovido.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho, para si obrigatório, com invocação do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.º 1, al. a), 75.º, n.º 1 e 75.ºA, n.º 1 da Lei 28/82, de 15 de novembro (doravante Lei do Tribunal Constitucional ou LTC), referindo que “o recurso funda-se na circunstância de no referido despacho de fls. 940 o Tribunal ter recusado [a] emissão e remessa de guias em nome do condenado individual para pagamento da pena de multa aplicada à condenada sociedade com base na responsabilidade solidária de tal pagamento, por considerar que, por violação do art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, o art. 8.º, n.º 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias é inconstitucional”.
3. O recurso foi admitido.
4. Prosseguindo os autos para alegações, apenas o recorrente as veio apresentar. Rematou essa peça processual com as seguintes conclusões:
«1. Diferentemente do que ocorre com o artigo 7.º-A do RGIFNA e artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, não se vislumbra no n.º 7 do artigo 8.º deste diploma, que a responsabilidade solidária pelas multas, decorra de uma qualquer conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção penal à pessoa coletiva.
2. Deste modo, essa responsabilidade equivale a uma transmissão de responsabilidade penal, que é constitucionalmente proibida (artigo 30.º, n.º 3 da Constituição), ou, primordialmente, a violação do princípio ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5 da Constituição).
3. Assim, a norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, na interpretação segundo a qual, o administrador e gerente de uma sociedade, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 e 7 e 107.º do RGIT), é ainda solidariamente responsável pela multa em que a sociedade, pela prática do mesmo crime, também ela, foi condenada, é inconstitucional por violação daqueles princípios constitucionais.»
II. Fundamentação
5. A questão colocada no recurso em apreço radica na conformidade constitucional da norma alojada no n.º 7, do artigo 8.º, do RGIT, de acordo com a qual quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso.
Ora, como expressamente consta da decisão recorrida, e foi igualmente assinalado pelo Ministério Público, o Tribunal Constitucional apreciou recentemente a mesma dimensão normativa, tenho concluído, tanto no Acórdão n.º 1/2013, como no Acórdão n.º 297/2013, pela sua desconformidade com a Constituição.
Entendeu-se no primeiro desses arestos:
«2. Pelo tribunal de primeira instância, o ora recorrente foi condenado, em coautoria material com a sociedade comercial de que era gerente, pelo crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social em pena de multa, e considerado solidariamente responsável, nos termos do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), pela multa em que igualmente foi condenada a referida sociedade comercial.
Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Évora desaplicou a mencionada norma do artigo 8º, n.º 7, do RGIT, e, em consequência, revogou a sentença de primeira instância na parte em que havia declarado o arguido solidariamente responsável pela multa aplicada à pessoa coletiva.
É desta decisão que vem interposto o presente de recurso de constitucionalidade, com fundamento no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
A questionada norma do n.º 7 do artigo 8º do RGIT dispõe o seguinte:
Quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso.
Importa ter presente que o Tribunal Constitucional se pronunciou já, em diversas ocasiões, relativamente às normas do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, bem como em relação à correspondente da norma do artigo 7º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras, no ponto em que impõem uma responsabilidade subsidiária aos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em sociedades comerciais pelas coimas aplicadas em processo contraordenacional por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento».
Ainda que tenha havido divergência jurisprudencial nas secções, o Tribunal Constitucional, em Plenário, acabou por firmar o entendimento segundo qual a responsabilidade dos gerentes ou administradores prevista naquelas disposições é uma responsabilidade civil por facto próprio, que não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade aquiliana, e relativamente à qual se torna inadequada a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição. Assentando-se, por isso, na ideia de que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes não provém do próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas de um facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal, concluiu-se que não pode falar-se aí de uma qualquer forma de transmissão da responsabilidade contraordenacional ou de violação dos princípios da culpa ou da proporcionalidade na aplicação das coimas (acórdãos n.ºs 437/11 e 561/11).
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 249/12 decidiu-se, por sua vez, em aplicação do citado acórdão n.º 561/11, que o entendimento nele sufragado é transponível para o caso, também previsto nas referidas normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8º, em que esteja em causa a responsabilidade subsidiária pelas multas aplicáveis às pessoas coletivas em processo penal, reafirmando-se aí o argumento central de que se trata de efetivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva.
E de facto, desde que se parta do princípio de que a responsabilidade subsidiária a que se referem essas disposições é uma responsabilidade por facto ilícito e culposo diretamente imputável ao gerente por ter dado causa à insuficiência patrimonial da pessoa coletiva, é indiferente, para efeito do juízo de constitucionalidade, que a não obtenção da receita fiscal se reporte ao pagamento de multa ou de coima, sendo que, em qualquer dos casos, não são aplicáveis as garantias do processo criminal e, por extensão, do processo contraordenacional.
A norma do n.º 7 do artigo 8º do RGIT, que agora está em foco, levanta, porém, um outro tipo de problemas.
Nesse caso, a responsabilidade do gerente relativamente a infração tributária cometida pela pessoa coletiva é solidária, e não já meramente subsidiária, decorre da colaboração dolosa na prática da infração, e tem lugar independentemente da responsabilidade que ao gerente possa também caber a título pessoal.
Tendo em conta a diferença específica relativamente àquelas outras disposições do RGIT e do RJIFNA, o acórdão recorrido sustenta que a mencionada jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa à responsabilidade subsidiária dos gerentes não é transponível para o caso dos autos. E embora reconheça que a condenação solidária do representante do ente coletivo, pela sua natureza de obrigação civil, não é vedada pelo princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal, nem incompatível com o princípio ne bis in idem, acaba por formular um juízo de inconstitucionalidade da norma do nº 7 do artigo 8º do RGIT com base na violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade. Tendo sobretudo em consideração, para assim decidir, que a medida da sanção aplicada à pessoa coletiva não é determinada em função da culpa do titular órgão ou representante e das suas condições pessoais, e a moldura legal da pena de multa aplicável à pessoa coletiva não é também ajustada à que seria devida com base na mera responsabilidade individual.
3. Um ponto que deve ter-se como assente, tal como foi já afirmado pelo tribunal recorrido, é que a questão de constitucionalidade que vem agora suscitada apresenta contornos muito diversos daquela sobre que o Tribunal Constitucional já se pronunciou através dos acórdãos n.ºs 437/11 e 561/11.
Em relação à norma do n.º 7 do artigo 8º do RGIT, está em causa uma responsabilidade solidária de «quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária» pelas multas e coimas aplicadas à pessoa coletiva pela prática da infração, e «independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso».
Prevê-se aí uma responsabilidade solidária, que permite que o pagamento das multas e coimas aplicáveis à pessoa coletiva no âmbito do respetivo processo criminal ou contraordenacional possa ser diretamente exigido ao devedor solidário. A obrigação incide sobre aquele que presta colaboração dolosa, abrangendo qualquer das situações de comparticipação na prática da infração tributária, e é cumulativa com a própria responsabilidade pessoal que dessa conduta possa resultar para o agente. Como se depreende, porém, do disposto no segmento final do preceito, não é necessário que a conduta daquele que colabora na infração seja penal ou contraordenacionalmente punível (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA/MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 3ª edição, Lisboa, págs. 102-103).
O que significa que o devedor pode apenas responder solidariamente pela multa ou coima que tenha sido aplicada à pessoa coletiva ou responder solidariamente por essa multa ou coima, em cumulação com a responsabilidade individual que lhe seja imputável em função da sua própria comparticipação na infração.
No caso concreto, o tribunal de primeira instância condenou distintamente quer a sociedade comercial quer o seu gerente comercial em pena de multa pela prática, em coautoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, e, com invocação do disposto no citado artigo 8º, n.º 7, do RGIT, declarou este último responsável solidário pela multa penal aplicável à pessoa coletiva.
Ainda que a norma sindicada consagre uma responsabilidade solidária em relação a multas e coimas aplicadas pela prática de infração tributária, a questão de constitucionalidade suscitada, por efeito dos contornos do caso concreto, encontra-se confinada unicamente à previsão normativa que impõe ao administrador ou gerente uma obrigação solidária pelo pagamento de multas em que a pessoa coletiva tenha sido condenada em processo penal, e num caso em que o representante da pessoa coletiva foi condenado juntamente com esta por crime fiscal em coautoria material.
É pois neste sentido que deve considerar-se delimitado o objeto do recurso.
4. Como se deixou entrever, a situação sub juditio não é de nenhum modo equivalente àquelas outras sobre as quais o Tribunal Constitucional já se pronunciou em ocasiões anteriores. A responsabilidade subsidiária do gerente a que se referem as normas do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT e do artigo 7º-A do RJIFNA é tida como uma responsabilidade por facto próprio e autónomo que tem relevância no plano da responsabilidade civil extracontratual e que se não confunde com a conduta material que originou a condenação da pessoa coletiva em processo penal. Ao contrário, na hipótese prevista no artigo 8º, n.º 7, do RGIT, o gerente está sujeito a uma responsabilidade solidária pela multa aplicada à pessoa coletiva, responsabilidade que deriva da atuação ilícita que determinou a sua própria condenação a título pessoal, e em coautoria material com a pessoa coletiva, por infração tributária (quanto a esta distinção, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 328).
Poderá dizer-se que a razão de ser do regime legal decorre da necessidade de acautelar o pagamento das multas aplicáveis às pessoas coletivas, prevenindo a possibilidade de estas virem a ser colocadas numa situação de insuficiência patrimonial que inviabilize por motu proprio a satisfação do crédito fiscal.
Ainda que essa medida seja compreensível no plano de política legislativa, e numa perspetiva utilitarista de eficácia da prevenção criminal, ela não pode justificar, por si, por via de um princípio civilístico de solidariedade passiva, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva para o seu administrador ou gerente.
Não é curial, contrariamente ao que se afirma, por vezes, na jurisprudência cível, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. O pressuposto da obrigação solidária é a colaboração dolosa na prática do crime tributário, e é essa conduta que torna o gerente responsável solidariamente pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa coletiva. Não estão aqui em causa quaisquer factos, anteriores ou posteriores à aplicação da multa penal, que tenham colocado a pessoa coletiva na impossibilidade de pagamento. Nem é invocável um qualquer argumento de identidade ou de maioria de razão para tornar equiparável a disciplina desse preceito à responsabilidade subsidiária a que se refere o n.º 1 do artigo 8º (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de março de 2012, Processo n.º 1407/09, e do Tribunal da Relação do Porto de 2 de maio de 2012, Processo n.º 1113/06, e de 6 de junho de 2002, Processo n.º 11/06).
Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação direta de pena de multa. Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa coletiva no interesse de quem agiu.
A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva.
Faz aqui sentido chamar à colação o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição e que na sua dimensão de direito subjetivo fundamental proíbe que as normas penais possam sancionar substancialmente, de modo duplo, a mesma infração (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 244/99, 303/05, 356/06 e 319/12).
Certo é que, como se ponderou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 212/95, o princípio ne bis in idem não obsta a que pelo mesmo facto objetivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas diferentes que poderão ser também passíveis de sanções distintas, pelo que a consagração legal da responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente coletivo não envolve em si uma qualquer violação do artigo 29º, n.º 5, da Constituição, visto que não implica um duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto. Ou seja, sendo diversos os responsáveis nada impede que pelo mesmo facto respondam duas ou mais pessoas, tanto que as condições de imputação são diversas, mormente no tocante à culpa, e os efeitos da condenação são também diversos. É esse princípio que se encontra, aliás, expresso, no que se refere à responsabilidade penal cumulativa das pessoas coletivas e dos respetivos agentes, no artigo 11º, n.º 7, do Código Penal e é reproduzido no artigo 7º, n.º 3, do RGIT (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit., págs. 301-302).
Essa não é, no entanto, a situação versada no artigo 8º, n.º 7, do RGIT, em que, por força da comparticipação na prática da infração tributária, se faz atuar em relação à pessoa singular, que age como representante da pessoa coletiva, a cumulação da responsabilidade penal própria com a responsabilidade solidária pelo cumprimento da sanção penal pecuniária imposta à pessoa coletiva.
O que traduz objetivamente uma dupla valoração jurídico-criminal de um mesmo facto, com uma consequência negativa para o agente, que é assim tido como um condevedor da prestação, independentemente de a Administração Fiscal optar por exigir ou não o pagamento e de o agente poder vir a exercer ulteriormente o direito de regresso contra o coobrigado.
5. Neste contexto, e face aos termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada no caso concreto, não tem cabimento invocar o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal a que alude o artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
A colaboração dolosa na prática da infração pode resultar da intervenção de um titular de órgão ou representante da pessoa coletiva e também de um trabalhador da empresa ou de um prestador de serviços externo. E não está excluído que em relação algum ou alguns dos agentes físicos possam verificar-se causas pessoais de exclusão da responsabilidade penal, sem prejuízo da manutenção do pressuposto que determina a obrigação solidária.
A questão da transmissão da responsabilidade penal poderia colocar-se neste circunstancialismo, isto é, no caso em que o representante da pessoa coletiva, ainda que tenha colaborado na prática da infração por esta cometida, e possa considerar-se incurso na responsabilidade solidária a que se refere o n.º 7 do artigo 8º, não tenha praticado, apesar disso, qualquer conduta punível do ponto de vista criminal, e não tenha por isso incorrido em infração tributária que lhe seja individualmente imputável.
Essa é, aliás - como se deixou esclarecido -, uma possibilidade expressamente salvaguardada no segmento final desse n.º 7, quando se prevê, em relação àqueles que colaboram dolosamente na prática da infração, a responsabilidade solidária por multas aplicadas à pessoa coletiva, independentemente de poderem ser também responsabilizados a título pessoal.
A imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, quando ele não possa ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração – tal como admite o n.º 7 do artigo 8º - configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica.
Desde que, porém – como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o que aí está em causa é, não já transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infração, corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito, e é esta caracterização jurídica que adquire autonomia e prevalência sobre a possível violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição.»
Porque tais fundamentos, com que se concorda, são inteiramente transponíveis para os presentes autos, cumpre concluir nos mesmos termos, ou seja, pela inconstitucionalidade da norma contida no n.º 7, do artigo 8.º, do RGIT, segundo a qual o gerente de uma sociedade, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 e 107.º do RGIT), é ainda solidariamente responsável pela multa em que a sociedade, pela prática do mesmo crime, também ela, foi condenada, por violação do princípio ne bis in idem, acolhido no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição.
III. Decisão
6. Pelo exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária;
b) negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 22 de outubro de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro.