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Processo nº 171/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - I..., Lda, com sede em Cantanhede, intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, contra H... e D..., identificados nos autos, acção com processo ordinário, julgada totalmente procedente por sentença de 30 de Janeiro de 1997, em consequência do que a autora foi declarada legítima e exclusiva proprietária do imóvel descrito no petitório, sendo os réus condenados a reconhecerem esse direito e ainda o réu D... condenado a reconhecer como definitivamente incumprido, por culpa sua, o contrato-promessa por si celebrado com a autora e, bem assim, a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro, acrescida dos juros legais, como indemnização legal.
Inconformado, este último recorreu, de apelação, para o Tribunal da Relação de Coimbra.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Abril de 1999, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, desatendendo a arguição de nulidade deduzida, por aresto de 2 de Novembro seguinte.
2. - Dirigiu-se, então, o apelante ao Supremo Tribunal de Justiça, recorrendo, agora, de revista.
E, concluiu, assim, as suas alegações:
1ª - A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 12° e 405 do Código Civil, porquanto aplica retroactivamente uma lei que não estava em vigor à data da celebração do negócio alegadamente não cumprido pelo Réu, ora Recorrente, sobrepõe-se ao princípio da liberdade de celebração e de estipulação contratual e, sobretudo, tal como interpreta os dispositivos do Código Civil, viola o disposto no Art. 2º e nos ns. 2 e 3 do Art. 18° ambos da Constituição da República Portuguesa.
2ª - Tais normas assim interpretadas foram no sentido de permitir a aplicação ao caso dos autos do regime estabelecido pelo artigo 442° do Código Civil, com a redacção introduzida pelo DL 379/86, de 11 de Novembro, quando tais normativos deveriam ter sido interpretados e aplicados ao caso sub specie com a redacção anterior a 18 de Julho de 1980.
3ª - O regime jurídico de um determinado negócio, firmado sob o império da liberdade contratual, não poderá ser alterado por uma lei futura, imprevisível à data da sua celebração, sob pena de se atraiçoar as vontades expressas das partes e as legítimas expectativas dos contraentes e se colocar irredutivelmente em crise os valores da confiança e da segurança que devem presidir ao comércio jurídico.
4ª - Ao celebrar o contrato cujo incumprimento foi imputado ao Réu, ora Recorrente, ambos os contraentes ficaram cientes que o seu não cumprimento por parte do vendedor apenas obrigaria este à restituição do sinal em dobro, ou seja, a validade e vicissitudes do contrato ficaram decididas pela lei vigente à data em que o negócio foi celebrado.
5ª- Ciente do conteúdo e alcance dessa cláusula, a Autora, ora Recorrida, logo tratou de providenciar a entrega da quantia de 40.000$00 ao promitente vendedor, desse modo fixando logo ali o montante indemnizatório em caso de incumprimento em 80.000$00.
6ª- Porém, querendo aumentar ainda mais o montante indemnizatório, a Recorrida, veio, sete meses depois, reforçar o sinal em mais 60.000$00, elevando, assim, até ao seu limite máximo, o montante indemnizatório devido pelo eventual incumprimento por parte do promitente vendedor.
7ª- Todas as quantias entregues antes da celebração de um contrato para o qual se exige escritura pública, mesmo que totalizem o montante correspondente ao preço, devem considerar-se como sinal, caso a escritura não venha a realizar-se.
8ª- O regime sancionatório que as partes fixaram pelo eventual incumprimento do contrato era igual, mas poderia ser maior ou menor se assim o quizessem, ao estabelecido na lei vigente ao tempo, o qual preceituava que se o não cumprimento de um contrato sinalizado fosse imputável à parte que recebera o sinal teria a parte que o constituíra o direito de exigir o dobro do que houvesse prestado e que, salvo estipulação em contrário, a existência de sinal impedia os contraentes de exigirem qualquer outra indemnização pelo não cumprimento além da correspondente ao dobro do sinal entregue.
9ª- Assim, o negócio celebrado entre a Recorrida e o Recorrente, não admitia qualquer outra indemnização pelo seu eventual incumprimento que não fosse a correspondente ao dobro da quantia entregue a título de sinal.
10ª- A Autora, ora Recorrida, não tinha nem podia ter qualquer outra expectativa que não fosse a de adquirir a pedreira ou, caso tal venda não se consumasse, receber em dobro as quantias entregues ao Recorrente.
11ª- A Autora, ora Recorrida, nada fez durante cerca de quinze anos para que a venda fosse efectuada, nomeadamente, qualquer procedimento judicial com vista, à fixação de prazo para a concretização da venda prometida, bem sabendo que tal venda só poderia validamente celebrar-se por escritura pública.
12ª- A pretensão da Autora, ora Recorrida, constitui também um flagrante abuso de direito, porquanto ignora os termos do negócio por si livremente estabelecido, bem como o regime jurídico vigente à data da sua celebração.
13ª- Além disso, o objecto do contrato prometido nem sequer era um edifício (ou fracção), destinado à habitação, pelo que não se enquadra no espírito que determinou as sucessivas alterações ao artigo 442º do CC e que serviram para justificar o regime especialmente agravado para os promitentes vendedores. Alterações que criaram direito novo e, ao contrário do que pretende a decisão recorrida, não se destinaram apenas a interpretar a lei anterior.
14ª- Assim sendo, como é, o acórdão recorrido aplicou retroactivamente ao caso em apreço um regime jurídico que as partes não quiseram, posterior à celebração do negócio, regime esse que foi criado para prover a situações diferentes da que ora se encontra sub judicio, ou seja, a contratos promessa cujo objecto fosse constituído por edifícios ou fracções destinados à habitação.
15ª- A sentença recorrida ao fazer tais interpretações violou expressamente o disposto no Art. 405° do Código Civil que reconhece às partes a liberdade de contratar e de estipular o conteúdo dos contratos.
16ª- De igual modo, o acórdão em causa ignorou o princípio básico da nossa organização social que é o contido no Art. 2º da CRP, o qual afirma o Estado de direito democrático, no respeito e garantia de efectivação dos direitos.
17ª- Violado foi também pela sentença recorrida o Art. 18°, ns. 2 e 3 da CRP, que prevê quais e em que medida pode a lei restringir direitos adquiridos.
18ª - Além de tudo isso, a Autora, ora Recorrida, ao exigir a indemnização, exerceu um direito para além dos limites impostos pela boa fé e pelo seu fim social e económico, porque não diligenciou para o cumprimento do contrato prometido. Sem prescindir
19ª- Mesmo que a pretensão da Autora merecesse acolhimento, o que só por mera cautela se admite, e, por conseguinte, viesse a apurar-se que o montante indemnizatório é o correspondente ao valor do prédio objecto da venda prometida, sempre deveria ter sido descontado a esse montante o valor correspondente aos benefícios que a Autora já obtivera durante o tempo em que, com base nessa prometida venda, o Réu tolerou que utilizasse a pedreira em causa.
20ª- Esse montante só poderia ser correctamente liquidado em execução de sentença, depois de se apurar, segundo critérios de equidade e justiça relativa, o montante correspondente ao valor económico dos benefícios auferidos pela Autora, a fim de os mesmos serem descontados na indemnização fixada.
21ª- A única indemnização que a Autora pode exigir é, pois, a devolução do sinal em dobro, acrescido de uma correcção monetária a calcular entre as datas das entregas das quantias correspondentes ao sinal e a data em que essa devolução se tornou definitivamente devida (ou seja, entre 6 de .Setembro de 1979 e 25 de Abril de 1980, por um lado, e 4 de Agosto de 1992, por outro lado), mas apenas sobre a quantia efectivamente entregue (ou seja, 100.000$00) e com desconto do valor económico dos benefícios entretanto retirados do prédio em causa pela Autora, ora Recorrida.
22ª- Ao montante indemnizatório assim calculado deve, porém, ser descontado o valor económico dos benefícios retirados do prédio em causa durante esse período, pela Recorrida, por imposição das regras do enriquecimento sem causa.
23ª - Deveria ter sido especificado todo o conteúdo do documento n° 3 junto com a p.i., ou então ter sido quesitado, pois contém factos relevantes para a decisão da causa, nomeadamente um esclarecimento mais profundo das circunstâncias em que tal negócio foi celebrado.
24ª- Não se deve condenar ou absolver ninguém pelo incumprimento de um contrato sem previamente se proceder a um cabal esclarecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito que rodearam a celebração desse contrato, porque só o conhecimento integral dessas circunstâncias vai permitir a adequada compreensão e o necessário enquadramento das circunstâncias que envolveram ou determinaram o seu eventual incumprimento.
25ª- Verifica-se, assim, insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa, uma vez que não foi especificado nem permitido ao Réu, ora Recorrente, fazer prova de que a escritura da venda prometida só seria efectuada depois de ter sido feita a demarcação com os prédios confinantes dos vizinhos e de que ambas as partes acordaram que a única sanção pelo eventual não cumprimento por parte do promitente vendedor seria a devolução do sinal em dobro.
26ª- Também não foi especificado nem quesitado se o prédio objecto da venda prometida era um prédio rústico ou urbano, facto esse bastante importante para determinar se a Autora, ora Recorrida, terá ou não exercido o seu eventual direito à indemnização pelo incumprimento, para além dos limites impostos pela boa fé e pelos seus fins sociais, atento , inclusivamente, o espírito e os motivos que estiveram na origem das sucessivas alterações legislativas verificadas desde 1980, mormente, a da norma que fundamentou a condenação do Recorrente.
27ª- O Tribunal ignorou, assim, factos, relevantes para o exame e decisão da causa.
28ª - O acórdão recorrido padece do vício a que se refere a al. d) do n° 1 do art. 668° do Código de Processo Civil.
29ª - O acórdão recorrido acabou por conceder à Autora, ora Recorrida, uma dupla indemnização correspondente à quantia em que o Réu, ora Recorrente, foi condenado, correspondente ao valor do prédio em causa, bem como o valor dos benefícios económicos que durante cerca de 13 anos retirou da ocupação desse mesmo prédio.
30 - Assim sendo, o acórdão recorrido violou as normas dos arts. 12°, n° 1 ;
442°, n° 2 e n° 3, com a redacção anterior a 18 de Julho de 1986, ex vi do art.
12°, n° 1; 217°, n° 1 ; 224°, n° 1, 1ª parte; 236°, n° 1; 334°; 405°, n. 1;
406°, n. 1; 473° e 479°, todos do Código Civil.
31ª - Assim interpretadas e aplicadas pelo acórdão recorrido, as normas do art.
12 e do art. 13 do Código Civil, violam os preceitos fundamentais expressos nos Arts. 2° e 18°, ns. 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
32ª- Termos em que deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por um outro em que se absolva o Réu, ora Apelante, parcialmente do pedido, condenando-se o mesmo apenas ao pagamento da quantia correspondente ao dobro do sinal que recebera, eventualmente acrescida da correcção monetária a calcular entre as datas das entregas das quantias correspondentes ao sinal e a data em que essa devolução se tornou definitivamente devida (ou seja, entre 6 de Setembro de 1979 e 25 de Abril de 1980, por um lado, e 4 de Agosto de 1992, por outro lado), mas apenas sobre a quantia efectivamente entregue (ou seja,
100.000$00) e com desconto do valor económico dos benefícios entretanto retirados do prédio em causa pela Autora, ora Apelada, a liquidar em execução de sentença.
33ª- Se assim se fizer será feita Justiça”
Por sua vez, contra-alegando, condensou assim a autora e recorrida na respectiva peça processual:
“A) Conforme consta da douta sentença recorrida deve aplicar-se ao presente caso, o artº 442°, nº.2 do Cod. Civil, na sua redacção actual, porque a sanção correspondente ao incumprimento há-de ser aferida pela lei vigente ao tempo em que o incumprimento definitivo ocorra. B) É que as consequências previstas no artº. 442°, nº.2 do Cod. Civil não emergem do contrato, mas do incumprimento deste, solução esta que tem cobertura no artº. 12°, nº.2 do Cod. Civil, pois esta norma distingue entre os factos jurídicos e os efeitos que deles derivam directamente, em que se aplica apenas lei vigente ao tempo em que os mesmos factos ocorrem e as relações jurídicas, independentemente da respectiva causa, ou seja, dos factos jurídicos que lhe dão origem e os efeitos dessas mesmas relações. C) No caso concreto, temos um facto jurídico - contrato-promessa -, que deu origem a uma relação jurídica na qual o promitente comprador é titular de um direito de crédito - a celebração de um contrato prometido - e o promitente vendedor é o sujeito passivo da correspondente obrigação de celebração do contrato prometido e tendo-se esta relação jurídica prolongado no tempo, o recorrente é que veio a incumpri-Ia definitivamente ao vender o prédio prometido vender ao seu co-réu H... . D) Por isso, as consequências desse incumprimento hão-de ser aferidas pelas normas vigentes à data em que o incumprimento ocorreu, dado que as consequências do incumprimento nada têm ver com o facto jurídico que deu origem à relação jurídica incumprida, pelo que tendo o incumprimento definitivo ocorreu com a escritura de 1992, a norma aplicável é a que consta do artº. 442°., n°. 2 do Cód. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei no. 379/86, de 11 de Novembro. E) Desde logo, também não resulta qualquer abuso de direito do não exercício do direito de exigir a conclusão do contrato definitivo não constitui abuso de direito, pois a A. entrou na posse do prédio objecto do contrato-promessa, pelo que não podia o R. daí tirar qualquer argumento no sentido de que a A. tivesse desistido do contrato-promessa, antes sendo exigível ao recorrente que, se pretendia vender o prédio a terceiros, deveria antes - segundo os princípios da boa-fé -, ter contactado a A. para saber ainda do seu interesse na conclusão do negócio prometido, porque o respectivo direito não prescrevera. F) Por outro lado e quanto à interpretação restritiva que o recorrente faz do regime actual do artº. 442°., no.2 do Cod. Civil, como sendo aplicável apenas aos prédios urbanos, a mesma não tem o mínimo de correspondência verbal no texto da lei, pelo que é ILEGAL face ao disposto no artº . 9°., no.2 do Cod. Civil, sendo claro que não foi essa a intenção do legislador, como se alcança do cotejo do artº. 442°., n°. 2 com o artº. 410°., n°. 3 ambos do Cod. Civil. G) Igualmente não tem fundamento a pretensão do recorrente de que a indemnização arbitrada à A. seja reduzida e reduzida duplamente, ou seja, não pode exceder a quantia efectivamente entregue e havendo que descontar os benefícios que a A. obteve do prédio prometido vender, como resulta claramente do artº. 442°., n°. 2 do Cod. Civil. H) Se essa pretensão resulta da determinação da norma aplicável que, como se viu, não dá razão ao recorrente, por outro lado, eram cada vez mais frequentes os casos de violação do contrato-promessa e os promitentes compradores ver-se-iam até na obrigação de indemnizar os promitentes vendedores faltosos se a violação ocorresse, como nos presentes autos, muitos anos depois, sendo certo que esses eventuais benefícios e a sua não indemnização servem para compensar os compradores enganados que ficam apenas com dinheiro, desvalorizável, perdendo os bens prometidos vender e a que tinham direito e cujo valor comercial excede o valor de avaliação, como se verificou nos presentes autos. I) Por fim, pretende o recorrente a ampliação da matéria de facto, quanto à especificação do contrato promessa celebrado entre o recorrente e a autora, o que é neste momento desnecessária face às respostas positivas aos quesitos 3°. a
7°., estando provadíssima a existência e celebração do contrato-promessa. J) Porém, o recorrente pretende agarrar-se ao facto de a escritura de venda depender da delimitação da área a vender no terreno, sendo inquestionável também que as partes fizeram esse acordo, e que até já delimitaram a área vendida, como se alcança da resposta positiva ao quesito 14°. K) Quanto à ampliação da matéria de facto para determinação da natureza rústica ou urbana do prédio prometido vender, resulta evidente que esta pretensão do recorrente tem a ver com sua ilegal e infundada interpretação do artº. 442. nº 2 do Cod. Civil, que restringe a aplicação desta norma aos contratos-promessa relativos a prédios urbanos.
L) Deste modo, improcedem na totalidade as conclusões das alegações do recorrente, devendo consequentemente improceder também na sua totalidade o presente recurso de revista, por o acórdão recorrido não merecer qualquer censura, como é de lei e de Justiça.”
3. - O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 1 de Fevereiro de 2000, julgou o recurso improcedente, confirmando o aresto recorrido.
Aí, e nomeadamente, ponderou-se que o acórdão da Relação já se pronunciara, com a devida segurança, acerca da aplicabilidade da actual redacção do artigo 442º, nº 2, do Código Civil às consequências do incumprimento do contrato-promessa em causa, não obstante a celebração do negócio ter ocorrido ainda sob a égide da anterior redacção do preceito.
Após se transcrever o disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, nos termos do qual “[o] disposto nos artigos 442º e 830º do Código Civil, na redacção que lhe dá este diploma, aplica-se a todos os contratos-promessa cujo incumprimento se tenha verificado após a sua entrada em vigor”, o aresto abona-se largamente na Doutrina dominante.
«Este preceito [observa], como adverte o Prof. Menezes Cordeiro (in Estudos de Direito Civil, vol. I, pág. 34), merece alguma ponderação: “Efectivamente, o Direito Português compreende algumas regras gerais de aplicação das leis no tempo as quais, como é sabido, constam do artigo 12º do Código Civil”. Da aplicação linear deste normativo, caso não existisse o transcrito artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80, resultaria o seguinte: “uma vez que está em causa a validade de certo tipo de contrato-promessa e, ainda, os seus efeitos, as alterações só se aplicariam a factos novos”, isto é, aos contratos-promessas que fossem celebrados depois da entrada em vigor dessas alterações, de harmonia com o disposto no citado artigo 12º, nº 2, Segunda parte, do Código Civil.
É também este o entendimento que se colhe junto da ainda hoje imprescindível obra do Prof. Baptista Machado – Sobre a Aplicação da Lei no Tempo do Novo Código Civil [§ 3º, alínea h) nº 15, em particular págs. 114 e segs.)
“Este regime é o mais adequado: de facto, quando as partes escolhem um tipo contratual, é de crer que tenham ponderado todo o normativo aplicável e, pela conveniência, o tenham eleito para pautar os seus interesses. Entre as regras apreciadas e que, pela natureza das coisas, não podem ter deixado de pesar na decisão das partes, está, naturalmente, o dispositivo aplicável em caso de violação”. (Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 35), ou seja, aos efeitos do inadimplemento. Mas outro foi o entendimento do legislador de 1980.
“Ao mandar que todas as alterações introduzidas se apliquem a todos os contratos promessas cujo incumprimento se verifique na data da sua entrada em vigor, o legislador vai atingir contratos celebrados ao abrigo da lei anterior. O que significa que as partes, ao arrepio do espírito do Direito Civil, podem vir a encontrar-se perante um contrato que nunca quiseram.
“Esta situação, pouco ortodoxa, é juridicamente possível, e, concretamente, pode até ser desejável. De facto – e salvas determinadas excepções constitucionais, de que a Lei Penal constitui o mais seguro exemplar – o legislador pode estatuir eficácia retroactiva, desde que o faça expressamente”. O próprio artigo 12º do Código Civil, no seu nº 1, abre expressamente as portas a essa possibilidade. “Mas tal só sucederá quando ocorram razões imperiosas” que justifiquem ou requeiram essa postura. É este quadro que deve nortear a interpretação do artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80.
É por estas mesmas águas que navega o pensamento do Prof. Baptista Machado que, após profunda meditação, que não cabe aqui explanar, remata do seguinte modo: “O que de facto acontece é que o chamado ‘estatuto do contrato’ (ou melhor, o estatuto da autonomia privada), sempre foi um ‘estatuto’ subordinado relativamente aos restantes ‘estatutos’”. Por isso mesmo, toda a Lei Nova que seja de qualificar como respeitante aos estatuto das pessoas e dos bens, ou como relativa à organização da economia, à defesa dos direitos das pessoas ou à tutela das categorias sociais “mais fracas”
(de cariz dirigista ou de cariz proteccionista, portanto) restringe o domínio da autonomia contratual e será em regra de aplicação imediata (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, págs. 237 e segs.; cfr., também, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, págs. 103 e segs., e 331 e segs.). Em suma: “O ‘estatuto do contrato’ é determinado em face da lei vigente ao tempo da conclusão do mesmo contrato. Sempre que, porém, as cláusulas de um contrato celebrado na vigência da L.A. e por esta consideradas válidas, briguem
(conflituem) com as disposições da L.N. com incidência sobre os efeitos dos contratos, sendo o teor de tais disposições ditado por razões atinentes ao estatuto das pessoas ou de bens, a princípios estruturadores da ordem social ou económica, estas disposições prevalecem sobre aquelas cláusulas. Enquanto ordenadoras do estatuto legal das pessoas e dos bens, tais disposições regulam problemas para as quais a lei competente é a L.N.”. Foi no seguimento desta orientação que o legislador de 80 determinou a aplicação imediata das alterações introduzidas nos artigos 442º e 830º do Código Civil, por ele próprio, em consonância com o disposto no transcrito no artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80.
“Tendo em mente a ratio legis do diploma em apreciação”, tal como resulta do seu preâmbulo, e do seu dispositivo, “o entorse às regras gerais é compreensível”. De facto, se o Decreto-Lei nº 236/80 só se aplicasse aos contratos promessas que, depois da sua entrada em vigor, fossem celebrados, verificar-se-iam em relação às promessas pendentes, a não protecção que razões sociais imperiosas – que sobrelevam a autonomia privada – houve que adoptar. Efectivamente, com uma protecção traduzida na faculdade de exigir uma indemnização actualizada, procura-se evitar que motivos especulativos e contrários à boa fé levem à resolução ou à violação do contrato pela parte que promete transmitir ou constituir o direito (cfr. Almeida Costa, Contrato-Promessa, pág. 55). E uma protecção é igualmente devida quer nos contratos celebrados antes, quer nos contratos celebrados depois, da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 236/80. O que importa é o incumprimento tardio, ocorrido já na vigência deste diploma. Menezes Cordeiro adverte ainda para a circunstância de que razões psicológicas e especulativas – a não se impor o regime do artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80 – poderiam até levar a uma multiplicação de prevaricações em relação aos contratos promessas pendentes (ob. cit., pág. 36). Não restam, pois, dúvidas de que o cenário jurídico descrito justifica plenamente a adopção da retroactividade determinada por aquele preceito.
É também ponto assente que o posterior Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, ao introduzir alterações no regime do contrato-promessa, se limitou a rever o Decreto-Lei nº 236/80 – aproveitando a ocasião para eliminar algumas dúvidas que o primitivo texto do Código Civil suscitava – perfilando-se não com feição inovadora, mas como texto interpretativo do diploma de 1980 (cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., págs. 63 e segs.). Este entendimento afigura-se irrefragável, em especial, relativamente ao artigo
442º, nº 2, do Código Civil, que é o preceito que particularmente nos interessa considerar.
É também, actualmente, dado incontroverso que o novo preceito, inserto naquele artigo, se aplica a todos os contratos-promessa de compra e venda, seja qual for o objecto do contrato prometido ou a afectação contratual desse objecto e não apenas aos contratos previstos no nº 3 do artigo 410º, sendo elucidativo, nesse sentido, o confronto do texto do nº 2 do artigo 442º com o disposto no nº 1 e principalmente no nº 3 do artigo 830º [cfr. Prof. Antunes Varela, Sobre o Contrato-Promessa, 2ª ed., pág. 131, nota 1)]. Não se descortinam, efectivamente, razões válidas para restringir o âmbito de aplicação da 2ª parte do nº 2 do artigo 442º à promessa prevista no nº 3 do artigo 410º. Por isso considera-se aquele preceito como aplicável a todas as promessas, com tradição da coisa a que se refere o contrato-promessa independentemente do objecto deste: coisa móvel ou imóvel, prédio rústico ou prédio urbano, edifício (ou sua fracção autónoma) já construído, em construção ou a construir, destinada a habitação ou a fim não habitacional (comércio, indústria, profissão liberal, escritórios, garagem, etc.)” (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 1998, pág. 94). Não tem, assim, o menor sentido, os esclarecimentos que a recorrente pretende – obnubilando, de resto, elementos fácticos existentes nos autos, nesse sentido – em ordem a definir melhor o objecto do contrato-prometido. Aliás, temos como certo que a denunciada insuficiência factual deixou de ter qualquer justificação, perante a linha interpretativa aqui seguida. Não deixaremos, no entanto, de assinalar que, no âmbito da redacção do artigo
712º do Código de Processo Civil ainda aqui aplicável (que escapa à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 375-A/99), o Supremo não tem poderes para sindicar o não uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos por aquele preceito, apenas podendo criticar o uso desses mesmos poderes, como tem sido unanimemente entendido por aquele Alto Tribunal. E não se vê razão, face ao caminho hermenêutico percorrido, para lançar-se mão do disposto no nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.
É de repudiar também a solução proposta pela recorrente com vista a se determinar o quantum indemnizatório devido em consequência do incumprimento do contrato-promessa, por tal via conflituar abertamente com o critério estabelecido, para tal fim, pela segunda parte do nº 2 do artigo 442º do Código Civil. Se a recorrente entendeu haver razões que justificassem o recurso, a seu favor, das regras atinentes ao enriquecimento sem causa, fora do âmbito do normativo citado, então devia ter aperfeiçoado o carreamento de factos, no competente articulado, Conducentes a esse propósito e afirmado na tramitação processual necessária à obtenção desse desiderato. Mas nada disso sucedeu. Esgrima, ainda, o recorrente o facto de o Acórdão recorrido não ter, em seu entender, respeitado os princípios constitucionais insertos nos artigos 2º e
18º, nºs. 2 e 3, da CRP. Não se deteve, porém, em justificar o motivo dessas alegadas violações, limitando-se, com referência ao primeiro preceito enunciado, a afirmar o desrespeito pelo Estado de Direito democrático, no respeito e garantia da efectivação de direito, e no que respeita aos outros dispositivos, a invocar, ao que parece, uma eventual restrição de direitos adquiridos. Perante a falta de fundamentação de tal denúncia, falece a possibilidade de nos pronunciarmos sobre ela. De todo o modo, a via interpretativa aqui efectuada, só por si, na medida em que anula as premissas essenciais em que assenta o raciocínio do recorrente, parece eliminar os avançados receios da verificação de inconstitucionalidades. Mas, ainda a este respeito não deixaremos de apelar aqui – por não nos parecer despropositada uma chamada – duas ideias basilares para desfecho das considerações expostas, por nos parecer que reforçam o seu suporte racional. A primeira, tantas vezes proclamada pelo Tribunal Constitucional, escorado na melhor doutrina, é a de que a nossa Lei Fundamental só reclama que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual, e que se trate diferentemente o que for dissemelhante. Não proíbe se estabeleçam distinções, mas tão só que elas sejam arbitrárias, porque carecidas de fundamento material bastante.
A outra é para relembrar que o direito à indemnização e a competente obrigação de a prestar, no âmbito da responsabilidade obrigacional, são efeitos fundamentais do não cumprimento imputável ao devedor. Portanto, esse direito como essa obrigação não nascem com o incumprimento. Não há que reportá-los, portanto, ao momento da celebração do contrato, numa incorrecta configuração dos direitos adquiridos. Como ponderou o Prof. Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., pág. 89), “A principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação imposta ex lege ao devedor de indemnizar o prejuízo causado ao credor”. Resta-nos confirmar a já decidida improcedência de recurso, com a consequente confirmação do Acórdão recorrido».
Diamantino Carvalho interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a “declaração” de inconstitucionalidade dos artigos 12º, 13º, 410º, nº 3, e 442º, nºs. 2 e 3, do Código Civil, bem como do artigo único do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, “quando interpretados nos termos em que o fez o acórdão referido, por violação dos artigos 2º, 18º, 202º, nº 1, 203º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa”.
Notificado para uma cabal explicitação da matéria objecto do recurso, veio dizer o seguinte:
“A questão suscitada pelo recorrente junto deste alto tribunal prende-se com o facto de ter celebrado um determinado contrato com uma empresa (cujo objecto era a promessa de compra e venda de um terreno rústico para exploração de uma pedreira), na vigência de um determinado quadro legal, com base no qual, aliás, foram também fixadas as respectivas sanções para o caso do seu não cumprimento por qualquer das partes. Posteriormente, por razões que nada tinham a ver com o objecto do negócio em causa (por razões que se prendiam com os direitos dos promitentes compradores de prédios ou fracções de prédios urbanos), a legislação foi alterada, alteração essa que implicou uma substancial modificação do regime sancionatório previsto na lei para o tipo de contrato celebrado pelo recorrente. Quando o recorrente celebrou o contrato confiou na lei existente e não podia prever as alterações legislativas supervenientes, muito menos o regime especialmente gravoso que o novo regime instituiu. Ora, são precisamente as interpretações normativas das normas dos arts. 12º,
13º, 410º, nº 3, e 442º, nºs. 2 e 3, do Código Civil, bem como do artigo único do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, feitas no douto acórdão recorrido, segundo as quais o novo regime sancionatório se deve aplicar o contrato celebrado pelo recorrente (muito embora a «ratio» dessas alterações pouco ou nada tenham a ver com o objecto do contrato dos autos) que constitui a razão da invocada inconstitucionalidade daquelas normas. Ou seja: a serem interpretadas, como o foram no douto acórdão recorrido, no sentido de permitir a aplicação do novo regime legal ao caso dos autos, tais normas ofenderiam a Constituição da República Portuguesa, mormente o princípio da confiança ínsito no seu artº 2º. É que, na opinião do recorrente, nunca haverá um verdadeiro Estado de Direito democrático se não houver confiança dos cidadãos, nas leis – no legislador que as faz, nos tribunais que as aplicam, em suma nas instituições democráticas. Termos em que se conclui como no requerimento de interposição do recurso, ou seja, que sejam declarados inconstitucionais os artºs. 12º, 13º, 410º, nº 3, e
442º, nº. 2 e nº 3, do Código Civil, bem como do artigo único do Decreto-Lei nº
379/86, de 11 de Novembro, quando interpretados nos termos em que fez o acórdão referido, por violação dos artºs. 2º, 18º, 202º, nº 1, 203º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa.”
4. - Prosseguiram os autos para efeitos alegatórios, tendo o recorrente elaborado, na respectiva peça processual, as seguintes conclusões:
“I. Qualquer restrição à liberdade contratual tendo por objecto direitos livremente disponíveis só poderá efectivar-se em obediência ao estatuído no art.
18º da Lei Fundamental, nomeadamente, ao respeito pelo núcleo essencial do direito restringido, bem como pela exigência da não retroactividade das restrições. II. Esta exigência não constituiu um princípio de aplicação exclusiva em matéria penal, mas tem de ser considerado válido para todas as leis que diminuam direitos ou criem novos deveres para os cidadãos, mesmo que no quadro de relações exclusivamente privadas. III. O princípio do Estado de Direito democrático impõe o respeito pela confiança e segurança dos cidadãos no ordenamento jurídico, quer nas suas relações com os poderes públicos quer nas relações entre si. IV. Uma lei retroactiva, mesmo versando matéria do foro civil, deverá ser declarada inconstitucional sempre que contrariar normas ou princípios constitucionais, tais como o subprincípio da protecção da confiança ínsita no artº 2º da CRP. V. A violação desse princípio ocorrerá quando a aplicação retroactiva de uma lei se revelar ostensivamente irrazoável, ou violar de forma inaceitável a segurança e a confiança que a comunidade em geral e cada um dos cidadãos em particular hão de esperar e depositar na ordem jurídica. VI. O DL. Nº 379/86, de 11 de Novembro visou fundamentalmente os mesmos objectivos do DL nº 236/80, de 18 de Julho, ou seja, o de acudir a situações de incumprimento por parte do promitente vendedor da «promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo, destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimo maxime tomados de instituições de crédito». VII. Esses diplomas tinham como objectivo «acautelar a posição do promitente-comprador de edifício, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais. VII. O regime estabelecido em ambos os diplomas constituiu uma forma de o Estado intervir no mercado da habitação em ordem a criar garantias adicionais para a realização prática do direito à habitação. IX. Nenhuma das preocupações do legislador do DL 379/86 (tal como do DL 236/80) tem cabimento na caso sub specie, quer quanto à força e/ou poder económico das partes, quer quanto às expectativas por parte da Autora. X. Nenhuma das razões que justificaram a intervenção extraordinária do legislador pode ser invocada pela Autora nos presentes autos. XI. Colocados na balança da ponderação os interesses do recorrente, da Autora e do próprio legislador, verifica-se que deve ser dada prevalência aos interesses do recorrente. XII. A Autora, ao celebrar, em 1979, o contrato promessa com o recorrente, não podia legitimamente esperar outra coisa senão o que constava dos próprios termos do contrato celebrado e da lei então vigente, pelo que nenhuma expectativa legítima poderia ser invocada. XIII. Nenhum dos motivos por que o legislador alterou, em 1980 e 1986, o regime dos contratos promessa visava a protecção dos interesses iguais ou sequer idênticos aos que a Autora detinha no caso em apreço. XIV. Com a aplicação retroactiva do regime estatuído no DL nº 379/86, de 11 de Novembro, o recorrente viu traídas a segurança e a confiança que depositara e esperava do ordenamento jurídico em vigor à data da celebração do contrato promessa, ou seja, em 6 de Setembro de 1979. XV. Na data da celebração do contrato promessa nada faria prever que a ordem jurídica que regia aquele contrato viria a ser tão radicalmente alterada e sobretudo nada podia fazer crer que as alterações posteriores se lhe aplicariam retroactivamente. XVI. Os interesses do Estado/legislador não têm acolhimento no caso sub specie, porquanto nenhum dos objectivos que motivou a alteração legislativa podem ser opostos ao recorrente, porque nenhum deles está em causa no concreto conflito que deu origem aos presentes autos. XVII. Devem, assim, declarar-se inconstitucionais as normas dos arts. 12º, nº 2 e 13º, nº 1 do Código Civil, por violação dos arts. 2º, 17º e 18º, nº 2 e nº 3 da Constituição da República Portuguesa, quando interpretadas com o sentido e alcance com que o fez o acórdão recorrido, ou seja, quando interpretadas e aplicadas de modo a permitir a aplicação do novo regime sancionatório instituído pelo DL 379/86, de 11 de Novembro ao contrato promessa celebrado pela autora e pelo recorrente. XVIII. Devem também ser declarados inconstitucionais o DL 379/86, de 11 de Novembro e o DL 236/80, de 18 de Julho, na parte em que dão novas redacções aos arts.410º e 442º, do Código Civil sempre que o objecto do contrato prometido vender seja um prédio rústico ou um prédio urbano não destinado à habitação, por violação do princípio da liberdade contratual ínsito nos arts. 2º, 17º e 18º, nº
2 e nº 3 da CRP. XIX. Consequentemente deve determinar-se a projecção dos respectivos efeitos a nível do Supremo Tribunal de Justiça, de modo a que o acórdão recorrido seja reformulado em conformidade. Se assim se fizer, será feita justiça.”
A recorrida, por seu turno, condensou a matéria das suas alegações nas seguintes conclusões:
“A) A norma do artº 405º, nº 1 do Cod. Civil não tem correspectivo no texto constitucional, pelo que não pode sem mais ser erigida em direito constitucionalmente garantido e não pode essa norma ser invocada, como o faz o recorrente, como forma de branquear as situações de incumprimento como aquela que é objecto do presente recurso, pois o recorrente não refere é que foi ele quem violou o contrato que assumira. B) Além disso, no caso concreto, a lei nova não vem afectar a validade de actos anteriormente praticados, nem põe em causa qualquer das cláusulas inseridas no contrato, mas vem apenas regular de forma diferente o incumprimento contratual de qualquer das partes outorgantes de um contrato-promessa, pelo que não há, no presente caso, retroactividade da lei civil. C) O ora recorrente nas suas alegações considera que é correcta a solução legal se aplicada aos empreiteiros e construtores civis, mas não é correcta quando aplicada a ele próprio, tão violador de contrato promessa como os restantes, mas apenas porque é – ao que parece – um velhinho de 80 anos e com dificuldades, que se lhe não conhecem e que por isso tem um estatuto diferente que é o de [...] não sofrer as mesmas sanções pelo não cumprimento dos contratos que os outros devem sofrer. D) Da maneira como o recorrente põe o problema, ele não é um problema de constitucionalidade das normas citadas, mas é um problema de eventual legalidade da sua aplicação ao caso concreto dos autos, ou seja, não se trata de aplicação de lei inconstitucional, mas de errada aplicação de lei constitucional, o que não âmbito do recurso para o Tribunal Constitucional. E) Indica o recorrente como normas constitucionais violadas o artº 2º, porque faz uma interpretação muito pessoal e pouco objectiva do conceito de estado de direito democrático, só que este também tem de sancionar as violações dos contratos que os cidadãos façam, pois não pode nenhum cidadão confiar em que a ilicitude civil seja impune ou desvalorizada. F) Por sua vez, os artigos 17º e 18º, ambos da Constituição definem o núcleo dos direitos fundamentais, como sendo aqueles que estão enunciados no título II do diploma constitucional e não vem lá nada referido relativamente a contratos e nem sequer por analogia os contratos aí se podem considerar englobados, pelo que não podem considerar-se violados quaisquer dispositivos legais. G) Deste modo, o presente recurso carece de base séria, legal ou moral, pelo que deve ser rejeitado, como é de lei e de Justiça.”
Equacionada uma questão prévia com virtualidade para um eventual não conhecimento do objecto do recurso, foi sobre a matéria ouvido o recorrente que deste modo se expressou:
“a) Nas conclusões da sua resposta às alegações do recorrente, a requerida diz que a norma do art. 405º, nº 1 do Código Civil não tem correspectivo no texto constitucional. Tal posição não é correcta como aliás se demonstra no ponto 1 das alegações do recorrente e nas alegações I, II e III do seu recurso. b) Diz também a recorrida que no caso sub judicio não há retroactividade da lei civil. Nada mais falso, pois do que se trata é de aplicar a um contrato um regime jurídico que não existia na altura em que esse contrato foi celebrado, regime esse que as partes nem sequer previram. Mais ainda, A nova lei derrogou o regime sancionatório que havia sido estabelecido pelas partes, quando é certo que os requisitos que determinaram a criação do novo regime jurídico não estavam reunidos no caso em apreço. Ou seja, a nova lei não foi criada para acudir às situações como aquela de que a recorrida se acha vítima. c) Na conclusão C), a recorrida expende um argumento/consideração falacioso, próximo da chicana, e que ofende a seriedade com que se deve tratar as questões junto deste alto Tribunal. Na verdade, nunca o recorrente pretendeu que seria correcta a solução legal se aplicada aos empreiteiros e construtores civis, mas não quando aplicada ao próprio recorrente. O que se disse foi o seguinte (Cfr. ponto 2 das alegações e conclusões VI a X do recurso): DL 379/86, visou fundamentalmente os mesmos objectivos do DL nº 236/80, de 18 de Julho, ou seja, o de acudir a situações de incumprimento por parte do promitente vendedor da «promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados à habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito» (cfr. preâmbulo do DL nº 379/86). Fundamentalmente o DL de 1986, tal como o de 1980, tinha como objectivo «acautelar a posição do promitente-comprador de edifício, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais». Em suma, ambos os diplomas visaram acautelar os legítimos interesses das partes mais fracas (promitentes compradores de fracções para habitação) contra o oportunismo das empresas de construção civil que, protelando indefinidamente a entrega das habitações prometidas vender (ainda na planta), acabavam (uma vez construídos os prédios) por proferir a devolução do sinal em dobro (entretanto já parcialmente devorado pela inflação) em vez do cumprimento da promessa. regime estabelecido naqueles diplomas constituiu, assim, uma forma de o Estado intervir no mercado da habitação em ordem a criar garantias adicionais para a realização prática do direito à habitação. Ora, é manifesto que nenhuma das preocupações do legislador do DL 379/86 (tal como do DL 236/80) tem cabimento no caso sub specie. Primeiro, quanto à força e/ou poder económico das partes. De um lado temos a Autora, uma empresa economicamente saudável que pretende adquirir um terreno para exploração de uma pedreira e do outro temos um cidadão, viúvo, com quase 80 anos de idade que se debate com graves problemas para fazer face às contingências de uma velhice solitária. d) O problema posto pelo recorrente é um problema de inconstitucionalidade das normas dos arts. 12º, nº 2 e 13º, nº 1 do Código Civil, bem como do DL nº
236/80, de 18 de Julho e DL nº 379/86, de 11 de Novembro, na medida em que permitem a aplicação retroactiva de uma lei que não estava em vigor ao tempo em que foi celebrado o contrato em causa. Nessa medida, ou seja, interpretadas e aplicadas retroactivamente, quer aquelas normas do Código Civil quer os diplomas referidos ofendem a Constituição da república Portuguesa, conforme consta das conclusões XVII e XVIII. e) Diz a recorrida na conclusão E) da sua resposta que o artº 2º da CRP
«...também tem de sancionar as violações dos contratos que os cidadãos façam, pois não pode nenhum cidadão confiar em que a ilicitude civil seja impune ou desvalorizada». Sinceramente, o recorrente não alcança o que a recorrida pretende significar com tal asserção, mas sempre dirá que o incumprimento de que se trata no caso sub specie, estava previsto no próprio contrato, no qual, aliás, as partes fixavam a respectiva sanção. Não é a CRP que deve estabelecer o regime sancionatório dos contratos, mas sim a lei ordinária e os próprios contraentes dentro dos limites da liberdade contratual. Foi o que aconteceu no caso em apreço. O que se passou relativamente ao recorrente foi que este viu traídas a segurança e a confiança que depositara e esperava do ordenamento jurídico em vigor à data da celebração do contrato promessa, porquanto nada fazia prever que a ordem jurídica que disciplinava aquele tipo de contratos viria a ser tão radicalmente alterada e sobretudo nada podia fazer crer que as alterações posteriores se lhe aplicariam retroactivamente. f) Por fim, a recorrente afirma que os arts. 17º e 18º da CRP «...definem o núcleo dos direitos fundamentais, como sendo aqueles que estão enunciados no título II do diploma constitucional e não vem lá nada referido relativamente a contratos nem sequer por analogia os contratos aí se podem considerar englobados, pelo que não podem considerar-se violados quaisquer dispositivos legais». Ora, é inegável que o princípio da liberdade contratual é um dos direitos com assento no elenco dos direitos, liberdades e garantias consignados na CRP, e não podia ser de outro modo num Estado de Direito Democrático como é o nosso. Assim, qualquer restrição à liberdade contratual só poderá efectivar-se em obediência ao estatuído no art. 18º da Lei Fundamental, nomeadamente, o respeito pelo núcleo essencial do direito restringido, bem como pela exigência da não retroactividade das restrições. Esta exigência não constitui um princípio de aplicação exclusiva em matéria penal, mas tem de ser considerado válido para todas as leis que diminuam direitos ou criem novos deveres para os cidadãos, mesmo que no quadro de relações exclusivamente privadas. g) Termos em que e nos demais de direito, deve esta instância ser declarada regular, admitindo-se o recurso e prosseguindo os autos para decisão final. Se assim se fizer, será feita Justiça.”
II
1. - O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70ºda Lei nº 28/82, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas que a decisão recorrida haja aplicado efectivamente, de modo a constituir a sua ratio decidendi (ou uma das suas rationes decidendi). A norma arguida de inconstitucional há-de, porém – no seu todo, em dado segmento ou em determinada interpretação normativa –, violar, directa ou imediatamente, uma norma ou princípio constitucional.
Ou seja, não estão abrangidos por esse objecto os casos de inconstitucionalidade indirecta, aqueles em que a violação da lei fundamental ocorre porque, em primeira linha, existe uma violação de um preceito de lei infraconstitucional. Neste sentido, de resto, tem-se pronunciado repetida e impressivamente este Tribunal Constitucional, na sua jurisprudência: cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 277/92, 405/93, 354/97 e 570/98, publicados no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992, 19 de Janeiro de 1994, 18 de Junho de 1997 e 26 Novembro de 1999, respectivamente.
Acresce, numa segunda ordem de considerações, que ao Tribunal Constitucional compete julgar, não o acto decisório recorrido em si mesmo considerado, envolvendo a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou tão pouco o mesmo, visto como resultado da conjugação da matéria de facto ao critério normativo utilizado, mas sim a constitucionalidade mesma desse critério normativo. A esta luz, e como também se tem ponderado na jurisprudência deste Tribunal, não é sindicável por este meio a aplicação a uma dada situação concreta de um critério oriundo da subsunção do caso concreto à norma, operado pelo aplicador do direito (cfr., v.g., o acórdão nº 82/01, inédito: é a norma – ou a interpretação normativa – aplicada na decisão que compete julgar, aferindo-se a constitucionalidade do critério normativo e não o acto de julgamento, em si, ou a correspectiva decisão).
O que vale dizer que não importa cuidar do acerto lógico-jurídico da subsunção do caso sub judice à norma. O que está em causa são os critérios jurídicos autonomizados, genérica e abstractamente referidos pelo julgador para decidir quanto ao acerto constitucional de uma certa norma ou dimensão normativa do direito infra-constitucional, face ao texto constitucional.
Na verdade, não foi acolhida pelo legislador português uma via de recurso equiparável ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais, ou recurso de amparo.
A competência do Tribunal Constitucional, como sublinha Rui Medeiros, abrange “a fiscalização da constitucionalidade de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico” (cfr. A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, pág. 339).
A base de sustentação deste juízo subtrai ao poder cogniscitivo do Tribunal Constitucional a mera determinação do âmbito de aplicação do preceito quando circunscrito à mera tarefa e subsunção jurídica do caso, “não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição”.
Assim, poderão indicar-se, entre tantos outros, os acórdãos nºs. 192/94, 178/95, 205/99, 255/99 e 191/01, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Maio de 1994, 21 de Junho de 1995, 21 de Outubro e de 5 de Novembro de 1999, respectivamente, sendo o último inédito.
Ora, o âmbito da competência do Tribunal Constitucional para conhecer dos recursos de constitucionalidade, circunscritos, como tais, ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa, não pode ser franqueado de tal modo que se lhe esvazie o seu conteúdo funcional. Como se observa no citado acórdão nº 191/01, ao Tribunal Constitucional deparar-se-ia a necessidade de se confrontar com «toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais [...] uma vez que sempre seria possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu “sentido natural” [e qual é ele, em cada caso concreto?], com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador, e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria de competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica».
2. - Nesta perspectiva poder-se-ia dizer que, no caso sub judice não se verificam os pressupostos de admissibilidade do concreto recurso de fiscalização de constitucionalidade.
Com efeito, a leitura das várias peças processuais – releve-se-nos a extensão das transcrições feitas mas a fundamentação da decisão justifica-o – desvendaria não estarem em causa quaisquer dimensões interpretativas de normas aplicadas no aresto recorrido mas, pura e simplesmente, um juízo de discordância quanto aos parâmetros que moldaram a decisão recorrida.
O ora recorrente, nas alegações que apresentou perante o Supremo Tribunal de Justiça, explicitamente afirmou que este, ao aplicar retroactivamente um regime jurídico não querido pelas partes, criado para situações diferentes e posterior à celebração do negócio, violou – nessa interpretação – o disposto no artigo 405º do Código Civil, preceito que reconhece aos interessados a liberdade de contratar bem como a de estipular o conteúdo dos contribuinte, assim se violando, do mesmo passo, quer o disposto no artigo 2º, quer o preceituado no artigo 18º, nºs. 2 e 3, ambos da Constituição da República.
Dir-se-á que a convocada matéria de inconstitucionalidade foi suscitada a tempo, ainda que não fizesse parte do arsenal argumentativo utilizado junto da 1ª Instância e, em seguida, nas alegações para o Tribunal da Relação.
No entanto, escreveu-se no acórdão recorrido, em termos aqui não censuráveis, que o cenário jurídico que descreveu e sobre o qual se respaldou, “justifica plenamente a adopção da retroactividade”, não se descortinando, in casu, razões válidas para restringir o âmbito de aplicação da segunda parte do nº 2 do artigo 442º à promessa prevista no nº 3 do artigo 410º
- e, em termos que oportunamente se transcreveram, afastam-se as equacionadas objecções de matriz constitucional.
A dimensão atomística, não normativa, da decisão retiraria, assim, ao recorrente, a possibilidade de interpor o presente recurso de constitucionalidade. As considerações expendidas a respeito do núcleo essencial do alegado direito restringido, bem como sobre a exigência da não retroactividade das restrições – que os artigos 17º e 18º da lei fundamental protegem – não têm razão de ser quando, como sucede, se reage quanto à decisão em si mesma considerada.
De todo o modo, a verdade é que a recorrente nunca suscitou, durante o processo, isto é, perante o Tribunal a quo, a questão de inconstitucionalidade da norma do direito transitório aplicável, ou seja, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, a qual determinou efectivamente a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2001 Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida